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UFPB/CCHLA
O Espaço — esta abstração spenceriana
Que abrange as relações de coexistência
É só! Não tem nenhuma dependência
Com as vértebras mortais da espécie humana!
The present work tries to the investigate the technique of pictorial reproduction discovered
in the Renaissance and known as "linear perspective". The attempt to elaborate historiographically
this “rediscovery of linear perspective on the Renaissance" serves to illustrate the true intention of
the work: to conceive the properly historical character of this epoch, which was characterized by us
as a "return to Antiquity" and at the same time an "openness to the Modern". It is, therefore, a
matter of elaborating as a historical-philosophical problem the discovery of the linear perspective,
and this means: questioning the fundamental metaphysical foundation that leads the Renaissance to
find itself on the way to a new understanding of space and the origin of this possibility Then, we
think, through Heidegger and from the previous considerations about linear perspective, the
meaning of the Renaissance as an epoch from the spatial structure proper to its problems. Finally,
research has turned to the spatial paradigm of the Renaissance experiment in order to illustrate its
singularity and, at the same time, to the unequivocal uniqueness that every Epoch could gains in an
investigation, since that such investigation starts from the epoch’ owns problems and offer them a
historical-philosophical treatment.
Figura 1: Experimento realizado por Brunellesco (In: EDGERTON, 1976, p. 126: Diagram ix - I).
............................................................................................................................................................21
Figura 2: Disposição dos raios visuais na pirâmide visual segundo Alberti (In: EDGERTON, 1976,
p. 84: Diagram vi-1)...........................................................................................................................28
Figura 3: Reconstrução do método descrito por Alberti (In: EDGERTON, 1976, p. 45 – diagrama
iii-2)....................................................................................................................................................32
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................10
1 O QUE É RENASCIMENTO?..............................................................................14
CONCLUSÃO............................................................................................................41
BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................44
10
INTRODUÇÃO
princípio, soa absurdo. Apesar disto, para Panofsky, um período possui algo como uma
“fisionomia” singular através da qual podemos reconhecê-lo proximamente, o distinguindo de
outros períodos após uma primeira apresentação. Podemos assim, nos aproximar de um
período de tal forma que, marcados por ele, consigamos distingui-lo entre outros, apesar de
não possuirmos uma definição exaustiva do seu significado. Essas considerações nos
pouparam da exaustiva e, provavelmente, infrutífera tentativa de abarcar todo o Renascimento
através da exposição de inumeráveis fatos históricos. Ao contrário, foi possível nos
aproximarmos do Renascimento desde um ponto de vista simples; procurando-o naquilo que,
em primeiro lugar, nos tocou de forma singular. Portanto, a primeira parte de nosso trabalho
consistiu em localizar o Renascimento enquanto período histórico para, assim, sermos capazes
de tomá-lo como problema principal a ser tratado monograficamente.
A partir da abordagem dada a questão principal, um primeiro problema específico
surgiu: qual característica do Renascimento pode nos servir de guia em uma primeira
aproximação e, de certa forma, nos introduzir ao período? Tomando as indicações de William
Ivins, “On racionalization of sight” (1938), de Samuel Y. Edgerton, “The Renaissance
Rediscovery of linear Perspective” (1976), e de Da Vinci, em seus textos sobre o assunto
(1883) ‒, a “descoberta da perspectiva linear” consiste em uma característica fundamental do
Renascimento, capaz de lhe conferir uma identidade epocal. O segundo problema específico,
então, a ser tratado durante a pesquisa, foi o da caracterização o significado da “descoberta do
sistema perspectivo” para esta época. Mais uma vez, tomamos o conselho da literatura
especializada e buscamos em duas figuras singulares a origem desse movimento de
redescoberta: Brunellesco e Alberti. Em “A Forma e o Inteligível” (1998), Rober Klein indica
nesses dois florentinos a origem do que hoje chamaríamos “perspectiva linear”: Brunellesco
foi o primeiro a demonstrar publicamente, através de um experimento, as regras para o que se
chamou “sistematização do espaço pictórico” ou “racionalização da visão” (IVINS, 1938);
Alberti, o primeiro a transcrever essas regras sob a forma de um tratado sobre a pintura.
No segundo tópico tratamos, então, da perspectiva enquanto característica do
Renascimento e ele está dividido em dois subtópicos, sendo cada um dedicado a uma das
personalidades citadas. No primeiro, utilizamos principalmente a obra de John White, “The
Birth and Rebirth of Pictorial Space” (1994), e Edgerton (1976) para ilustrar, de forma
simples, os passos que levaram Brunelesco a construir seu experimento e o que esses passos
12
apenas um ponto inicial de uma escala progressiva que, se aprofundando cada vez mais em
um mundo objetivo, desabrocha na forma rigorosa de uma ciência moderna? Apesar deste
pensamento parecer perfeitamente justificável do ponto de vista historiográfico (IVINS, 1938,
p. 11ss), nos propusemos dar um maior enfoque na ideia de que essa abertura significa algo
mais que um simples lugar na ordem progressiva de um desenvolvimento planificado. Deste
modo, na conclusão procuramos comentar brevemente e ressaltar, sem pretensões totalizantes,
a diferença, e não a continuidade, entre o Renascimento e o período que o sucedeu.
14
1 O QUE É RENASCIMENTO?
Como é comumente aceito, o primeiro a forjar a ideia de uma “renovação [da cultura]
sob a influência dos modelos clássicos” foi o poeta Francesco Petrarca (1304 – 1374).
Considerado por Burckhardt (1994, p. 158) como o “primeiro dos modernos”, Petrarca viu a
história de forma diferente da maioria de seus contemporâneos: pensada por católicos como
um contínuo desenvolvimento guiado pela vontade divina desde a criação até o momento
presente, Petrarca representou a história humana de maneira quase às avessas. Ele a dividiu
em dois períodos: um antigo (historiae antiquae) e um posterior (historiae novae) e definiu o
período mais recente da humanidade como período de obscurecimento e decadência, enquanto
o anterior havia sido de glória e luz (Apud PANOFSKY, 1972, p. 10.). Esclarece-nos Panofsky
(1972, p. 10):
Assim, Petrarca sustenta que “os pagãos romanos estavam sob a luz, enquanto os
cristãos haviam andado entre as trevas”2 e nisto reside o caráter revolucionário de sua
interpretação da história ocidental. A estas duas eras (antiquae e novae), Petrarca adiciona a
previsão de uma terceira. A Terceira Era é interpretada pelo poeta como “o que ainda está por
vir”, um renascimento da antiguidade na forma de iluminação das trevas vigentes no medievo.
