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O MARTÍRIO DE SANTA MARGARIDA.

Margarida se diz de uma pedra preciosa, ou colar, que se chama uma


margarida. Esta pedra é branca, pequena, e virtuosa. Assim a bendita
Margarida era branca pela virgindade, pequena pela humildade, e
virtuosa pela operação de milagres. A virtude desta pedra é contra a
efusão de sangue, contra as paixões do coração, e para o conforto do
espírito. Da mesma forma a bendita Margarida tinha virtude contra o
derramamento de seu sangue pela constância, pois em seu martírio ela
foi muito constante, e também contra as paixões do coração, quer dizer,
contra as tentações do diabo. Pois ela superou o diabo vitoriosa, e para
o conforto do espírito pela doutrina, pois com sua doutrina ela
confortou a muitos, e os converteu à fé de Cristo. Theoteinus, um
homem letrado, escreveu sua lenda.
A bendita Margarida era da cidade de Antioquia, filha de Teodósio,
patriarca e príncipe dos ídolos pagãos. E ela foi entregue aos cuidados
de uma mulher, e quando chegou à idade perfeita foi batizada, e
concebeu grande ódio contra seu pai.
Um certo dia, quando tinha quinze anos de idade, e cuidava das ovelhas
de sua mãe adotiva com outras donzelas, o prefeito Olybrius passou pelo
caminho onde ela estava, e considerou sua grande beleza e formosura, e
ele ardeu em amores por ela, e enviou seus servos e lhes disse que a
pegassem e levassem até ele. Porque se ela for livre a tomarei como
esposa, e se for comprometida, farei dela minha concubina. E quando ela
foi apresentada diante dele ele lhe perguntou sobre sua linhagem, nome
e religião. E ela respondeu que era de linhagem nobre, e que seu nome
era Margarida, e de religião cristã. E o prefeito lhe disse: as duas
primeiras coisas te são convenientes, que és nobre, e que te chamas
Margarida, que é um belíssimo nome, mas a terceira não te convém de
maneira nenhuma, que uma donzela tão nobre e bela tenha um Deus
crucificado. E ela lhe respodeu: como sabes que Cristo foi crucificado?
Ele respondeu: pelos livros dos cristãos. E Margarida disse: ó que
vergonha é para ti, quando lês sobre a dor de Cristo e a glória, e
acreditas numa coisa e negas a outra. E ela disse e afirmou que ele foi
crucificado por sua própria vontade para a nossa redenção, e agora vive
para sempre em grande felicidade. E então o prefeito, zangado, ordenou
que ela fosse levada à prisão. E no dia seguinte ordenou que ela fosse
levada até ele, e lhe disse: ó boa donzela, tenha piedade de tua beleza, e
adora nossos deuses, para que te vá bem. E ela respondeu: eu adoro
aquele que faz a terra tremer, que apavora o mar e os ventos e as
criaturas obedecem. E o prefeito lhe respondeu: mas se consentires farei
com que teu corpo seja feito em pedaços. E Margarida disse: Cristo se
ofereceu à morte por mim, e eu desejo morrer por Cristo com alegria.
Então o reitor ordenou que ela fosse pendurada num instrumento de
tortura, e que lhe batessem com crueldade primeiro com varas, e que
com varas dentadas de ferro lhe rasgassem a carne até os ossos, e o
sangue correu de seu corpo, como um córrego que sai de uma fonte
fresca. Os que estavam presentes choraram, e disseram: ó Margarida,
verdadeiramente estamos tristes por tua causa, vendo teu corpo tão
desfigurado. Ó como perdeste tua grande beleza por causa de tua
incredulidade e falta de fé. Acredita agora, e viverás. Então ela lhes
disse: ó ímpios conselheiros, vão embora e se afastem de mim, esse cruel
tormento de minha carne é salvação para minha alma. Então ela disse
para o prefeito: cão de caça desavergonhado e leão insaciável, tu tens
poder sobre meu corpo, mas Cristo reserva minha alma. O prefeito
cobriu seu rosto com seu manto, porque não podia ver tanta efusão de
sangue, e então ordenou que a baixassem, e que a prendessem com
segurança na prisão, e viu-se um maravilhoso brilho na prisão perto dos
carcereiros.
E enquanto ela estava na prisão, ela orou para que o Senhor lhe
mostrasse o inimigo que lutara com ela, para que ele o mostrasse
visivelmente para ela. E então apareceu um horrível dragão que a
atacou, e a teria devorado, mas ela fez o sinal da cruz, e ele
desapareceu. E em outro lugar se diz que ele a engoliu em seu
estômago, ela fazendo o sinal da cruz. E o estômago se rompeu, e ela
saiu ilesa e sem ferida nenhuma.
Depois disso o diabo lhe apareceu na forma de um homem para enganá-
la. E quando ela o viu, ela foi rezar e depois se levantou, e o inimigo foi
até ela, a pegou pela mão e disse: é suficiente para ti o que fizeste, mas
