Você está na página 1de 13

“HÁ CIGARRAS ENQUANTO FORMIGAS?

DIFERENTES MODOS DE
VER MATRIX”

Ronaldo Nunes Linhares 1

RESUMO

O cinema e em especial o filme Matrix nos coloca diante de varias questões


entre elas qual a relação da arte com a tecnologia na pós-modernidade. É o fim da
arte ou a tecnologias nos impõe novas formas estéticas de ver o mundo?

***

PALAVRAS CHAVES
Arte técnica, Estética, Matrix, Rede, Virtualidade, Interatividade,
Mitologia.

***

Lançamos mão dos versos de Elisa Lucinda para escrever sobre


as ambivalências, as complexidades, as incertezas, evolução ou como sugere
Castro, os “paradoxos” da arte e da concepção estética de mundo na
sociedade “tecno”.

Primeiro, aportamos na idéia de Estética como, “... a concepção


de um modo específico de apropriação da realidade, vinculado a outros modos
de apropriação humana do mundo e com as condições históricas, sociais e
culturais em que ocorre”1 e, Arte como uma forma do comportamento estético
do homem, ou seja a capacidade humana de descrever, praticar, materializar
sua relação sensível com o mundo, resultado de sua própria maneira de

1
Professor do Programda de Pós Graduação da Universidade Tiradentes. Mestre em Educação pela UFS
e doutor em Ciencias da Comunicação pela ECA/USP. Coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPQ
“Educação, Comunicação e Sociedade e do Nucleo Estadual de Educação Profisisonal a Distancia.
2

apropriação estética dele, “... a expressão das relações desconhecidas e afinal


convincentes entre os seres e as coisas” (Godard, História do Cinema) 2.
Estes conceitos ou concepções ampliam o universo de ação e propõem
num primeiro momento, o estético como o artístico e o não artístico, libertando-
se das concepções de Estética como filosofia do belo, Filosofia da Arte e
Ciência da Arte. Acrescentando em sua esfera de reflexão os objetos não
artísticos elaborados pelo homem - produtos artesanais, artefatos mecânicos
ou técnicos, artigos industriais ou usuais da vida cotidiana - “que se reagem
bem a uma finalidade não estética, também tem seu lado estético”3. E num
segundo momento, o artístico sem reduzi-lo ao estético, considerando a arte
como uma manifestação humana complexa, presa a um modo peculiar de
relacionar o estético ao extra-estético.
Demonstra-se com essas reflexões um esforço de libertar-se, como
observa Vazquez, “...do deducionismo das estéticas metafísicas ou
especulativas do passado (...) construindo determinações mais gerais (...) uma
teoria geral do estético que aspira a dar razão ao concreto, mas a luz de
conceitos que se situam no marco dessa sensibilidade, que é ao mesmo tempo
universal e histórica.”4 A sensibilidade referida então é a sensibilidade estética
contemporânea, que procura superar a unilateralidade funcional dos objetos.
A perspectiva de evolução também se propõe para a compreensão da
arte pós clássica, que busca ultrapassar as concepções da arte clássica,
construída a partir dos valores da estética grega, de “reconhecimento das
distinções, busca de peculiaridades, ordem, simetria e completude”5,
construindo uma nova concepção de arte. Mantêm a identidade e
independência do artista numa sociedade caracterizada pela supremacia do
mercado e que trouxe segundo Costa valores como “...autonomia da arte,
profissionalização do artista, reconhecimento do valor do produto artístico,
formação e emancipação do mercado de artes, emergência da arte-técnica e
do processo de abstração da arte.”6 Esse é o ponto de partida para nossa
reflexão.
Então, estaríamos diante do fim da arte? Para alguns autores, parece
que sim. Baubrillard observa que a arte foi tomada pela técnica e a técnica é a
arte. Não nos parece possível aceitar a radicalidade dessa posição,
principalmente se compreendemos que a relação estética do homem com o
3

