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Breves reflexões sobre a posse civil

 DIREITO DAS COISAS


 POSSE

O instituto da posse não pode mais ser visualizado com caráter


puramente patrimonial e individual. Ao revés, trata-se de instituto com
nítida função social, voltado à promoção dos valores sociais
protegidos constitucionalmente.

Sumário: 1. Introdução. 2. Teorias da Posse Civil. 2.1 Teoria


subjetiva (Savigny). 2.2 Teoria objetiva (Ihering). 2.3 Teoria
tridimensional (Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald). 2.4 Teoria da
função social da posse (Perozzi). 2.5 Teoria adotada pelo Código Civil
de 2002. 2.6 Elemento da posse civil. 3. Posse e Detenção. 4. Efeitos
da Posse Civil. 5. Considerações Finais.

1. INTRODUÇÃO

A relação entre o homem e as terras por ele ocupadas tem sido


objeto de evolução e normatização ao longo dos séculos. A posse é
um dos mais importantes e antigos institutos do Direito Civil e as
origens de sua sistematização jurídica remontam ao Direito Romano.
Em sua gênese, a posse era vista como mero apêndice do direito
de propriedade, tendo, apenas numa etapa evolutiva seguinte,
alcançado autonomia diante do direito real de propriedade.

Calha gizar que a posse não é objeto de estudo


exclusivamente do direito privado. Existe uma relevante espécie de
posse que revela contornos específicos e distintos da tradicional
posse civil em sentido amplo: trata-se da posse indígena. No presente
trabalho, cuidaremos apenas da posse civil.

A posse é o exercício de fato, pleno ou não, de algum dos


poderes inerentes ao domínio (usar, gozar e dispor). Conforme
veremos a seguir, atualmente, a posse não pode mais ser concebida
com caráter puramente individual e patrimonial.

A propriedade, por sua vez, é um direito real complexo, sendo


composta por (a) elementos internos, materializados nas faculdades
de usar, gozar e dispor, os quais revelam a tutela do domínio;
(b) elemento externo, visualizado pela faculdade de reivindicar a coisa
de quem quer que injustamente a possua ou a detenha; (c) elemento
funcional, consubstanciado na função social da propriedade. A
concepção da função social da propriedade como elemento funcional
integrante do direito de propriedade constitui verdadeiro reflexo do
novo viés metodológico que se convencionou chamar Direito Civil-
Constitucional. A função social é o quinto elemento integrante da
estrutura do direito real de propriedade, o qual exerce papel de
controle sobre os demais elementos, como pressuposto de sua
legitimidade. A propriedade deve ser submetida a um controle social
de utilização positiva na promoção dos valores sociais e
constitucionais, o que está em consonância com o princípio da
socialidade, um dos baluartes do Código Civil de 2002.

A posse é identificada a partir prática de atos de controle,


apreensão material e ingerência socioeconômica sobre a coisa
corpórea, que revelem o exercício de algum dos poderes inerentes ao
domínio.

A posse civil lato sensu está sujeita a regime jurídico de direito


privado, diversamente do que ocorre com a posse indígena, sujeita a
regime jurídico de direito público e que não será objeto de nosso
estudo.

2. TEORIAS DA POSSE CIVIL

2.1 Teoria Subjetiva (Savigny)

A teoria subjetiva teve como principal defensor Friedrich Carl


von Savigny e foi chamada de “subjetiva” por ter dado ênfase à
concepção do elemento subjetivo da posse, o animus, que era visto
como a intenção de dono ou intuito de exercer sobre a coisa um
interesse próprio.
A posse estaria presente sempre que a situação concreta
conjugasse dois elementos: o corpus, elemento objetivo que evidencia
a apreensão material ou controle físico sobre a coisa, e o animus, o
qual revela a intenção de dono ou o intuito de exercer sobre a coisa
um interesse próprio.

