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A decomposição

No ameno e doce calor primaveril, dois gigantes iniciaram uma luta de profundo ódio mútuo. Os
golpes lançados parte a parte eram arremessados com as mãos, de punho cerrado, com as
pernas, com a cabeça, com dentadas ferozes… Os movimentos arrastavam-se lentos,
grandiosos e pujantes. Gritos de esforço e dor ecoavam pelas montanhas. O dia estava a
chegar ao fim e o sol projetava alongadas sombras sobre o vale. O azul do céu descortinava-se
sem a presença de nuvens.

Passadas três dias de combate, um dos gigantes não se conseguiu defender de um soco, que
lhe aterrou em cheio na cabeça. Mesmo por entre os grunhidos de esforço dos lutadores,
ouviu-se o som do crânio a rachar. O gigante caiu ao chão com estrondo e já não se levantou
mais. O seu adversário, para não deixar nada à sorte, deu mais três pontapés na cabeça do
gigante caído. Parou repentinamente para recuperar fôlego, dobrando-se e agarrando os
joelhos com as mãos. Ficou a observar atentamente o inimigo para garantir que já não se
colocava de pé. Vendo que o outro estava realmente morto, o gigante vitorioso vociferou as
três palavras malditas da sua linguagem com ódio e cuspiu em cima do corpo caído do
adversário. O cuspe levou consigo bastante sangue pois a luta tinha sido renhida e a cara do
vencedor estava completamente empapada. De seguida, o gigante virou costas e seguiu o seu
caminho por entre as montanhas.

Ao longo do primeiro século, as deteriorações no aspecto do gigante caído ocorreram com


alguma celeridade. A cor do gigante foi progressivamente ganhando um aspecto algures entre
um esverdeado nauseabundo e um alaranjado doente. Diversos tipos de bactérias
aproveitaram o rompimento interno das células para desfrutar de um repugnante banquete.
Esse banquete viria a durar milênios, ao longo dos quais os tecidos do gigante se foram
degenerando e retraindo em putrefação. As moscas afixaram os seus ovos em diversas partes
do corpo, e o festim pestilento das larvas que nasceram conferia um convulsivo aspecto de
movimento ao cadáver. As larvas agitavam-se e empurravam-se umas às outras por entre a
pele, os olhos, o cérebro, os orifícios do nariz e das orelhas, comendo a carne, ganhando
tamanho e força para o seu mágico momento de metamorfose. As gerações de moscas
sucederam-se e viveram vidas de grande alegria.

A partir do terceiro milénio, as duas pernas do gigante já se tinham deteriorado ao ponto de se


confudirem plenamente com a linha das montanhas, em forma e em cor. As larvas ingurjitaram
tanto quanto puderam das pernas, mas eventualmente deixaram de se fixar nessa zona pois o
apodrecimento que lhes servia de alimento tinha cessado. Ao longo do que restava das
ossadas e de alguns tecidos das pernas cresciam agora árvores e vegetação. Um bando de
corvos foi o primeiro conjunto de pássaros a fazer vida nas árvores das pernas. Porém, da
cintura para cima, o hediondo espetáculo ainda não tinha terminado. A cabeça cadavérica era
agora quase toda ela crâneo. Dos buracos dos olhos, do nariz e da boca fluia um líquido
fedegoso e esverdeado que emitia um cheiro nauseabundo. O torso permanecia a convulsa
moradia de larvas que continuariam a triturar a carne durante mais três milénios.

Ao sexto milénio, a parte do crânio encostada ao chão já se confundia com o chão, e a parte de
cima do crânio estabelecia uma linha contínua com as montanhas à volta. O mesmo se podia
dizer do resto do corpo, que se ia fundindo lenta e harmoniosamente com a terra. As árvores e
diversos tipos de vegetação percorriam integralmente a carcaça do gigante. Praticamente todos
os processos repulsivos de decomposição tinham cessado. Porém, esta incorporação do
cadáver na terra e nas montanhas não deixava de conter algo de estranho, sinistro e aterrador.

Foi precisamente esta inquietante sensação sinistra que chamou a atenção dos primeiros
humanos que habitaram este local. Um grupo de três eremitas, que tinham realizado votos de
silêncio, habitaram uma das grutas da montanha durante três décadas. O local proporcionava
conforto suficiente, com excepção de uma pequena goteira que escorria a partir do tecto nos
dias de chuva. Um dos eremitas viria a escrever, no final da sua vida, que a entrada da gruta
onde morava aparentava o aspeto de um gigante olho. O eremetia sentia-se no interior de um
crânio humano de grande dimensão, o que tornava o local perfeito para meditar sobre a finitude
da vida.

Outros seres da sua espécie acabariam por se amontoar na montanha. Ao longo do que
restava das costelas do gigante, agora perfeitamente integradas nas linhas das serras,
construíram-se casas de barro. Ao longo dos braços, montaram-se as primeiras fortificações
para reforçar a posição de defesa dos pequenos vilarejos, que já era privilegiada devido às
sinuosidades do terreno. Quando o último dos eremitas faleceu, a gruta do olho converteu-se
num templo de culto. Descendo a serra que dava acesso ao templo, chegava-se a um punhado
de terra que era estranhamente mais úmido e instável que os terrenos que o circundiavam.
Colocou-se uma cerca à volta da terra, que passou a ser utilizada enquanto curral para os
porcos. Este local era conhecido enquanto ‘a boca’, na medida em que, visto ao longe, parecia
ter a forma de uma boca desfeita conjuntamente com a forma redonda da serra ao seu lado.

A vila floresceu durante sete séculos. A terra roborou-se surpreendentemente fértil, constante e
confiável. Mesmo durante os anos de seca, tanto a vegetação natural quanto as plantações se
mostravam resilientes e proliferavam. Os animais, de gado e de companhia, aglomeravam-se
com naturalidade ao longo da montanha e cresciam fortes. Isto implicava que também os
predadores, como as raposas, os lobos ou os javalis, apareciam nas redondezas com bastante
frequência. Mas a juventude da montanha era numerosa, viçosa e corajosa, defendendo sem
problemas a população e o gado dos animais invasores.

Porém, ao oitavo século de ocupação humana algo mudara radicalmente. A terra principiou um
processo de deterioração. Secou e tornou-se largamente infértil. As plantações minguaram e a
população excedia claramente a quantidade de alimentos produzidos. Sem vegetação, os
animais foram morrendo e debandando para outras zonas. Apesar das fortificações no interior
da gruta, que foram construídas precisamente com o propósito de evitar o seu colapso, o covil
acabou por ceder ao seu próprio peso e ruir. As terras que dantes eram úmidas, secaram a tal
ponto que nada as distinguia de todas as outras.

Nada restava de sinistro ou aterrador neste local: quem o olhasse ao longe, não distinguiria
qualquer aparência de crânio, olhos, boca, costelas ou braços. Durante três séculos a fome e a
miséria tornaram-se o triste cotidiano das poucas gentes que permaneceram no vale.
Eventualmente, tornou-se inteiramente desabitado.

Por essa altura, a montanha já tinha absorvido na íntegra o cadáver do gigante derrotado.
Nada restava senão uma leve sensação de ódio pintada na linha do horizonte, eco de
combates que pertenciam a memórias distantes, etéreas e indistintas.

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