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A comida e o sagrado

O alimento que satisfaz o corpo e o espírito


CHRISTIANE ALVES, GABRIELA OLIVEIRA, LEANDRO CURY E MARIANA MENDES

a sexta-feira Santa Não-ruminantes, próprio acontecimento daquela


não se come carne sexta-feira de Páscoa é o que leva
como o porco,
vermelha. Em casa os católicos a abdicarem da
de judeu o porco não são considerados carne vermelha.
faz parte do cardápio. Já na dieta animais impróprios Já no Judaísmo, as restrições
Hare Krishna, somente o leite e o alimentares buscam relacionar o
para o consumo
vegetal têm espaço. Em período bem estar físico e espiritual. A
de Ebó, limpeza espiritual, o que Segundo a Bíblia, Jesus Cristo, carne de boi só é consumida
é para o santo não se come. na véspera do dia de sua morte, quando se tem certeza de que o
Quando se trata de fé, a comida reuniu os seus apóstolos numa animal não sofreu durante o
deixa de ser apenas um alimento refeição festiva, a ceia pascal, e processo de abate. Dessa forma,
para o corpo e assume um papel nela fundamentou o simbolismo rabinos acompanham a exe-
espiritual. Dogmas nas diversas do pão e do vinho. Seu corpo, cução do animal, quando não
religiões trazem proibições, per- preso na cruz, é representado são eles mesmos que realizam
missões e atribuem funções que pelo pão, e o sangue que ele der- todo esse procedimento. Todo
vão além do caráter nutricional e ramou, o vinho consagrado em esse método é realizado de forma
prazeroso da refeição. cada missa. A partir daí, o que o animal não sofra, evitando

Quer um pedacinho?
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assume uma posição especial por
ser tida como uma segunda mãe
do ser humano. Ela assume essa
função por alimentar-nos com
seu leite durante toda a vida
humana.
Segundo Paravyoma Dasa, mem-
bro do Hare Krishna, todo ali-
mento pertence ao Deus, e por
isso é sempre oferecido a Ele:
– Como o ser humano é vege-
tariano por natureza, automati-
camente Krishna não aceita ofer-
ta de carne nem de ovos. Lo-
gicamente, Deus não precisa de
comida, ele não precisa se ali-
mentar, mas ele quer a nossa
devoção. Ele se alimenta da nos-
No Hare Krishna todo alimento é oferecido ao Deus sa devoção porque Deus tem
tudo, só não tem uma coisa: o
uma descarga de adrenalina que eles comem qualquer coisa”. nosso amor.
futuramente viria a ser consumi- Para fazer parte da refeição, o Ao contrário do Hare Krishna,
da pelo ser humano. Para os peixe deve ter barbatanas e esca- nas religiões afro-brasileiras, os
judeus, esse hormônio gera nas mas, já que estes são considera- orixás precisam ser alimentados.
pessoas reações agressivas que dos os mais limpos. Segundo a psicóloga Monique
colaboram com o mal estar da A vaca assume Augras, essas religiões se ba-
sociedade. Por isso, pretende-se seiam em um sistema de trocas e
uma posição especial circulação de energia. Por isso, os
matar o boi de forma instan-
tânea (normalmente com uma por ser tida como alimentos são oferecidos para
facada letal) evitando assim, a uma segunda mãe que os orixás re c u p e rem suas
produção da adrenalina. energias depois de, por exemplo,
do ser humano
Além disso, outros animais não dançar dentro do terreiro. Toda a
fazem parte da dieta judaica. Já no Hare Krishna, além dos energia dos orixás utilizada pelos
Não-ruminantes, como o porco, peixes, qualquer outro tipo de fiéis, deve ser reposta através
são considerados animais im- carne animal é excluída do dessas oferendas de comida.
próprios para o consumo, porque cardápio. Para os praticantes A galinha d´angola é conside-
além de se alimentarem sem sele- dessa religião, o ser humano é, rada o animal mais sagrado e,
cionar a comida, eles não dige- na sua essência, vegetariano. Por por isso, é oferecida em rituais
rem o alimento como os rumi- isso, alimentar-se de qualquer especiais. Em quase todas as ce-
nantes, que repetem o processo tipo de animal gera o desequi- rimônias, deve-se oferecer a co-
de digestão mais de uma vez. líbrio do corpo, além de conta- mida determinada àquela enti-
Doris Acher, gerente de uma loja miná-lo com hormônios prejudi- dade, e o “filho” que a oferece
de artigos judaicos no Leblon, ciais liberados no abate. Sendo não deve ingerir os mesmos ali-
explica que alguns animais mar- assim, nenhum desses alimentos mentos durante todo o período de
inhos também não são consumi- pode ser ofertado para o deus preparo (pois são as “comidas do
dos pelos judeus, como o siri, o Krishna. Todo animal é conside- santo”). É comum nesses casos o
caranguejo e o camarão, “porque rado sagrado, no entanto a vaca jejum parcial e temporário por

