Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ESPIRITUALIDADE CENTRADA
EM JESUS
José Antonio Pagola *
RESUMO: Buscar uma nova espiritualidade é algo que se impõe aos cristãos dos tempos atuais
- tempos de luz e de sombra. Ante a mediocridade espiritual, impõe-se a necessidade de um
novo vigor espiritual, que exige uma conversão sem precedentes. Então, é preciso, buscar a
espiritualidade profética de Jesus, centrada no Reino e a serviço de uma vida mais humana. O
exemplo da espiritualidade de Jesus nestes momentos de sombra, poderá levar o ser humano
51
a uma espiritualidade saudável, criativa, libertadora e geradora de esperança. Marcada pelo
Espírito de Jesus, ela será uma presença alternativa, portadora da indignação profética de Jesus.
Transforma-se em imaginação e fôlego para pensar no futuro a partir da liberdade de Deus, amigo
da vida. Aberta à esperança e incentivada pela compaixão, ela há de aprender a olhar o rosto dos
outros, sobretudo das vítimas.
ABSTRACT: Get a new spirituality is something that is imposed on Christians of modern times -
times of light and shadow. Before the spiritual mediocrity, it imposes the need for a new spiritual
force, which requires a conversion unprecedented. So, we must seek the prophetic spirituality
of Jesus, focusing on the Kingdom and the service of a more humane life. The example of the
spirituality of Jesus in these moments of shadow, could lead the human being to a healthy
spirituality, creative, liberating and generating hope. Marked by the Spirit of Jesus, it is a presence
alternative bearer of prophetic indignation of Jesus. Becomes in imagination and stamina to
think about the future, the starting point of God’s freedom, friend of life. Opened the hope and
encouraged by compassion, she will learn to look at the faces of others, especially the victims.
KEY WORDS: Spirituality and compassion; Indignation prophetic; Hope; Kingdom of God and
Justice.
* Mestre em Teologia, pela Pontificia Universidade Gregoriana, Roma, diplomado em Ciências Bíblicas,
pelo Instituto Bíblico de Roma e pela École Biblíque, de Jerusalém, autor de mais de 20 livros, sendo o mais
importante: Jesus, uma aproximação histórico. Petrópolis: Vozes, 2010.
Torna-se urgente buscar, com humildade, novos caminhos de
espiritualidade. Neste tempo de mudança epocal, a Igreja precisa de uma
conversão centrada na espiritualidade do Espírito, uma conversão para o Espírito
que animou a vida inteira de Jesus. I. é, um estilo particular de vida que se alimenta
do seu Espírito, é reconhecido por suas escolhas e sua prática, e a conduza viver
a serviço de uma vida mais digna e mais aberta à esperança no Mistério bom de
Deus. Três aspectos caracterizam a espiritualidade profética de Jesus, que está
centrada no Reino e a serviço de uma vida mais humana: a presença alternativa,
a indignação profética e a abertura à esperança. Incentivada pela compaixão,
buscando curar sempre, tendo paixão pelo reino de Deus, como Jesus, e a sua
compaixão por todas as vítimas
Buscar novos caminhos para uma nova espiritualidade, hoje se torna uma
tarefa importante. E o faço a partir da convicção de que nada é mais urgente na
Igreja de hoje do que voltar a Jesus para focar com mais verdade e mais fidelidade
a nossa espiritualidade em sua pessoa e em seu projeto do Reino de Deus. Faço-o
também a partir da consciência de que não é possível hoje fazer uma oferta de
52 caminhos novos de espiritualidade, mas a partir de uma atitude de “humildade,
nudez e amor”1.
Estou convencido de que Jesus pode ser, nestes momentos difíceis, mas
apaixonantes, fonte e caminho humilde de uma espiritualidade saudável, criativa,
libertadora e geradora de esperança. Entendo por «espiritualidade de Jesus» um
estilo particular de vida que se alimenta do seu Espírito, é reconhecido por suas
escolhas, e sua prática conduz aos que continuam a viver a serviço de uma vida
mais digna e mais aberta à esperança no Mistério do bondoso Deus4. Não pretendo 53
elaborar uma exposição sistemática. Quero plantar neste texto a inquietude
por Jesus para despertar as nossas consciências e para começar a acreditar
que Jesus pode hoje acender entre nós esse fogo que veio atear no mundo.5
Jesus, como os profetas de Israel, não faz parte da estrutura política nem
religiosa. Não é nomeado por nenhuma autoridade, não é ordenado nem ungido
4 Não vou falar da mística cristiá que tem as suas raízes na cristologia jovanea; tão pouco da
“cristologia interior” que é possivel desenvolver desde a experiencia paulina de“viver em Cristo”,
nem dos diversos caminhos que se ensaiam hoje para acessar à espiritualidade oriental dedde a
pedsoa de Jesus. Pode-se ler XAVIER MELLONI. El Cristo interior. Herder, Barcelona, 2010.
