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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LESTRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

RETORNO E ABERTURA: DA PERSPECTIVA LINEAR


NO RENASCIMENTO COMO PROBLEMA HISTÓRICO-
FILOSÓFICO.

ROGERIO GALDINO TRINDADE

João Pessoa, 07 de junho de 2018.


ROGERIO GALDINO TRINDADE

RETORNO E ABERTURA: DA PERSPECTIVA LINEAR


NO RENASCIMENTO COMO PROBLEMA HISTÓRICO-
FILOSÓFICO.

Trabalho de conclusão de curso apresentado como


parte das atividades para obtenção do título de
Licenciatura em Filosofia, do curso de Filosofia da
Universidade Federal da Paraíba.

João Pessoa, 2018


Catalogação na publicação
Seção de Catalogação e Classificação

T833r Trindade, Rogerio Galdino.


Retorno e Abertura: Da perspectiva linear no
Renascimento como problema histórico-filosófico. /
Rogerio Galdino Trindade. - João Pessoa, 2018.
45 f. : il.

Orientação: Ana Thereza de Miranda Cordeiro Durmaier


Durmaier.
Monografia (Graduação) - UFPB/CCHLA.

1. Renascimento. 2. Perspectiva linear. 3. Geometria.


4. Filosofia. 5. Heidegger. I. Durmaier, Ana Thereza de
Miranda Cordeiro Durmaier. II. Título.

UFPB/CCHLA
O Espaço — esta abstração spenceriana
Que abrange as relações de coexistência
É só! Não tem nenhuma dependência
Com as vértebras mortais da espécie humana!

As radiantes elipses que as estrelas


Traçam, e ao espectador falsas se antolham
São verdades de luz que os homens olham
Sem poder, no entretanto, compreendê-las.

Em vão, com a mão corrupta, outro éter pedes


Que essa mão, de esqueléticas falanges,
Dentro dessa água que com a vista abranges,
Também prova o princípio de Arquimedes!
Augusto dos Anjos, trecho de “Cismas do Destino”.
RESUMO

O presente trabalho se dedica a investigação da técnica de reprodução pictórica descoberta


no Renascimento e conhecida como “perspectiva linear”. A tentativa de elaborar
historiograficamente a essa descoberta serve para ilustrar a verdadeira intenção do trabalho:
conceber o caráter propriamente histórico desta época, que foi caracterizado por nós como um
“retorno à Antiguidade” e, ao mesmo tempo, uma “abertura ao Moderno”. Trata-se, pois, de
elaborar como problema histórico-filosófico a descoberta da perspectiva linear, e isso significa:
questionar-se sobre o fundamento metafísico de fundo que leva o Renascimento a deparar-se de
forma inaugural com uma nova compreensão do espaço e qual a origem dessa revolução em seu
período. Pensamos, então, através de Heidegger e a partir da consideração da perspectiva linear, o
significado do Renascimento enquanto época a partir da estrutura espacial própria aos seus
problemas. A investigação, por fim, se direcionou para o paradigma espacial experimentado pelo
Renascimento a fim de ilustrar sua singularidade e, ao mesmo tempo, ilustrar formalmente a
unicidade inequívoca que se é capaz de oferecer a uma época a partir de seus próprios problemas,
desde que se ofereça a eles um tratamento histórico-filosófico.

Palavras-chaves: Perspectiva linear; Renascimento; História; Filosofia; Heidegger.


ABSTRACT

The present work tries to the investigate the technique of pictorial reproduction discovered
in the Renaissance and known as "linear perspective". The attempt to elaborate historiographically
this “rediscovery of linear perspective on the Renaissance" serves to illustrate the true intention of
the work: to conceive the properly historical character of this epoch, which was characterized by us
as a "return to Antiquity" and at the same time an "openness to the Modern". It is, therefore, a
matter of elaborating as a historical-philosophical problem the discovery of the linear perspective,
and this means: questioning the fundamental metaphysical foundation that leads the Renaissance to
find itself on the way to a new understanding of space and the origin of this possibility Then, we
think, through Heidegger and from the previous considerations about linear perspective, the
meaning of the Renaissance as an epoch from the spatial structure proper to its problems. Finally,
research has turned to the spatial paradigm of the Renaissance experiment in order to illustrate its
singularity and, at the same time, to the unequivocal uniqueness that every Epoch could gains in an
investigation, since that such investigation starts from the epoch’ owns problems and offer them a
historical-philosophical treatment.

Key-words: Linear Perspective; Renaissance; History; Philosophy; Heidegger.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Experimento realizado por Brunellesco (In: EDGERTON, 1976, p. 126: Diagram ix - I).
............................................................................................................................................................21
Figura 2: Disposição dos raios visuais na pirâmide visual segundo Alberti (In: EDGERTON, 1976,
p. 84: Diagram vi-1)...........................................................................................................................28
Figura 3: Reconstrução do método descrito por Alberti (In: EDGERTON, 1976, p. 45 – diagrama
iii-2)....................................................................................................................................................32
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.........................................................................................................10

1 O QUE É RENASCIMENTO?..............................................................................14

2 O QUE É PERSPECTIVA LINEAR....................................................................18


2.1 O EXPERIMENTO DE BRUNELLESCO.............................................................................................19
2.2 O TRATADO DE ALBERTI..............................................................................................................23

3 O ESPAÇO COMO REPRESENTAÇÃO...........................................................34


3.1 O RENASCIMENTO E SUA RELAÇÃO COM A CIÊNCIA MODERNA...................................................34
3.2 RENASCIMENTO COMO ABERTURA AO MODERNO.........................................................................37

CONCLUSÃO............................................................................................................41

BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................44
10

INTRODUÇÃO

O que motivou o presente trabalho foi o interesse pela questão do espaço em


Heidegger. Em atenção ao caráter destrutivo ou destrutivo pelo qual ele desentranha o sentido
dos conceitos da tradição, buscamos resgatar a tematização desta questão no contexto do
Renascimento, um movimento imediatamente anterior à modernidade, sendo esta última a que
mais diretamente Heidegger visou em seu projeto ontologico-destrutivo. Assim, falamos
sobre um período da história da humanidade: o Renascimento. A decisão pelo Renascimento
advém de diversos fatores. Em primeiro lugar, encontramos apenas uma citação de Heidegger
(2009, p. 43) fazendo referência ao Renascimento como o “inicio da emancipação dos
vínculos religiosos” da cultura ocidental; no meio acadêmico em geral, igualmente, o
Renascimento é bastante negligenciado e, muitas vezes, reduzido ao status de trânsito do
medievo à modernidade. Em segundo lugar, as inovações renascentistas podem ser
organizadas precisamente por problemas relativos ao conceito de espaço, como é o saco da
perspectiva. Esses dois fatores associados abrem a possibilidade para duas dimensões do
trabalho de pesquisa em filosofia e ao estudo filosófico: o investimento problematizante da
relação entre filosofia sistemática e história da filosofia e o empenho desejável na
autoformação. Podemos dizer que trata-se de um esforço de reconstrução de conceitos para
além das indicações formuladas explicitamente por autores fundamentais, promovendo assim
mais a pesquisa e menos a exegese. A fim de dar conta de uma tarefa demasiadamente
extensa, restringimos nossa pesquisa através da formulação de uma única questão que ofereça,
de alguma forma, uma aproximação do Renascimento enquanto época.
De início, procuramos em Erwin Panofsky, principalmente em sua obra “Renaissance
and Renascences in Western Art” (1972), uma forma de nos cercamos historicamente de algo
tão complexo como a ideia “período histórico”. Tomando em consideração a posição desse
autor, delimitamos o conceito de período em analogia com o do indivíduo. Assim, a tentativa
de oferecer uma descrição completa e totalizante de uma pessoa que conhecemos, equivaleria
a descrever conceitualmente a totalidade do que constitui um período histórico, o que, a
11

princípio, soa absurdo. Apesar disto, para Panofsky, um período possui algo como uma
“fisionomia” singular através da qual podemos reconhecê-lo proximamente, o distinguindo de
outros períodos após uma primeira apresentação. Podemos assim, nos aproximar de um
período de tal forma que, marcados por ele, consigamos distingui-lo entre outros, apesar de
não possuirmos uma definição exaustiva do seu significado. Essas considerações nos
pouparam da exaustiva e, provavelmente, infrutífera tentativa de abarcar todo o Renascimento
através da exposição de inumeráveis fatos históricos. Ao contrário, foi possível nos
aproximarmos do Renascimento desde um ponto de vista simples; procurando-o naquilo que,
em primeiro lugar, nos tocou de forma singular. Portanto, a primeira parte de nosso trabalho
consistiu em localizar o Renascimento enquanto período histórico para, assim, sermos capazes
de tomá-lo como problema principal a ser tratado monograficamente.
A partir da abordagem dada a questão principal, um primeiro problema específico
surgiu: qual característica do Renascimento pode nos servir de guia em uma primeira
aproximação e, de certa forma, nos introduzir ao período? Tomando as indicações de William
Ivins, “On racionalization of sight” (1938), de Samuel Y. Edgerton, “The Renaissance
Rediscovery of linear Perspective” (1976), e de Da Vinci, em seus textos sobre o assunto
(1883) ‒, a “descoberta da perspectiva linear” consiste em uma característica fundamental do
Renascimento, capaz de lhe conferir uma identidade epocal. O segundo problema específico,
então, a ser tratado durante a pesquisa, foi o da caracterização o significado da “descoberta do
sistema perspectivo” para esta época. Mais uma vez, tomamos o conselho da literatura
especializada e buscamos em duas figuras singulares a origem desse movimento de
redescoberta: Brunellesco e Alberti. Em “A Forma e o Inteligível” (1998), Rober Klein indica
nesses dois florentinos a origem do que hoje chamaríamos “perspectiva linear”: Brunellesco
foi o primeiro a demonstrar publicamente, através de um experimento, as regras para o que se
chamou “sistematização do espaço pictórico” ou “racionalização da visão” (IVINS, 1938);
Alberti, o primeiro a transcrever essas regras sob a forma de um tratado sobre a pintura.
No segundo tópico tratamos, então, da perspectiva enquanto característica do
Renascimento e ele está dividido em dois subtópicos, sendo cada um dedicado a uma das
personalidades citadas. No primeiro, utilizamos principalmente a obra de John White, “The
Birth and Rebirth of Pictorial Space” (1994), e Edgerton (1976) para ilustrar, de forma
simples, os passos que levaram Brunelesco a construir seu experimento e o que esses passos
12

