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Gordon H. Clark
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Editora Monergismo
Caixa Postal 2416
Brasília, DF, Brasil ─ CEP 70.842-970
Sítio: www.editoramonergismo.com.br
1ª edição, 2016
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto
Revisão: Fabrício Tavares de Moraes
6. A tirania do irracionalismo
Antecipando problemas intelectuais que defrontariam o Ocidente a partir da
segunda metade do século XX, Clark resguarda a revelação especial dos
ataques oriundos das novas ciências da linguagem.
O estruturalismo de Saussure, com seus pares de oposição entre
langue e parole, eixo sincrônico e eixo diacrônico, significante e significado,
bem como a sua concepção da linguagem como uma estrutura, um sistema ou
mesmo um jogo de pares de oposições, deu lugar, posteriormente, ao
desconstrucionismo de Derrida. Antes disso, todavia, Johann Gottfried
Herder, em sua obra Ensaio sobre a origem da linguagem, rompeu com a
ideia da origem divina da linguagem, atribuindo-a à imitação dos sons da
natureza e à necessidade intrínseca de comunicação por parte do homem.
Tempos depois, também Friedrich Nietzsche lançou as sementes da dúvida
sobre a capacidade da linguagem de apreensão do real. Em seu livro A
verdade e a mentira num sentido extra-moral, o filósofo alemão propõe que
todas as línguas, sendo em si mesmas nada mais do que ruídos guturais, não
possuem uma relação essencial com o real, sendo, antes, metáforas do real.
Gordon Clark, embora não trate extensivamente do problema da crise
da linguagem, disseca os pressupostos evolucionistas que subjazem às teorias
sobre a origem da linguagem e, de semelhante modo, apresenta uma defesa
lógica da possibilidade da revelação objetiva proposicional. No seu
entendimento:
As teorias contemporâneas são frequentemente baseadas
numa filosofia evolucionária na qual se supõe que a
linguagem humana tenha se originado de gritos e
grunhidos de animais. Essas teorias evolucionárias da
linguagem, e algumas que não são explicitamente
evolucionárias, revelam sua conexão com a
epistemologia ao tornar as impressões sensoriais a fonte
imediata da linguagem. As primeiras palavras uma vez
pronunciadas foram supostamente substantivos ou
nomes produzidos ao imitar-se o som produzido por um
animal ou uma cachoeira; ou se o objeto não fazia
nenhum ruído, algum método mais arbitrário foi usado
para atribuir um substantivo a ele. (Gordon Clark, A
racionalidade…)
Na verdade, Clark, demonstrando o problema que surge com a
procedência sensorial ou bestial da linguagem, simplesmente aponta aquilo
que já causara incômodo ao próprio Darwin, em sua famosa carta a William
Graham, a 3 de julho de 1881: “De todo modo, tu expressaste minha íntima
convicção, embora de modo bem mais vívido e nítido que eu seria alguma
vez capaz, a saber, que o Universo não é o resultado do acaso. Sempre surge
em mim a horrível dúvida de que as convicções da mente do homem, as quais
se desenvolveram a partir da mente de animais inferiores, possuem algum
valor ou são dignas de confiança”. Atualmente, no entanto, o consenso
acadêmico se pauta na doutrina evolucionista para explicar a origem da
linguagem, tendo talvez em Steven Pinker (O instinto da linguagem) seu
maior divulgador.
A visão de Clark, todavia, é que a linguagem é evidentemente
resultado do fato da criação do homem segundo a imagem de Deus. Além
disso, para o filósofo, o objetivo principal da linguagem não é primariamente
a investigação do mundo sensorial — embora, é claro, também atue nesse
sentido —, mas a revelação da verdade divina e a possibilidade do indivíduo
se dirigir em oração a Deus. Portanto, aquele que divorcia linguagem e
lógica, eventualmente anula sua própria capacidade comunicativa:
Se a razão, i.e., a lógica, que torna o discurso possível, é
uma faculdade dada por Deus, ela deve ser adequada
para sua tarefa divinamente designada. E sua tarefa é a
recepção de informação divinamente revelada e a
sistematização dessas proposições em teologia
dogmática. Resumindo: a linguagem é capaz de
transmitir verdades literais porque as leis da lógica são
necessárias. Não existem substitutos para elas. Filósofos
que as negam reduzem sua própria negação a sílabas
sem sentido. Mesmo onde a necessidade da lógica é
negada, se a razão é usada em algum outro sentido como
uma fonte de verdade, o resultado tem sido ceticismo.