No plano da teoria subjetiva, a distinção entre posse e


detenção é norteada pela presença ou não do elemento anímico:
sempre que ausente o animus e presente somente o corpus, não
haveria posse, mas mera detenção.

2.2 Teoria Objetiva (Ihering)

A teoria objetiva teve como principal defensor Rudolf Von


Ihering e foi chamada de “objetiva” por reputar dispensável a presença
de um elemento subjetivo autônomo para a caracterização da posse,
sendo esta composta apenas por um elemento objetivo.

Para a teoria objetiva, considera-se possuidor todo aquele que


exerce conduta de dono, a qual pode ser avaliada objetivamente, sem
a necessidade da análise da intenção do agente. A conduta de dono
seria exteriorizada pelo exercício dos poderes ligados aos elementos
internos do direito de propriedade. Assim, considera-se possuidor todo
aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos
poderes inerentes à propriedade/domínio (usar, gozar e dispor).

A posse tem por elemento apenas o corpus, uma vez que o


elemento anímico (animus) estaria implícito no próprio corpus, isto é,
no poder de fato exercido sobre a coisa a res, sendo relevante apenas
aferir a existência de atos de apreensão material, controle ou
disposição que o indivíduo exerce sobre a coisa corpórea.

No campo da teoria objetiva, a distinção entre posse e


detenção é feita por uma prévia conformação do ordenamento
objetivo: cabe ao legislador fixar as hipóteses taxativas de detenção.

Essa teoria foi positivada no art. 1.196 do CC/2002, segundo o


qual considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício,
pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. A teoria
objetiva tem sido albergada pelo STJ: “o legislador brasileiro, ao
adotar a Teoria Objetiva de Ihering, definiu a posse como o exercício
de algum dos poderes inerentes à propriedade (art. 1.196 do CC)”
(STJ, REsp 945055/DF, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe
20/08/2009).

2.3 Teoria tridimensional (Cristiano Chaves e Nelson


Rosenvald)

Para a teoria tridimensional, defendida por Cristiano Chaves e


Nelson Rosenvald[2], a posse é um fenômeno jurídico complexo que
pode ser visualizado em três dimensões:

(a) posse real – quando o proprietário é o possuidor de seu


próprio bem corpóreo, sendo a posse entendida, nessa dimensão,
como um direito real;

(b) posse obrigacional – quando emanada de uma relação


jurídica obrigacional (v.g., contratos de locação, comodato etc.), sendo
a posse compreendida, nessa dimensão, como um direito
obrigacional;

(c) posse fática – situação fática e existencial de apossamento


e ocupação da coisa, não sendo a posse, nessa dimensão, nem
direito real nem tampouco direito obrigacional, cuja natureza
autônoma foge ao exame das teorias tradicionais. É nessa dimensão
que reside a função social da posse.

2.4 Teoria da função social da posse (Perozzi, Salleiles e Gil)

A teoria da função social da posse tem como principais


defensores Silvio Perozzi, Raymon Saleilles e Antônio Hernandez Gil.
Propõe uma superação das visões de Savigny e Ihering, com uma
nova compreensão do fenômeno possessório.

Para essa teoria, considera-se possuidor todo aquele que tem


o poder de ingerência socioeconômica sobre a coisa corpórea. A
ênfase não é mais no elemento anímico (animus), como preconizava a
teoria subjetiva; e nem na conduta de dono (corpus), tal qual
propugnava a teoria objetiva. O ponto central é deslocado para a
possibilidade de ingerência socioeconômica sobre a coisa corpórea,
com atenção para interesses existenciais, econômicos e sociais
merecedores de tutela.

A posse necessita promover os valores sociais


constitucionalmente protegidos, ostentando íntima relação com o
direito fundamental à moradia, dignidade da pessoa humana, redução
das desigualdades sociais e justiça distributiva.

