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A AUTOESTRADA DO COVID-19

Gabriel Rodrigues Santos (no. Usp 10687808, turma 64)

A inexorável disseminação mundial da COVID-19 já aparenta ter entranhado traços


indeléveis no status quo e no modus vivendi contemporâneo. Para além das tão
comentadas e notórias movimentações em escala mundial ao que tange, por instância,
ações políticas que tentam reunir esforços para produção de vacinas para o vírus, não
requer-se exagerado esforço para reconhecer as ligeiras e não-tão-sutis mudanças
imprimidas na atividade corriqueira que, aliás, com certa frequência, parecem
perfunctórias. Com tantos impactos a nível econômico, político e social, não me parece
ser exagerado atribuir a expressão “novo normal” ao estado atual das cousas.

É curioso, porém, pensar que, apesar de que hoje se vive em regime de isolamento, dentro
do qual impera uma sensação até que natural de imobilidade em função do contraste de
como as cousas eram no recente passado com os dias atuais, o mundo ainda continua a
“seguir em frente”. Ora, apesar de vivermos confinados em casa, essa imobilidade não
representa uma sensação generalizada de demência coletiva; quero dizer, em meio a esse
“normal”, as pessoas ainda têm de atender suas necessidades cotidianas e exprimir seus
mais internos sentimentos e sensações: os mais usuais relacionamentos mútuos entre
pessoas ainda são extraordinariamente necessárias para o ser humano; ele é, afinal, como
dito recorrentemente, um ser “social”. Penso que isso é importante, pois é assim que, em
última instância, o ser humano desafia a entropia e impermanência em momentos difíceis.

Ainda assim, por razões óbvias, fora preciso alguma adaptação para adequar os hábitos e
necessidades usuais com esse cenário de isolamento, o que, aliás, para as gerações mais
recentes não pareceu ser um problema tão descomedido em função do habitual contato
com tecnologia – que, no final das contas, facilita e permite criar canais de comunicação
anteriormente inimagináveis, ainda que algumas vezes provoca distanciamento por
efeitos psicológicos indesejados. Não obstante, há de se considerar a prática do
(des)governo, no qual também há também uma evidente impressão de imobilidade
generalizada, que se figura de modo tão surreal que o pensamento de que o agravamento
de tal situação por problemas estruturais é proposital não parece exagerado. Mesmo não
podendo atuar diretamente no sentido de simplesmente desenvolver uma receita mágica
ou quase-mágica de solução para o problema, deve ser criticado pela ausência de esforços
para melhorar o contexto de vulnerabilidade social, naturalmente maximizado num
cenário como o atual e que atinge especialmente de forma mais aguda a camada mais
pobre da sociedade.

No que fora apresentado até aqui – que, com algum dolo fora permeado com alguns
devaneios pessoais, para os quais peço desculpas ao leitor caso tenha sido infeliz, acredito
que exista uma conexão entre o cenário em que vivemos hoje com o conto A auto estrada
do sul de Cortázar. Penso que a relação entre ambos se dá, em primeiro lugar, pelos dois
cenários se referirem a ambientes onde há a presença de alguma imobilidade: figurativa,
no caso do conto, e uma “tão-real” do mundo contemporâneo, o que força a população
local a rearranjar seus comportamentos de modo a se adaptar para enfrentar as “novas”
situações habituais.

Da mesma forma que o ser humano, em meio à pandemia, precisou-se adaptar para viver
nesse regime de isolamento, confinado, os personagens no conto, em meio a um
congestionamento prolongado, isolados figurativamente do resto do mundo, também
tiveram que o fazer, através do estabelecimento de novas relações sociais, reforço do
senso de comunidade e a prática de organização coletiva no sentido de promover o bem
comum, em meio ao esquecimento do, agora, “mundo exterior”, que também é análogo à
situação actual. A exemplo disso, no conto, os personagens juntam toda comida e água
que têm e os racionam; compartilham almofadas e cobertores a noite e etc. Nesse sentido,
ainda, a ausência do governo, a exemplo, reforça a ideia de criação de uma sociedade
alternativa.

Algo definitivamente curioso na leitura é a forma com que o autor desenvolve os


personagens sem atribuí-los nomes próprios, referindo-se a cada um como uma marca de
carro ou sua profissão. Acredito que, como característico de crises, os seres humanos, em
algum sentido, renunciam temporariamente às suas identidades fixas e, então, perdem
suas identidades próprias para orientar seu modo de viver em prol da atividade coletiva e
da emergência e fluidez do “nós” que estabelece a comunhão coletiva. Todavia, esta
escolha também não parece puramente aleatória: os nomes dos carros e das profissões
refletem, em algum sentido, suas personalidades e status social.

Por fim, outro aspecto demasiadamente interessante abordado pelo autor ao final da obra
é como o personagem principal reage ao fim do congestionamento. Aqui, em função do
que fora apresentado, talvez faça mais sentido referir-se a este momento como fim do
“novo normal”, algo que, talvez, a palavra congestionamento, isoladamente, não consiga
expressar em sua totalidade. Inicialmente, é possível observar uma certa euforia por parte
do personagem no sentido de idealizar situações diferentes das então habituais com, por
exemplo, Delphine. Essa euforia, no sentido de retornar ao antigo “normal”, porém, é
compartilhada com outros personagens e, em meio a ela, as pessoas, então, fora de
controle, começam a se desorganizar e se afastar e, então, logo a sensação de euforia se
torna uma sensação nostálgica que rememora a percepção de transiência que, penso,
remete em última instância à tragédia. Finalmente, isso leva à inevitável perda do senso
de comunidade criada pelos personagens e ao seu também inevitável esquecimento, o que
preenche o personagem com uma sensação de vazio acentuada.

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