significaram paradigmaticamente para sua época. No segundo subtópico, levamos em


consideração o texto do próprio Alberti, em sua versão portuguesa, “Da Pintura” (1999), para
nos aproximarmos da abordagem dada pelo autor a “sistematização do espaço”, pré-
configurada em Brunellesco. Elaboramos no ponto 2.2, os conceitos apresentados por Alberti
e um breve resumo das regras práticas apresentadas em seu tratado. As considerações deste
tópico têm como objetivo nos localizar na discussão em torno da descoberta da perspectiva
por esses ocidentais e a que direções essa (re)descoberta tendia na época que foi concebida.
Tomamos o cuidado de evitar assumir o ponto de vista moderno para o entendimento da
invenção da perspectiva, isto é, compreender a perspectiva apenas a partir daquilo que a
modernidade definiu sobre ela. Justamente por essa preocupação, um terceiro problema,
especificamente histórico, surgiu: estaria o Renascimento de forma embrionária, no mesmo
paradigma experimental que a modernidade? E, consequentemente, seria ele uma espécie de
ruptura completa com o medievo? Apesar de reconhecer a dubiedade de assumir uma resposta
conclusiva a essas perguntas (KLEIN, 1998, p. 193), grande parte da literatura especializada
tem comumente compreendido o Renascimento através da dupla chave de “retorno a la
Antigüedad” e, ao mesmo tempo, de “apertura a lo ‘moderno’” (PANOFSKY, 2003, p. 35).
No último tópico do desenvolvimento procuramos aprofundar brevemente a discussão
sobre a relação do Renascimento com os períodos que lhe são complementares, em especial, a
modernidade. Tomando como principal referência o texto “O tempo da imagem de mundo”
(1998) de Martin Heidegger, para que, traçando uma breve compreensão acerca do que
caracteriza essencialmente o fenômeno da modernidade para o autor, delimitá-lo e diferenciá-
lo do que sumariamente se poderia atribuir à “fisionomia” renascentista. Em um primeiro
momento (tópico 3.1), nos ocupamos com a caracterização da ciência como caráter essencial
da modernidade, traçando a partir dela o “paradigma experimental” no qual esse período se
encontra. O objetivo é verificar, em termos gerais, a congruência e/ou o distanciamento
daquilo proposto pelos autores renascentistas e do que é concebido pelos pensadores da
modernidade. No seguinte (tópico 3.2), investigamos o caráter de “abertura ao moderno” do
Renascimento, isto é, até que ponto e porque podemos pensar no Renascimento como algo
anterior ao moderno. A última questão específica a ser investigada e refletida, portanto, foi se
esse caráter de “anterioridade” e de “origem da Modernidade”, reduz o Renascimento a algo
de pré-moderno. Seria o Renascimento e, consequentemente, a invenção da perspectiva linear,
13

apenas um ponto inicial de uma escala progressiva que, se aprofundando cada vez mais em
um mundo objetivo, desabrocha na forma rigorosa de uma ciência moderna? Apesar deste
pensamento parecer perfeitamente justificável do ponto de vista historiográfico (IVINS, 1938,
p. 11ss), nos propusemos dar um maior enfoque na ideia de que essa abertura significa algo
mais que um simples lugar na ordem progressiva de um desenvolvimento planificado. Deste
modo, na conclusão procuramos comentar brevemente e ressaltar, sem pretensões totalizantes,
a diferença, e não a continuidade, entre o Renascimento e o período que o sucedeu.
14

1 O QUE É RENASCIMENTO?

Como é comumente aceito, o primeiro a forjar a ideia de uma “renovação [da cultura]
sob a influência dos modelos clássicos” foi o poeta Francesco Petrarca (1304 – 1374).
Considerado por Burckhardt (1994, p. 158) como o “primeiro dos modernos”, Petrarca viu a
história de forma diferente da maioria de seus contemporâneos: pensada por católicos como
um contínuo desenvolvimento guiado pela vontade divina desde a criação até o momento
presente, Petrarca representou a história humana de maneira quase às avessas. Ele a dividiu
em dois períodos: um antigo (historiae antiquae) e um posterior (historiae novae) e definiu o
período mais recente da humanidade como período de obscurecimento e decadência, enquanto
o anterior havia sido de glória e luz (Apud PANOFSKY, 1972, p. 10.). Esclarece-nos Panofsky
(1972, p. 10):

[…] enquanto seus precursores haviam considerado [a história humana]


como um desenvolvimento contínuo e firme das trevas do paganismo para a
luz de Cristo (aonde seu nascimento significou o marco da última das
“quatro monarquias” de Daniel, ou a última das “Seis Épocas” que
correspondem aos seis dias da Criança, ou mesmo a última das “Três Eras”,
a primeira sob a Lei, a segunda sob a lei e a terceira sob a Graça), Petrarca
interpretou o período no qual o ‘nome de Cristo começou a ser celebrado em
Roma e ser adorado pelos imperadores romanos como o início de uma idade
das trevas’. (tradução nossa).1

Assim, Petrarca sustenta que “os pagãos romanos estavam sob a luz, enquanto os
cristãos haviam andado entre as trevas”2 e nisto reside o caráter revolucionário de sua
interpretação da história ocidental. A estas duas eras (antiquae e novae), Petrarca adiciona a
previsão de uma terceira. A Terceira Era é interpretada pelo poeta como “o que ainda está por
vir”, um renascimento da antiguidade na forma de iluminação das trevas vigentes no medievo.
1 […] where his forerunners had conceived of that continuous development as a steady progress from
heathen darkness to the light that was Christ (whether his birth was held to mark the last of Daniel’s “Four
monarchies”, or the last of the “Six Ages” corresponding to the six days of Creation, or the last of the “Three
Eras”, the first before the Law, the second under the law, the third under Grace), Petrarch interpreted the period
in which the ‘name of Christ began to be celebrated in Rome and to be adored by the Roman emperors’ as the
beginning of a dark age. (Às próximas citações, quando apresentadas na forma da tradução nossa,
acrescentaremos apenas uma nota de rodapé com a citação em original, fica entendido que se trata de uma
tradução provisória feita pelo auto do presente trabalho.)
2 “the Roman pagans had been in the light whereas the Christians had walked in darkness”.
15

Isto é, uma regeneração e renovação da cultura, marcada por uma revolução política e por
uma “purificação da dicção e da gramática latina, um renascimento do Grego e um retorno
3
dos copiladores, comentadores e autores medievais para os antigos textos clássicos”
(THORNDIKE apud PANOFSKY, 1972, p. 11). Pela primeira vez é usado o termo “idade das
trevas” para se referir ao período medieval e, em consequência disso, era necessário uma
saída desse período obscuro da humanidade, através da luz oferecida pelos antigos: um
Renascimento. Essa tendência tornou-se cada vez mais sofisticada entre seus discípulos e
sucessores, vindo a englobar, diante dos olhos do mestre, todas as esferas da cultura,
incluindo as artes visuais, a começar pela pintura (PANOFSKY, 1972, p. 11).
Como, porém, tomar esse período chamado Renascimento em sua plenitude, sem que
ele imediatamente se dissolva no “monismo” ou no “atomismo” histórico (PANOFSKY,
1972, p. 1)? No primeiro caso, se argumenta que a “natureza humana tende a permanecer a
mesma todo o tempo”4 (THORNDIKE apud PANOFSKY, 1972, p. 1) e, em função disso, não
se podem encontrar denominadores comuns na história humana e, assim, definir algo como
uma “época”. No segundo caso, atomista, argumentasse o contrário: a natureza humana muda
com tamanha variedade entre os homens que não se pode falar de períodos, mas de
acontecimentos individuais na história. Um período seria apenas a influência de uma solução
individual para um problema geral e, assim, “o que chamamos ‘períodos’ são apenas nomes
para inovações influencia que constantemente ocorrem na… história” 5 (G. BOAS apud
PANOFSKY, 1972, p. 1). Porém, segundo as considerações de Panofsky (1972, p. 4) o
conceito de período;

Apesar de tudo isso, porém, um período […] parece possuir algo como uma
“fisionomia” não menos definida, mas não menos difícil de descrever de
maneira satisfatória, que um individuo humano. Pode haver um desacordo
legítimo sobre quando um individuo passa a ser […]; quando ele chega ao
fim; quando ele começa a ser um jovem em vez de uma criança, um adulto
em vez de um jovem, um velho em vez de um adulto; quantas características
suas pertencem ao seu pai, a sua mãe, aos seus avós ou a qualquer um de
seus ancestrais. Ainda assim, quando nós conhecemos uma tal pessoa em um
dado momento e em determinado grupo, não falhamos em distingui-lo de
seus companheiros; em descrevê-lo como jovem, velho ou de meia-idade,

3 “purification of Latin diction and grammar, a revival of Greek and a return from medieval compilers,
commentators and originators to the old classical texts”
4 “[the] human nature tends to remain much the same in all times”.
5 “what we call ‘periods’ are simply the names of the influential innovations which have occurred
constantly in… history”
16

como alto ou baixo, inteligente ou estúpido, jovial ou saturnino; e, em última


instância, formar uma impressão total de sua personalidade única. 6

Que característica poderia nos aproximar do Renascimento de tal forma que possamos
criar uma “impressão única” de sua “fisionomia” enquanto período histórico? Para fazer um
bom amigo, uma simples apresentação basta. Ao conhecer uma pessoa, levamos em
consideração uma característica sua que nos marcou de alguma forma e, a partir disto,
criamos o que se chama impressão íntima. As considerações de Panofsky implicam que o
mesmo pode aplicar-se a um período histórico e, assim, ao Renascimento. O que aqui
pretendemos fazer não se distancia disto: desejamos oferecer uma impressão íntima do
Renascimento e nos aproximarmos dele a partir desta impressão. Qual seria então a
característica que serviria de “primeira apresentação” segundo a qual pudéssemos nos guiar
numa investigação deste período? A fim de responder a essa pergunta, circunscreveremos
rapidamente nosso objeto. Do Renascimento, nos limitaremos a uma breve caracterização das
artes pictóricas e, mais especificamente, a descoberta da perspectiva linear como convenção
técnica. Leonardo da Vinci (1883, p. 30 [50]) descreve a perspectiva de seguinte forma:

Perspectiva é uma demonstração racional através da qual a experiência


comprava que todo objeto envia sua imagem ao olho através de uma
pirâmide de linhas; e que corpos de igual também resultarão em uma
pirâmide de maior ou menor tamanho de acordo com a diferença de sua
distância para com aquele que observa. Por “pirâmide de linhas” quero dizer
essa que partem da superfície e das extremidades dos corpos e convergem
segundo a sua distância em um único ponto. Um ponto, como dizem, é
aquilo que não pode ser dividido, esse ponto colocado sobre a altura do olho
recebe todas as linhas que formam o cone visual. 7

6 In spite of all this, however, a period [...] may be possess a “physiognomy” no less definite, though no
less difficult to describe in satisfactory manner, then a human individual. There can be legitimate disagreement
as to when a human individual comes into being […]; when he comes to an end; when the begins to be a boy
rather than an infant, an adult rather than a boy, an old man rather than an adult; how many of his characteristics
he may owe to his father, his mother, his grandparents, or any of his ancestors. Yet, when we meet him at a given
moment within a given group, we shall not fail to distinguish him from his companions; to put him down as
young or old or middle-aged, tall or short, intelligent or stupid, jovial or saturnine; and ultimately to form an
impression of his total and unique personality.
7 Perspective is a rational demonstration by which experience confirms that every object sends its
image to the eye by a pyramid of lines; and bodies of equal size will result in a pyramid of larger or smaller size,
according to the difference in their distance, one from other. By a pyramid of line I mean those which start from
the surface and edges of bodies, and, converging from a distance meet in a single point. A point is said to be that
which [having no dimensions] cannot be divided, and this point placed in the eye receives all the points of the
cone.
17

Isto é, uma técnica de representação que, através da intersecção das pirâmides visuais
e do uso de um “ponto de intersecção”, oferece ao artista a possibilidade de representar
graficamente o campo visual humano em uma relação de verossimilhança. Ivins (1938, p.
12ss) afirma que:

As características mais marcantes da representação pictórica europeia desde


o século XIV têm sido, de um lado, o constante aumento de seu naturalismo
e, de outro, sua extensão puramente sistemática e lógica. […] A descoberta
das primeiras formas destas gramáticas e técnicas [de perspectiva]
constituem o início da racionalização da visão, o que, como consideramos, é
o evento mais importante do Renascimento.8

A descoberta da perspectiva é uma das características fundamentais da


“personalidade” do Renascimento. Desta forma, através dela e do conceito de espaço que
decorre do seu uso como técnica, podemos propor uma aproximação do que é singular ao
Renascimento enquanto período histórico.