5 “Luz eu vim trazer à terra: e o que mais queria eu que ele já estivesse ardendo!” (Lucas 12, 49);
“O que está perto de mim, está perto da luz. O que está longe de mim, está longe do reino”
(Evangelho apócrifo de Tomás)
6 Lucas 7, 16; ver Marcos 6, 15; 8, 27-28.
por ninguém. Sua vida é marcada pelo Espírito de Deus empenhado em conduzir
o povo pelos caminhos da justiça7. Três aspectos caracterizam a espiritualidade
profética: presença alternativa, indignação profética, a abertura à esperança.
7 O profeta é “nabi”, quer dizer alguem que foi chamado por Deus para escutar uma mensagem
que deverá comunicar no seu nome. Chama-se também“ro’eh” e “hozeh”, quer dizer, um vidente
que, desde Deus, ve o que outros não vem.
Movido por seu espírito profético, Jesus levanta a sua voz: “Os chefes dos
povos os tiranizan, e os poderosos os exploram. Mas entre vocês não pode ser
assim” (Mt 20, 25-26a). Deus é contra o poder opressor. Grita também:“Na cadeira
de Moisés sentaram os escribas e os fariseus ... atam fardos pesados e os colocam
nas costas dos outros, mas eles não põem um dedo para carregá-los” (Mt 23, 2-4).
Não deve ser assim. Deus é contra a religião opressora. A indignação de Jesus é a
sua reação profética diante de uma sociedade não suficientemente indignada.
8 Este dito aparece com pequenas modificações em Marcos 10,31; Mateus 19,30; 20,16; Lucas
13,30.
9 Lucas 14, 11; 18,14; Mateus 23,12
Esta espiritualidade profética, marcada pela presença de alternativa, pela
indignação e abertura à esperança, é o âmbito da espiritualidade de Jesus e de
todo aquele que segue inspirado pelo seu espírito.
57
2.3. A oração do buscador do reino de Deus
Jesus deixou em herança a seus seguidores uma oração, a única que lhes
ensinou para alimentar a sua atitude espiritual. Esta frase constitui o núcleo da
sua identidade, de homens e mulheres empenhados na tarefa do reino. É uma
oração confiante ao Pai de todos, que nos enraíza na fraternidade universal
reunindo três grandes anseios centrados no reino de Deus e três gritos saídos
desde as necessidades mais básicas do ser humano13.
11 Lucas 17, 21
12 O evangelho apócrifo de Tomás atribui precisamente a Jesus estas palavras: “O reino de Deus
está dentro e fora de vós” (3).
13 Lucas 11, 2-4 // Mateus 6, 9-13. Provavelmente Jesus a entendia como uma oração para ser
rezada cada día.
“Dá-nos o pão de cada dia”. Que a ninguém falte pão. Não que peçamos
bem estar bem abundante só para nós, mas pão para todos. Que os famintos da
Terra possam comer, que os seus pobres deixem de chorar e começar a rir, que
possamos ver a viver com dignidade. “Perdoa-nos as nossas dívidas”. Precisamos
do seu perdão e sua misericórdia. Estamos em dívida com Deus pelo nosso vazio
imenso de resposta ao seu amor libertador. Que o teu perdão transforme o nosso
coração e nos faça viver perdoando-nos uns aos outros. “Não nos deixes cair em
tentação” de afastar-nos definitivamente do seu reino. Somos fracos e estamos
expostos a riscos e crises que podem arruinar a vida humana. Não nos deixeis cair
derrotados. “Livra do mal”. Arranca-nos da frustração.
Jesus não discute sobre Deus com nenhum grupo judeu: todos acreditam
no mesmo Deus, o Criador dos céus e da terra, o Libertador de seu povo querido.