1 […] where his forerunners had conceived of that continuous development as a steady progress from
heathen darkness to the light that was Christ (whether his birth was held to mark the last of Daniel’s “Four
monarchies”, or the last of the “Six Ages” corresponding to the six days of Creation, or the last of the “Three
Eras”, the first before the Law, the second under the law, the third under Grace), Petrarch interpreted the period
in which the ‘name of Christ began to be celebrated in Rome and to be adored by the Roman emperors’ as the
beginning of a dark age. (Às próximas citações, quando apresentadas na forma da tradução nossa,
acrescentaremos apenas uma nota de rodapé com a citação em original, fica entendido que se trata de uma
tradução provisória feita pelo auto do presente trabalho.)
2 “the Roman pagans had been in the light whereas the Christians had walked in darkness”.
15
Isto é, uma regeneração e renovação da cultura, marcada por uma revolução política e por
uma “purificação da dicção e da gramática latina, um renascimento do Grego e um retorno
3
dos copiladores, comentadores e autores medievais para os antigos textos clássicos”
(THORNDIKE apud PANOFSKY, 1972, p. 11). Pela primeira vez é usado o termo “idade das
trevas” para se referir ao período medieval e, em consequência disso, era necessário uma
saída desse período obscuro da humanidade, através da luz oferecida pelos antigos: um
Renascimento. Essa tendência tornou-se cada vez mais sofisticada entre seus discípulos e
sucessores, vindo a englobar, diante dos olhos do mestre, todas as esferas da cultura,
incluindo as artes visuais, a começar pela pintura (PANOFSKY, 1972, p. 11).
Como, porém, tomar esse período chamado Renascimento em sua plenitude, sem que
ele imediatamente se dissolva no “monismo” ou no “atomismo” histórico (PANOFSKY,
1972, p. 1)? No primeiro caso, se argumenta que a “natureza humana tende a permanecer a
mesma todo o tempo”4 (THORNDIKE apud PANOFSKY, 1972, p. 1) e, em função disso, não
se podem encontrar denominadores comuns na história humana e, assim, definir algo como
uma “época”. No segundo caso, atomista, argumentasse o contrário: a natureza humana muda
com tamanha variedade entre os homens que não se pode falar de períodos, mas de
acontecimentos individuais na história. Um período seria apenas a influência de uma solução
individual para um problema geral e, assim, “o que chamamos ‘períodos’ são apenas nomes
para inovações influencia que constantemente ocorrem na… história” 5 (G. BOAS apud
PANOFSKY, 1972, p. 1). Porém, segundo as considerações de Panofsky (1972, p. 4) o
conceito de período;
Apesar de tudo isso, porém, um período […] parece possuir algo como uma
“fisionomia” não menos definida, mas não menos difícil de descrever de
maneira satisfatória, que um individuo humano. Pode haver um desacordo
legítimo sobre quando um individuo passa a ser […]; quando ele chega ao
fim; quando ele começa a ser um jovem em vez de uma criança, um adulto
em vez de um jovem, um velho em vez de um adulto; quantas características
suas pertencem ao seu pai, a sua mãe, aos seus avós ou a qualquer um de
seus ancestrais. Ainda assim, quando nós conhecemos uma tal pessoa em um
dado momento e em determinado grupo, não falhamos em distingui-lo de
seus companheiros; em descrevê-lo como jovem, velho ou de meia-idade,
3 “purification of Latin diction and grammar, a revival of Greek and a return from medieval compilers,
commentators and originators to the old classical texts”
4 “[the] human nature tends to remain much the same in all times”.
5 “what we call ‘periods’ are simply the names of the influential innovations which have occurred
constantly in… history”
16
Que característica poderia nos aproximar do Renascimento de tal forma que possamos
criar uma “impressão única” de sua “fisionomia” enquanto período histórico? Para fazer um
bom amigo, uma simples apresentação basta. Ao conhecer uma pessoa, levamos em
consideração uma característica sua que nos marcou de alguma forma e, a partir disto,
criamos o que se chama impressão íntima. As considerações de Panofsky implicam que o
mesmo pode aplicar-se a um período histórico e, assim, ao Renascimento. O que aqui
pretendemos fazer não se distancia disto: desejamos oferecer uma impressão íntima do
Renascimento e nos aproximarmos dele a partir desta impressão. Qual seria então a
característica que serviria de “primeira apresentação” segundo a qual pudéssemos nos guiar
numa investigação deste período? A fim de responder a essa pergunta, circunscreveremos
rapidamente nosso objeto. Do Renascimento, nos limitaremos a uma breve caracterização das
artes pictóricas e, mais especificamente, a descoberta da perspectiva linear como convenção
técnica. Leonardo da Vinci (1883, p. 30 [50]) descreve a perspectiva de seguinte forma:
6 In spite of all this, however, a period [...] may be possess a “physiognomy” no less definite, though no
less difficult to describe in satisfactory manner, then a human individual. There can be legitimate disagreement
as to when a human individual comes into being […]; when he comes to an end; when the begins to be a boy
rather than an infant, an adult rather than a boy, an old man rather than an adult; how many of his characteristics
he may owe to his father, his mother, his grandparents, or any of his ancestors. Yet, when we meet him at a given
moment within a given group, we shall not fail to distinguish him from his companions; to put him down as
young or old or middle-aged, tall or short, intelligent or stupid, jovial or saturnine; and ultimately to form an
impression of his total and unique personality.
7 Perspective is a rational demonstration by which experience confirms that every object sends its
image to the eye by a pyramid of lines; and bodies of equal size will result in a pyramid of larger or smaller size,
according to the difference in their distance, one from other. By a pyramid of line I mean those which start from
the surface and edges of bodies, and, converging from a distance meet in a single point. A point is said to be that
which [having no dimensions] cannot be divided, and this point placed in the eye receives all the points of the
cone.
17
Isto é, uma técnica de representação que, através da intersecção das pirâmides visuais
e do uso de um “ponto de intersecção”, oferece ao artista a possibilidade de representar
graficamente o campo visual humano em uma relação de verossimilhança. Ivins (1938, p.
