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2017 - 08 - 10

Revista Brasileira de Ciências Criminais


2017
RBCCRIM VOL. 133 (JULHO 2017)
RESENHA

Resenha

1. El derecho latinoamericano en la fase superior del colonialismo, de


Eugenio Raúl Zaffaroni

Bruna Portella de Novaes

Mestra em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharela em Direito pela


Universidade Federal da Bahia (UFBA). Membro do Grupo Clandestino de Estudos em Controle,
Cidade e Prisões. Advogada Monitora do Patronato de Presos e Egressos da Bahia (PPE-BA).

brunaportella@gmail.com

Daniel Fonseca Fernandes da Silva

Mestrando em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Ciências


Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Bacharel em
Direito pela UFBA. Membro do Grupo Clandestino de Estudos em Controle, Cidade e Prisões.
Membro do Programa Direito e Relações Raciais (PDRR/UFBA). Membro do Grupo de Pesquisa
Processo Penal e Democracia (UFBA), coordenado pelo Prof. Dr. Elmir Duclerc. Membro do
Grupo de Pesquisa Repensando o Direito Penal Contemporâneo (UFBA), coordenado pela Profª.
Drª. Alessandra Prado. Professor de Processo Penal e Criminologia da Faculdade Batista
Brasileira (FBB).

danielfonsecafernandes@outlook.com

Dados bibliográficos: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El derecho latinoamericano en la fase


superior del colonialismo. Buenos Aires: Madres de Plaza de Mayo, 2015.

A influência de Zaffaroni na produção de conhecimento sobre a questão criminal decorre em


grande medida da força de seus escritos sobre dogmática penal, consolidados no Derecho
Penal (2000), publicado em coautoria com Alejandro Alagia e Alejandro Slokar, que vem sendo
traduzido e adaptado no Brasil por Nilo Batista, em Direito Penal Brasileiro (2003). No
pensamento criminológico, as obras de Zaffaroni do final dos anos 1980 apresentam conteúdo
crítico e marcam a produção acadêmica da criminologia brasileira. En busca de las penas
perdidas (1989) e Criminología, aproximación desde un margen (1988) trouxeram uma
concepção radical sobre o poder punitivo e afirmavam a necessidade de produzir um saber
deslegitimante no interior do discurso jurídico, como forma de contenção daquele poder.
Construindo um realismo marginal latino-americano, o autor fornecia bases para uma disputa
crítica do direito penal.

Analisar seu livro mais recente publicado na Argentina — El derecho latinoamericano en la


fase superior del colonialismo —, deve, portanto, levar em consideração esta trajetória
consistente. Esta obra, em específico, faz parte de uma série de três pequenos ensaios
transformados em livros e editados pela Editora Madres de Plaza de Mayo, inaugurado com
Crimenes de Masa (2010) e La Pachamama y el humano (2011). Em relação a estas obras mais
recentes, é possível identificar alguns grandes temas transversais, como a preocupação com o
progresso humano e a mãe natureza, destacados na obra aqui analisada e em La Pachamama.

Zaffaroni é um autor coeso, e não é difícil enxergar as continuidades em sua obra; uma das
maiores constâncias deve ser sua referência explícita ao colonialismo como chave de leitura
do direito. Aqui buscaremos explorar as permanências, mas também o não dito, que permite
entrever pequenas rupturas e transformações em relação a seus escritos anteriores.

El derecho latinoamericano en la fase superior del colonialismo é escrito em formato ensaístico,


uma marca recorrente do autor. Por ser um texto relativamente curto e estar organizado em
pequenos tópicos numerados e sem sumário, a impressão é que a leitura deve ser sucessiva e
sem cortes. No entanto, para facilitar a análise e a discussão sobre o texto, propomos uma
divisão em três partes: 1) a América Latina e o colonialismo; 2) a fase superior do colonialismo;
e 3) por um direito anticolonialista.

Num primeiro momento, o autor apresenta seus pontos de partida, buscando delimitar
conceitos como direito, colonialismo e América Latina. O esforço em distinguir direito de lei,
poder estatal e saber jurídico é uma questão metodológica sempre presente: consiste num
lembrete da necessidade de formular perguntas acuradas, uma vez que as dimensões que
compõem o conjunto do “jurídico” têm naturezas das mais diversas. Fixados os conceitos
centrais, Zaffaroni declara o objetivo do texto apresentado: a descrição desse conjunto (o
direito) na América Latina, e a proposição de um caminho para a superação do presente.