(Gordon Clark, A racionalidade…)
Esse posicionamento também foi alvo das críticas de Van Til, pois,
segundo ele, isto implica em submeter a vontade e revelação divina aos
“ditames da lógica” tal como concebida pelo homem caído e natural. Clark
defende a racionalidade das Escrituras não no sentido de que todos os eventos
narrados precisam de comprovação empírica, mas, sim, de que são lógicos,
não contraditórios, e por isso apreensíveis pelo aparato da razão humana: “a
lei da contradição, ou razão, não é um teste externo da Escritura. A
consistência lógica é exemplificada na Escritura; e assim, esta pode ser uma
revelação significativa para a mente racional do homem. Proposições
autocontraditórias seriam absurdas, irracionais e não poderiam constituir uma
revelação” (Gordon Clark, A racionalidade…, grifo nosso). Ora, o filósofo
esclarece que a lógica não é uma superestrutura que impomos sobre a massa
das Escrituras; pelo contrário, a Bíblia é inerentemente lógica, já que não
contém contradições ou ilogismos ou impossibilidades.
Todavia, Cornelius Van Til, surpreendentemente, interpreta a posição
de Clark como sendo o oposto do que é dito, pois afirma que a mente racional
do homem é o critério objetivo que analisa e julga a revelação:
Então [para Clark], é a “mente racional do homem”, isto
é, a mente racional do descrente que determina quais
proposições feitas por Deus em Cristo têm sentido.
Portanto, se Deus deseja transmitir sentido ao homem,
ele deve falar de acordo com as exigências da lei da
contradição tal como concebida pelo homem natural. E o
homem natural a concebe como se ela operasse num
universo não criado ou governado pelo acaso. O homem
natural, hoje, talvez siga o exemplo de Aristóteles e
pense acerca da lei lógica como sendo, de algum modo,
completamente compreensível, em operação num
universo de acaso. O homem natural pode, hoje, seguir
Kant, e afirmar que as leis do pensamento constituem
um equipamento a priori da mente humana, com o qual
ele constrói a ordem no material puramente contingente
que o envolve. Em todo caso, é ao homem natural que é
virtualmente concedido o direito de estabelecer aquilo
que Deus pode ou não pode fazer. E, de todo modo, o
homem natural concebe as leis da lógica como se
constituíssem princípios abstratos que operavam em
relação correlativa ao material factual, bruto e puro da
experiência. Como um pensador cristão, Clark sustenta
que as leis da lógica são o equipamento do homem tal
como criado à imagem de Deus. Se Clark levar a cabo
sua convicção cristã consistentemente, ele argumentará
que a lei da contradição pode operar apropriadamente
somente num universo que é aquilo que é devido ao
plano de Deus com relação a ele. (Van Til, The
Protestant Doctrine of Scripture)
Curiosamente, as leis da lógica não foram deduzidas a partir de
raciocínios áridos por parte de Aristóteles, mas sim a partir da observação e
classificação dos entes da realidade, mais especificamente, animais e plantas.
As leis da lógica não são condições para a possibilidade apenas do raciocínio
humano, mas, sim, da própria existência dos entes. Antes de serem essenciais
para a organização do pensamento, as leis da lógica são demandas
ontológicas; afinal, para que um círculo exista, é impossível que seja um
quadrado.
Dizer que um ímpio “concebe como se ela operasse num universo não
criado ou governado pelo acaso” é um flatus vocis, pois independente da
interpretação descrente acerca da natureza ou a fonte da lógica, sua própria
existência e, portanto, pensamento, se submetem, ainda que contra sua
vontade, à lógica. Nenhum homem pode invalidar ou transgredir a lei da
contradição ou a lei da identidade, por maior que seja sua insurreição contra
Deus. Clark, assim como os pensadores escolásticos, aboliram qualquer falso
dilema ao dizer que a lógica é um análogo do modo pelo qual a própria mente
divina trabalha. Deus pensa logicamente, e por isso nada que seja
logicamente impossível (um círculo quadrado, por exemplo) pode vir à
existência. Até o mais depravado dos homens, por fim, submete-se à lógica,
já que não pode estar vivo e morto simultaneamente e num mesmo sentido.