2.5 Teoria adotada pelo Código Civil de 2002

Para a maioria da doutrina, como regra geral, o Código Civil de


2002 adotou a teoria objetiva de Ihering, considerando-se possuidor
aquele que exerce conduta de dono, a qual pode ser exteriorizada
pelo exercício de um dos poderes do domínio (usar, gozar e dispor).
Excepcionalmente, adota-se a teoria subjetiva apenas para fins de
caracterização para a posse ad usucapionem, que exige intenção de
dono ou o intuito de exercer sobre a coisa um interesse próprio.

No entanto, segundo Flávio Tartuce, a teoria objetiva de Ihering


foi adotada apenas parcialmente pelo CC/2002, sob o temperamento
da teoria da função social da posse[3].

2.6 Elemento da Posse Civil

De acordo com a teoria objetiva da posse, adotada pelo


CC/2002, a posse civil é constituída por apenas um elemento:
o corpus, sendo o animus implícito ao elemento corpóreo.

O suporte fático hipotético da norma-regra juridicizante do fato


jurídico gerador do direito à posse não tem por elemento nuclear
(cerne) a intenção de dono, a exceção da posse ad usucapionem, em
que o ânimo de dono é necessário para sua caracterização.

3. NATUREZA JURÍDICA DA POSSE


Discute-se na doutrina sobre a natureza jurídica da posse civil.
Quatro são as principais linhas de entendimento:

a) 1ª corrente: a posse é um fato;

b) 2ª corrente: a posse é um direito. Sendo a posse um direito,


qual a seria a espécie desse direito? Existem três vertentes: direito
real (Ihering, Maria Helena Diniz), direito pessoal e direito especial
ou sui generis (Flávio Tartuce, Carlos Roberto Gonçalves e Clovis
Beviláqua);

c) 3ª corrente: a posse tem natureza dúplice, sendo um fato e


um direito. É a linha de entendimento defendida por Savigny (teoria
subjetiva);

d) 4ª corrente: a posse tem natureza tridimensional, podendo


ostentar natureza de direito real (posse real), de direito pessoal (posse
obrigacional) ou de fato (posse fática), a depender das circunstâncias
do caso concreto. É a linha de entendimento da teoria tridimensional
da posse.

Prevalece na doutrina a orientação de que a posse é um


direito, existindo divergência quanto à espécie desse direito (real,
pessoal ou especial).

4. POSSE E DETENÇÃO

De acordo com o princípio da operabilidade, o Código Civil de


2002 passou a seguir a tendência de facilitar a interpretação e
aplicação dos institutos nele previstos. Nesse diapasão, a codificação
emergente extremou as noções de posse e detenção, ao fixar
expressamente tanto o conceito de posse, que pode ser extraído a
partir da noção de possuidor (CC, art. 1.196), bem como por ter
delimitado as hipóteses taxativas de detenção.

No espectro da teoria objetiva da posse, adotada pelo


CC/2002, a distinção entre posse e detenção é feita por uma prévia
conformação do ordenamento objetivo: o legislador deve indicar
expressamente as hipóteses taxativas de detenção, razão pela qual a
exata diferenciação entre posse e detenção deve ser dirimida
pelo princípio da tipicidade.

À luz da teoria objetiva da posse, é possível afirmar que


a detenção é conceito jurídico-positivo: cabe ao legislador indicar
expressamente as situações jurídicas que caracterizam a existência
de detenção.

Detenção é a “posse” juridicamente desqualificada pelo


ordenamento objetivo. O ordenamento brasileiro reconhece quatro
hipóteses taxativas de detenção[4]:

a) a situação dos fâmulos da posse (CC, art. 1.198);

b) os atos de permissão ou tolerância (CC, art. 1.208, primeira


parte);

c) a prática de atos de violência ou clandestinidade, enquanto


materialmente existentes (CC, art. 1.208, segunda parte);

d) a atuação em bens públicos de uso comum do povo ou de


uso especial.