8 The most marked characteristics of European pictorial representation since the fourteenth century
have been on the one hand its steadily increasing naturalism and on the other its purely schematic and logical
extensions. […] The discovery of the early forms of these [perspectives] grammars and techniques constitutes
that beginning of the rationalization of sight which, it is submitted, was the most important event of the
Renaissance.
18

2 O QUE É PERSPECTIVA LINEAR

Da Vinci (1883, p. 16 [14]), após indicar a perspectiva como uma realização


matemática, deriva dela três ramos principais: a) “prospetiva liniale”, b) “prospetiva di
colore” e c) “prospetiva di speditione”. Esses três sistemas perspectivos, em sua unidade,
deveriam oferecer ao desenho a verossimilhança desejada. Da Vinci (Ibid.) os define da
seguinte maneira:

[…] a primeira lida com as razões da aparente diminuição dos objetos a


medida que se afastam do olho, é conhecida como perspectiva [linear]. - A
segunda contém a maneira através da qual as cores variam a medida que
recuam ao olhar. A terceira e última concerne acerca da maneira como os
objetos se tornam menos acabados na proporção em que se tornam remotos. 9

Sobre essas definições ressalta o entendimento de que:

Perspectiva pode ser considerada como uma maneira prática de assegurar


uma relação métrica rigorosa e bidirecional, ou recíproca, entre a forma dos
objetos como elas se localização definitivamente no espaço e suas
representações pictóricas. (IVINS, 1938, p. 9)10

Dessas duas exposições, podemos deduzir que a “perspectiva linear” é um dos braços
de um sistema tripartido chamado de Perspectiva: ela ocupa-se especificamente da razão pela
qual os objetos aparentemente diminuem a medida que se afastam no campo de visão. Suas
irmãs lidam, respectivamente, com a variação das cores e com a nitidez dos objetos no mesmo
campo de visão. Em um primeiro momento, essas definições podem soar vagas e revelar
pouco sobre o que realmente significou a “descoberta” da perspectiva pictórica no
Renascimento. Evidentemente, essa impressão não pode permanecer. O status de evento mais
importante do período a ela atribida se deve ao fato de estar em jogo a possibilidade de um

9 […] the first deals with the reasons of the (apparent) diminution of objects as they recede from the
eye, and is known as Diminishing [linear] Perspective. – The second contains the way in which colors vary as
they recede from the eye. The third and last is concerned with the explanation of how the objects ought to be less
finished in proportion as they are remote.
10 Perspective may be regarded as a practical means for securing a rigorous two-way, or reciprocal,
metrical relationship between the shapes of objects as definitely located in space and their pictorial
representations.
19

“espaço uniforme e homogêneo” (IVINS, 1938, p. 9). Se se fala, porém, de uma descoberta,
ou mesmo de uma “redescoberta” (EDGERTON, 1975, p. 6) da perspectiva, temos o direito
de nos questionar: com qual problema se depararam, de forma inaugural, os pensadores desse
período?

2.1 O EXPERIMENTO DE BRUNELLESCO.

Filippo di Ser Brunellesco Lapi (1377 – 1446) foi um artesão, escultor, pintor e
arquiteto florentino. Brunellesco é imensamente conhecido por sua magistral cúpula da capela
de Santa Maria del Fiore, mas aqui gostaríamos de levar em consideração uma obra de
dimensões bem mais modestas do autor: seu primeiro experimento sobre a perspectiva linear
no ano de 1425.11 Esse experimento realizado por Brunellesco é considerado como “a
primeira demonstração das regras da perspectiva linear” (KLEIN, 1998, p. 275). Manetti
(apud WHITE, 1994, p. 118ss.) nos diz sobre essa obra:

Este assunto da perspectiva foi, em primeiro lugar, refletido em pequeño


painel com cerca de meio braço quadrado (di circha mezo braccio quadro12)
sobre o qual se colocou uma imagem exatada da Igreja de Santo Hiovanni di
Firenza, y dessa igreja se fez uma imagem, tal como se pode ver, a primeira
vista e desde seu exterior; e, ao que parece, para poder pinta-la ele se situou
na porta sentral da igreja de Santa Maria del Fiore, a três braços de distância,
e fez com tamanho esmero e delicadeza, e com tamanha precisão no
colcorido dos mármores brancos e negros, que nenhum miniaturista poderia
melhorar a obra. […] Em tal pintura, o pintor precisava supor um único lugar
desde onde o seu quadro seria visto, fixando a altura e a profundidade em
relação com as laterais e com a distância […] para tanto foi feito um buraco
no painel no qual se encontrava a pintura, o buraco […] se abria de forma
11 Como aponta Edgerton (2009, p. 69), Brunelesco foi autor, no mesmo período, de dois pequenos
quadros que deveriam ilustrar a sua concepção geométrica e demonstrar os princípios segundo o qual uma
paisagem do olho humano poderia ser mimeticamente representada sobre um plano a partir de uma
sistematização geométrica. O segundo desenho, utilizando uma perspectiva de “dois pontos” (two-points) ou
“oblíqua”, dispensava o uso de qualquer artifício, como um espelho ou a memória sensível da paisagem vista:
bastava que o observador o segurasse frente ao rosto para ter a impressão quase ilusória de que o plano era, na
verdade, uma tela na qual se podia ver através. Concentramo-nos, porém, no primeiro experimento, pois fazendo
uso de alguns artifícios, essa primeira tentativa apresenta uma abordagem mais primitiva e, portanto, testemunha
melhor acerca de nossa pergunta de como o problema foi pela primeira vez apresentado a Brunellesco.
12 Ver EDGERTON, 1976, p. 126: “The braccio, one might add was the Quattrocento Italian
counterpart of the cubit, and hence rings with a certain aptness in this literally arm’s-length demonstration”. Em
outras palavras, um braccio possuiria a dimensão média de um braço humano, um côvado ou cerca de 60
centímetros. “Mezo braccio” = 30 centímetros, essa era também a distância prática do experimento, como se vê
na figura 1.
20

piramidal […] E queria que o olho se situasse por trás, aonde era maior, para
que todo aquele que deseja-se olhar pudesse aproximá-lo com uma mão ao
olho e com a outra segurar um espelho para observar a imagem refletida do
quadro.13

O quadro com a ilustração da fachada da Igreja de Santo Giovanni di Firenze possuía


aproximadamente 30 centímetros e devia ser segurado pelo observador à altura do olho. Um
pequeno buraco, feito em formato triangular e à altura do que seria no desenho a porta
principal da igreja, dava acesso à imagem em miniatura que era refletida por um espelho. O
espelho também devia ser segurado pelo observar à meio-braço de distância da imagem (tal
como na figura 1). A posição do observador em relação à igreja observada era levada em
conta na demonstração: este deveria ficar na mesma posição em que a imagem havia sido
produzida (EDGERTON, 1976, p. 147). A demonstração era, portanto, feita em praça pública,
o observador devia ficar em um lugar fixado por Brunelesco desde onde podia ver a fachada
da igreja através do pequeno buraco feito à altura do portal da igreja na ilustração. E,
posteriormente, ao sobrepor a sua visão com o espelho, se maravilhar com a ilusão de que
através do reflexo da miniatura pintada por Brunellesco continuava a observar a igreja diante
de seus olhos (EDGERTON, 1976, p. 124).

13 Este asunto de la perspectiva, en el primer lugar que lo reflejó fue en un pequeño panel di circha
mezo braccio quadro sobre el cual plasmó una imagen exacta de la iglesia de Santo Giovanni di Firenze, y de esa
iglesia hizo una imagen, tal como se puede ver, a primera vista y desde el exterior; y, al parecer, para poder
pintarla se situó él mismo en la puerta central de Santa Maria del Fiore, a unos tres braccia, y lo hizo con tal
esmero y delicadeza, y con tal precisión en el colorido de los mármoles blancos y negros, que no existe un
miniaturista que pueda mejorarlo […] En dicha pintura el pintor necesitaba presuponer un único lugar desde el
cual se iba a ver su cuadro, fijado en altura y profundidad y en relación con los laterales, así como en distancia
[…]. Para ello había hecho agujero en el panel en el cual se hallaba esta pintura, el agujero […] se abría en forma
piramidal […]. Y quería que el ojo se situara detrás, donde era mayor, para que todo el que deseara mirarlo
pudiera acercárselo con una mano a lo ojo y con la otra pudiera sujetar un espejo para ver la imagen reflejada del
cuadro.
21

Figura 1: Experimento realizado por Brunellesco (In: EDGERTON,


1976, p. 126: Diagram ix - I).