Clark simplesmente aponta para uma obviedade — se não houvesse
coerência interna nas Escrituras, e se estas fossem repletas de
autocontradições, definitivamente não constituíram uma revelação, mas uma
nuvem do não saber, trevas e ilogismos. Como poderíamos compreender a
salvação efetuada por Cristo na cruz do Calvário se, numa situação
hipotética, lêssemos um versículo dizendo que Cristo morreu e, logo em
seguida, outro versículo que, contradizendo o anterior, afirmasse que Cristo
não morrera? A razão não é um teste ou critério de credibilidade das
Escrituras, mas certamente é um pressuposto para compreendê-la
adequadamente. Tal fato é de uma obviedade estonteante que sua própria
reafirmação é embaraçante.
Entretanto, Van Til, talvez com fins piedosos de marcar nitidamente a
distância entre criatura e Criador, invalida por completo a razão humana:
“Em nenhum lugar as Escrituras apelam para a razão irregenerada como um
juiz qualificado… Quando a Bíblia diz: ‘Vinde, pois, e arrazoemos’ (Isaías
1.18), geralmente o faz com relação ao povo de Deus, não se dirige aos
outros, jamais os vê como iguais a Deus ou como verdadeiramente
competentes para julgar” (Cornelius Van Til, Introduction to Systematic
Theology). E também: “Destarte, não podemos sujeitar os pronunciamentos
autoritativos das Escrituras acerca da realidade ao escrutínio da razão, porque
é a própria razão que aprende, das Escrituras, suas funções apropriadas”.[4]
Se a razão humana não é suficientemente competente para julgar as
Escrituras, se o chamado de “vir e arrazoar” é apenas para o povo de Deus,
podemos nos indagar como pregaremos o Evangelho aos descrentes. Van Til
afirma que o único ponto de contato em comum entre ímpios e crentes é o
sensus divinitatis, o já referido “senso da divindade” universal e inerente ao
homem. Mas como é possível alcançar esse senso se a via da razão não é
capaz de julgar os pronunciamentos das Escrituras? Devemos nos comunicar
intuitivamente ao sensus divinitatis?
Ademais, se é esse o único ponto de contato, o que dizer acerca da
linguagem? Afinal, todo homem (salvo raríssimas exceções) nasce e se
desenvolve numa sociedade que detém determinada linguagem por meio da
qual vive, comercializa e se relaciona. Cornelius Van Til sem dúvida
escreveu suas obras apologéticas em inglês com o intuito de alcançar as
pessoas do país onde residia, as quais evidentemente possuíam a mesma
língua. Todavia, como Clark argumenta, a linguagem deve ser lógica caso
queira ser compreendida; a estrutura sintática é, em si mesma, a organização
lógica do discurso. Aparentemente Van Til cria um abismo entre linguagem e
lógica, entre a revelação divina e a razão humana. Afinal, como podemos nos
certificar de que a expressão “Deus amou o mundo” na verdade significa que
“Deus odiou o mundo”; ou que, por “Deus enviou seu Filho, Jesus Cristo”,
devemos entender “Deus não enviou seu Filho, Jesus Cristo”?
Por fim, as Escrituras nos ordenam a pregação do Evangelho; de
semelhante modo, nos ensinam que a fé vem do ouvir a Palavra de Deus.
Todavia, segundo o raciocínio vantiliano, não é necessário sequer o uso do
vernáculo para a pregação, já que o único ponto de contato é o senso da
divindade. Certamente alguns dirão que tal assertiva é um espantalho dos
ensinos do teólogo; porém, afirmar a compreensão da linguagem, por parte
do ímpio, é corroborar com a ideia de que há um entendimento comum, um
mínimo denominador cultural numa sociedade, que é a condição essencial
para a pregação do Evangelho. Se fosse o contrário, não haveria a
necessidade de missionários aprenderem a língua e parte da cultura de um
povo — bastava apelar ao senso da divindade. Portanto, se é necessário o uso
da linguagem para a propagação do Evangelho, e uma vez que o uso da
linguagem requer o mínimo de capacidade lógica, segue-se que a lógica é um
pressuposto para o entendimento, por parte dos homens, acerca do
Evangelho.
[1] Rousas John Rushdoony, em The Mythology of Science (Nutley, NJ: Craig Press, 1968, p. 96), diz
o seguinte acerca do conceito moderno de Natureza: “Não há na Bíblia um termo como ‘Natureza’. E,
na verdade, as Escrituras não reconhecem a Natureza como a fonte e causa dos fenômenos naturais;
pelo contrário, elas veem Deus em operação direta e absoluta em todos os fenômenos naturais. Não há
lei inerente à ‘Natureza’, mas, sim, uma lei sobre a ‘Natureza’. Destarte, o termo ‘Natureza’ é um
coletivo para uma realidade não coletivizada, e com isto queremos dizer que a ‘Natureza’ não possui
unidade em e de si mesma que faça dela uma ordem unificada. Afirmar a existência da unidade na e
como ‘Natureza’ é advogar um princípio hierárquico no tocante ao universo e suas esferas”.
[2] Dizer que o khaos (termo grego que significa cesura, fenda ou abismo) é eterno implica na
atribuição de um atributo da divindade. Não gratuitamente, pois, que o poeta grego Hesíodo, em sua
Teogonia, coloca Khaos como o deus primordial. Rousas John Rushdoony, em O ateísmo da Igreja
primitiva, trata das consequências políticas e mesmo estéticas dessa visão: se o mundo procede do caos,
pensa o revolucionário e o subversivo, se a ordem provém da total desordem, basta, a fim de criar uma
nova ordem, instaurar novamente o caos. Portanto, o homem, sendo incapaz de criar a partir do nada,
adota, ainda que inconscientemente, os pressupostos helênicos para que possa agir como um demiurgo
na instauração de uma nova realidade. De semelhante modo, ainda segundo o pensamento de
Rushdoony, o conceito de criação artística como expressão do inconsciente (em especial no movimento
surrealista com a técnica da escrita automática) compreende que o id humano, na sua massa indistinta e
informe de pulsões e recalques, é uma espécie de caos primordial, prenhe de potencialidades, que
anseia pela forma do deus-artista para vir à tona na criação artística.
[3] Editora Monergismo, versão Kindle.
[4] Embora se julgue herdeiro do pensamento e apologética de Calvino, Van Til adota precisamente a
posição antípoda do reformador de Genebra. Em suas Institutas, capítulo 11, 15 é-nos dito: “Se
considerarmos que a única fonte da verdade seja o Espírito de Deus, nem repeliremos nem
desprezaremos a própria verdade, onde quer que apareça, a não ser que queiramos injuriar o Espírito de
Deus. Com efeito, os dons do Espírito não são vilipendiados sem o desprezo e o opróbrio do Espírito. O
que, então? Negamos que brilhasse a verdade dos antigos legisladores, que com tanta equidade
revelaram a ordem civil e a disciplina? Dizemos que estivessem cegos os filósofos na elegante
contemplação da natureza e em sua descrição artística? Dizemos que tenha faltado discernimento aos
que, pela constituição da arte da discordância, ensinaram-nos a falar com razão? Dizemos que fossem
insensatos os que, construindo a medicina, dedicaram a nós seu trabalho? O que dizer de toda a
matemática? Não a reputaríamos delírios de dementes? Pelo contrário, certamente não sem enorme
admiração, poderíamos ler os escritos antigos sobre todas essas coisas. Ora, admiramos porque fomos
impelidos a reconhecer o quão são notáveis. Além disso, declaramos que seja louvável ou notável algo
que não reconheçamos ser proveniente de Deus? Envergonhe-nos tamanha ingratidão, na qual não
incorreram os poetas pagãos, que confessaram ter sido descobertas dos deuses tanto a filosofia como as
leis e todas as boas artes. Portanto, como é patente que esses homens, a quem a Escritura chama
ψυχικουϖ, sempre foram argutos e perspicazes na investigação das coisas inferiores, aprendamos por
tais exemplos quantos bens o Senhor deixou para a natureza humana depois que foi espoliada do
verdadeiro bem”.
[5] Alguns romanistas tomam o argumento cosmológico, não como logicamente demonstrativo, mas
como um método de direcionar a atenção para certas características de seres finitos a partir das quais a
existência de Deus pode ser vista sem um processo discursivo. Cf. E. L. Mascall, Words and Images, p.
84. Julgo, porém, que esse não é o tomismo padrão.
[6] Atualidade, no sentido aristotélico, provém da supracitada divisão entre potência e ato, entre aquilo
que se encontra no campo inerente de possibilidades de um ente e o ato, isto é, a concretização de uma
dessas potencialidades, respectivamente. Há inerentemente ao gato, por exemplo, a potência de saltar; o
salto, em si, é o ato, a atualização dessa potência. [N. do R.]
[7] O exemplo no original é “Quando se diz que playboys levam vidas rápidas (fast), enquanto ascetas
jejuam (fast)”, impossível de ser vertido para o português. [N. do T.]
[8] Para uma análise cuidadosa do pensamento de Brunner, veja o excelente volume, Brunner’s
Concept of Revelation, de Paul King Jewett.