A respeito de certa unidade latino-americana, o autor entende que a própria existência da


América Latina é um confronto com o colonialismo: a negação de nossa existência pelo
empreendimento colonial é o que nos aproxima. O colonialismo é, então, um “fenómeno de
poder planetario” (ZAFFARONI, 2015, p. 25). Semelhante à forma como opera o racismo,
implica em um processo de negação de subjetividade, tendo como resultado não apenas a
morte física, mas também o genocídio do conhecimento e identidade do povo latino
americano. Para o autor, é resistindo constantemente ao colonialismo e suas práticas, em meio
às tensões internas entre variadas origens e visões de mundo, que se constitui um “ser humano
latino-americano” (ZAFFARONI, 2015, p. 31).

Fixados de forma didática os conceitos-chave, a segunda parte do livro é dedicada à “fase


superior do colonialismo”. Para chegar ao contemporâneo, o autor narra a permanência
histórica do colonialismo a partir da demonstração da persistente interferência desse poder
nos rumos políticos e sociais da América Latina. Zaffaroni defende ser adequado “llamar a las
cosas por su nombre” (2015, p. 33); afirma que a globalização, com sua revolução tecnológica, é
apenas uma atualização da dominação colonialista. Segundo ele, apenas vivemos numa fase
superior do mesmo colonialismo a que fomos submetidos séculos atrás.

Os contornos desta fase superior do colonialismo se aproximam de outras tantas análises do


contemporâneo, com ênfase no avanço neoliberal. O centro da análise do autor está no que ele
chamará de polarização na fase superior, expresso na oposição entre modelo includente e
modelo excludente 1. Além de servirem como espécie de síntese, os conceitos de exclusão e
inclusão — conectados, respectivamente, às ideias de colonialismo e resistência ao
colonialismo — são manejados de forma a criar uma linguagem no campo jurídico-filosófico.
Assim, Zaffaroni (2015, p. 51) defende que “el colonialismo se opone al derecho humano al
desarrollo, en tanto que la resistência al colonialismo impulsiona su realización”.

Em síntese: o sistema político e econômico, que o autor classifica de “fase superior do


colonialismo”, se articula através das bases do neoliberalismo, do suporte midiático e do
avanço punitivo, consubstanciando um modelo de exclusão, impeditivo do desenvolvimento
humano pleno. Nessas linhas, o autor já torna explícito seu esforço para exprimir na
linguagem do direito as contradições socioeconômicas do colonialismo, tomando como
referência o “direito humano ao desenvolvimento”. Aqui se percebe um diálogo explícito com
a noção de direito humano — posteriormente, contudo, Zaffaroni se dedicará a criticar de
forma contundente e dar novo significado a esta mesma noção, definindo os termos nos quais
pensa os direitos humanos dentro do seu projeto de direito anticolonialista.

Nas próximas páginas, Zaffaroni introduz um conceito de presença constante em sua obra: o
genocídio, caracterizado aqui como “genocidio por goteo”. Considerando a análise mais ampla
sobre o direito ao desenvolvimento e um modelo de inclusão, Zaffaroni afirma que o genocídio
é a manifestação extrema do conjunto de privações que o colonialismo produz, destacando,
dentre outros fatores, o desrespeito ao meio ambiente, a violência letal e a conflitividade da
concentração urbana.

O controle estatal contemporâneo é, para o autor, característico da fase avançada do


colonialismo. Zaffaroni faz questão de salientar, como tem feito desde o final dos anos 1980, os
“danos reais” em “vítimas de carne e osso”. Pode-se depreender desta afirmativa uma
proposta para complexificar o debate sobre os efeitos do sistema penal, sem minimizar sua
letalidade violenta, a partir de uma leitura realista.

Na terceira parte do texto, o autor vai traçar as linhas gerais para construção de um direito
anticolonialista para a América Latina, com a finalidade de enfrentamento do colonialismo e
suas posições letais. Zaffaroni, buscando evitar que os fundamentos decorram de elementos
supralegais, afirma que o dever ser constitucional e os direitos humanos se apresentariam
como fonte deste imperativo.