mundo é “... uma relação datada ou delimitada historicamente, ao mesmo


tempo que é a que mantemos hoje com objetos remotíssimos no tempo (...)
com criações não tão remotas, embora distantes de nosso tempo... ou,
finalmente, com um produto artístico da cultura contemporânea”. 7
Essa relação, nunca deixou de existir e influenciar a produção artística
do homem, mesmo porque como já observamos, devemos incorporar ao
conceito de estética o não artístico e ao de arte o extra estético, para que se
perceba melhor a relação arte/ tecnologia nos dias de hoje. Com certeza, ao
discutir sobre arte e tecnologia, consideramos que a apropriação estética do
mundo influencia na produção de uma arte considerada por alguns,
domesticado pela técnica, pois esta apropriação não ocorre somente no campo
da arte mas em todas as instancias desde a “... contemplação da natureza,
assim como no comportamento humano com os objetos produzidos com uma
finalidade prático utilitária.”8
Vivemos numa época limite, isso vale para todas as áreas do
conhecimento. Desde os avanços e novas descobertas da física, da
comunicação/informação, da biomedicina e das novas formas de domínio do
capital, preocupamo-nos em estabelecer um inventário do que já produzimos,
de como produzimos e para que produzimos. Nada é o mesmo. Apesar de esta
afirmativa ter feito parte do processo histórico da humanidade, tínhamos antes,
além das dúvidas, algumas “certezas”, ou um número limitado de
possibilidades, como se tivéssemos recebido com os problemas instruções de
resolução contidas na embalagem. Estabelecemos paradigmas que nos
acomodam tal qual mitos, ante o desconhecido.
O que caracteriza este estado de limite? A sensação é que todas as
instruções já foram testadas e os resultados não satisfazem mais o homem.
Para alguns, estamos acostumados a viver por instruções, fórmulas, somos
prisioneiros na caverna de Platão, perdemos nossa capacidade de pensar.
Para outros, essa capacidade foi aprisionada e o que provoca medo e
insegurança é que estejamos finalmente nos libertando dessa caverna,
testando as fronteiras de nossa capacidade de conhecer o mundo, de viver
nele, e interpretá-lo e, principalmente, de transformá-lo. Essa situação limite
também está presente na arte, como podemos observar a partir de sua relação
4

com a tecnologia, principalmente no que se refere a influência da técnica na


arte, predominante na arte pós clássica.
Discutiremos sobre essa relação limite e a suposta dependência entre
arte e técnica, a partir de um exercício que tem como base o cinema e deste o
filme Matrix (The Matrix). Optamos pelo cinema por entendermos ser esta a
manifestação estética por excelência da arte-técnica na formulação da “Era
Paradoxal”.9E pelo filme Matrix por trazer essa discussão através do cinema
arte técnica pós clássica de forma contundente neste final de milênio. A própria
arte discutindo o estado da arte.
Em sua reflexão sobre a arte, Cristina Costa apresenta um conceito de
arte-técnica no qual inclui o cinema, entendendo-a como “... toda forma de
expressão artística que utiliza algum tipo de automação, como fotografia,
cinema ou vídeo e que se caracteriza também pela forma de gravação e
reprodução das imagens.”10 A capacidade de gravação, reprodução e
manipulação da imagem, talvez seja o que Costa propõe como um dos
paradoxos da arte pós clássica, ou arte pós moderna. Interessa notar que esse
paradoxo se estabelece a partir do surgimento da indústria cultural e da
ascensão dos meios técnicos de produção e reprodução da imagem, que
criaram a arte técnica e que vieram modificar as “...relações do público com a
arte e com os artistas”11, ora mantendo uma relação com a arte tradicional,
institucionalizada, ora criando rupturas, modificando os padrões estéticos
estabelecidos.
Numa analogia entre cinema e máquina, Fernando Furtado apresenta o
cinema como uma prótese mecânica, observa que “... As próteses mecânicas,
ao contrário, instauram ritmos artificiais que alteram o nosso modo de ser e de
ver o mundo”12, construindo uma hibridação homem-máquina que provoca
“...um longo aprendizado de novas dimensões espaciais e temporais, partimos
de viagens aventurosas por um universo desconhecido porque invisível sem os
dispositivos mecânicos”13. Essa relação deve ser revista considerando
principalmente as “metamorfoses de percepção” provocadas pela tecnologia.
Estas metamorfoses fazem parte das novas concepções estéticas do mundo
que tem no cinema uma arte e que traz alternativas para as questões de
liberdade e criatividade, fundamentos da linguagem cinematográfica e
5

importante para a arte pós-clássica e para a compreensão da relação técnica e


imaginário.
O cinema como manifestação artística da era pós moderna, pós
industrial ou pós clássica, ou seja,