agora cessa quanto à minha pessoa. Ela o pegou pela cabeça e o jogou
no chão, e colocou seu pé direito em seu pescoço, dizendo: fica imóvel,
inimigo debaixo dos pés de uma mulher. O diabo então exclamou: ó
bendita Margarida, fui vencido. Se algum jovem tivesse me vencido não
me importaria, mas alas, fui vencido por uma tenra virgem, o que me
entristece mais ainda, porque teus pais têm sido meus bons amigos. Ela
então o importunou para que dissesse porque ele foi até ela, e ele
respondeu, que ele foi até ela para aconselhá-la, para que obedecesse
ao desejo e ao pedido do prefeito. Então ela o importunou para que
dissesse porque ele tentava tanto e com tanta frequência ao povo
cristão. E ele disse que naturalmente ele odiava homens virtuosos, e
mesmo que sejamos expulsos deles, nosso desejo é tanto que queremos
excluí-los da felicidade que perdemos, porque nunca poderemos obter
ou recuperar a glória que perdemos. Então ela lhe perguntou que coisa
ele era, e ele respondeu: eu sou Veltis, um daqueles que Salomão
prendeu num vaso de latão. Depois de sua morte aconteceu que os de
Babilônia encontraram esse vaso, e pensaram que haviam encontrado
um grande tesouro, e quebraram o vaso, e então uma grande multidão
de demônios escapou e encheu o ar, esperando e espionando onde
poderíamos atacar homens virtuosos. E quando ele disse isso, ela retirou
seu pé e lhe disse: foge então, perverso inimigo. E então a terra se abriu,
e o inimigo afundou nela. Então ela se sentiu segura, porque tendo
vencido o mestre, venceria o ministro com facilidade.
E no dia seguinte, quando todo o povo estava reunido, ela foi
apresentada diante do juiz. E não querendo sacrificar para seus falsos
deuses, foi atirada ao fogo, e seu corpo queimou horrivelmente, tanto
que o povo ficou maravilhado que uma tenra donzela pudesse suportar
tantos tormentos. E depois disso eles a botaram em um tanque cheio de
água, amarrada, para que pela alternação dos tormentos, a tristeza e a
dor fossem maiores. Mas de repente a terra tremeu, e o ar ficou
pestilento, e a bendita virgem saiu da água ilesa, dizendo ao Senhor: eu
te peço, meu Senhor, que essa água seja para mim uma fonte batismal
para a vida eterna. E então ouviu-se um grande trovão, e uma pomba
desceu do céu, e colocou uma coroa de ouro em sua cabeça. E cinco mil
homens acreditaram no Senhor, e por amor a Cristo foram todos
degolados por ordem do prefeito Olybrius, dessa vez em Campolymea,
cidade da Aurélia. Então Olybrius, vendo a fé da bendita Margarida
imóvel, e também temendo que outros se convertessem para a fé cristã
por causa dela, a sentenciou e ordenou que ela fosse decepada. Então
ela orou para um certo Malchus, que seria seu executor, para que
tivesse tempo para orar. E concedido, ela orou ao Senhor, dizendo: Pai
Todo-poderoso, eu te agradeço por teres me concedido essa glória, e te
peço que perdoes meus perseguidores. E também te peço, bom Senhor,
que de tua abundante graça, concedas a todos aqueles que escreverem
minha paixão, leiam ou escutem, e para os que se lembrarem de mim,
que eles mereçam pleno perdão e remissão de seus pecados. E também,
bom Senhor, que se alguma mulher grávida e com dores de parto me
invocar, que a preserves do perigo, e que a criança saia de seu ventre
com seus membros perfeitos. E quando ela terminou sua oração ouviu-se
uma voz vinda do céu, dizendo que suas orações foram ouvidas e
concedidas, e que os portões do céu estavam abertos e esperavam por
ela, para que fosse à terra do eterno descanso. Então ela, agradecendo
ao Senhor, se levantou e mandou que o executor obedecesse as ordens
do prefeito. Mas o executor disse: Deus proíba que eu te mate, ó virgem
de Cristo. E ela respondeu: se não o fizeres não terás parte comigo. E ele,
apavorado e tremendo cortou sua cabeça, e caindo aos pés dela,
entregou o espírito.
E então Theoteinus pegou o santo corpo, e o levou a Antioquia, e o
enterrou na casa de uma nobre mulher e viúva de nome Sinclésia. E
assim essa bendita e santa virgem Margarida, sofreu a morte, e recebeu
a coroa do martírio, no dia treze de Agosto, como está escrito em sua
história; e em outro lugar se lê que foi no dia três de Julho. Sobre essa
virgem escreveu um santo homem e disse: a santa e bendita Margarida
era cheia do temor a Deus, triste, estável, religiosa, cheia de compunção,
de laudável honestidade, e singular em paciência, e nada foi encontrado
nela contrário à religião cristã; odiada pelo pai, e amada pelo Senhor
Jesus Cristo. Assim sendo , que nos lembremos dessa santa virgem e que
ela ore por nós em nossas necessidades, etc.