No intuito de realizar uma apropriação crítica destes instrumentos, Zaffaroni contraria a ideia
de que os tratados de direitos humanos tenham sido produzidos como “concessões graciosas”
ou produto de uma racionalidade crescente. Para ele, estes documentos têm origem no medo e
no espanto, em razão dos homicídios massivos cometidos nos “territórios hegemônicos”,
referindo-se notadamente aos crimes praticados ao longo na Segunda Guerra Mundial.

Neste contexto, o autor critica a forma como o genocídio foi concebido pelos países
hegemônicos, de maneira relutante e mesquinha, com recorte específico para que não
abarcasse o genocídio produzido por estes mesmos países. Coloca-se em questão o potencial de
alcance deste conceito, que ignora o genocídio a conta gotas produzido pelo colonialismo e sua
submissão ao poder hegemônico. Trata-se, mais uma vez, da negação colonial à existência
subalterna: ignoram-se as vidas, assim como se ignoram as mortes “a conta-gotas”.

No entanto, o autor afirma que quem subestima estes documentos de direitos humanos
acabaria caindo em uma “armadilha ideológica”. Zaffaroni reconhece nas declarações de
direitos humanos e constituições, programas que apontam para um “dever chegar a ser”.
Dialogando com Marx — à sua maneira —, o autor aponta a necessidade de se atualizar a
interpretação do direito enquanto mero instrumento de dominação das classes hegemônicas.
O autor critica determinada concepção que só enxergaria a violência como meio de disputa
exterior ao direito pelas classes oprimidas. Aqui, Zaffaroni afirma que a disputa por meio da
violência — por fora do direito, portanto — traz como consequência um maior número de
mortes entre os próprios oprimidos. O uso histórico do direito como instrumento a favor da
opressão, em especial na América Latina, não é uma “fatalidade do direito”.

O autor aponta a existência de uma contradição com o “cavalo de Tróia dos Direitos
Humanos”: de um lado, o poder financeiro pretende reduzir o direito a mero instrumento de
sua hegemonia; de outro, os tratados e constituições podem ser utilizados — e são — pelos
povos e por dissidentes para fazer do direito “um instrumento dos excluídos”. Esta
possibilidade se apresenta como “verdadeira e innegable contradicción en el sistema”
(ZAFFARONI, 2015, p. 82, grifos no original).

Talvez seja este o ponto central do texto, em que o autor explicita sua concepção sobre o
direito, suas funções e possibilidades. Aqui, é possível também perceber uma mudança parcial
de perspectiva a partir das abordagens realizadas em trabalhos fundamentais na obra do
autor 2. Parece haver um deslocamento em que o direito, antes visto como mecanismo redutor
de danos, a partir de uma perspectiva deslegitimante, passa a ser tratado como via única de
disputa para os oprimidos, sem o que restaria a via única da violência, que lhes seria mais
prejudicial.

O autor destaca uma peculiaridade interessante do continente latino-americano em relação às


etapas descritas pelos teóricos dos direitos humanos. Os direitos de primeira (individuais),
segunda (sociais e políticos) e terceira geração (desenvolvimento humano progressivo) não se
apresentariam historicamente nesta sequência, uma vez que a luta pela independência é
condição do desenvolvimento humano, sendo, portanto, o primeiro movimento de conquista
de direitos humanos do continente.

Propondo uma inversão da forma tradicional de trabalhar os direitos humanos, o autor busca
adaptar este discurso à realidade histórica latino-americana. Analogamente à sua ideia de
apropriação do direito como instrumento de proteção dos direitos dos oprimidos, Zaffaroni
propõe uma apropriação da linguagem do colonizador para criar o discurso de independência.

Para o autor, o saber destinado a ser aplicado pelo Estado tem conteúdo necessariamente
político, o que “hace de cada teoria jurídica um verdadeiro proyecto político” (ZAFFARONI,
2015, p. 88, grifos no original), apesar de ser comum se defender certa “assepsia política” do
saber jurídico. Esta assepsia, para o autor, contraria a principal tarefa do jurista, que seria de
fazer o povo ter confiança no direito. A prática histórica, pondera Zaffaroni, justifica esta
desconfiança, uma vez que para nossos povos, em quase toda a história, o direito tem sido
argumento legitimante de sua exploração.