Janeiro/Junho 2006
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carnes, grãos e bebidas alcoólicas
de acordo com cada uma das
entidades. De acordo com o can-
domblecista Gilberto Corrêa, 41
anos, é fundamental manter-se
em abstinência durante os ritu-
ais: “No período de Ebó, você não
pode comer qualquer alimento
ofertado, pois aquela comida é,
por um tempo, exclusiva do seu
orixá. Vale o sacrifício”.
Sacrifício também acontece com
animais. Mortos para trabalhos e
o f e rendas, galinhas e pombos
brancos, cabras e coelhos são
vendidos regularmente em casas A cabra é um dos animais sacrificados em trabalhos e oferendas.
especializadas. De acordo com
Antônio de Souza, 47 anos, dono Mas, como nas outras religiões, de fogo, não deve comer pimen-
de uma loja de animais no existem suas proibições (quizilas) ta; quem é filho de Obaluaê,
Mercadão de Madureira, no Rio e permissões (recomendações) no orixá da terra, não poderá comer
de Janeiro, a grande maioria de dia-a-dia. No caso do candomblé caranguejo.
seus clientes compram os bichos e de umbanda, os orixás estão A comida satisfaz o corpo e o
para rituais: “tem cliente aqui diretamente ligados a um deter- espírito. A fé sempre norteou desde
que gasta dois mil reais com- minado elemento da natureza simples hábitos alimentares do dia-
prando frango branco, galinha (ar, terra, fogo e água), e por isso a-dia até rituais sagrados. O prazer,
d´angola e outros tipos de ani- seus ‘filhos’ não devem ingerir muitas vezes, é deixado de lado
mais”. A loja oferece inclusive alimentos do grupo estipulado. para a obtenção de uma graça ou
serviço de entrega domiciliar. Por exemplo: quem tem um orixá em sinal de respeito à crença.

Banquete dos cachorros Affonso

Misturando catolicismo popular e religiões afro-brasileiras,


esse ritual desperta curiosidade e é repleto de simbolismo. Nos
terreiros, durante aproximadamente três dias, ao som de tam-
bores, o banquete acontece provocando uma grande inversão
simbólica. Os cães são servidos por fiéis, como se fossem seres
humanos.
O processo consiste em servir os pratos no chão sobre uma
toalha bordada, como uma mesa, e na cabeceira é colocada
uma imagem do santo homenageado. Serve-se normalmente
arroz, carne, macarrão, galinha e salada, entre outras. Essa mesma comida é servida às pessoas que par-
ticipam do ritual, e estas se alimentam somente depois dos cães, servindo-se do mesmo tipo de alimento.
Alguns promesseiros chegam a comer na posição de cachorro, sem talheres e com a boca no prato. Há casos
até em que o cão e o fiel comem no mesmo prato.
A origem do ritual não é conhecida, mas ele é organizado por devotos de São Lázaro e São Roque (ambos
os santos são associados aos animais, principalmente aos cães) e pro m e s s e i ros que queiram reconhecer uma
graça alcançada. Realizado em sítios, casa ou terre i ros de culto afro, esse ritual consiste em agradar uma
criatura que teve uma importância na vida desses homens. Agradando-se aos cães, agrada-se ao santo.

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