Os debates sobre a técnica utilizada por Brunellesco para produzir o desenho e mesmo
os motivos que o levou a escolher essa igreja em particular continuam, ainda hoje,
extremamente produtivos (ver KLEIN, 1998, p. 276ss; EDGERTON, 1976, p. 133ss), uma
vez que o original não se salvou no decorrer da história. Aqui, porém, gostaríamos de prestar
atenção em três características já aceitas sobre a obra: 1) o buraco em formato piramidal feito
para que se observasse através; 2) a necessidade de um espelho para o experimento; e 3) o
experimento ser realizado desde um lugar específico escolhido por Brunellesco,
provavelmente, onde ele havia realizado a pintura. Diz-nos Panofsky (2003, p. 12ss):

Se queremos garantir a construção de um espaço totalmente racional, quer


dizer, infinito, constante e homogêneo, a “perspectiva central” pressupõe dus
hipóteses fundamentais: primeiro, que olhamos com um único olho imóvel,
e, segundo, que a intersecção plana da pirâmide visual deve ser considerada
como uma reprodução adequada de nossa imagem visual. […] A
homogeneidade do espaço geométrico encontra seu último fundamento em
todos os elementos, os “pontos” em que se encerra, são simplesmente
marcadores de uma posição, os quais, fora desta relação de
“posicionamento” na qual se encontram referidos um aos outros, não
22

possuem conteúdo próprio ou autônomo. Seu ser se esgota em uma relação


recíproca: ela é puramente funcional, não substancial. 14

Consideremos as três características destacadas: (1) O buraco feito no quadro por


Brunellesco, o espelho e a posição escolhida para o observador coincidem com a
demonstração dessas três hipóteses fundamentais? Ao ser obrigado a olhar através do buraco,
o observador torna-se então um único olho imóvel que observa a figura desde um lugar fixo.
O formato piramidal do buraco leva o olho a perceber a imagem na forma de uma pirâmide
visual perfeita. Isso não abstrai do espaço visual fisiológico (determinado por sempre se
observar através de dois olhos e igualmente pela deformação esférica da superfície do olho),
suas características “anisotrópicas e heterogêneas” (PANOFSKY, 2003, p. 14)? (2) Sobre a
necessidade do uso do espelho no experimento de Brunellesco, Robert Klein apresenta
algumas hipóteses levantadas pela literatura especializada, argumentando que a mais plausível
seria a de Allessandro Parronchi. Segundo Klein, a partir de um teorema de Witelo sobre a
reflexão da luz, Parronchi apresenta a seguinte teoria: “a inversão dos lados seria o resultado
da transferência dos elementos do plano quadriculado da praça do batistério para o pavimento
encurtado dessa praça pintada no painel” (apud 1998, p. 277). Portanto, “o espelho deve ter
sido empregado como um expediente para corrigir o erro assim introduzido” (Ibidem). O que
queremos ressaltar no experimento de Brunellesco, porém, não é a demonstração da imagem
em miniatura da Igreja, mas o fato de que o processo da visão, tal como é concebido pelo
autor do experimento, é considerado em sua relação geométrica; a verossimilhança da
imagem depende do olho humano ainda, mas, no “projeto”, o desenho se apresenta
inicialmente como relação geométrica. A imagem que se projeta no espelho e, podemos dizer,
“se esgota em sua relação recíproca”; os elementos que compõem a fachada da igreja
importam na superfície plana do reflexo apenas enquanto posições referenciais, isto é, “su
homogeneidad no es más que la identidad de su estructura fundada en el conjunto de sus
funciones lógicas, de su determinación ideal e de su sentido” (PANOFSKY, 2003, p. 14). É

14 Se queremos garantizar la construcción de un espacio totalmente racional, es decir, infinito,


constante y homogéneo, la “perspectiva central” presupone dos hipótesis fundamentales: primero, que miramos
con un único ojo inmóvil y, segundo, que la intersección plana de la pirámide visual debe considerarse como una
reproducción adecuada de nuestra imagen visual. […] La homogeneidad del espacio geométrico encuentra su
último fundamento en que todos sus elementos, los “puntos” que en él se encierran, son simplemente señaladores
de posición, los cuales, fuera de esta relación de “posición” en la que se encuentran referidos unos a otros, no
poseen contenido proprio ni autónomo. Su ser se agota en la relación recíproca: es un ser puramente funcional y
no sustancial.
23

nesta característica que reside o que chamaremos mais tarde (cf. tópico 2.2) de possibilidade
latente da “emancipação dos corpos plásticos e do espaço vazio que os cerca” (PANOFSKY,
2003, p. 35). (3) Por último, ao escolher o lugar desde onde o observador deveria participar da
demonstração, Brunellesco não deixa igualmente transparecer que em seu experimento o
lugar daquele que vê é levado em consideração no sentido de “ponto fundamente” desde onde
o que é representado pode ser projetado? Isto é, não implica que na realidade do desenho
importa o lugar desde onde ele é visto e, consequentemente, a certeza sobre aquele que vê e
sobre como ele vê? Se tomarmos então a hipótese de Edgerton (1976, p. 148) que diz que o
lugar do experimento era exatamente o lugar desde onde Brunellesco havia pintado a
miniatura com a ajuda de um espelho, o ponto desde onde o desenho é visto importa para sua
realidade porque ele também é o ponto fundamental desde onde o projeto pode ser pensado.
Essas considerações nos levam à pergunta acerca da relação essencial entre o
Renascimento e a Modernidade. Podemos, contudo, tomar o experimento de Brunellesco no
mesmo sentido que a época moderna assumiu o conceito de “experimento”? Como o ato de
“representar uma condição de acordo com a qual um determinado complexo de movimentos,
na necessidade do seu curso pode ser seguido, isto é, pode ser dominável de antemão para o
cálculo” (HEIDEGGER, 1998, p. 103)? Em nossos termos: o espaço já se anuncia para
Brunellesco numa ordem científica que se traduz em uma lei e que se expressa no
experimento desde que haja uma previsão e um controle previamente determinado das
variáveis envolvidas para aquele que representa? Antes de acendermos a estas questões,
devemos considerar o trabalho de um segundo pensador da época que se confrontou com o
mesmo problema que Brunellesco e sistematizou sua reflexão não apenas de forma
experimental15, mas de modo teórico na forma de um tratado sobre a pintura.

2.2 O TRATADO DE ALBERTI.

15 Além de seu tratado, Alberti também produziu experimentos visuais na mesma linha do experimento
de Brunellesco. Sobre o assunto nos diz Burckhardt (1994, p. 113): “O que provocou principalmente a admiração
dos seus contemporâneos foi a misteriosa câmara óptica onde [Alberti] fazia aparecer ora astros e a lua a erguer-
se sobre as montanhas rochosas, ora vastas paisagens com montanhas e folfos que se perdiam ao longe na bruma,
e frotas que fendiam o mar, com alternâncias de luz e de sombra”.
24

Leon Battista Alberti (1404 – 1472) foi um pintor, escultor, matemático e arquiteto.
Ele pode ser considerado como um dos primeiros a sistematizar as regras da perspectiva linear
que Brunellesco havia sido o primeiro a demonstrar (KLEIN, 1998, p. 276). Sua família foi
expulsa de Florença por se opor à família Albizzi e apenas em 1434, quando Cosimo de
Médici assume o poder sobre a cidade, Alberti ganha a liberdade e retorna a ela. Diz-nos
Edgerton (1976, p. 33) sobre esse período de exílio do pensador:

No entanto, ele conseguiu uma educação par excellence, primeiro na escola


de gramática do esplêndido professor humanista Gasparino Barsizza em
Pádua, e depois na Universidade de Bologna, onde estudou direito canônico
e “artes liberais”. No meio tempo, sua cidade natal [Florença] passava por
uma série de guerras com seus vizinhos: Milão e Nápoles, que ameaçavam
sua preciosa libertà. Ascendendo ao poder em meio a esses eventos, estava
um sagaz banqueiro chamado Cosimo de Medici. Quando ele tomou as
rédeas do poder em 1434, todos os inimigos do antigo regime, entre eles a
família Alberti, foram convidados para retornar. 16

A Florença que recebeu Alberti era completamente diferente da que anteriormente


expulsara família. Sob o domínio da dinastia Médici, a arte havia ganhado um enfoque
significativamente menos decorativo. Os trabalhos dos metres que atuaram nesse período
(Masaccio, Masolino, Fra Angelico, Fra Lippo Lippi, Domenico Veneziano, etc.) “estavam
agora, não mais interessados no charme sensual da superficie pictórica, mas antes compelidos
a uma contemplação mais intelectual do assunto do quadro” (EDGERTON, 1976, p. 35)17. A
matemática e o uso da geometria, em suma, a busca pela harmonia, perpassava todos os níveis
do cenário cultural e prático da vida na cidade. Desde o sistema de agricultura utilizado 18 até a
organização pública e civil:

16 He nevertheless managed to gain an education par excellence, first in the grammar school of the
splendid humanist teacher Gasparino Barsizza in Padua, and the at the University of Bologna, where he studied
canon law and the “liberal arts”. In the meantime, his native city [Florença] was undergoing a series of critical
wars with the neighboring states of Milan and Naples, which were threatening her precious libertà. Rising to
power in the wake of these events was a canny banker named Cosimo de Medici. When he seized the reins of
government in 1434, all former enemies of the old regime, including the Alberti, were invited to returns.
17 “was now not on sensuous charm of pictorial surface, but rather on compelling the viewer to a more
intellectual contemplation of the picture’s hole subject”
18 Ver Edgerton (1976, p. 35): “Since the early fourteenth century, the mezzadria system of agriculture,
with its centralized land management and emphasis on economical crop distribution, had replaced the old
subsistence manorial farming which has led to so much famine and depression. The carefully striated terraces on
the Tuscan hillsides, with their neat rows of olive trees and parallel strings of grape vines, doubtless impressed
Alberti, as they still charm the modern tourist”.
25

Assim como as cordas de uma harpa… afinadas uma a outra de forma que,
quando são tocadas, uma única harmonia surge dos diferentes tons… assim
como essa cidade perspicaz têm adaptado todas as suas partes umas as outras
de tal forma que o resultado uma total harmonia na estrutura da república…
Nada neste estão é desproporcional, nada impróprio, nada é incongruente,
nada é deixado vago; tudo ocupa seu lugar próprio aonde não apenas é
claramente definido,, mas também possui uma justa relação com todos as
outras partes.19 (LEONARDO BRUNI apud EDGERTON, 1976, p. 36).

A matemática é considerada, então, nos diz Edgerton (1976, p. 36), “um tipo de lingua
franca social, ligando a classe alta com a baixa, criando uma ligação entre intelectuais
humanistas, banqueiros, artesão e comerciantes”20. Nas artes, os experimentos de Brunellesco
influenciaram profundamente a forma como a representação pictórica era concebida, deixando
influir também neste âmbito a necessidade matemática da harmonia geométrica entre as
figuras. Devemos destacar que os pensadores tinham, no fundo, discrepâncias em relação ao
que desejavam com seus experimentos. Como nos ilustra Edgerton (1966, p. 372): enquanto o
experimento de Brunellesco pode ser tomado como “consistindo na redução da distância real
entre o observador e o objeto e das distâncias reais das construções em uma escala
representacional, através da qual se supõe a aproximação exata entre da aparência da igreja de
San Giovanni vista desde o portal do Duomo”21, Alberti dá um passo adiante (ou “atrás”) e
busca com sua técnica a construção de um “estágio puramente conceitual de acordo com as
exigências da superfície pictórica”22.23

19 Just as harpstrings… attuned to each other so that, when they are twanged, a single harmony arises
from all the different tones… just as this farsighted city has so adapted all her parts to each other that there
results a harmony of the total structure of the republic…. Nothing in this state is ill-proportioned, nothing
improper, nothing incongruous, nothing left vague; everything occupies its proper place which is not only clearly
defined but also in the right relation to all others.
20 “[…] a kind of social lingua franca, linking upper and lower classes, creating a bond among
humanist intellectuals, bankers, artisans, and shopkeepers”
21 “consisted of reducing the actual distance between viewer and object and the actual dimensions of
the building to a scale representation which supposedly approximated exactly the appearance of San Giovanni as
seen from the portal of the Duomo”.
22 “purely conceptual stage accord with the exigencies of the picture surface”.
23 Edgerton continua: “This is an important difference, for it emphasizes how medievally rooted
Alberti's perspective really was. I do not wish here to demean the tremendous changes in art and visual
psychology which Alberti's rationalizations brought about, but his perspective formula, in so far as it provided an
illusion of the third dimension, was still closer in spirit to the geometry of the optics texts than to observations
per se of nature and was really conceived within the framework of the medieval Aristotelian system. Indeed, an
ideal pictorial beauty achieved through geometric harmony had been sought since antiquity; the ideas of Plotinus
and St. Augustine and even, for that matter, Villard d'Honnecourt reach their culmination in the perspective of
Alberti”.
26