O STJ possui entendimento firme no sentido de a ocupação


irregular de bem público não caracteriza posse, mas mera detenção.
Sua ocupação sem aquiescência formal do titular do domínio constitui
mera detenção de natureza precária (STJ, REsp 841905/DF, 4ª
Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 24/05/2011).

É possível a conversão da detenção em posse, o que pode


ocorrer, por exemplo, na hipótese de rompimento da subordinação e
exercício de atos possessórios em nome próprio; e na situação de
cessação de atos materiais de violência ou clandestinidade, não
sendo o detentor prontamente repelido, o que dará ensejo à posse
injusta (violenta ou clandestina).

A doutrina identifica, ainda, uma terceira situação: a tença.


Para uma primeira corrente[5], detenção e tença são expressões
sinônimas; para uma segunda corrente, a detenção não se confunde
com a tença, sendo esta última uma situação de apreensão física,
sem nenhuma consequência jurídica protetiva[6].

5. EFEITOS DA POSSE CIVIL


Os efeitos da posse civil podem ser assim identificados:

– efeitos processuais (proteção possessória): a) possibilidade


de invocar os interditos possessórios e outras ações para a tutela
processual da posse; b) faculdades da legítima defesa da posse e
desforço imediato.

– efeitos materiais: a) percepção dos frutos, em regra; b)


indenização e retenção pelas benfeitorias necessárias e úteis, em
regra; c) direito à usucapião, caso a posse seja exercida com animus
domini e atendidos os demais requisitos constitucionais e/ou legais; d)
fixação de responsabilidades.

O STJ tem entendido que não se deve atribuir à detenção


efeitos próprios da posse civil, sob pena de violação ao princípio da
boa-fé objetiva (REsp 945055/DF, 2ª Turma, Rel. Min. Herman
Benjamin, DJe 20/08/2009).

Em consequência, o STJ já decidiu que o mero detentor não


pode se valer dos interditos possessórios (AgRg no REsp
1190693/ES, DJe 23/11/2012) e a simples detenção precária não dá
ensejo ao direito de retenção e à indenização por acessões e
benfeitorias, nem mesmo as ditas necessárias (REsp 808708/RJ, DJe
04/05/2011).

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A posse é um dos institutos mais importantes do Direito Civil,


mormente pela sua possibilidade de concretude à dignidade da
pessoa humana e por figurar como um dos elos de ligação para a
viabilização de importantes direitos fundamentais (v.g., moradia,
família etc.).

O instituto da posse não pode mais ser visualizado com caráter


puramente patrimonial e individual. Ao revés, trata-se de instituto com
nítida função social, voltado à promoção dos valores sociais
protegidos constitucionalmente, os quais albergam interesses
existenciais, econômicos e sociais merecedores de tutela. A posse
ostenta íntima relação com o direito fundamental à moradia, a
dignidade da pessoa humana, a redução das desigualdades sociais e
a justiça distributiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

TARTUCE, Flavio. Manual de Direito Civil. 6ª ed. Rio de


Janeiro: Método, 2016.

CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 5ª


ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol.


V. Direito das Coisas. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. São


Paulo: RT, 2005.

[2] CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais.


5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, págs. 36-37.

[3] TARTUCE, Flavio. Manual de Direito Civil. 6ª ed. Rio de


Janeiro: Método, 2016, p. 921.

[4] Cf. CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Direitos


Reais. Op. Cit. págs. 66-75.

[5] Cf. CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Direitos


Reais. Op. Cit.

[6] PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. São


Paulo: RT, 2005, p. 471.




 Paulo Henrique da Silva Aguiar
Promotor de Justiça do Estado de Alagoas (2º colocado no concurso).
Ex-Defensor Público do Estado de Alagoas (1º colocado no concurso).
Também foi aprovado nos concursos para os cargos de Delegado de
Polícia do Estado do Rio Grande do Norte e Analista Judiciário – Área
Judiciária do TRT da 19ª Região. Ex-estagiário da Justiça Federal e do
Ministério Público Federal em Alagoas.

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