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DOSSIÊ
Françoise Gollain*
André Gorz partilhou com defensores da renda de existência o diagnóstico segundo o qual o atual sistema
de redistribuição não está adaptado à flexibilidade e à precarização do emprego como um dado estrutural de
mercado de trabalho. Entretanto, além do desejo de remediar essas disfunções e de assegurar uma segurida-
de existencial a cada um, ele concebia a outorga de uma renda garantida a todos como um dos instrumentos
de uma transformação radical e emancipadora. Nessa perspectiva, a renda de existência está articulada a
duas séries de medidas: redução do tempo de trabalho e expansão das atividades autônomas. O exame do
lugar acordado a cada um dos termos desse tríptico permite perceber a significativa mudança de Gorz para
um degrau mais elevado da incondicionalidade da renda. Para além dessa virada, buscamos ressaltar a per-
manência de seu projeto político (e filosófico) fundamental: restringir as relações mercantis e avançar para
uma sociedade caracterizada por formas de cooperação não mercantis.
Palavras-chave: André Gorz, Existencialismo. Incondicionalidade da renda.
1
INTRODUÇÃO mas”. O exame do lugar acordado a cada um
dos termos desse tríptico – renda de existên-
Partilhando com numerosos defensores cia, redução do tempo de trabalho, expansão
da renda de existência (RE) o diagnóstico se- das atividades autônomas – permite-nos de-
gundo o qual o atual sistema de redistribuição monstrar a mudança significativa da visão de
não está adaptado à flexibilidade e à precari- André Gorz para um degrau mais elevado da
zação do emprego, que constituem um dado incondicionalidade da renda de existência na
estrutural do mercado de trabalho, Gorz alme- segunda metade dos anos 1990. Dedicamo-
java remediar essas disfunções, manter uma -nos, não obstante, a realçar a identidade de
seguridade existencial, e conceber a outorga de seu projeto político (e filosófico) fundamental
uma renda garantida a todos como um dos ins- para além desse giro importante: restringir as
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792017000300007 497
ANDRÉ GORZ, PELA INCONDICIONALIDADE DA RENDA
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Françoise Gollain
de pontos que, em seguida, daria direito a um tolerável a dualização entre economia e so-
período dado de não trabalho pago. À medida ciedade. O trabalho, no sentido econômico do
que a parte do salário direto tende a se reduzir, termo, faz-se objeto de uma troca mercantil na
a função da RE é assegurar, de maneira cres- esfera pública. Por consequência, ele afeta os
cente, a distribuição das riquezas socialmen- indivíduos não somente no que se refere a uma
te produzidas. Seu financiamento repousaria utilidade, mas igualmente no que diz respeito
num imposto sobre o consumo do tipo TVA,9 ao pertencimento e ao reconhecimento sociais.
que incide nos preços em função de priorida- Portanto, é na medida em que o trabalhador
des sociais e ecológicas. Paralelamente, Gorz não estabelece relações pessoais e privadas
imagina, já nessa época, a adoção de diferentes com seus empregadores ou seus clientes que
tipos de moeda, que não podem ser entesou- ele é fator de emancipação. Em outros termos,
radas, destinados às trocas de serviços locais. o trabalho remunerado insere-o, como indi-
Ele insistirá, até o fim, sobre a necessidade de víduo social, em geral, no circuito das trocas
políticas adaptadas em matéria de educação, econômicas e sociais e contribui, assim, para
de formação, de urbanismo e de organização combater o fechamento da esfera privada (par-
do território, assim como de uma política fiscal ticularmente para as mulheres).
reelaborada para fazer da RE um dispositivo li- Em outras palavras, qualquer que seja o
berador. A RTT deverá resultar da elaboração nível das técnicas, trabalhar é uma necessida-
de objetivos diferenciados, segundo os dife- de inerente a toda sociedade e “ninguém deve
rentes ramos de atividade, em função de suas portar o fardo da necessidade por conta dos
necessidades de mão de obra. Consequente- outros e ninguém, portanto, deve ser dispensa-
mente, a passagem a uma verdadeira renda so- do de carregar sua parte” (Gorz, 1991, p. 176);
cial será progressiva, mas ela permitirá avan- isso seria contrário ao espírito de justiça numa
çar para uma sociedade menos organizada em sociedade não escravista. Convém, então, re-
torno do trabalho assalariado. parti-lo equitativamente, de maneira a que o
Entretanto, a afirmação de uma relação pertencimento e a passagem contínua entre as
de reciprocidade entre direito à renda e direito duas esferas da sociedade, a do trabalho autô-
ao trabalho, combinada com um dever de tra- nomo ou assalariado e a das atividades autô-
balhar, assim como a centralidade da temática nomas, previnam contra a segregação social e
da redução voluntária do tempo de trabalho – favoreçam o desenvolvimento individual. Essa
“[...] trabalhar menos para todos trabalharem representação dicotômica dos espaços e tempos
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ANDRÉ GORZ, PELA INCONDICIONALIDADE DA RENDA
se refere à evolução histórica. A possibilidade ressadas perdem, assim, seu sentido, mas ain-
de mudança reside numa inversão do sentido, da “a condicionalidade transforma a renda de
reitera ele com a publicação de Misères du pré- base em salário, o benevolato em quase empre-
sent: richesse du possible: à medida que a go” (Gorz, 1998, p. 35).