A diferença é que, enquanto os advogados e os dirigentes do templo associam a
Deus com o seu sistema religioso, Jesus vincula-o com a vida14. Os setores mais
religiosos de Israel se sentem chamados por Deus a assegurar os sacrifícios rituais,
o cumprimento da lei e o cumprimento do sábado. Jesus, pelo contrário, sente-se
impulsionado por Deus a promover a vida: “Eu vim para que tenham vida e para
que tenham abundantemente”15. Para Jesus, o primeiro é a vida das pessoas, não o
culto; a cura dos doentes, não no sábado; a reconciliação social, não as oferendas
que leva cada um para o altar; o acolhimento amigável para o pecado e o perdão
sanador, não os rituais de expiação.
14 Christian Duquoc, Dios es diferente. Sígueme, Salamanca, 1978, 39-55.
15 João 10,10. O quarto evangelista resume bem ou recordou aquilo que ficou de Jesus.
Ao que parece, Jesus tinha o hábito de despedir os doentes curados e
os pecadores perdoados com o cumprimento: “Va em paz” 16 e desfrute da vida.
Jesus deseja-lhes o melhor: saúde integral, bem-estar completo, uma convivência
ditosa em casa e na aldeia, cheia de bênçãos de Deus. O termo hebraico Shalom
indica o mais oposto a uma vida indigna, infeliz, maltratada pelas desgraças ou a
pobreza. O Deus de Jesus é amigo da vida17.
O Deus de Jesus, Amigo da vida, está sempre junto a seus filhos e suas
filhas, contra o mal, o sofrimento e a morte. Para Jesus, vive-se Deus como uma
força contra o mal, uma Presença bondosa que abençoa a vida e atrai todos
16 Marcos 5, 34; Lucas 7, 50; 8, 48
17 Sabedoría 11, 26.
18 Lucas 4, 16-22. A cena é provavelmente uma composição do evangelista, porém recolhe bem a
experiencia profética de Jesus e o seu programa de impulsar o reino de Deus entre os últimos.
a lutar contra o quem faz mal ao ser humano e ao mundo inteiro: o «antimal»
na expressão feliz de E. Schillebeeckx19. Assim o experimenta Jesus e assim o
comunica através de toda a sua vida. Por isso, luta contra ídolos como o poder e
o dinheiro, que desumanizam aos que lhes rendem culto e exigem sempre mais
vítimas para subsistir. “Devolver a César o que é de César, mas a Deus o que é de
Deus”20. Se você quiser dar culto a Tibério, retirado já na ilha de Capri, devolve-lhe
seu dinheiro injusto, que é o seu único bem, mas não dê a nenhum César o que só
pertence a Deus, os pobres, os excluídos da cidadania romana, os esquecidos por
todos. «Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro»21. Não é possível viver acumulando
dinheiro e bem-estar, e estar ao mesmo tempo a serviço do Deus da vida que não
pode reinar no mundo senão fazendo justiça a quem ninguém faz. Quem vive do
Espírito de Jesus luta contra ídolos, poderes, sistemas, hábitos ou movimentos
que fazem mal ao ser humano, desumanizam o mundo e introduzem morte.
Depressa Jesus percebeu isso. Esta visão religiosa não corresponde à sua
experiência de um Deus misericordioso e acolhedor. Então, com uma audácia
e lucidez surpreendentes introduz um novo princípio que transforma em tudo:
«Sede compassivos como o vosso Pai é cpmpassivo»23. É a compaixão e não a
santidade o princípio que irá inspirar a conduta dos filhos e das filhas de Deus.
Jesus não nega a santidade de Deus, mas o que qualifica essa santidade não é a
separação do impuro ou a rejeição do santo. Deus é grande e santo, não porque
rejeita e exclui pagãos, pecadores e impuros, mas porque ama a todos sem excluir
ninguém da sua compaixão. Esta compaixão ativa não é uma virtude a mais; mas
a única maneira de olhar a vida, de sentir as pessoas e de reagir perante o seu
sofrimento, que nos aproxima do Pai das Misericórdias.
Johan Baptist Metz lembrou que, frente a “mística de olhos fechados” mais
própria da espiritualidade do Oriente, voltada sobretudo para o interior, quem
se inspira em Jesus é chamado a criar uma «mística de olhos abertos» e uma
espiritualidade de responsabilidade absoluta para os que sofrem.
24 Lucas 7, 13. Os evangelistas empregam o termo “splanchnizomai” que expressa uma reação
visceral, uma comoção nas entranhas.
25 Joan-Carles Mélich Ética de la compasión, Herder, Barcelona, 2010; Xosé María Castillo, La
sensibilidad de Jesús, em VVAA, El grito de los excluidos. Seguimiento de Jesús y teología, Estella,
Verbo Divino, 2006, 153-172.
interior ... e com razão26. Entretanto, me atrevería dizer que o caminho mais eficaz
para sintonizar com a espiritualidade de Jesus é aprender a olhar com atenção o
rosto do outro com compaixão.
5. Espiritualidade curadora
64
5.1 Curar a vida
A chave mais importante a partir da qual Jesus vive para Deus e trabalha
para abrir caminhos do seu reino de paz e de justiça, não é o pecado, a moral ou
o culto, mas o sofrimento, a doença, a deterioração da vida, as condições insanas
da sociedade, a falta de justiça e compaixão solidária. A gente teve que captar
o contraste enorme que havia entre o Batista e Jesus. A trajetória profética do
Batista é inspirada e orientada pela luta contra o pecado. É a sua preocupação
suprema: denunciar os pecados do povo, chamar à conversão e purificar pelo
rito do batismo aos que vão ao Jordão. O Batista não cura a nenhum paciente,
não toca os leprosos, não libera os possuídos por espíritos malignos, não alivia o
sofrimento. Não faz gestos de bondade. Não cura a vida.
Os doentes que Jesus encontra em seu caminho são, sem dúvida, o setor
mais desvalido e marginalizado daquela sociedade. Muitos deles são incuráveis.
Abandonados à sua sorte, incapacitados para ganharem o seu sustento, muitas
vivem arrastando uma vida de mendicância que roça à miséria e à fome. Não
experimentam a sua desgraça como um problema médico, mas como exclusão
injusta da vida: não podem viver como os outros. São cegos que não conseguem
captar a vida de seu domínio, surdos e mudos que não podem se comunicar, nem 65
cantar nem bendizer a Deus, paralíticos que não podem se movimentar, trabalhar
ou peregrinar a Jerusalém, doentes de pele repugnante que são afastados do lar
e da aldeia, desprezados que perderam o domínio de suas vidas. A maior tragédia
destes doentes é sentirem-se esquecidos por Deus: parece que o Espírito criador
de vida os abandonou provavelmente por causa de algum pecado grave. Por
isso, precisamente, são marginalizados e excluídos, em maior ou menor grau de
convivência social e religiosa. A exclusão do templo é a confírmação de que vivem
no fundo da sua doença: Deus não os quer, não podem confiar nele.
Jesus coloca o doente em contato com essa parte do seu ser que está ainda
saudável para suscitar o desejo de vida que se esconde em todo ser humano:
«Você, você quer ser saudável?» (Jo 5, 6). Desperta em seu interior a confiança
30 Ver a obra de Johann Baptist Metz Memoria passionis. Una evocación provocadora en una sociedad
pluralista, Sal Terrae, Santander, 2007, 160-183
em Deus como uma força curadora: «Levanta e vá-. Salvou-te a tua fé» (Lc 17,
19). Liberta da culpa e do medo de Deus, oferecendo a sua paz e o seu perdão
Reconciliador: «Meu filho: estão perdoados os teus pecados» (Mc 2, 5). Desata as
amarras e escravidão para viver em liberdade: «Mulher, estás livre de tua doença»
(Lc 13, 12). Faz retornar novamente a convivência: «Pega a tua maca e volta para a
tua casa» (Mc 2, 11). Orienta-os para uma existência nova vivida desde o louvor e
agradecimento a Deus: «Vai para a sua casa, volta para os seus, e conta-lhes tudo
o que o Senhor, compadecido, fez com você»31.
Jesus nunca pensou em suas curas como uma forma fácil de eliminar o
sofrimento no mundo, mas apenas como um sinal para indicar a direção em que
devemos trabalhar para acolher e introduzir entre nós o reino de Deus. Por isso
Ele põe em marcha um processo de cura tanto individual como socialmente, com
66 o intuito de fundo: curar a vida doente. Toda a sua atuação é feita no sentido de
encaminhar a sociedade para uma vida mais saudável.
6. A modo de conclusão
68