12ss) afirma que:
8 The most marked characteristics of European pictorial representation since the fourteenth century
have been on the one hand its steadily increasing naturalism and on the other its purely schematic and logical
extensions. […] The discovery of the early forms of these [perspectives] grammars and techniques constitutes
that beginning of the rationalization of sight which, it is submitted, was the most important event of the
Renaissance.
18
Dessas duas exposições, podemos deduzir que a “perspectiva linear” é um dos braços
de um sistema tripartido chamado de Perspectiva: ela ocupa-se especificamente da razão pela
qual os objetos aparentemente diminuem a medida que se afastam no campo de visão. Suas
irmãs lidam, respectivamente, com a variação das cores e com a nitidez dos objetos no mesmo
campo de visão. Em um primeiro momento, essas definições podem soar vagas e revelar
pouco sobre o que realmente significou a “descoberta” da perspectiva pictórica no
Renascimento. Evidentemente, essa impressão não pode permanecer. O status de evento mais
importante do período a ela atribida se deve ao fato de estar em jogo a possibilidade de um
9 […] the first deals with the reasons of the (apparent) diminution of objects as they recede from the
eye, and is known as Diminishing [linear] Perspective. – The second contains the way in which colors vary as
they recede from the eye. The third and last is concerned with the explanation of how the objects ought to be less
finished in proportion as they are remote.
10 Perspective may be regarded as a practical means for securing a rigorous two-way, or reciprocal,
metrical relationship between the shapes of objects as definitely located in space and their pictorial
representations.
19
“espaço uniforme e homogêneo” (IVINS, 1938, p. 9). Se se fala, porém, de uma descoberta,
ou mesmo de uma “redescoberta” (EDGERTON, 1975, p. 6) da perspectiva, temos o direito
de nos questionar: com qual problema se depararam, de forma inaugural, os pensadores desse
período?
Filippo di Ser Brunellesco Lapi (1377 – 1446) foi um artesão, escultor, pintor e
arquiteto florentino. Brunellesco é imensamente conhecido por sua magistral cúpula da capela
de Santa Maria del Fiore, mas aqui gostaríamos de levar em consideração uma obra de
dimensões bem mais modestas do autor: seu primeiro experimento sobre a perspectiva linear
no ano de 1425.11 Esse experimento realizado por Brunellesco é considerado como “a
primeira demonstração das regras da perspectiva linear” (KLEIN, 1998, p. 275). Manetti
(apud WHITE, 1994, p. 118ss.) nos diz sobre essa obra:
piramidal […] E queria que o olho se situasse por trás, aonde era maior, para
que todo aquele que deseja-se olhar pudesse aproximá-lo com uma mão ao
olho e com a outra segurar um espelho para observar a imagem refletida do
quadro.13
13 Este asunto de la perspectiva, en el primer lugar que lo reflejó fue en un pequeño panel di circha
mezo braccio quadro sobre el cual plasmó una imagen exacta de la iglesia de Santo Giovanni di Firenze, y de esa
iglesia hizo una imagen, tal como se puede ver, a primera vista y desde el exterior; y, al parecer, para poder
pintarla se situó él mismo en la puerta central de Santa Maria del Fiore, a unos tres braccia, y lo hizo con tal
esmero y delicadeza, y con tal precisión en el colorido de los mármoles blancos y negros, que no existe un
miniaturista que pueda mejorarlo […] En dicha pintura el pintor necesitaba presuponer un único lugar desde el
cual se iba a ver su cuadro, fijado en altura y profundidad y en relación con los laterales, así como en distancia
[…]. Para ello había hecho agujero en el panel en el cual se hallaba esta pintura, el agujero […] se abría en forma
piramidal […]. Y quería que el ojo se situara detrás, donde era mayor, para que todo el que deseara mirarlo
pudiera acercárselo con una mano a lo ojo y con la otra pudiera sujetar un espejo para ver la imagen reflejada del
cuadro.
21
Os debates sobre a técnica utilizada por Brunellesco para produzir o desenho e mesmo
os motivos que o levou a escolher essa igreja em particular continuam, ainda hoje,
extremamente produtivos (ver KLEIN, 1998, p. 276ss; EDGERTON, 1976, p. 133ss), uma
vez que o original não se salvou no decorrer da história. Aqui, porém, gostaríamos de prestar
atenção em três características já aceitas sobre a obra: 1) o buraco em formato piramidal feito
para que se observasse através; 2) a necessidade de um espelho para o experimento; e 3) o
experimento ser realizado desde um lugar específico escolhido por Brunellesco,
provavelmente, onde ele havia realizado a pintura. Diz-nos Panofsky (2003, p. 12ss):
nesta característica que reside o que chamaremos mais tarde (cf. tópico 2.2) de possibilidade
latente da “emancipação dos corpos plásticos e do espaço vazio que os cerca” (PANOFSKY,
2003, p. 35). (3) Por último, ao escolher o lugar desde onde o observador deveria participar da
demonstração, Brunellesco não deixa igualmente transparecer que em seu experimento o
lugar daquele que vê é levado em consideração no sentido de “ponto fundamente” desde onde
o que é representado pode ser projetado? Isto é, não implica que na realidade do desenho
importa o lugar desde onde ele é visto e, consequentemente, a certeza sobre aquele que vê e
sobre como ele vê? Se tomarmos então a hipótese de Edgerton (1976, p. 148) que diz que o
lugar do experimento era exatamente o lugar desde onde Brunellesco havia pintado a
miniatura com a ajuda de um espelho, o ponto desde onde o desenho é visto importa para sua
realidade porque ele também é o ponto fundamental desde onde o projeto pode ser pensado.
Essas considerações nos levam à pergunta acerca da relação essencial entre o
Renascimento e a Modernidade. Podemos, contudo, tomar o experimento de Brunellesco no
mesmo sentido que a época moderna assumiu o conceito de “experimento”? Como o ato de
“representar uma condição de acordo com a qual um determinado complexo de movimentos,
na necessidade do seu curso pode ser seguido, isto é, pode ser dominável de antemão para o
cálculo” (HEIDEGGER, 1998, p. 103)? Em nossos termos: o espaço já se anuncia para
Brunellesco numa ordem científica que se traduz em uma lei e que se expressa no
experimento desde que haja uma previsão e um controle previamente determinado das
variáveis envolvidas para aquele que representa? Antes de acendermos a estas questões,
devemos considerar o trabalho de um segundo pensador da época que se confrontou com o
mesmo problema que Brunellesco e sistematizou sua reflexão não apenas de forma
experimental15, mas de modo teórico na forma de um tratado sobre a pintura.