Gorz se junta, finalmente, aos partidá-
[...] figura central do precário é [...] potencialmente
rios de fórmulas contra as quais ele anterior-
a nossa; é a ela que se trata de civilizar e de reconhe-
cer no duplo sentido da palavra para que, da condi- mente se resguardava,11 defendendo doravante
ção de submetida, ela possa se tornar um modo de a atribuição da “[...] alocação universal e in-
vida escolhido, desejável, socialmente controlado condicional de uma renda básica acumulável
e valorizado, fonte de culturas, de liberdades e de com o rendimento de um trabalho.” (Gorz,
socialidades novas; para que ela possa se tornar o
1997, p. 140).
direito para todos de escolher as descontinuidades
de seu trabalho sem se submeter à descontinuidade 10
Le Travail dans vingt ans, La Documentation française
de renda (Gorz, 1997, p. 90). (Boissonnat, 1995).
11
Notadamente Alain Caillé, diretor de La Revue du
A partir desse momento, Gorz critica MAUSS, Jacques Robin, animador da revista Transversales
sciences/cultures, assim como Philippe Van Parijs, mem-
as medidas que têm como efeito aumentar a bro da BIEN (Basic Income European Network, tornada em
2004, Basic Income Earth Network). Conforme Van Parijs
condicionalidade da renda social. Ele toma po- apud Fourel (2012) e Caillé e Fourel (2013).
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Mais precisamente, essa RE, indepen- troca e uma gestão de fluxos de informações,
dentemente da ocupação de um emprego, só mas também os saberes informais e competên-
pode se tornar emancipadora sob a condição cias pessoais dos indivíduos, como a aptidão a
de ser: 1) verdadeiramente incondicional, “pois colaborar, a criatividade, etc. – tudo que, para
somente a sua incondicionalidade poderá pre- Gorz, participa da “produção de si”. A autono-
servar a incondicionalidade das atividades mia é, doravante, instrumentalizada, colocada
que apenas têm sentido caso forem cumpridas a serviço da empresa, pois a prescrição delimi-
por si mesmas” (Gorz, 1997, p. 144); suficien- tada ao lugar e ao tempo de trabalho tende a ser
te, porque, caso contrário, ela teria por efeito substituída por uma prescrição de toda a subje-
incitar a uma busca constante de emprego de tividade. De outra parte, o caráter cada vez mais
má qualidade – devido à desregulamentação e central dessa “inteligência coletiva” confirma
à degradação geral da relação salarial –, em seu diagnóstico emitido uma quinzena de anos
lugar de permitir uma arbitragem entre uso antes: o tempo de trabalho visível ou imediato
mercantil e não mercantil do tempo (nenhum é ínfimo em relação àquele que é consagrado a
montante é, todavia, indicado);2) atrelada a produzir conhecimentos, saberes e competên-
verdadeiras possibilidades de autoprodução, cias mais amplas da força de trabalho. Com a
sob pena de não ser mais que um salário da criação de riquezas mercantis distribuindo cada
inatividade forçada. vez menos salários, é preciso que essas riquezas
Precisaremos, adiante, os motivos dessa sejam repartidas de outra forma: uma alocação
reviravolta concernente ao caráter incondicio- incondicional “[...] é a melhor e a mais adapta-
nal da RE. da a uma evolução que torna o nível geral dos
conhecimentos, knowledge, a força produtiva
principal” (Gorz, 1997, p. 144).