A chamada “costruzione legittima” foi concebida por Alberti, em meio a este cenário,
em seu tratado Della Pinttura (Da Pintura) no ano de 1435, dez anos depois da demonstração
em praça pública do experimento de Brunellesco. A obra é dividida por Alberti em uma
Introdução e três livros. A Introdução começa com um diálogo direto com Brunellesco e seu
circulo íntimo de amigos, em que o autor apresenta sua motivação inicial para empreender
aquele trabalho:

Mas, depois que, de um longo exílio em que os Albertis envelheceram, voltei


a esta minha pátria, a mais bela entre as demais, compreendi que em muitos
homens, mas principalmente em ti, Filippo [Brunellesco] […] existe
engenho capaz de realizar qualquer obra de valor e de rivalizar com qualquer
artista antigo e famoso. Por isso convenci-me de que a possibilidade de obter
grande fama em qualquer tipo de atividade não depende menos de nossa
dedicação e empenho do que dos dons da natureza e dos tempos. Confesso-te
que os antigos, tendo muita gente de quem aprender e a quem imitar, tinham
menos dificuldades para chegar ao conhecimento daquelas supremas artes
que para nós hoje são extremamente penosas. Mas, por isso mesmo, nosso
prestígio será muito maior se, sem preceptores, sem modelo algum,
descobrirmos artes e ciências jamais ouvidas e vistas. (ALBERTI, 1999, p.
71ss).

Em seguida, Alberti apresenta uma rápida sistematização dos livros que compõem o
tratado:

Verás três livros: o primeiro, todo matemático, faz surgir das raízes da
natureza, esta graciosa e tão bela arte; o segundo põe a arte na mão do
artista, distinguido suas partes e demonstrando tudo; o terceiro estabelece o
que e como fazer para obter o domínio e o conhecimento perfeito da pintura.
(ALBERTI, 1999, p. 72).

Tendo em vista nosso interesse em aproximarmo-nos da perspectiva linear,


privilegiaremos o primeiro livro do tratado e, mais especificamente, a parte em que são
introduzidos os conceitos com os quais Alberti construirá o seu sistema, bem como o trecho
onde, são explicadas as regras para a construção deste sistema.
Em seu primeiro livro, seguindo a estrutura de um tratado tradicional de geometria,
Alberti apresenta inicialmente os conceitos fundamentais de seu sistema. Porém, ele procura
esclarecer seu interesse puramente artístico no primeiro parágrafo, opondo suas considerações
às dos geômetras, pois, enquanto o seu interesse é artístico e, portanto, sensível, o interesse
dos matemáticos, segundo Alberti, vigora apenas enquanto “abstração”. Essa distinção entre
27

“matemático” e “artístico”, diz Alberti (1999, p. 75), acontece em função do fato de que os
matemáticos “medem com sua inteligência apenas as formas das coisas, separando-as de
qualquer matéria”, as tomando então como puramente abstratas. O interesse do artista, ao
contrário, é sensível, isto é, que “as coisas sejam postas bem diante dos olhos” e, portanto,
apela a uma interpretação sensível do mundo. Edgerton (1976, p. 80) aponta para o fato de
que justamente, a partir dessa consideração, o conceito fundamental para a obra de Alberti, a
saber, o conceito de ponto, sofrerá uma variação em relação ao conceito tradicional, i.e.,
euclidiano. Alberti (1999, p. 76) definirá o ponto como “figura [signum] que não pode ser
dividida em partes” e não como “est id quod mullam habet dimensionem” (FIBONACCI apud
EDGERTON, 1976, p. 80)24. Enquanto na definição de Fibonacci o ponto invoca uma
abstração, na definição de Alberti o ponto pode ser considerado justamente como algo
contrário ao simplesmente abstrato, pelo qual o ponto se torna “qualquer coisa que esteja na
superfície, de modo que o olho possa vê-la” (ALBERTI, 1999, p. 76). Explica-nos Edgerton
(1976, p. 80):

A palavra-chave na definição de Alberti é “signum”. Enquanto Euclides e


outros geômetras tradicionalmente pensaram na forma de abstração, Alberti
procurou em sua geometria para pintores ser absolutamente concrete.
Signum (segnio em Della pittura) significa “figura” ou “marca” - em outras
palavras, algo tangível, como um ponto em uma folha de papel.25

Consequentemente, uma linha, “uma série de pontos”, não é, para Alberti, uma
simples abstração, mas um traço visível dos corpos no mundo. Uma superfície pode ser então,
pensada como uma “capa” formada por um conjunto de linhas visíveis e o corpo como o
resultado de um aglomerado de superfícies visíveis espacialmente distribuídas. Portanto, o
que, Alberti (1999, p. 79) procura interceptar sobre o plano pictórico são raios que saem desde
esses pontos visíveis até o olho humano, os chamados “raios visuais” que podem ser pensados
como:

[…] agentes da visão, por isso mesmo, chamados visuais, que levam ao
sentido a forma das coisas vistas. E nós imaginamos esses raios como se
fossem fios extremamente tênues, ligados por uma cabeça de maneira muito

24 Fibonacci: “Aquilo que é vazio de dimensões” (tradução nossa).


25 The key word in Alberti’s definition is signum. Whereas Euclid and other geometers traditionally
thought in abstractions, Alberti wanted his geometry for painters to be absolutely concrete. Signum (segnio in
Della pittura) means “figure” or “mark” – in other words, something tangible, like a dot on a piece of paper.
28

estreita como se fosse um feixe dentro do olho, que é a sede do sentido da


vista.

Ele continua: os raios visuais são usados pela visão de tal forma que é através deles
que o olho toma referência sobre as dimensões, a distância, a cor e o lugar do que é visto. Eles
podem ser de três tipos: extremos, médios ou cêntrico. Funcionam como demonstrados na
figura 2. Os raios extremos, extrínsecos, são aqueles que partem desde as fronteiras, as
margens do que é visto, oferecendo ao olho as medidas sobre as dimensões do plano e a
distância entre ele e outros objetos vistos, o que Alberti chamará de “quantidades” (1999, p.
80). Os raios medianos partem desde a superfície circundada pelos raios extrínsecos e são
chamados por Alberti de “camaleões”, pois é através deles que as cores e a sua intensidade em
relação à luz são captadas pelo olho. O terceiro é o cêntrico; ele é chamado assim porque
coincide com a “linha cêntrica do desenho” e é através dele que as distâncias e as superfícies
recebem sua relação angular e se dispõem através do campo de visão; aonde o raio cêntrico
“atinge a superfície [do quadro] forma a sua volta ângulos retos e iguais” (ALBERTI, 1999, p.
80).

Figura 2: Disposição dos raios visuais na pirâmide visual segundo Alberti (In:
EDGERTON, 1976, p. 84: Diagram vi-1).
29

Alberti (1970, p. 80) explica que é porque esses raios visuais 26, principalmente os
chamados extrínsecos, atingem o olho como um “par de compassos” que se diz que a visão
possui algo como uma “pirâmide visual” (ver figura 2). Ele continua (p. 82):

A pirâmide [visual] é a figura de um corpo no qual todas as linhas retas que


partem da base terminam em um único ponto. A base dessa pirâmide é uma
superfície que se vê. Os lados da pirâmide são aqueles raios que chamei
extrínsecos. O vértice, isto é, a ponta da pirâmide, está dentro do olho, onde
está o ângulo das quantidades.

Depois dessas considerações, o autor se interessa por apresentar o aspecto prático de


suas descobertas para a pintura. Ele nos diz (p. 94):

Até aqui falamos tudo que diz respeito à força da visão e que diz respeito à
intersecção. Mas, como ao pintor não só é bom conhecer o que é intersecção como
também convém saber fazê-las, disso falarei agora. […] Inicialmente, onde devo
pintar, traço um quadrângulo de ângulos retos, do tamanho que me agrade, o qual
reputo ser uma janela aberta por onde possa eu mirar o que aí será pintado, e
ai, determino de que tamanho me agrada que sejam os homens na pintura. Divido o
cumprimento desse homem em três partes, sendo para mim cada uma das partes
proporcional à medida que se chama braço, porque, medindo-se um homem comum,
vê-se que ele tem quase a medida de três braços. […] Divido a linha da base do
triângulo em tantas partes quantas deva ela comportar. […] Depois dentro desse
quadrângulo, fixo, onde me parecer melhor um ponto que ocupará o lugar que o raio
cêntrico vai atingir e, por isso, eu o chamo ponto cêntrico. Esse ponto está
corretamente colocado quando não estiver mais alto da linha de base do quadrângulo
que a altura de um homem que aí terá que ser por mim pintado, pois assim tanto
quem vê quanto as coisas pintadas que se vêem aparecem em um único e mesmo
plano. Colocado o ponto cêntrico, conforme disse, traço linhas retas a partir daí em
direção a cada divisão feita na linha de base do quadrângulo. Essas linhas traçadas
me mostram de que modo, quase até ao infinito, cada quantidade transversal se vai
alterando.

26 O conceito de “raios visuais” de Alberti está intimamente ligado com o conceito de “espécies”
apresentado por Roger Bacon e, consequentemente, com a teoria apresentado por Alhazen em seus tratados sobre
ótica (TOSSATO, 2005, p. 433). Sobre o assunto Tossato (Ibid, p. 434) acrescentará: “A base da teoria da visão
de Roger Bacon (1214 – 1292) é extraída dos aspectos anatômicos, filosóficos e matemáticos de Alhazen. Em
suas principais obras sobre óptica, Perspectiva e De multiplicatione especierum (Acerca da multiplicação das
espécies), o objeto visto transmite “espécies” pelos raios luminosos em todas as direções, alcançando a superfície
do olho. Cada ponto na superfície do olho é vértice de uma pirâmide visual com a base na superfície do objeto.
Portanto, deve haver uma correspondência ponto a ponto entre os pontos da superfície do olho e os do campo
visual (essa relação pode ser ilustrada por nossa figura 2). […] Cabe assinalar que a noção de “espécies
visuais” de Roger Bacon servirá como suporte teórico para a explicação de como as imagens visuais são
conduzidas até o olho. Ela se assemelha a eidola ou pneuma dos antigos, e também aos “espíritos visuais” de
Johanitus. A substituição desse termo ocorrerá com Kleper que, em vez de espíritos visuais ou espécies visuais,
usará o termo imago, ou simplesmente imagem”.
30