15 Além de seu tratado, Alberti também produziu experimentos visuais na mesma linha do experimento
de Brunellesco. Sobre o assunto nos diz Burckhardt (1994, p. 113): “O que provocou principalmente a admiração
dos seus contemporâneos foi a misteriosa câmara óptica onde [Alberti] fazia aparecer ora astros e a lua a erguer-
se sobre as montanhas rochosas, ora vastas paisagens com montanhas e folfos que se perdiam ao longe na bruma,
e frotas que fendiam o mar, com alternâncias de luz e de sombra”.
24
Leon Battista Alberti (1404 – 1472) foi um pintor, escultor, matemático e arquiteto.
Ele pode ser considerado como um dos primeiros a sistematizar as regras da perspectiva linear
que Brunellesco havia sido o primeiro a demonstrar (KLEIN, 1998, p. 276). Sua família foi
expulsa de Florença por se opor à família Albizzi e apenas em 1434, quando Cosimo de
Médici assume o poder sobre a cidade, Alberti ganha a liberdade e retorna a ela. Diz-nos
Edgerton (1976, p. 33) sobre esse período de exílio do pensador:
16 He nevertheless managed to gain an education par excellence, first in the grammar school of the
splendid humanist teacher Gasparino Barsizza in Padua, and the at the University of Bologna, where he studied
canon law and the “liberal arts”. In the meantime, his native city [Florença] was undergoing a series of critical
wars with the neighboring states of Milan and Naples, which were threatening her precious libertà. Rising to
power in the wake of these events was a canny banker named Cosimo de Medici. When he seized the reins of
government in 1434, all former enemies of the old regime, including the Alberti, were invited to returns.
17 “was now not on sensuous charm of pictorial surface, but rather on compelling the viewer to a more
intellectual contemplation of the picture’s hole subject”
18 Ver Edgerton (1976, p. 35): “Since the early fourteenth century, the mezzadria system of agriculture,
with its centralized land management and emphasis on economical crop distribution, had replaced the old
subsistence manorial farming which has led to so much famine and depression. The carefully striated terraces on
the Tuscan hillsides, with their neat rows of olive trees and parallel strings of grape vines, doubtless impressed
Alberti, as they still charm the modern tourist”.
25
Assim como as cordas de uma harpa… afinadas uma a outra de forma que,
quando são tocadas, uma única harmonia surge dos diferentes tons… assim
como essa cidade perspicaz têm adaptado todas as suas partes umas as outras
de tal forma que o resultado uma total harmonia na estrutura da república…
Nada neste estão é desproporcional, nada impróprio, nada é incongruente,
nada é deixado vago; tudo ocupa seu lugar próprio aonde não apenas é
claramente definido,, mas também possui uma justa relação com todos as
outras partes.19 (LEONARDO BRUNI apud EDGERTON, 1976, p. 36).
A matemática é considerada, então, nos diz Edgerton (1976, p. 36), “um tipo de lingua
franca social, ligando a classe alta com a baixa, criando uma ligação entre intelectuais
humanistas, banqueiros, artesão e comerciantes”20. Nas artes, os experimentos de Brunellesco
influenciaram profundamente a forma como a representação pictórica era concebida, deixando
influir também neste âmbito a necessidade matemática da harmonia geométrica entre as
figuras. Devemos destacar que os pensadores tinham, no fundo, discrepâncias em relação ao
que desejavam com seus experimentos. Como nos ilustra Edgerton (1966, p. 372): enquanto o
experimento de Brunellesco pode ser tomado como “consistindo na redução da distância real
entre o observador e o objeto e das distâncias reais das construções em uma escala
representacional, através da qual se supõe a aproximação exata entre da aparência da igreja de
San Giovanni vista desde o portal do Duomo”21, Alberti dá um passo adiante (ou “atrás”) e
busca com sua técnica a construção de um “estágio puramente conceitual de acordo com as
exigências da superfície pictórica”22.23
19 Just as harpstrings… attuned to each other so that, when they are twanged, a single harmony arises
from all the different tones… just as this farsighted city has so adapted all her parts to each other that there
results a harmony of the total structure of the republic…. Nothing in this state is ill-proportioned, nothing
improper, nothing incongruous, nothing left vague; everything occupies its proper place which is not only clearly
defined but also in the right relation to all others.
20 “[…] a kind of social lingua franca, linking upper and lower classes, creating a bond among
humanist intellectuals, bankers, artisans, and shopkeepers”
21 “consisted of reducing the actual distance between viewer and object and the actual dimensions of
the building to a scale representation which supposedly approximated exactly the appearance of San Giovanni as
seen from the portal of the Duomo”.
22 “purely conceptual stage accord with the exigencies of the picture surface”.
23 Edgerton continua: “This is an important difference, for it emphasizes how medievally rooted
Alberti's perspective really was. I do not wish here to demean the tremendous changes in art and visual
psychology which Alberti's rationalizations brought about, but his perspective formula, in so far as it provided an
illusion of the third dimension, was still closer in spirit to the geometry of the optics texts than to observations
per se of nature and was really conceived within the framework of the medieval Aristotelian system. Indeed, an
ideal pictorial beauty achieved through geometric harmony had been sought since antiquity; the ideas of Plotinus
and St. Augustine and even, for that matter, Villard d'Honnecourt reach their culmination in the perspective of
Alberti”.
26
A chamada “costruzione legittima” foi concebida por Alberti, em meio a este cenário,
em seu tratado Della Pinttura (Da Pintura) no ano de 1435, dez anos depois da demonstração
em praça pública do experimento de Brunellesco. A obra é dividida por Alberti em uma
Introdução e três livros. A Introdução começa com um diálogo direto com Brunellesco e seu
circulo íntimo de amigos, em que o autor apresenta sua motivação inicial para empreender
aquele trabalho:
Em seguida, Alberti apresenta uma rápida sistematização dos livros que compõem o
tratado:
Verás três livros: o primeiro, todo matemático, faz surgir das raízes da
natureza, esta graciosa e tão bela arte; o segundo põe a arte na mão do
artista, distinguido suas partes e demonstrando tudo; o terceiro estabelece o
que e como fazer para obter o domínio e o conhecimento perfeito da pintura.
(ALBERTI, 1999, p. 72).