A VIRADA DO IMATERIAL A adesão tardia de Gorz à incondiciona-
lidade da RE testemunha, em realidade, uma
A consideração contínua do impacto da coerência vis- à- vis suas opções mais funda-
revolução informacional sobre as mutações mentais anunciadas a partir dos anos 1980:
do trabalho incitou André Gorz a subscrever dentro desse novo contexto, face ao terreno
a tese da passagem a um “capitalismo imate- ganho pelas lógicas mercantis e burocráticas,
rial”, ou ainda “capitalismo cognitivo”12, co- assim como ao nível da existência cotidiana e
erente com as previsões de Marx (2011) que, das atividades econômicas, ele respondeu exi-
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das metamorfoses atuais do trabalho reside na [...] mesmo que atividades cujos fins são elas mesmas
liberação do tempo, permitida pelo desenvol- não sejam meio para qualquer outra coisa. A coope-
ração produtiva não é nem jogo, nem prática gratuita
vimento dos ganhos de produtividade, Gorz
de uma arte. A interação e a comunicação têm nela
dirigiu notadamente uma crítica veemente ao um sentido fundamentalmente diferente daquele que
desenvolvimento dos serviços à pessoa por tem em um balé, uma equipe esportiva, um debate
meio de uma extensão ilegítima do princípio político ou um diálogo amoroso. Não é por serem
da racionalidade. Apresentado como um “jazi- mais produtivos que os sujeitos desenvolvem suas
go do emprego”, esse novo setor repousa na ci- faculdades nessas últimas atividades. É porque eles
as desenvolvem ali, que a produtividade de sua força
são entre uma transbordante minoria ocupan-
de trabalho aumenta (Gorz, 1998, p. 33).
do os empregos estáveis e o número crescente
de serviçais mal pagos a quem os primeiros se Essa é a razão pela qual, em sua argu-
subempregam, em atividades que deveriam mentação, não se trata mais agora de remunerar
constituir o “trabalho para si”; ou seja, ativi- os indivíduos em virtude de sua contribuição
dades através das quais nós nos apropriamos sob as diversas formas à sociedade (mesmo fora
de nosso corpo e de nossa existência (cozinhar, da empresa), mas, ao contrário, de sustentar o
cuidar da higiene, se ocupar das crianças, le- desenvolvimento de “individualidades ricas”
var o cachorro a passear, etc.). (Marx) irredutíveis à sua função produtiva. An-
De uma maneira geral, sua tardia adesão dré Gorz distingue duas concepções de renda
à alocação universal repousa no argumento éti- de existência: “aquela que vê nela o meio de
co-filosófico que já fundamentava, em primeira subtrair a vida ao imaginário mercantil e ao tra-
versão, sua política do tempo: contra o “pane- balho total, e aquela que, ao contrário, vê nela
conomismo”, ele firma o caráter insuperável da uma remuneração do tempo fora do trabalho,
dicotomia entre uma lógica econômica que, jus- cuja contribuição à produtividade do trabalho
tamente, tem em vista economizar – o tempo, tornou-se decisiva” (Gorz, 2003, p. 30). Sua pre-
entre outros – e uma lógica de vida que preside ferência pela primeira concepção denota um
a um dispêndio de tempo que tem como fim ele antiutilitarismo radical: “[...] liberando a produ-
próprio. “Em lugar da ‘economia dual’13, é pre- ção de si, dos constrangimentos da valorização
ciso querer o estreitamento da esfera do econô- econômica, a renda de existência deverá facili-
mico e a expansão máxima do domínio onde o tar o pleno desenvolvimento incondicional das
Caderno CRH, Salvador, v. 30, n. 81, p. 497-505-496, Set./Dez. 2017
cálculo econômico não tem lugar pela simples pessoas para além do que é funcionalmente útil
razão de que o tempo ali não é escasso, sendo à produção” (Gorz, 2003, p.31). Seu valor heu-
ele próprio o tempo da vida” (Gorz, 1987, p. 36), rístico é apontar para uma sociedade de cultura
adiantava Gorz já em 1987. Uma década depois, e não mais de trabalho, uma sociedade de um
ele insiste: à medida que, com o advento do ca- tempo livre, pleno de sentido, na qual cada um
pitalismo cognitivo, a fronteira entre trabalho poderá se ativar e não trabalhar.
e não trabalho se esfuma do ponto de vista do
processo de produção, tal fronteira tampouco
subsiste do ponto de vista de seus fins respecti- RENDA DE EXISTÊNCIA CONTRA
vos. No trabalho imediato e diretamente produ- CAPITALISMO FINANCEIRO
tivo, as capacidades de autonomia, de imagina-
ção e de comunicação são colocadas em prática Em seus escritos da última década, Gorz
em vista de um resultado que depende da racio- retoma as reflexões presentes desde 1983, rela-
nalidade instrumental, tivas à redução surpreendente dos custos uni-
tários de produção, ligada ao desenvolvimento
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Esse termo, utilizado nos anos 1980, remete à cisão da das tecnologias da informação: a redução da
economia em dois setores: o setor competitivo, de um
lado, e aquele dos “pequenos trabalhos”, de outro. quantidade de trabalho necessário à produção
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utopia de autoprodução comunal cooperati- GOLLAIN, F. L’apport d’André Gorz au débat sur le
capitalisme cognitif. Revue du MAUSS, Paris, v. 35, n. 35,
va”, inspirada pelo ecologista anarquista Mur- p. 297-314, 1er semestre 2010.
ray Bookchin. GOLLAIN, F. André Gorz pour une pensée de l’écosocialisme.
Neuvy-en-Champagne: Le Passager Clandestin, 2014.
Não duvidamos que esse anticapitalis-
GORZ, A. Adieux au prolétariat. Au-délà du socialisme.
mo radicalizado, que não visa apenas a sim- Paris: Éditions Galilée,1980.
plesmente delimitar a racionalidade econô- GORZ, A. Les chemins du Paradis: L’agonie du Capital.
Paris: Editions Galilée, 1983a.
mica, mas sair inteiramente do mercado, do
GORZ, A. Entretien: Les Chemins du paradis. Alternatives
trabalho-emprego, da mercadoria, possa ser économiques, [S.l.], juil. 1983b, p. 5-6.
considerado desconcertante e de uma aplica- GORZ, A. Emploi et revenu, un divorce nécessaire?
Entretien avec Denis Clerc. Alternatives économiques,
ção imediata e problemática por certos toma- [S.l.], p. 15-17, juil. 1984.
dores de decisões progressistas, profissionais Gorz, A. Allocation universelle: version de droite et
engajados ou militantes enraizados. A par de version de gauche. Revue du MAUSS, Paris, n. 22, p. 31-40,
sept. 1987.
sua qualidade visionária, esses escritos são, GORZ, A. Métamorphoses du travail: Quête du Sens.
não obstante, de natureza a alimentar a função Critique de la raison économique. Paris: Galilée, 1988.
essencial da imaginação teórica e política que GORZ, A. Capitalisme, Socialisme, Ecologie:
Désorientations, Orientations. Paris: Galilée, 1991.
não é estranha às ciências sociais. “Na ausên-
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In keeping with fellow advocates of the guaranteed André Gorz partageait avec avocats du revenu
income, André Gorz considered our present benefit d’existence le diagnostic selon lequel l’actuel
system to be ill-adapted to the volatility and système de redistribution n’est pas adapté à la
insecurity of the labour market. He held, however, flexibilité et à la précarisation de l’emploi qui
the allocation of an income guaranteed to all, as constituent une donnée structurelle du marché
one of the tools of an emancipatory radical social du travail. Cependant, au-delà du désir de
transformation, well beyond a mere remedy to the remédier à ces dysfonctionnements et d’assurer
dysfunctions of the current system. Such an income une sécurité existentielle à chacun, il concevait
should be coupled with two series of measures: l’octroi d’un revenu garanti à tous comme l’un des
reduction of working hours, and the development instruments d’une transformation sociale radicale
of ‘autonomous activities’. We will consider the et émancipatrice. Dans cette perspective, le revenu
importance of these three elements to account for d’existence est articulé à deux séries de mesures:
a significant shift in Gorz’s works which will lead réduction du temps de travail et expansion des
him to lend his support to a more radical form of activités autonomes. L’examen de chacun des termes
universal and unconditional income in his last de ce triptyque nous permettra de rendre compte
decade. We will stress that his philosophical and de l’évolution significative de Gorz vers un degré
political project remained unchanged throughout plus élevé d’inconditionnalité du revenu. Nous
this evolution: to undermine the dominance of nous attacherons à mettre en exergue l’identité de
market-based relationships and progress towards son projet politique (et philosophique) fondamental
a society characterised by relationships of par-delà ce tournant: faire dépérir les rapports
cooperation. marchands et avancer vers une société caractérisée
par de formes de coopération non marchandes.
Key-words: André Gorz. Existentialism. Uncondi- Mots-clés: André Gorz. Existencialisme. Incondi-
tionality of basic income. cionalité du renvenu.
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