Como aponta Edgerton (1976, p. 43), nesta primeira parte do processo, Alberti
estabelece um plano pictórico quadricular e concebe esse quadro como “uma janela aberta”,
isto é, a superfície do quadro deixa de ser algo no qual algo pode ser visto, para se tornar algo
através da qual o olho pode ver. Ao lado deste quadrângulo, Alberti desenha um homem de
tamanho médio, o qual serve de referência para que uma linha central seja passada, dividindo
o quadro em dois retângulos. A base do quadrado, por fim, é dividida em quantas subseções
forem necessárias para a representação; essas seções são ligadas por transversais até um ponto
localizado por sobre a linha central, o qual Alberti chama de “ponto cêntrico”, pois é através
dele que a linha cêntrica passa. Terminada a construção se obtém a estrutura tal como
apresentada na Figura 3d isoladamente.
As linhas que partem do ponto cêntrico até a base do quadro oferecem ao pintor uma
variável capaz de quantificar a alteração da posição dos corpos no raio de visão “quase até ao
infinito”. Ora, a forma como os objetos se “estreitam” na medida em que se afastam no campo
de visão já era algo conhecido. Como nos aponta Panofsky (2003, p. 44), “já os Lorenzetti
haviam observado a convergência rigorosamente matemática das ortogonais, porém, lhes
faltava um método para medir con igual precisão os intervalos de profundidade das chamadas
‘transversais’”27. Ou seja, ainda se desconhecia um método que oferecesse a possibilidade de
se representar as distâncias entre as linhas que cortam a pirâmide visual de modo horizontal e,
consequentemente, determinar em que medida o comprimento de figuras do mesmo tamanho
(e. g., quadras de um tabuleiro de xadrez) diminuem ao passo que se distanciam no horizonte.
O próximo passo de Alberti será, portanto, construir um chamado “alzado lateral” que
permita determinar “sobre a perpendicular da intersecção, os intervalos de profundida
buscados [entre as linhas transversais] e transpô-los desta maneira […] ao sistema dispónivel
das ortogonais orientadas para o ponto de fuga”28 (Ibidem)29. Em última instância, se oferecerá
através deste processo as “razões da (aparente) diminuição dos objetos a medida que eles

27 “[…] ya los Lorenzetti habían observado la convergencia rigorosamente matemática de las


ortogonales, pero todavía les faltaba un método para medir con igual precisión los intervalos en profundidad de
las llamadas ‘transversales’”.
28 “sobre la perpendicular de intersección, los buscados intervalos de profundidad [entre las lineas
transversales] y transportarlos así […] al sistema disponible de las ortogonales orientadas hacia el punto de
fuga”.
29 O termo “ponto de fuga” tratasse de uma terminologia essencialmente moderna, porém, por uma
aproximação utilitária podemos aplicar, como fez Panofsky, esse termo ao ponto que Alberti chamou de
“central” na figura 3d.
31

retrocedem ao olhar”30 (Da VINCI, 1883, p. 16 [14]), ou seja, a perspectiva linear


propriamente dita.
Alberti (1999, p. 96) continua:

As quantidades transversais em que uma sucede à outra procedo da seguinte


maneira: tomo um pequeno espaço no qual traço uma linha reta e a divido
em partes semelhantes àquelas em que foi dividida a linha de base do
quadrângulo. A seguir, coloco um ponto acima dessa linha, a uma altura
igual à altura existente entre o ponto cêntrico e a linha de base do
quadrângulo, e desse ponto traço linhas para cada divisão assinalada na
primeira linha. Depois estabeleço, de acordo com meu desejo, uma distância
entre o olho e a pintura e aí traço, como dizem os matemáticos, uma
perpendicular que corta todas as linhas que encontra.

Segundo Edgerton (1976, p. 44), esse procedimento era feito por Alberti em uma
pequena folha em separado e posteriormente sobreposto sobre o esboço conseguido na
primeira parte do procedimento. Primeiro (a): Alberti em uma linha horizontal traçava quantas
divisões tivesse feito na base do triângulo da primeira parte do procedimento. A altura da
linha vertical era igualmente de três braços, igualando-se a altura da linha cêntrica (figura 3a).
Em seguida (b): do ponto mais alto da linha vertical, chamado “ponto de distância”
(PANOFSKY, 2003, p. 45), até as divisões na linha de base Alberti trassava uma série de
linhas ligando o ponto até as subseções da base (como na figura 3b). Por fim (c): escolhendo a
distância a ser representada (traço vertical na figura 3c), Alberti traçava linhas transversais
entre o triângulo do esboço e o conseguido na primeira parte do processo (3d) e obtinha assim
“a sucessão de todas as quantidades transversais”, ou seja, conseguia representar
escalonadamente “todos os paralelos, isto é, os braços quadrados do pavimento da pintura”
(ALBERTI, 1999, p. 97). Ele conseguia assim determinar, no exemplo dado, como os
tamanhos das casas de um tabuleiro de xadrez sistematicamente diminuíam à medida que se
estendia através do campo de visão e transferir essa representação para um plano pictórico.

30 “[the] reasons of the (apparent) diminution of objects as they recede from the eye”.
32

Figura 3: Reconstrução do método descrito por Alberti (In: EDGERTON, 1976, p. 45 – diagrama iii-2).

Por último, Alberti considera o fato de que todos os objetos representados devem estar
abaixo da linha central que divide o quadrângulo, pois essa representa um limite, isto é,
“nenhuma quantidade de vista acima do olho de quem ver pode ultrapassá-la” (1999, p. 97).
As figuras que ocupam o tabuleiro devem decrescer segundo a relação entre a transversal
equivalente a sua distância do observador e a linha central, assim: “os homens pintados,
colocados no último braço quadrado da pintura, são menores que os outros” (Ibid).
Com isso, concluímos nossa rudimentar explicação do método desenvolvido por
Alberti. Longe de oferecer uma explicação completa dos procedimentos elegidos pelo artista
em seu tratado, o principal interesse era apenas ressaltar a forma como, no Renascimento, o
tratamento do conceito de espaço adquiriu uma particularidade própria. Ora, como nos
apontou Edgerton (cf. nota 3.) e, igualmente, Panofsky (2003, p. 35), o tratado de Alberti
significa um retorno a concepção aristotélica de universo, uma vez que, em certo sentido, “ele
representa o renascimento da sensibilidade ao corpóreo, um retorno a Antiguidade” 31. Mas,
igualmente, não se tratou de uma simples “volta ao antigo”, mas também, simultaneamente,
de uma “abertura ao ‘moderno’” (Ibidem). Entendemos que, mesmo que a delimitação do
31 “representa este renacimiento de la sensibilidad por lo corpóreo, un retorno a la
Antigüedad”.
33

conceito de “ponto” feita por Alberti no prólogo de seu tratado, como o que é necessariamente
visto, possua um caráter puramente sensível e remonte ao entendimento aristotélico da
experiência, dentro dessa limitação reside desde sempre e, ao mesmo tempo, uma abertura
para a possibilidade de uma “emancipação dos corpos plásticos e a emancipação da esfera
espacial que os circunda” (Ibidem). Com “emancipação” Panofsky (Ibid, p. 36) aponta para a
possibilidade de que o espaço representado se mostre “[…] por sua própria natureza se mostre
já como uma extensão ilimitada e que em seu âmbito os corpos e o espaço vazio comecem a
ser considerados como formas expressivas igualmente valiosas de uma unidade homogenea
inseparável”32.
Pois bem, se até o momento — seguindo a indicação de Panofsky (cf. Tópico 2.) —
procuramos apreender algo que nos aproxime do Renascimento tal como nos aproximamos de
um amigo em potencial, o próximo passo é diferenciá-lo dos outros períodos tais como
distinguimos nossos amigos uns dos outros. Como? Tomamos o aceno do Renascimento
como “retorno aos Antigos, mas, ao mesmo tempo, abertura à modernidade” como chave
interpretativa para a situação a que nos apontam os métodos de Brunellesco e Alberti. Assim,
retornamos à pergunta anunciada no subtópico anterior: Podemos tomar o experimento de
Brunellesco no mesmo sentido que a época moderna assumiu o conceito de “experimento”
(cf. Tópico 3.1)? Essa pergunta nos soa agora como: Enquanto abertura para a emancipação
dos corpos e do espaço entre eles, da simples relação sensível com o mundo para uma
homogeneidade e para um espaço representativo puro, o Renascimento se encaixa no mesmo
paradigma científico que a modernidade? Aqui se torna necessário determinar, inicialmente,
em qual paradigma se encontrava a modernidade e, em seguida, como essa relação se
aproxima ou se distancia da que parece ser apresentada pelo Renascimento segundo as
considerações feitas por nós até aqui.

32 “[…] por su misma naturaleza capacitado ya para una extensión ilimitada y en su


ámbito los cuerpos y el espacio vacio empiezan a ser considerados como formas expresivas
igualmente valiosas de una unidad homogénea no escindible”.
34

3 O ESPAÇO COMO REPRESENTAÇÃO

Talvez o conceito de espaço pertença à categoria destes “[…] Fenômenos Primordiais


que, ao serem descobertos pelo homem, nas palavras de Goethe, causa uma espécie de
espanto que se transforma em angústia” (HEIDEGGER, 2007, p. 19) 33. Isto é: “Pelo que
parece atrás do espaço nada existe, ou seja, de onde se pudesse deduzir sua origem. E além
dele não existe nada para onde pudéssemos avançar” (Ibid)34. Ora, partindo destas
considerações Heidegger deduz: “O que é próprio ao espaço deve mostrar-se em si e por si
mesmo.” (Ibid)35.
Não colocamos a questão do espaço em si mesmo, mas da experiência espacial
(Raumerfahrungen) do Renascimento como própria ao período. Isto é, a questão da forma
como esse espaço é experienciado em um período histórico e, em particular, de como ele se
tornou acessível ao Renascimento de forma inaugural, na representação pictórica, através da
chamada “perspectiva linear”. Tomamos como aceno para interpretar essa “forma inaugural
de constatação” a ideia de que o Renascimento representou, ao mesmo tempo, “uma volta aos
antigos” e “uma abertura para ‘o moderno’”. Acontece, porém, que mesmo o caráter
renascentista de ruptura com o medievo é algo que pode ser questionado. Assim, iremos nos
limitar a relação entre a concepção renascentista e a moderna, acreditando que essa
delimitação inicial é suficiente para o objetivo proposto. Tendo isto em mente, podemos,
enfim, responder a pergunta colocada através do comentário ao experimento de Brunellesco: o
Renascimento se encaixa no mesmo paradigma científico que a modernidade?

3.1 O RENASCIMENTO E SUA RELAÇÃO COM A CIÊNCIA MODERNA.

33 “[…] Urphänomenen, bei deren Gewahrwerden nach einem Wort Goethes den
Mebschen eine Art von Scheu bis zur Angst überkommt”.
34 “Denn hinter dem Raum, so will es scheinen, gibt es nichts mehr, worauf er
zurückgeführt werden könnte. Vor ihm git es kein Ausweichen zu anderem”.
35 “Das dem Raum Eigentümlich muß sich von ihm selbst her zeigen”.
35

A ciência é um dos fenômenos essenciais à Modernidade (HEIDEGGER, 1998, p. 97).