“matemático” e “artístico”, diz Alberti (1999, p. 75), acontece em função do fato de que os
matemáticos “medem com sua inteligência apenas as formas das coisas, separando-as de
qualquer matéria”, as tomando então como puramente abstratas. O interesse do artista, ao
contrário, é sensível, isto é, que “as coisas sejam postas bem diante dos olhos” e, portanto,
apela a uma interpretação sensível do mundo. Edgerton (1976, p. 80) aponta para o fato de
que justamente, a partir dessa consideração, o conceito fundamental para a obra de Alberti, a
saber, o conceito de ponto, sofrerá uma variação em relação ao conceito tradicional, i.e.,
euclidiano. Alberti (1999, p. 76) definirá o ponto como “figura [signum] que não pode ser
dividida em partes” e não como “est id quod mullam habet dimensionem” (FIBONACCI apud
EDGERTON, 1976, p. 80)24. Enquanto na definição de Fibonacci o ponto invoca uma
abstração, na definição de Alberti o ponto pode ser considerado justamente como algo
contrário ao simplesmente abstrato, pelo qual o ponto se torna “qualquer coisa que esteja na
superfície, de modo que o olho possa vê-la” (ALBERTI, 1999, p. 76). Explica-nos Edgerton
(1976, p. 80):
Consequentemente, uma linha, “uma série de pontos”, não é, para Alberti, uma
simples abstração, mas um traço visível dos corpos no mundo. Uma superfície pode ser então,
pensada como uma “capa” formada por um conjunto de linhas visíveis e o corpo como o
resultado de um aglomerado de superfícies visíveis espacialmente distribuídas. Portanto, o
que, Alberti (1999, p. 79) procura interceptar sobre o plano pictórico são raios que saem desde
esses pontos visíveis até o olho humano, os chamados “raios visuais” que podem ser pensados
como:
[…] agentes da visão, por isso mesmo, chamados visuais, que levam ao
sentido a forma das coisas vistas. E nós imaginamos esses raios como se
fossem fios extremamente tênues, ligados por uma cabeça de maneira muito
Ele continua: os raios visuais são usados pela visão de tal forma que é através deles
que o olho toma referência sobre as dimensões, a distância, a cor e o lugar do que é visto. Eles
podem ser de três tipos: extremos, médios ou cêntrico. Funcionam como demonstrados na
figura 2. Os raios extremos, extrínsecos, são aqueles que partem desde as fronteiras, as
margens do que é visto, oferecendo ao olho as medidas sobre as dimensões do plano e a
distância entre ele e outros objetos vistos, o que Alberti chamará de “quantidades” (1999, p.
80). Os raios medianos partem desde a superfície circundada pelos raios extrínsecos e são
chamados por Alberti de “camaleões”, pois é através deles que as cores e a sua intensidade em
relação à luz são captadas pelo olho. O terceiro é o cêntrico; ele é chamado assim porque
coincide com a “linha cêntrica do desenho” e é através dele que as distâncias e as superfícies
recebem sua relação angular e se dispõem através do campo de visão; aonde o raio cêntrico
“atinge a superfície [do quadro] forma a sua volta ângulos retos e iguais” (ALBERTI, 1999, p.
80).
Figura 2: Disposição dos raios visuais na pirâmide visual segundo Alberti (In:
EDGERTON, 1976, p. 84: Diagram vi-1).
29
Alberti (1970, p. 80) explica que é porque esses raios visuais 26, principalmente os
chamados extrínsecos, atingem o olho como um “par de compassos” que se diz que a visão
possui algo como uma “pirâmide visual” (ver figura 2). Ele continua (p. 82):
Até aqui falamos tudo que diz respeito à força da visão e que diz respeito à
intersecção. Mas, como ao pintor não só é bom conhecer o que é intersecção como
também convém saber fazê-las, disso falarei agora. […] Inicialmente, onde devo
pintar, traço um quadrângulo de ângulos retos, do tamanho que me agrade, o qual
reputo ser uma janela aberta por onde possa eu mirar o que aí será pintado, e
ai, determino de que tamanho me agrada que sejam os homens na pintura. Divido o
cumprimento desse homem em três partes, sendo para mim cada uma das partes
proporcional à medida que se chama braço, porque, medindo-se um homem comum,
vê-se que ele tem quase a medida de três braços. […] Divido a linha da base do
triângulo em tantas partes quantas deva ela comportar. […] Depois dentro desse
quadrângulo, fixo, onde me parecer melhor um ponto que ocupará o lugar que o raio
cêntrico vai atingir e, por isso, eu o chamo ponto cêntrico. Esse ponto está
corretamente colocado quando não estiver mais alto da linha de base do quadrângulo
que a altura de um homem que aí terá que ser por mim pintado, pois assim tanto
quem vê quanto as coisas pintadas que se vêem aparecem em um único e mesmo
plano. Colocado o ponto cêntrico, conforme disse, traço linhas retas a partir daí em
direção a cada divisão feita na linha de base do quadrângulo. Essas linhas traçadas
me mostram de que modo, quase até ao infinito, cada quantidade transversal se vai
alterando.
26 O conceito de “raios visuais” de Alberti está intimamente ligado com o conceito de “espécies”
apresentado por Roger Bacon e, consequentemente, com a teoria apresentado por Alhazen em seus tratados sobre
ótica (TOSSATO, 2005, p. 433). Sobre o assunto Tossato (Ibid, p. 434) acrescentará: “A base da teoria da visão
de Roger Bacon (1214 – 1292) é extraída dos aspectos anatômicos, filosóficos e matemáticos de Alhazen. Em
suas principais obras sobre óptica, Perspectiva e De multiplicatione especierum (Acerca da multiplicação das
espécies), o objeto visto transmite “espécies” pelos raios luminosos em todas as direções, alcançando a superfície
do olho. Cada ponto na superfície do olho é vértice de uma pirâmide visual com a base na superfície do objeto.
Portanto, deve haver uma correspondência ponto a ponto entre os pontos da superfície do olho e os do campo
visual (essa relação pode ser ilustrada por nossa figura 2). […] Cabe assinalar que a noção de “espécies
visuais” de Roger Bacon servirá como suporte teórico para a explicação de como as imagens visuais são
conduzidas até o olho. Ela se assemelha a eidola ou pneuma dos antigos, e também aos “espíritos visuais” de
Johanitus. A substituição desse termo ocorrerá com Kleper que, em vez de espíritos visuais ou espécies visuais,
usará o termo imago, ou simplesmente imagem”.