Comentário: quem não se admira lendo a história da virgem Margarida,


uma frágil mulher [costela], uma criatura maldita até a espinha por
causa do pecado original, vencendo dragões e demônios pelo poder da
fé? Quantas vezes ela não se despediu da vida, e logo em seguida se viu
viva de novo, e teve que suportar novos tormentos? Margarida se
despediu da vida quando se viu no ventre do dragão, mas antes fez o
sinal da cruz, e quando viu saiu inteira do ventre do monstro, que
explodiu pelo poder do criador, deixando a nobre Margarida ilesa.
Margarida já sentia o poder da impassibilidade, e corajosamente
converteu à fé uma grande multidão, que não temeu ser degolada por
causa da fé que ela pregava. Ela mesma, confiante no poder e na
misericórdia de seu criador, passou por esse tormento e entregou o
espírito, que Deus a tenha em sua glória, para a glória de Cristo e para a
salvação de todos os viventes.

Outra interpretação: tristeza, tristeza infinita por causa dos pecados das
criaturas do Senhor, é o que sentimos ao ler a história dessa infeliz
Margarida, essa she devil tentando se passar por santa. A monstra está
cuidando de suas ovelhas, quer dizer, as almas dos seres humanos que
os demônios mantém presas nos cárceres infernais. Seu pai o diabo a
envia para seu mestre Lúcifer, e ela concebe ódio por seu pai, porque vê
que pelo sacrifício de Cristo e pela misericórdia divina as almas dos
justos que estavam presas são libertadas. Numa suprema aposta pelo
poder e pela glória ela decide se tornar uma mártir, revoltada por causa
da grande decadência do reino de seu mestre, que já não tem o direito
de manter presas as almas dos justos que por permissão da justiça divina
ele mantia encarceradas. Margarida exibe a fúria e a loucura próprias
dos demônios. É muito triste, triste demais, mas essas criaturas em seu
louco orgulho e presunção revoltaram-se de tal maneira contra seu
criador que nunca encontrarão, por nenhuma reparação, uma maneira
de que seus pecados sejam perdoados. Sua malícia é tão profunda, tão
arraigada, que não merecem que Deus procure seus pecados em seu
zelo para que sejam curados. Margarida desafia seus mestres, repreende
demônios piores do que ela, mas companheiros de queda, consegue que
o Senhor faça milagres por ela, como quando venceu o dragão que a
havia engolido, e numa loucura final, tenta levar o infeliz Malcho para o
inferno dos anjos caídos, dizendo: assim terás parte comigo. Roguemos
para que essa infeliz não encontre um inferno tão horrível quanto o de
outros, mas que seja companheira de Lázaro, Abraão e outros “santos”.
Porque se diz que Abraão está no inferno, ou no limbo, a parte mais
amena do inferno? Existiu homem tão famoso, que fizesse tantas boas
obras? Porque ele estaria no limbo, senão porque é parte da queda dos
anjos, daqueles que conseguiram manter uma aparência de aves
brancas, como Sem o filho de Noé, também chamado Melchizedek? Esse
mundo é o palco do julgamento dessas criaturas, e é nesse nosso mundo
que eles voltam pelo mesmo caminho em que se rebelaram no céu,
transformando Lúcifer e Satanás em messias. Lá eles eram os pobres, os
injustiçados, os tiranizados pelo poder de Deus, mas nesse mundo eles
demonstram o que são realmente, quem são os verdadeiros tiranos.
Quem não vê na história dessa infeliz uma reedição da queda dos filhos
de Zebedeu, que quiseram ser como Deus e desceram vivos para o
inferno? Deus queira que não encontremos outras mártires, irmãs dessa
infeliz, culpadas dos mesmos pecados.

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