Se então a ciência moderna possui um modo de ver que lhe é próprio, podemos considerar que
esse modo de ver científico está relacionado, essencialmente, com o modo de ver da época
moderna enquanto tal. Para a tarefa de esclarecer o modo de ver específico da ciência
moderna se utilizará o texto de Heidegger “O tempo como imagem no mundo”, publicado
pela primeira vez em 1938 e, na versão portuguesa a qual fazemos referência, em 1998.
Ele diz (p. 99): “A essência daquilo que hoje se chama ciência é a investigação”.
Investigar significa “avançar num âmbito do ente, a natureza ou a história”. Para que a ciência
seja esse contínuo avançar, porém, é necessário desde sempre “uma área aberta na qual [ela]
se movimente” (Ibidem). Conclusivamente: “o abrir de uma área é o processo fundamental da
investigação” (Ibidem), isto é, para que a ciência se possa mover na forma de um avançar, a
área pela qual ela avança deve estar previamente aberta na forma de investigação. Essa
abertura prévia ao científico, diz Heidegger, é conquistada através do “projeto” (Ibid., p. 100).
Assim: “a ciência torna-se investigação através do projeto e através da garantia deste no rigor
do avançar” (Ibid, p. 101). A física moderna, por exemplo, para que possa avançar em sua
compreensão rigorosa do físico, precisa projetar para si mesma um quadro geral da natureza;
ela representa a natureza como o “complexo do movimento, fechado em si, de pontos de
massa relacionados espácio-temporalmente” (Ibid, p. 100). Nela, portanto, o espaço se
caracteriza essencialmente, ou seja, é projetado como homogêneo 36 e assim “cada força
determina-se segundo o que […] tem por consequência em movimento, isto é, como vimos,
em grandeza de mudança de lugar na unidade do tempo” (Ibid, p. 101).
O avançar da pesquisa científica deve guiar-se por um procedimento. O procedimento,
portanto, é o “segundo caráter essencial à investigação” (Ibid, p. 102). Na medida em que os
fatos científicos necessitam de validade objetiva, é necessário um procedimento que garanta,
na área projetada, que estes fatos venham ao encontro de forma objetiva. “O avançar tem
então de representar o que muda na sua mudança, trazê-lo ao estar assente e, ao mesmo
tempo, deixar o movimento ser um movimento” (Ibidem). O projeto deve se dar na forma de
lei científica. A lei, “a representação do que muda em sua mudança”, é o que o procedimento

36 Em Heidegger (2007, p. 14) surge o seguinte questionamento sobre o espaço tal como concebido
pela modernidade na figura de Galileu e Newton: “Der Raum – jenes gleichförmige, na keiner der möglichen
Stellen ausgezeichnete, nach jeder Richtung hin gleichwertige, aber sinnlich nicht wahrnehmbare Auseinander?”
Ou seja, o espaço é tomado aí como uma extensão uniforme que se mantêm “indistinguível em qualquer
localização, equivalente em qualquer direção, mas imperceptível aos sentidos” (tradução nossa).
36

deve tornar clara. O procedimento, então, nos diz Heidegger, “tem o caráter da clarificação
[Klärung] através do que é claro, a explicação [Erklärung]” (Ibidem). Por sua vez, a
explicação da lei, que através do procedimento se esclarece, deve se explicitar no
experimento, no sentido de tornar-se fato comprovado e, portanto, verdadeiro. Neste caso,
notamos que o experimento não é o ponto de partida do conhecimento científico, mas “só e
apenas se torna possível onde o conhecimento da natureza se transformou em investigação”.
Por exemplo, não é por ser experimental que a física moderna é matemática, mas, ao
contrário, apenas porque a sua área temática já foi desde sempre projetada na forma de lei
matemática que ela pode ser experimental (Ibid, p. 103). É porque existe uma lei científica já
explicada de forma matemática e que precisa ser verificada, que o experimento científico é
possível:

O experimento é aquele procedimento que, no seu planeamento e na sua execução, é


levado e conduzido, a partir da lei que é posta na base [Zugrundelegung], no sentido
de obter os factos que verifiquem a lei ou que lhe neguem a verificação. Quanto
mais exatamente for projectado o plano da natureza, tanto mais exacta se torna a
possibilidade do experimento. (Ibidem).

A física moderna, justamente, se caracteriza pela revolução que nos indica Kant no
Prefácio da segunda edição da sua Crítica da Razão Pura [B XIII]. Revolução que, segundo
ele, levou os físicos a compreenderem:

[…] que a razão só entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos; que
ela tem que tomar a dianteira com princípios, que determinam os seus juízos
segundo leis constantes e deve forçar a natureza a responder às suas interrogações
em vez de se deixar guiar por esta; de outro modo, as observações feitas ao acaso,
realizadas sem plano prévio, não se ordenam segundo a lei necessária, que a razão
procura e de que necessita. A razão, tendo por um lado os seus princípios, únicos a
poderem dar aos fenómenos concordantes a autoridade de leis e, por outro, a
experimentação, que imaginou segundo esses princípios, deve ir ao encontro da
natureza, para ser por esta ensinada, é certo, mas não na qualidade de aluno que
aceita tudo o que o mestre afirma, antes na de juiz investido nas suas funções, que
obriga as testemunhas a responder aos quesitos que lhes apresenta.

Na base do experimento no sentido físico moderno está a lei oferecida pela razão
inquisidora que “dá a medida e vincula o representar antecipador da condição”
(HEIDEGGER, 1998, p. 103), predeterminando antecipadamente, isto é, limitando a partir de
um plano prévio. O âmbito a partir do qual o experimento científico pode acontecer é
previamente determinado pela investigação científica. O “plano prévio” é que diz que
37

perguntas devem ser feitas e como elas devem ser respondidas para que o inquérito possa ser
bem-sucedido no seu projeto de esclarecimento.
Ao contrário, a experientia (έμπειρία), tal como concebida por Aristóteles, não possuía), tal como concebida por Aristóteles, não possuía
esse sentido posterior, mas queria dizer: “o observar das coisas mesmas, das suas
propriedades e mudanças sob condições que se alteram e, assim, o conhecimento do modo
como se comportam em regra as coisas” (Ibidem). Consequentemente, estando no esteio da
tradição aristotélica, Roger Bacon ao exigir o “experimentum” não procurava estabelecer um
procedimento de investigação científica que seguisse os princípios pré-determinados por uma
razão pura. Ele exigia uma mudança do “argumentum ex verbo” para o “argumentum ex re”:
“em vez do comentário das opiniões doutrinárias a observação das próprias coisas, isto é, a
έμπειρία), tal como concebida por Aristóteles, não possuía aristotélica” (Ibid, p. 104). Se na exigência do experimento científico moderno reside
a necessidade de clarificação do projeto previamente dado na forma de hipotese, no
“experimentum” renascentista, herdado da discussão dogmática sobre a ciência da natureza no
chamado período clássico do medievo, reside a exigência de uma demonstração do objeto
enquanto “res creatum”, isto é, a explicitação de sua harmonia de tal forma que as regras que
a regem, segundo o plano divino, se tornem apreensíveis. Se tanto o experimento de
Brunellesco quanto o tratado de Alberti estivessem restritos a apenas esta segunda
interpretação ontológica, então teríamos que responder negativamente à questão acerca do
pertencimento destes ao paradigma científico moderno. Porém, resta ainda por discutir o
caráter próprio ao Renascimento de “abertura à modernidade”.

3.2 RENASCIMENTO COMO ABERTURA AO MODERNO.

O que leva Buckhardt (1994, p. 65) a afirmar que Florença foi o “centro mais
importante onde se elaborou o espírito italiano e até o espírito moderno da Europa em geral”?
O historiador aponta para a “progressão sempre crescente do individualismo” (Ibid, p. 111) e
deduz, como resultado dessa progressão, a figura do indivíduo tal como foi concebida pela
Europa na modernidade. Por mais que tenhamos que levar em consideração a crítica de Klein
(1998, p. 193): “[que Buckhardt] supõe uma dupla oposição, desmentida pelos fatos, entre (1)
Idade Média e Renascimento e (2) entre a Itália do século XV, ‘à frente de sua época’, e os
38

países retardatários do resto da Europa”. Mas, mesmo que não se pode dizer, como quis
Buckhardt, que a Itália “criou sozinha um Renascimento que iria em seguida estender-se ao
resto da Europa”, não podemos desconsiderar a historiografia feita por Buckhardt enquanto
obra rigorosa (no sentido mais moderno do termo). Tomamos em consideração a seguinte
afirmação de Buckhardt (1994, p. 236):

A descoberta do mundo, a cultura da Renascença acrescenta ainda outra


mais importante [descoberta]: é a primeira vez que descobre o homem e o
mostra à luz do dia em corpo inteiro. Antes de mais e como vimos, esta
época desenvolve o individualismo no mais alto grau; em seguida leva a
estudar com paixão, a conhecer a fundo o individual em todos os seus
motivos. O desenvolvimento da personalidade está intimamente ligado à
faculdade de conhecimento de si próprio e de conhecimento dos outros.

Isso significa que, concomitantemente à descoberta de um novo mundo, o


Renascimento descobre aquele a partir do qual o mundo, enquanto descoberto, deve ser
mensurado e servir de medida para aquilo que é visto: o homem. Em seu livro, Buckhardt
apresenta de forma documental este crescente processo de individuação que, sem dúvidas,
desaguará no que se entendeu por sujeito moderno. Porém, a possibilidade de se considerar o
Renascimento como “abertura”, que, através de um avançar progressivo, conduz à
modernidade, é desde sempre garantida pelo fato de que Buckhardt se movimenta no interior
do que chamamos até de ciência moderna. A história é assumida como representação de um
progresso que, enquanto projeto de mundo, deve se objetivar através da explicação dos fatos.
Os fatos se enumeram na medida em que complementam esse projeto através do rigor do
método e, assim, a historiografia avança e adquire o seu caráter de “empresa científica”. Mas
o que significa esse caráter de empresa da ciência moderna?
Heidegger afirma (1998, p. 106), além do “avançar” e do “procedimento”, que “a
ciência moderna é determinada por um terceiro processo fundamental: a empresa (Betrieb)”
(Ibid., p. 106). Esse caráter de empresa da ciência não remete para um simples “acumular
resultados”, mas, em vez disso, “com a ajuda dos seus resultados, [a investigação] instala-se
sempre em função de um novo avançar” (Ibidem). Isso significa que, através dos resultados,
“o procedimento orienta-se cada vez mais para as possibilidades do avançar abertas por ele
mesmo” (Ibidem). É em função desse caráter fundamental da ciência que reside a
possibilidade de perder de vista aquilo que está nos fundamentos sem que o projeto como um
39

todo seja esquecido. Deriva daí, igualmente, a possibilidade de tomar, desde o ponto de vista
moderno, o Renascimento como o início de uma série progressiva de resultados e, assim,
interpretá-lo como o grau inicial em um processo evolutivo em direção ao propriamente
moderno. Perguntamos, porém, não o que significa para a Modernidade ter em seus
fundamentos o Renascimento, mas o que significou para o Renascimento ser “abertura” de
uma época. Se quisermos responder a essa questão não podemos entender o termo “abertura”
no mesmo sentido que a ciência moderna, i. e., como início de uma série progressiva de
resultados. “Abertura” no sentido a que nos referimos têm o caráter de “estar nos
fundamentos” e “ser possibilidade de”, entretanto, estar nos fundamentos não quer dizer ser o
mesmo em um grau diferente.
Dissemos até agora, através da interpretação do texto de Heidegger, que a ciência é
uma investigação garantida através do procedimento e do avançar em direção à objetivação
do ente; a garantia do avanço constante se manifesta na forma de empresa científica. Para a
ciência, entendida como investigação e, consequentemente, para a modernidade, “a natureza e
a história tornam-se em objecto do representar explicativo” (Ibid, p. 109). Re-presentar (Vor-
stellen) significa, segundo Heidegger, ter “como objectivo trazer para diante de si qualquer
ente, de tal modo que o homem calculador possa estar seguro do ente, isto é, possa estar certo
do ente” (Ibid, p. 110). Este “estar certo do ente”, característico da referência objetiva da
ciência moderna ao mundo, se funda em uma “certeza do representar” (Ibidem). A certeza do
representar, neste caso, se conquista à medida que também é conquistado o caráter de certeza
“daquele que representa” como o subjetivo capaz de captar o objetivo. Heidegger completa:

Só se chega à ciência como investigação se, e apenas se, a verdade se


transformou em certeza do representar. É na metafísica de Descartes que o
ente é, pela primeira vez, determinado como objectividade do representar e a
verdade como certeza do representar. (Ibidem).