30
Como aponta Edgerton (1976, p. 43), nesta primeira parte do processo, Alberti
estabelece um plano pictórico quadricular e concebe esse quadro como “uma janela aberta”,
isto é, a superfície do quadro deixa de ser algo no qual algo pode ser visto, para se tornar algo
através da qual o olho pode ver. Ao lado deste quadrângulo, Alberti desenha um homem de
tamanho médio, o qual serve de referência para que uma linha central seja passada, dividindo
o quadro em dois retângulos. A base do quadrado, por fim, é dividida em quantas subseções
forem necessárias para a representação; essas seções são ligadas por transversais até um ponto
localizado por sobre a linha central, o qual Alberti chama de “ponto cêntrico”, pois é através
dele que a linha cêntrica passa. Terminada a construção se obtém a estrutura tal como
apresentada na Figura 3d isoladamente.
As linhas que partem do ponto cêntrico até a base do quadro oferecem ao pintor uma
variável capaz de quantificar a alteração da posição dos corpos no raio de visão “quase até ao
infinito”. Ora, a forma como os objetos se “estreitam” na medida em que se afastam no campo
de visão já era algo conhecido. Como nos aponta Panofsky (2003, p. 44), “já os Lorenzetti
haviam observado a convergência rigorosamente matemática das ortogonais, porém, lhes
faltava um método para medir con igual precisão os intervalos de profundidade das chamadas
‘transversais’”27. Ou seja, ainda se desconhecia um método que oferecesse a possibilidade de
se representar as distâncias entre as linhas que cortam a pirâmide visual de modo horizontal e,
consequentemente, determinar em que medida o comprimento de figuras do mesmo tamanho
(e. g., quadras de um tabuleiro de xadrez) diminuem ao passo que se distanciam no horizonte.
O próximo passo de Alberti será, portanto, construir um chamado “alzado lateral” que
permita determinar “sobre a perpendicular da intersecção, os intervalos de profundida
buscados [entre as linhas transversais] e transpô-los desta maneira […] ao sistema dispónivel
das ortogonais orientadas para o ponto de fuga”28 (Ibidem)29. Em última instância, se oferecerá
através deste processo as “razões da (aparente) diminuição dos objetos a medida que eles
Segundo Edgerton (1976, p. 44), esse procedimento era feito por Alberti em uma
pequena folha em separado e posteriormente sobreposto sobre o esboço conseguido na
primeira parte do procedimento. Primeiro (a): Alberti em uma linha horizontal traçava quantas
divisões tivesse feito na base do triângulo da primeira parte do procedimento. A altura da
linha vertical era igualmente de três braços, igualando-se a altura da linha cêntrica (figura 3a).
Em seguida (b): do ponto mais alto da linha vertical, chamado “ponto de distância”
(PANOFSKY, 2003, p. 45), até as divisões na linha de base Alberti trassava uma série de
linhas ligando o ponto até as subseções da base (como na figura 3b). Por fim (c): escolhendo a
distância a ser representada (traço vertical na figura 3c), Alberti traçava linhas transversais
entre o triângulo do esboço e o conseguido na primeira parte do processo (3d) e obtinha assim
“a sucessão de todas as quantidades transversais”, ou seja, conseguia representar
escalonadamente “todos os paralelos, isto é, os braços quadrados do pavimento da pintura”
(ALBERTI, 1999, p. 97). Ele conseguia assim determinar, no exemplo dado, como os
tamanhos das casas de um tabuleiro de xadrez sistematicamente diminuíam à medida que se
estendia através do campo de visão e transferir essa representação para um plano pictórico.
30 “[the] reasons of the (apparent) diminution of objects as they recede from the eye”.
32
Figura 3: Reconstrução do método descrito por Alberti (In: EDGERTON, 1976, p. 45 – diagrama iii-2).
Por último, Alberti considera o fato de que todos os objetos representados devem estar
abaixo da linha central que divide o quadrângulo, pois essa representa um limite, isto é,
“nenhuma quantidade de vista acima do olho de quem ver pode ultrapassá-la” (1999, p. 97).
As figuras que ocupam o tabuleiro devem decrescer segundo a relação entre a transversal
equivalente a sua distância do observador e a linha central, assim: “os homens pintados,
colocados no último braço quadrado da pintura, são menores que os outros” (Ibid).
Com isso, concluímos nossa rudimentar explicação do método desenvolvido por
Alberti. Longe de oferecer uma explicação completa dos procedimentos elegidos pelo artista
em seu tratado, o principal interesse era apenas ressaltar a forma como, no Renascimento, o
tratamento do conceito de espaço adquiriu uma particularidade própria. Ora, como nos
apontou Edgerton (cf. nota 3.) e, igualmente, Panofsky (2003, p. 35), o tratado de Alberti
significa um retorno a concepção aristotélica de universo, uma vez que, em certo sentido, “ele
representa o renascimento da sensibilidade ao corpóreo, um retorno a Antiguidade” 31. Mas,
igualmente, não se tratou de uma simples “volta ao antigo”, mas também, simultaneamente,
de uma “abertura ao ‘moderno’” (Ibidem). Entendemos que, mesmo que a delimitação do
31 “representa este renacimiento de la sensibilidad por lo corpóreo, un retorno a la
Antigüedad”.
33
conceito de “ponto” feita por Alberti no prólogo de seu tratado, como o que é necessariamente
visto, possua um caráter puramente sensível e remonte ao entendimento aristotélico da
experiência, dentro dessa limitação reside desde sempre e, ao mesmo tempo, uma abertura
para a possibilidade de uma “emancipação dos corpos plásticos e a emancipação da esfera
espacial que os circunda” (Ibidem). Com “emancipação” Panofsky (Ibid, p. 36) aponta para a
possibilidade de que o espaço representado se mostre “[…] por sua própria natureza se mostre
já como uma extensão ilimitada e que em seu âmbito os corpos e o espaço vazio comecem a
ser considerados como formas expressivas igualmente valiosas de uma unidade homogenea
inseparável”32.