“ um mundo de presente eterno, sem origem ou destino, passado ou


futuro; um mundo onde é impossível achar um centro ou qualquer
ponto ou perspectiva do qual seja possível olhá-lo firmemente e
considerá-lo como um todo; um mundo em que tudo que se
apresenta é temporário, mutável ou tem o caráter de formas locais de
conhecimento e experiência. Aqui não há estruturas profundas,
nenhuma causa secreta ou final; tudo é (ou não é) o que parece na
14
superfície” .

Não absolutiza a técnica, mas resensibiliza-a, atingindo como ação


humana o próprio homem.
O desenvolvimento da tecnologia proporcionou modificações na
capacidade de fruição do homem, trouxe democratização, interatividade e
barateamento do produto cultural, entre outros elementos que devem ser
considerados na estética e na arte pós-clássica. Nesse caso o cinema
enquanto arte-técnica, deve ser visto “... não apenas como dispositivo de
aniquilamento de nossa capacidade de transformar a imaginação em imagens,
mas meio de produção de realidades artificiais que educam nossos sentidos
para tarefas que as máquinas não podem executar.” 15
É da união entre arte e tecnologia que surge o cinema, manifestação
estética por excelência do seu tempo. Com ele, o filme, e por meio dele,
partiremos dos conceitos de interatividade e virtualização, elementos presentes
na arte pós-clássica e que se tornaram constantes no chamado “mundo tecno”,
para compreender este mundo.
O que é Matrix? Essa é a grande pergunta do filme. É o ponto inicial e
final do roteiro. Uma primeira visão fecha-se num círculo catastrófico, mas
também pode ser uma perspectiva sutil de esperança.
Matrix é uma ficção científica, produção norte americana, 1999, com
direção e roteiro dos irmãos Larry e Andy Wachowski 16, e conta com a
participação dos atores Kenu Reeves, Laurence Fishburme, Carrie-Anne Moss
6

e Hugo Weaving, nos papeis principais17. Sua história sugere que nosso mundo
não passe de uma imensa realidade virtual; criada por um computador ( a
“matrix” do título ( para aprisionar a população do planeta enquanto se alimenta
de sua energia. O filme mistura conceitos de religião, mitologia , filosofia,
cultura pop e uma boa dose de artes marciais. Essa mistura cria um universo
único, híbrido, cheio de possibilidades, que caracteriza a sociedade pós
clássica, principalmente no que se refere a percepção estética de mundo, das
manifestações artísticas, com as quais o homem traduz essa percepção e das
dúvidas ante o futuro.
Para explicar a dualidade catástrofe ou esperança traduzida pelo filme,
tomamos emprestado outras matrizes de interpretação, a opinião de dois
pensadores contemporâneos, Jan Baudrillard e Pierre Levy, cujas reflexões
contribuem para a compreensão da sociedade tecnológica em que vivemos e
de sua apropriação estética do mundo enquanto produção e recepção. O
antagonismo quase absoluto do pensamento de ambos serve como parâmetro
para compreender a complexidade e a pluralidade de possibilidades de
interpretação da produção cultural do homem.
O início dessa caminhada tem origem na Grécia. É profético e tão
humano quanto os mitos gregos. Fala-se entre outras coisas da relatividade, do
vir a ser constante, do movimento, da velocidade, do limite entre
real/imaginário, do desejo primitivo do homem pela perfeição, pela divindade,
ou diacronicamente, pelo mal, da esperança, e do sonho. Numa referência a
mitologia grega, é Morpheu18 o responsável por conduzir os sonhos das
profundezas de Hades até os mortais. Conta o mito que o sonho devia passar
por dois portais, um de chifre, que dava passagem aos sonhos verdadeiros e
outro de marfim, que se destinava aos sonhos falsos. Controla a resistência e
impulsiona a vida, propõe a esperança de um mundo novo, da terra prometida
e que tal qual o mito, transita entre o real e o imaginário, entre o imaginário que
queremos real e o real que queremos imaginário. É isso que move a Matrix e
que cria o filme.
Matrix nos induz a uma espécie de imersão no virtual. Essa virtualidade
que segundo Baudrillard, “Por tudo, mistura-se o que era separado; por tudo, a
distância é abolida: entre os sexos, entre os pólos opostos, entre o palco e a
7

platéia, entre os protagonistas da ação, entre o sujeito e o objeto, entre o real e


o seu duplo”19
Como vemos, é o marfim que atrai e não o chifre, assim como é a
máquina que deslumbra e adormece, mata no homem o próprio homem. No
filme o plugar e desplugar das consciências é sempre um angustiante nascer e
morrer. Para qual mundo? Não se sabe. No mito, Morpheu é sobrinho de
Tanatos, a morte, e essa proximidade permite, no filme e na vida, um constante
plugar e desplugar, é sempre um ligar/desligar, nascer/morrer, acordar/dormir.
O que Matriz tem de virtualidade, tem de potencialidade, de premonição.
Na sociedade das máquinas, tudo é máquina. A técnica que contribuiu para
humanizar o homem, segundo o filme, tornou-o máquina. É formiga, é técnica.
O resultado é a arte técnica em sua maior expressividade e
materialidade. Cria-se um mundo tecnológico perfeito para abrigar o homem,
que se contenta com o virtual, já que o real lhe foi tão inglório. Na opinião de
Baudrillard, é o fim de uma ilusão estética.
“...as máquinas só produzem máquinas (...) num certo nível maquinal, de
imersão na maquinaria virtual, não há mais distinção homem máquina: a
maquina situa-se nos dois lados da interface. Talvez não sejamos mais do que
espaços pertencentes a ela - o homem transformado em realidade virtual da
maquina, seu operador especular, o que corresponde a essência da tela. Há
um para além do espelho , mas não o além da tela.”20
Esta é a perfeita descrição de Matrix. Cena a cena, vamos sendo
transportados para uma compreensão do homem e de sua necessidade de
criar. Passo a passo, os atores e principalmente a tecnologia, nos carregam
numa visão dantesca da capacidade técnica do homem e humana da máquina.
Como criador e criatura estão próximos. Em Matrix o homem fez a máquina
segundo sua imagem e semelhança, sua matriz, deu-lhe a vida e o direito de
guardar o jardim sagrado.
“Quando a gente cria
a gente repete Deus (...)
Quando a gente cria, retunde Deus
reverbera Deus, respira Deus com nariz de Deus
É Deus, discreto, sem alvoroço...
8

Imita Deus a coxia


no ensaio da alquimia ...”21
Com a máquina o homem brinca de Deus. No filme a máquina torna-se
Deus e incessantemente trava com o homem uma luta pela verdade que
humaniza. A verdade é feia, causa dor, e para descobri-la há sempre um preço
a pagar, a transformação da maturidade, a idéia de paraíso, os ritos de
passagem, tudo está lá, reduzido a máquina, transformado em código binário.
“De fato a máquina ( virtual) nos fala; ela nos pensa.”22
O Homem perde identidade no mundo, sua identidade é a rede, é a rede
que controla, é a rede que governa, é a rede que cria, é na rede que ocorrem
os fatos. As infovias estão sempre abertas e nelas transitam pessoas, é na
rede que ocorre a interação entre os dois mundos, o real e o virtual, o
sentimento e a razão. O ir e vir de seres pela rede, o domínio da vida e da
morte está presente em todos os momentos entre o centro de resistência e um
centro de produção e controle. A rede adquire a capacidade de esconder,
despersonificar os seres humanos.
“...implica na possibilidade de dissimulação de desaparecimento no
espaço impalpável , e de assim não ser mais localizável, inclusive por si
mesmo o que resolve todos os problemas de identidade , sem contar os de
alteridade.”23
A virtualidade e a interatividade em Matrix é, enquanto realidade filmica,
imagem cinematográfica, absolutamente aterrorizante. O homem é Adão,
expulso do paraíso e/ou aprisionado num paraíso artificial, criado por ele
próprio num mundo cibernético, imagem e semelhança da obra de Deus no
ciberespaço. É também “Neo”, o novo, o predestinado, que só precisa voltar-se
para o seu próprio eu, seu interior, núcleo que ainda não se endureceu com a
máquina, para retomar a sensibilidade da vida. No caso do filme Matrix, o
cinema apresenta uma forma estética e artística de ver a sociedade da
técnica. Nele, homem e máquina se confundem. O ator é a máquina, não há
representação. Fim da Arte?
Podemos dizer que o filme apresenta o que Baudrillard entende por
êxtase da comunicação, que produz um estado de terror esquizofrênico,
9

“...proximidade grande demais de tudo, promiscuidade suja de tudo


que toca, investe e penetra sem resistência, sem nenhum halo de
proteção privada, nem mesmo seu próprio corpo para protegê-lo. É o
fim da vida interior e da intimidade, a exposição excessiva e a
transparência do mundo que o atravessa sem encontrar obstáculo.
Ele não pode mais criar os limites de seu próprio ser, não pode mais
brincar ou representar, não pode mais produzir a si mesmo como
espelho. Ele é nesse momento uma tela nua, um centro de
24
computação para todas as redes de influência”.

Mas, como para cada ponto há um contraponto, Virilio observa: “... não
acredito que possamos recusar a tecnologia, por assim dizer, voltar ao Ano
Um. Não podemos parar tudo para nos darmos tempo para pensar. Acredito
que é no interior da própria investigação da tecnologia que encontramos, não
uma solução, mas a possibilidade de uma solução. (...) A frase de Hölderlin -
“Mas onde o perigo cresce, cresce também aquilo que salva”- é muito
importante para mim.”25
São duas matrizes, a matriz homem, o escolhido, o novo ( Neo), e a
matriz máquina, a técnica. Há, portanto, mais de uma resposta para uma
mesma pergunta. Ou pelo menos uma outra forma de ver. O Que é Matrix? É
interatividade, um hipertexto, cheio de referências, de intertextualidades. É
cigarra, é arte.
O hipertexto opera a virtualização do texto, Levy o tem tecnicamente
como, “... um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós podem ser
palavras, páginas, imagens, gráficas ou partes de gráficos, seqüências
sonoras, documentos complexos que podem eles mesmos ser hipertextos.”26
Em Matrix é outra a forma de (inter)agir, é significação e resignificação.
De uma forma absolutamente virtual somos convidados a zappear, nos
transformamos... “num navegante da noosfera...” com um controle virtual,
resgatado de nosso próprio cérebro, “...atravessamos espaços e tempos
distintos e níveis diferentes de realidade, alinhavando as faixas de onda,
embaralhando gêneros e formatos, redefinindo, enfim, as categorias do
conhecimento.”27 Ampliando essa perspectiva para o mundo da informação
podemos dizer que o filme nos faz “navegar”, construir aos poucos um texto
novo, cheio de links, referências literárias, cinematográficas e principalmente
tecnológicas, numa parceria virtual com o roteiro.
10

É tudo fruto de um constante processo interno de crescimento. Dentro


dos homens, no interior das máquinas. No interior das consciências, é um
resgate aos elementos coletivos e universais da cultura humana. Volta-se ao
interior do ventre, do ventre da terra, onde se encontra a cidade prometida, e
principalmente no ventre do homem, onde dorme o homem prometido, o
homem novo caça e caçador de si mesmo. Para Shermam, “só porque as
coisas no lado de dentro não podem ser medidas não significam que não sejam
reais”.28
São referencias que permite ao espectador compartilhar as várias
leituras contidas no roteiro, os filmes, os recortes culturais e as reflexões sobre
o homem e o mundo. É claro que, perceber o artista através de sua obra não é
novidade, mas o filme vai mais além, ele dá pistas, abre links para que o
espectador atento exercite sua inteligência, propõe uma interatividade
intelectual. Pensar em “Alice no Pais das Maravilhas”, “O mágico de Oz”,
filosofia e mitologia grega, a bíblia, as referências filmicas e outros tantos, nos
leva a desenvolver um exercício longo de visita aos sites de nosso cérebro,
buscando informações preciosas para realimentar nossa sensibilidade,
reconstruindo emoções, Matrix nos pluga a tela. Essa é uma sensação que
todos podem ter, mas que em sua totalidade se reduz àqueles que agem no
interior do texto lincado na tela, aqueles que surfam no ciberespaço, interagem,
unem-se, não a grande máquina, matriz técnica, mas a humanidade, matriz
homem.

“A operação elementar da atividade interpretativa é a


associação; dar sentido a um texto é o mesmo que ligá-lo,
conectá-lo a outros textos, e portanto é o mesmo que construir
um hipertexto. É sabido que pessoas diferentes irão atribuir
sentidos por vezes opostos a uma mensagem idêntica. Isso
porque, se por um lado o texto é o mesmo para cada um, por
outro o hipertexto pode diferir completamente.”229

A rede é fruto da união de pontos e estes são diferentes entre si. As


conseqüências são outras, positivas. A rede democratiza as informações, em
todo tempo e lugar, é ponto de ligação, caminho. Transforma-se em rizoma e
reforça a importância dos nós, dos indivíduos.
11

Em Matrix não se viaja se não se estabelece nós, locais de partida e de


chegada, é necessário se identificar estes pontos para se conectar a rede, ou
seja, só entra na rede aquele que tem consciência dela. A rede permite ao
navegador uma pluralidade, uma interação com essa pluralidade, acrescentar e
modificar nós, tornar-se autor da maneira mais profunda, ao participar da
estrutura do texto.
De nossa rede de neurônios adormecidos na sala escura de projeção,
nos interligamos automaticamente a Morpheu, filho do sono, negro imponente,
ser virtual, viajante da rede, que aparece sob a forma de homem, e apresenta-
se às pessoas adormecidas. É este Morpheu que nos sonhos propõe verdades,
o sonho que liberta das correntes do real construído, produzido, o real que
amarra. É Morpheu também que, em seus braços conduz o homem à
passagem para o conhecimento profetizado, o oráculo, aquele que diz o que
sem perceber já o sabemos e que são os elementos necessários para se
estabelecer uma mediação do receptor com o meio e com ele mesmo, tão
simples e profundo como um conselho de mãe.
Se lincarmos novamente o Olimpo, podemos entender melhor essa
relação. Hades é o senhor do submundo, o invisível, rege o mundo do
inconsciente e das riquezas interiores, na missão de conduzir as pessoas pelo
caminho do auto conhecimento. Sua maior força é lidar com o não visto e sua
maior fraqueza é o distanciamento da realidade. Morpheu herda geneticamente
estas características de seus antecedentes, Hypnos e o Deus Hades, tio e avô,
respectivamente.
Matrix trabalha com a virtualidade de nossas esperanças. “... existe em
potência, e não em ato, existe sem estar presente”, 30 através do “escolhido”,
busca incessante da verdade interior, a escolha de caminhos. Uma relação
virtual/potencial, que alimenta a humanidade, propõe novos usos e
(re)significações do real.
Segundo Levy, a humanidade emerge de três processos de
virtualização, a virtualização do real, das ações e da violência. O cinema como
arte-técnica, concretiza estas virtualidades e reforça uma idéia sensório motora
com um modelo computacional, o mundo virtual em seu sentido estrito, o filme
12

as apresenta de forma contundente, quando permite a construção e


identificação dos signos da sociedade pós-clássica, quando permite através da
técnica a virtualização do corpo e do ambiente físico e por fim quando nos
mostra a complexidade das relações sociais.
Acreditamos que podemos usar para o cinema a observação de Levy
para a arte: “...a arte dá uma forma extrema, uma manifestação pública a
emoções , as sensações experimentadas no mais íntimo da subjetividade.” 31
Em vez do caos que conduz ao fim, como propõe Beaudrillard, Matrix nos
mostra possibilidades, outra face do caos, que gera, cria e produz. Não sem
antes nos mostrar a complexidade do momento em que vivemos. Momento
limite, que não determina o fim, mas o começo de uma nova fronteira, “que
nela reconhece uma ruptura no caráter linear, elitista e uniforme da arte
clássica”.32
Enfim, tanto a interatividade como a virtualidade anarquiza o real, o
absoluto, as certezas. Como em outras terras deve revolucionar o terreno da
arte e nossa visão estética do mundo. Se para Baudrillard a interatividade e a
virtualidade desmaterializam o real, Levy as percebe como ação humana,
histórica, mediadoras na construção do real, resultado de sua interação com o
meio, na construção ideal do real, processo absolutamente virtual.
Nesse caso, Matrix pode ser entendido apenas como “...a imagem
gravada de um movimento passado. Oferece ao espectador uma espécie de
alucinação irreprimível (e é o que lhe confere toda magia) e não a visão de uma
ação sendo realizada, aberta ainda a todas as suas virtualidades”, 33 ou pode
enquanto arte-técnica, tecnologia intelectual, arte tecnocientífica somar os
diversos modos de ver, possibilidades de tornar visível o invisível, reconhecer o
não dito, e desmascarar o que está mascarado, reler o que é encenado, de
fazer da mentira a verdade. Fusão de arte e tecnologias, novos modos de ver e
sentir o mundo, ou seja, há cigarras enquanto formigas, emoção enquanto
técnica.

NOTAS

1
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez - Convite a Estética. RJ, Civilização Brasileira, 1999, p.47.
2
MACIEL, Kátia – A Última Imagem in Parente, André – Imagem Máquina, São Paulo, Ed. 34, 1996, p.
253.
13

3
idem; 46.
4
VAZQUEZ, op. cit. pag; 16.
5
COSTA, Cristina. Arte: resistências e rupturas: ensaios de arte pós clássica. São Paulo, Ed. Moderna
1998; 28.
6
idem. Pag;89.
7
VAZQUEZ, op. Cit. Pag;11.
8
VÁZQUEZ.idem. ibdem. pag. 42.
9
“Paul Virilio observa que a “Era Paradoxal”, substitui a Era Lógica e se inicia com a videografia, a
holografia e a infografia. Atinge a alta definição, Não apenas como resolução técnica, mas, sobretudo
como substituição do real. A imagem define o real, portanto o absorve e elimina. Maciel, Kátia.op. cit.
pag. 253.
10
COSTA. Op.Cit. pag. 66.
11
idem. Ibdem.
12
FURTADO, Fernando F. Fiorense Trem e Cinema. São Paulo, Ed. Cone Sul; 1998.
13
idem. Pag; 32.
14
KUMAR, Krishan, Da Sociedade Pós-Industrial á Pós-Moderna: Novas Teorias sobre o Mundo
Contemporâneo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997; 157.
15
FURTADO. Op. Cit. Pag;41.
16
SET, São Paulo: Ed.143. Maio-ano13-N 5.
17
O elenco traz também as presenças de Gloria Foster, Joe Pantoliano, Marcos Chong, Paul Goddard,
Robert Taylor, Julia Arahanga, Matt Doran, Belinda McClory e Ray Anthony Parker.
18
Morpheu (o sonho) é filho de Hypnos (o sono), que é filho de Hades, Deus dos Infernos.
19
BAUDRILLARD, Jean. Tela Total: mito-ironias da era do virtual e da imagem. Porto Alegre, Ed.
Sulina,1997. pag. 145.
20
idem. Pag; 147.
21
LUCINDA, Elisa - Eutiamo e suas estréias. Rio de Janeiro, Ed. Record;1999; 171.
22
BAUDRILLARD. Op. Cit. Pag; 148.
23
idem. Ibdem.
24
In KUMAR, Krishan – op. Cit. p. 136.
25
Ver Virílio in Furtado. Op. Cit. pag; 43.
26
LEVY, Pierre Tecnologias da Inteligência, São Paulo, Ed. 34;1993.pag; 33.
27
idem. Ibdem.
28
Shermam, Ton & MACHINES. R. U. S. in DOMINGOS, Diana – A arte no sec. XXI, São Paulo,
UNESP, 1997, pag; 71.
29
Ver Machado in FURTADO. op. cit. pag; 145.
30
LEVY, Pierre - Cibercultura, São Paulo, Ed. 34, 1999, pag. 74.
31
LEVY, Pierre. O Que é Virtual, São Paulo, Ed. 34. 1996; 78.
32
CASTRO. Op. Cit. pag; 95.
33
LEVY, Pierre – Ideografia Dinâmica: rumo a uma imaginação artificial, São Paulo, Ed. Loiola, 1998, p.
63.

Sobre o autor:
Ronaldo Nunes Linhares
Professor da Universidade Tiradentes, Mestre em Educação pela UFS e Doutor em
Ciência da Comunicação pela USP.

Você também pode gostar