Como “abertura à modernidade”, o Renascimento não é ainda um projetar que “na


alternância necessária entre o subjectivismo e objectivismo” oferece a um sujeito uma
referência objetiva ao mundo. Ao contrário, como vimos com Alberti, ela busca no mundo
visível a possibilidade de uma representação do que é visto em sua harmonia. Reside, porém,
neste desejo, já uma vontade de tomar o espaço fundamentalmente a partir do ponto de vista
“daquele que vê”. Pode-se supor que se vislumbra já aí a possibilidade de que “o que é visto”
40

não seja tomado apenas como um dado sensível, mas seja entendido através de um projeto
perspectivo e assim caminhe para uma individuação e para uma certeza acerca daquele que
vê. Existe, a partir desta suposição, no método de Alberti e de Brunellesco, duas
características fundamentais para o desenvolvimento da concepção moderna apresentada: a)
um distanciamento do mundo como simples sensibilidade e b) um direcionamento para a
consideração do ente representável desde a perspectiva daquele que vê.
Na representação pictórica regida pelas regras da perspectiva linear, o lugar singular
representado já não possui importância por si mesmo, mas apenas enquanto está
sistematicamente relacionado com os outros lugares que compõem a cena tal como é vista de
um ponto. Esse ponto (signum) levado em consideração tanto por Brunellesco, quanto por
Alberti, na estruturação de seus projetos, é o ponto de vista daquele que vê/representa.
Fundados na certeza “daquele que vê” e do “modo como se vê”, esses pensadores puderam,
pela primeira vez, propor um projeto representativo para aquilo que é visto. O mundo sensível
está, portanto, a um passo de emancipar-se para o mundo matematicamente homogêneo, onde
um ponto não possui valor singular, mas referencial. Acontece que, no Renascimento, o
espaço é sensível àquele que vê e ambos, o que vê e o que é visto, enquanto entes criados, são
colocados em relação de igualdade através da sistematização técnica. Já na técnica moderna, a
sistematização terá o caráter de projeto prévio e oferecerá um espaço para além da simples
sensibilidade, um espaço puro e objetivo que se oferece como princípio desde um “sujeito
calculador”, isto é, capaz de racionalizar.
41

CONCLUSÃO

“Tudo está ainda obscuro e, entretanto, tudo está em plena luz.”.


(SARTRE, 1984, p. 151).

Nossa presente investigação nos conduziu por um caminho: nos aproximamos do


Renascimento a partir da consideração da importância de sua descoberta da perspectiva linear
e do pensamento de dois autores relevantes para essa descoberta; em seguida, contrastamos o
que descobrimos sobre o que o conceito significou para a Renascença com o que a
Modernidade fez dele a partir do aprimoramento técnico-científico. Mas o que conquistamos
com isso? Construímos, de alguma forma, uma relação amigável com o Renascimento?
Decerto, parece que nada conquistamos além de algumas breves considerações. O
Renascimento, que aparece na literatura, pela primeira vez através da figura de Petrarca e nas
artes visuais é representado pela revolução chamada “descoberta da perspectiva linear”, ainda
se mantém para nós como algo ausente e historicamente ultrapassado? Eu diria que não. De
fato, parece que nos foi acrescido algo em relação a nossa compreensão comum sobre o
significado deste período. Heidegger (2002, p. 54) diz:

[…] uma questão histórica é tão diferente do propósito de ser meramente informado
historicamente de opiniões que anteriormente apareceram acerca da coisa, como da
mania de criticar essas opiniões e, através da soma das eventualmente correctas, de
entre as que existiram até agora, extrair e oferecer opiniões novas. Trata-se, pelo
contrário, de pôr em movimento o íntimo acontecer inicial desta questão a partir dos
seus traços-de-mobilidade mais simples, embora consolidados no repouso, acontecer
esse que não se encontra algures em tempos obscuros, mas que está aí, em cada
proposição, em cada opinião quotidiana, em cada aproximação em direcção às
coisas.

Até agora tivemos a preocupação de nos aproximar do Renascimento através de algo


mais que apenas a informação histórica. Nossas considerações sobre Brunellesco e sobre
Alberti não tiveram a intenção de informar ou criticar a opinião desses autores. Assumimos a
nossa questão como histórica, no sentido ressaltado por Heidegger, porque, através dela,
procuramos nos aproximar do Renascimento desde nosso íntimo e trazê-lo à tona, não
enquanto um passado já em repouso e como mera curiosidade, mas como um repouso
consolidado de tal forma que se apresenta a cada vez que nos comportamos para com o
42

mundo, isto é, “em cada aproximação em direção às coisas”. Conhecemos o Renascimento


não como uma coisa superada, mas como um companheiro de viagem que nos acompanha há
longa data, mas até então não havíamos-nos aproximado.
O Renascimento foi caracterizado por Panofsky (2003, p. 35) como um “retorno à
Antiguidade” e, simultaneamente, “abertura ao ‘moderno’”. Esse “retorno à antiguidade” teve
o caráter de uma nova tematização e um interesse renovado pela antiguidade e pelas obras
produzidas pelos antigos, mas isso não significou uma simples readoção teórica. O confronto
com o pensamento antigo, no Renascimento, possuiu um aspecto extremamente inovador.
Não tratando de uma simples reprodução aproximada da antiguidade, o homem renascentista
teve a capacidade de acrescentar algo de si próprio na construção de sua época. Nós herdamos
esse algo na forma de uma revolução. Que essa “revolução” tenha sido a condição de
possibilidade para o que se chamou Modernidade não resta dúvida. Porém, constatamos que a
descrição do Renascimento em uma relação de dependência com a Modernidade (ou mesmo a
opinião que a apresenta como rompimento com o medievo) pode, facilmente, levar a uma
interpretação do período como “o simples começo da modernidade”, isto é, como ponto
inicial de uma escala evolutiva que conduziu ao pensamento e à técnica científica moderna.
Consideramos, porém, que o Renascimento, apesar de seu lugar no início do pensamento
moderno, se encontrava em outro paradigma que não o da modernidade. Mas o que isso
significa?
A partir de sua relação técnica, a Modernidade determinou o espaço verdadeiro como
aquele que se apresenta de forma cósmica e objetiva (HEIDEGGER, 2007, p. 17). Essa
compreensão entende o espaço como sua última possibilidade de conquista. “Conquistar”
significa dominar técnica e cientificamente o espaço em sua natureza objetiva. Heidegger
(Ibidem) questiona:

Que aconteceria, porém, se a objetividade do espaço cósmico objetivo fosse,


irreversivelmente, o correlato da subjetividade de uma consciência que é
estranha às épocas anteriores à idade moderna europeia?37

Isso é o mesmo que perguntar: não seria a objetividade do espaço já uma descoberta
específica de um tipo de consciência específica? Heidegger situa historicamente aquilo que

37 “¿Qué sucedería, empero, si la objetividad del espacio cósmico objetivo resultara ser
irremisiblemente el correlato de la subjetividad de una conciencia a la que resultan extrañas a las épocas que
precedieron a la edad moderna europea?”
43

chamamos “descoberta de um espaço científico”. “Tomar consciência” quer dizer “descobrir


de determinada maneira”. Se, por fim, a técnica moderna se dedica a uma espécie de
dominação do espaço objetivo já sempre dado e a sua conquista, a arte plástica moderna,
segundo Heidegger, possui outro papel: “El arte como plástica: no una toma de posesión del
espacio. La plástica no sería una confrontación com el espacio” (Ibid., p. 29). A arte, mesmo
na modernidade, se relaciona com o espaço, para o filósofo, de forma completamente distinta
da ciência e da técnica. A arte, ele continua na mesma página, seria:

Uma “corporificação” de lugares que, ao abrir a região e preserva-la,


mantêm reunido em torno a si um âmbito livre que confere às coisas uma
permanencia e profura aos homens em um habitar em meio as coisas. 38

Estendemos as considerações de Heidegger para o que apresentamos sobre o


Renascimento. A relação espacial própria da ciência moderna é a dominação técnica do
chamado “espaço cósmico objetivo”. A partir disto, perguntamos: seria correto afirmar que a
descoberta da perspectiva linear, e sua aplicação na arte renascentista, se relaciona com o
espaço também na forma de uma dominação objetiva daquilo a ser representado na obra?
Talvez. Mas, igualmente, podemos afirmar que o realismo das obras renascentistas não era
dependente apenas da objetividade do mundo, mas da realidade do quadro em si própria.
Tratando-se do segundo caso, teríamos então que admitir que a “perspectiva linear” no
Renascimento, assim como a “arte plástica” na Modernidade, não se relacionava com o
espaço na forma de uma dominação técnica. A sistematização pictórica renascentista,
poderíamos dizer, não buscava na técnica uma forma de dominar o espaço, mas, como propôs
pela primeira vez Fra Antonino (apud EGERTON, 2009, p. 30ss), de libertar este espaço à
contemplação da realidade da obra. No primeiro século do Renascimento, com a
predominância de temas religiosos, isso torna-se ainda mais claro: o comprometimento do
artista não é a com a realidade do mundo, mas com a realidade do divino revelado na obra.
Assim, aquilo que foi elaborado pela técnica do Renascimento pode não ter sido a realidade
crua de uma objetividade geral, mas um espaço sistematicamente livre para a realidade da
obra.

38 “[…] una corpoeización de lugares que, al abrir una comarca y preservarla, mantienen reunido en
torno a si un ámbito libre que confiere a las cosas una permanencia y procura a los hombres un habitar en medio
de las cosas.
44

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São Paulo: Abril S.A. Cultural, 1984.
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