Pois bem, se até o momento — seguindo a indicação de Panofsky (cf. Tópico 2.) —
procuramos apreender algo que nos aproxime do Renascimento tal como nos aproximamos de
um amigo em potencial, o próximo passo é diferenciá-lo dos outros períodos tais como
distinguimos nossos amigos uns dos outros. Como? Tomamos o aceno do Renascimento
como “retorno aos Antigos, mas, ao mesmo tempo, abertura à modernidade” como chave
interpretativa para a situação a que nos apontam os métodos de Brunellesco e Alberti. Assim,
retornamos à pergunta anunciada no subtópico anterior: Podemos tomar o experimento de
Brunellesco no mesmo sentido que a época moderna assumiu o conceito de “experimento”
(cf. Tópico 3.1)? Essa pergunta nos soa agora como: Enquanto abertura para a emancipação
dos corpos e do espaço entre eles, da simples relação sensível com o mundo para uma
homogeneidade e para um espaço representativo puro, o Renascimento se encaixa no mesmo
paradigma científico que a modernidade? Aqui se torna necessário determinar, inicialmente,
em qual paradigma se encontrava a modernidade e, em seguida, como essa relação se
aproxima ou se distancia da que parece ser apresentada pelo Renascimento segundo as
considerações feitas por nós até aqui.
33 “[…] Urphänomenen, bei deren Gewahrwerden nach einem Wort Goethes den
Mebschen eine Art von Scheu bis zur Angst überkommt”.
34 “Denn hinter dem Raum, so will es scheinen, gibt es nichts mehr, worauf er
zurückgeführt werden könnte. Vor ihm git es kein Ausweichen zu anderem”.
35 “Das dem Raum Eigentümlich muß sich von ihm selbst her zeigen”.
35
36 Em Heidegger (2007, p. 14) surge o seguinte questionamento sobre o espaço tal como concebido
pela modernidade na figura de Galileu e Newton: “Der Raum – jenes gleichförmige, na keiner der möglichen
Stellen ausgezeichnete, nach jeder Richtung hin gleichwertige, aber sinnlich nicht wahrnehmbare Auseinander?”
Ou seja, o espaço é tomado aí como uma extensão uniforme que se mantêm “indistinguível em qualquer
localização, equivalente em qualquer direção, mas imperceptível aos sentidos” (tradução nossa).
36
deve tornar clara. O procedimento, então, nos diz Heidegger, “tem o caráter da clarificação
[Klärung] através do que é claro, a explicação [Erklärung]” (Ibidem). Por sua vez, a
explicação da lei, que através do procedimento se esclarece, deve se explicitar no
experimento, no sentido de tornar-se fato comprovado e, portanto, verdadeiro. Neste caso,
notamos que o experimento não é o ponto de partida do conhecimento científico, mas “só e
apenas se torna possível onde o conhecimento da natureza se transformou em investigação”.
Por exemplo, não é por ser experimental que a física moderna é matemática, mas, ao
contrário, apenas porque a sua área temática já foi desde sempre projetada na forma de lei
matemática que ela pode ser experimental (Ibid, p. 103). É porque existe uma lei científica já
explicada de forma matemática e que precisa ser verificada, que o experimento científico é
possível:
A física moderna, justamente, se caracteriza pela revolução que nos indica Kant no
Prefácio da segunda edição da sua Crítica da Razão Pura [B XIII]. Revolução que, segundo
ele, levou os físicos a compreenderem:
[…] que a razão só entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos; que
ela tem que tomar a dianteira com princípios, que determinam os seus juízos
segundo leis constantes e deve forçar a natureza a responder às suas interrogações
em vez de se deixar guiar por esta; de outro modo, as observações feitas ao acaso,
realizadas sem plano prévio, não se ordenam segundo a lei necessária, que a razão
procura e de que necessita. A razão, tendo por um lado os seus princípios, únicos a
poderem dar aos fenómenos concordantes a autoridade de leis e, por outro, a
experimentação, que imaginou segundo esses princípios, deve ir ao encontro da
natureza, para ser por esta ensinada, é certo, mas não na qualidade de aluno que
aceita tudo o que o mestre afirma, antes na de juiz investido nas suas funções, que
obriga as testemunhas a responder aos quesitos que lhes apresenta.
Na base do experimento no sentido físico moderno está a lei oferecida pela razão
inquisidora que “dá a medida e vincula o representar antecipador da condição”
(HEIDEGGER, 1998, p. 103), predeterminando antecipadamente, isto é, limitando a partir de
um plano prévio. O âmbito a partir do qual o experimento científico pode acontecer é
previamente determinado pela investigação científica. O “plano prévio” é que diz que
37
perguntas devem ser feitas e como elas devem ser respondidas para que o inquérito possa ser
bem-sucedido no seu projeto de esclarecimento.
Ao contrário, a experientia (έμπειρία), tal como concebida por Aristóteles, não possuía), tal como concebida por Aristóteles, não possuía
esse sentido posterior, mas queria dizer: “o observar das coisas mesmas, das suas
propriedades e mudanças sob condições que se alteram e, assim, o conhecimento do modo
como se comportam em regra as coisas” (Ibidem). Consequentemente, estando no esteio da
tradição aristotélica, Roger Bacon ao exigir o “experimentum” não procurava estabelecer um
procedimento de investigação científica que seguisse os princípios pré-determinados por uma
razão pura. Ele exigia uma mudança do “argumentum ex verbo” para o “argumentum ex re”:
“em vez do comentário das opiniões doutrinárias a observação das próprias coisas, isto é, a
έμπειρία), tal como concebida por Aristóteles, não possuía aristotélica” (Ibid, p. 104). Se na exigência do experimento científico moderno reside
a necessidade de clarificação do projeto previamente dado na forma de hipotese, no
“experimentum” renascentista, herdado da discussão dogmática sobre a ciência da natureza no
chamado período clássico do medievo, reside a exigência de uma demonstração do objeto
enquanto “res creatum”, isto é, a explicitação de sua harmonia de tal forma que as regras que
a regem, segundo o plano divino, se tornem apreensíveis. Se tanto o experimento de
Brunellesco quanto o tratado de Alberti estivessem restritos a apenas esta segunda
interpretação ontológica, então teríamos que responder negativamente à questão acerca do
pertencimento destes ao paradigma científico moderno. Porém, resta ainda por discutir o
caráter próprio ao Renascimento de “abertura à modernidade”.
O que leva Buckhardt (1994, p. 65) a afirmar que Florença foi o “centro mais
importante onde se elaborou o espírito italiano e até o espírito moderno da Europa em geral”?