Aqui, o autor defende que o saber jurídico deve partir de uma teoria do conhecimento realista,
pois as teorias normativas tendem a fechar-se em dados jurídicos puros, sem relação com o
real, havendo o risco de se alienar quando à “realidad constitucional” (ZAFFARONI, 2015, p.
94). Ainda com relação ao saber jurídico, o autor afirma que o colonialismo castra o direito do
saber de outras áreas, pretendendo transformá-lo em mero operador técnico, promovendo um
“embrutecimiento social y cultural del jurista” (ZAFFARONI, 2015, p. 97, grifos no original).
Mesmo os saberes progressistas, afirma Zaffaroni, devem ser entendidos de maneira crítica,
sob pena de se identificar problemas alheios a nossas sociedades. Nas entrelinhas, o autor
recupera a ideia da necessidade de recriar um modelo integrado de saberes criminais, sob
perspectiva crítica.

O autor retoma a noção de necessidade de contenção jurídica do poder punitivo, enquanto


condição de existência de todos os direitos. Se eliminadas as barreiras jurídicas, abre-se
caminho irrestrito para o genocídio. A lei penal seria um apêndice da Constituição que marca
o limite o poder punitivo. O enfraquecimento das garantias implicaria na expansão desse
poder e debilitação dos espaços de autonomia dos cidadãos.

Zaffaroni resume o pensamento desta sua última obra descrevendo o colonialismo como um
processo, e não como conspiração. O direito representaria um instrumento de luta, devendo
formar juristas populares e contrários ao genocídio, fazendo construir a confiança no próprio
direito. Fora do jurídico, para o autor, a violência apresenta-se como única possibilidade, que
seria sempre favorável às estruturas do colonialismo e jamais aos oprimidos. Deste modo, o
direito adquire a posição de instrumento a ser disputado para a realização do enfrentamento à
violência colonialista do sistema penal. Por esta perspectiva, a confiança no próprio direito se
apresenta na medida em que o fosso entre as realidades constitucional e social diminui.
É possível sintetizar o ensaio de Zaffaroni como uma apresentação ampliada do seu projeto de
pensar o direito tomando como referencial o empreendimento colonial genocida. Em El
derecho latinoamericano, está presente não só a preocupação com conter o poder punitivo,
mas também as outras formas de genocídio produzidas sobre os povos da América Latina,
como o desrespeito a outras formas de conviver com a terra e o multiculturalismo. Zaffaroni
se mantém, assim, no equilíbrio entre os grandes esquemas explicativos da realidade — seja o
colonialismo ou a luta de classes — e a complexificação desses mesmos esquemas, que não se
resumem num único fator provocador das mortes latino-americanas 3.

A prosa didática do autor e sua capacidade de articular os níveis particulares com os gerais são
marcantes. Além disso, não se pode acusar Zaffaroni de não manter-se em movimento.
Embora veicule uma constante denúncia do colonialismo, sua obra tem pontos de
aproximação e distanciamento com a aposta no direito enquanto instrumento válido para as
lutas sociais. El derecho latinoamericano certamente consubstancia uma posição mais próxima
ao uso dos direitos humanos, embora alerta aos seus perigos. Em tempos de retrocessos
intensos, é preciso estar atento às possibilidades de resistências: aqui estão as pistas mais
recentes que nos fornece Zaffaroni.

FOOTNOTES
1

Aqui é interessante observar as intersecções com o pensamento de Jock Young em A


sociedade excludente, publicado no Brasil pela Editora Revan.

Especificamente, podemos nos referir a “Em busca das penas perdidas: a perda de
legitimidade do sistema penal” – publicado no Brasil pela Editora Revan – (2001), e
“Criminología, aproximación desde un margen” (1988), sem tradução brasileira.

Merece nota a obra de Ana Flauzina, que tematiza o genocídio do povo negro no
Brasil como um projeto de Estado, no qual o poder punitivo tem papel determinante,
se aproximando, de algumas formas, ao proposto por Zaffaroni quando menciona o
“genocidio por goteo” do povo latino-americano, que é provocado em diversas frentes.
Ver: FLAUZINA, A. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

© edição e distribuição da EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA.

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