O historiador aponta para a “progressão sempre crescente do individualismo” (Ibid, p. 111) e
deduz, como resultado dessa progressão, a figura do indivíduo tal como foi concebida pela
Europa na modernidade. Por mais que tenhamos que levar em consideração a crítica de Klein
(1998, p. 193): “[que Buckhardt] supõe uma dupla oposição, desmentida pelos fatos, entre (1)
Idade Média e Renascimento e (2) entre a Itália do século XV, ‘à frente de sua época’, e os
38
países retardatários do resto da Europa”. Mas, mesmo que não se pode dizer, como quis
Buckhardt, que a Itália “criou sozinha um Renascimento que iria em seguida estender-se ao
resto da Europa”, não podemos desconsiderar a historiografia feita por Buckhardt enquanto
obra rigorosa (no sentido mais moderno do termo). Tomamos em consideração a seguinte
afirmação de Buckhardt (1994, p. 236):
todo seja esquecido. Deriva daí, igualmente, a possibilidade de tomar, desde o ponto de vista
moderno, o Renascimento como o início de uma série progressiva de resultados e, assim,
interpretá-lo como o grau inicial em um processo evolutivo em direção ao propriamente
moderno. Perguntamos, porém, não o que significa para a Modernidade ter em seus
fundamentos o Renascimento, mas o que significou para o Renascimento ser “abertura” de
uma época. Se quisermos responder a essa questão não podemos entender o termo “abertura”
no mesmo sentido que a ciência moderna, i. e., como início de uma série progressiva de
resultados. “Abertura” no sentido a que nos referimos têm o caráter de “estar nos
fundamentos” e “ser possibilidade de”, entretanto, estar nos fundamentos não quer dizer ser o
mesmo em um grau diferente.
Dissemos até agora, através da interpretação do texto de Heidegger, que a ciência é
uma investigação garantida através do procedimento e do avançar em direção à objetivação
do ente; a garantia do avanço constante se manifesta na forma de empresa científica. Para a
ciência, entendida como investigação e, consequentemente, para a modernidade, “a natureza e
a história tornam-se em objecto do representar explicativo” (Ibid, p. 109). Re-presentar (Vor-
stellen) significa, segundo Heidegger, ter “como objectivo trazer para diante de si qualquer
ente, de tal modo que o homem calculador possa estar seguro do ente, isto é, possa estar certo
do ente” (Ibid, p. 110). Este “estar certo do ente”, característico da referência objetiva da
ciência moderna ao mundo, se funda em uma “certeza do representar” (Ibidem). A certeza do
representar, neste caso, se conquista à medida que também é conquistado o caráter de certeza
“daquele que representa” como o subjetivo capaz de captar o objetivo. Heidegger completa:
não seja tomado apenas como um dado sensível, mas seja entendido através de um projeto
perspectivo e assim caminhe para uma individuação e para uma certeza acerca daquele que
vê. Existe, a partir desta suposição, no método de Alberti e de Brunellesco, duas
características fundamentais para o desenvolvimento da concepção moderna apresentada: a)
um distanciamento do mundo como simples sensibilidade e b) um direcionamento para a
consideração do ente representável desde a perspectiva daquele que vê.
Na representação pictórica regida pelas regras da perspectiva linear, o lugar singular
representado já não possui importância por si mesmo, mas apenas enquanto está
sistematicamente relacionado com os outros lugares que compõem a cena tal como é vista de
um ponto. Esse ponto (signum) levado em consideração tanto por Brunellesco, quanto por
Alberti, na estruturação de seus projetos, é o ponto de vista daquele que vê/representa.
Fundados na certeza “daquele que vê” e do “modo como se vê”, esses pensadores puderam,
pela primeira vez, propor um projeto representativo para aquilo que é visto. O mundo sensível
está, portanto, a um passo de emancipar-se para o mundo matematicamente homogêneo, onde
um ponto não possui valor singular, mas referencial. Acontece que, no Renascimento, o
espaço é sensível àquele que vê e ambos, o que vê e o que é visto, enquanto entes criados, são
colocados em relação de igualdade através da sistematização técnica. Já na técnica moderna, a
sistematização terá o caráter de projeto prévio e oferecerá um espaço para além da simples
sensibilidade, um espaço puro e objetivo que se oferece como princípio desde um “sujeito
calculador”, isto é, capaz de racionalizar.
41
CONCLUSÃO
[…] uma questão histórica é tão diferente do propósito de ser meramente informado
historicamente de opiniões que anteriormente apareceram acerca da coisa, como da
mania de criticar essas opiniões e, através da soma das eventualmente correctas, de
entre as que existiram até agora, extrair e oferecer opiniões novas. Trata-se, pelo
contrário, de pôr em movimento o íntimo acontecer inicial desta questão a partir dos
seus traços-de-mobilidade mais simples, embora consolidados no repouso, acontecer
esse que não se encontra algures em tempos obscuros, mas que está aí, em cada
proposição, em cada opinião quotidiana, em cada aproximação em direcção às
coisas.
Isso é o mesmo que perguntar: não seria a objetividade do espaço já uma descoberta
específica de um tipo de consciência específica? Heidegger situa historicamente aquilo que
37 “¿Qué sucedería, empero, si la objetividad del espacio cósmico objetivo resultara ser
irremisiblemente el correlato de la subjetividad de una conciencia a la que resultan extrañas a las épocas que
precedieron a la edad moderna europea?”
43
38 “[…] una corpoeización de lugares que, al abrir una comarca y preservarla, mantienen reunido en
torno a si un ámbito libre que confiere a las cosas una permanencia y procura a los hombres un habitar en medio
de las cosas.
44
BIBLIOGRAFIA
Livros:
KLEIN, Robert. A Forma e o Inteligível. Trad. Cely Arema. São Paulo: Editora da USP,
1998.
KOYRÉ, Alexandre. Estudio de Historia del Pensamento Cientifico. Trad. Encarnación
Perez Sedeño y Eduardo Bustos. Madrid: Siglo XXI editores, 2006.
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PANOFSKY, Erwin. Renaissance and Renascences in Western Art. New York:
Harper&Row Publishers, 1972.
VASARI, Giorgio. The Live of the Artists. Trad. Julian Bondanella and Peter Bondanella.
New York: Oxford University Press, 1991.
WHITE, John. The Birth and Rebirth of Pictorial Space. Trad. Esther Gómez. Madrid:
Alianza Editorial, 1994.
Artigos e capítulos: