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Considerações sobre novo Marco Legal do Saneamento – Lei 14.

026 de 2020

Dentre os projetos de infraestrutura, o saneamento básico é historicamente o setor que menos


recebe investimentos há décadas. Espera-se que o marco regulatório aprovado recentemente
possa gerar benefícios para uma sociedade onde quase 35 milhões de pessoas não tem acesso
à água tratada e apenas 46% dos esgotos gerados são tratados, segundo o Sistema Nacional de
Informações sobre Saneamento (SNIS).

Contudo, a Lei 14026/2020 divide opiniões. Para economistas, as expectativas para o setor
econômico são animadoras, com maiores investimentos e geração de cerca de 700 mil empregos
diretos e indiretos nos próximos 14 anos. Além disso, aventam que a regulação nos moldes
propostos protegeria os interesses dos usuários, principalmente quanto ao controle dos preços
e à qualidade do serviço. Mas, para alguns especialistas, os serviços podem ficar mais onerosos
e há riscos de não atendimento às regiões periféricas.

Talvez o principal ganho com o marco legal seja a possibilidade de universalização dos serviços
de saneamento básico até 2033. Dispositivos como inclusão de metas de universalização em
contratos de prestação de serviços e delegação de regulação das atividades à Agência Nacional
de Águas e Saneamento Básico (ANA), se cumpridos, garantiriam o atendimento de 99% da
população com água potável e de 90%, com tratamento de esgotos. Mas resta a dúvida de como
fornecer esse tipo de serviço para comunidades em que não há capacidade de obras de
melhorias pelo poder público ou privado, em função do poder paralelo e da dificuldade de
acesso.

A resolução crônica dos problemas desse setor – que são imensuráveis – deverá ser cumprida
até 2033, podendo ser estendido para 2040. Parece um prazo longo, mas considerando o
quantitativo de obras de investimento necessárias para universalizar o setor, aparenta ser um
prazo pequeno, haja vista a dinâmica populacional dos municípios no decorrer do tempo, tendo
como exemplo, a expansão da zona oeste e demais comunidades no Rio de Janeiro.

A previsão de instituição de multa aos usuários que não se conectarem à rede de esgoto talvez
garantisse a ligação de todos os domicílios à rede. Mas cabe lembrar que segundo publicação
do IBGE em novembro de 2019, 13,5 milhões de famílias vivem em extrema pobreza o que
representa aproximadamente 6,5% da população. Estas pessoas não devem ser excluídas dos
serviços básicos de saneamento e o projeto de lei carece de maiores informações acerca dos
subsídios tarifários e não tarifários previstos para os usuários que não tenham capacidade de
pagamento suficiente para cobrir o custo integral dos serviços.

De mesmo modo, deve-se atentar para a manutenção do § 5°, art. 29 da Lei 11445 acerca da
medição individual. O governo promulgou a Lei 13.312 sobre o assunto, porém não incentiva os
edifícios e condomínios antigos a adotarem esse tipo de ação, e prevê na própria lei a
instrumentalização de contratos especiais quando houver onerosidade das melhorias em cada
ambiente. Este consumo com medição por hidrômetro para novos empreendimentos
imobiliários já se apresenta obrigatório nas legislações municipais em várias cidades brasileiras
sendo Niterói (Lei Ordinária 2856 de 2011), um dos exemplos.

Com relação à elaboração dos Planos Regionais de Saneamento Básico, os órgãos e entidades
públicas, prestadores de serviço, poderão auxiliar na elaboração, o que favorece o setor e
provavelmente acelera na elaboração dos planos, para o possível cumprimento de meta
temporal. Nesse sentido, o CRQ poderá se fazer presente no auxílio, cooperação e regularização
de empresas e profissionais do setor de forma colaborativa com o CREA. No entanto, considera-
se extenso o prazo máximo de 10 anos para revisão dos planos de saneamento básico (§ 4°, art.
19, da Lei 11445), visto que uma localidade pode mudar de forma bastante expressiva neste
período. Talvez um prazo de 5 anos seria mais adequado.

Mas, a despeito dos custos e subsídios financeiros, há de se olhar com cautela o acúmulo de
atribuições da ANA que passa a integrar o Ministério do Desenvolvimento Regional. Em adição
ao seu papel de garantir a segurança hídrica, a ANA passa a definir e organizar as normas para a
prestação dos serviços de saneamento básico no país. Certamente, a agência detém o
conhecimento necessário após estudos realizados nos últimos anos que avaliaram soluções para
as demandas de águas e a situação do esgotamento sanitário em todos os municípios.

Ademais, diante dos possíveis conflitos entre poder concedente e empresas de saneamento, a
atual diretora presidente da agência, Christianne Dias, afirma que a regulação exercida pela ANA
seria apenas uma mediação no que tange eventuais conflitos de interpretação das normas de
referência. Segundo Dias, a regulação não deve afetar competências das agências subnacionais
que continuariam a estabelecer suas tarifas e respectivas punições aos descumprimentos,
cabendo a ANA a ordenação e nivelamento da regulação no país.

Para o exercício desta regulação deve-se ponderar quais os procedimentos serão adotados com
relação ao credenciamento de técnicos e de mão de obra especializada, além dos respectivos
registros junto aos conselhos de classe. Também não está clara qual formação será exigida para
o cargo de especialista em regulação de recursos hídricos e saneamento básico. Outro fator a
ser observado é a ausência de atribuições destes profissionais na temática de resíduos sólidos,
como por exemplo: monitoramento de áreas de disposição final de resíduos sólidos;
monitoramento dos gases gerados pela disposição de resíduos sólidos; implementação e
avaliação dos instrumentos da Política Nacional de Resíduos Sólidos.

Aliás, em relação à esta matéria, ficam estabelecidos novos prazos para que as cidades encerrem
os lixões a céu aberto: até 2021 para capitais e regiões metropolitanas e até 2024 para
municípios com menos de 50 mil habitantes. Entretanto, identifica-se a ausência de menção aos
resíduos sólidos urbanos que contemplam a logística reversa de alguns itens domiciliares,
especialmente eletroeletrônicos, e atualmente os medicamentos, segundo Decreto 10388 de
05/05/2020. Outra importante omissão é a participação de cooperativas para coleta de resíduos
sólidos urbanos, através da venda de recicláveis à indústria como possível fonte de receita.

Não se estabelece, também, a obrigatoriedade de instalação, operação e manutenção de


Estações de Tratamento de Efluentes para condomínios de grande densidade populacional. A
justificativa mais simples para tal instalação é a não sobrecarga do sistema público-privado,
podendo abarcar ainda bônus no consumo global de água potável; previsão legal para utilização
interna da água de reuso; e coleta, tratamento e reuso de águas pluviais. Apesar do intento de
contribuição da ANA para articulação dos Planos Nacionais de Saneamento Básico, de Resíduos
Sólidos e de Recursos Hídricos, o tema “resíduos” requeria maior distinção.
Outro ponto obscuro na Lei é a necessidade de adoção imediata de critérios e padrões
específicos sobre lançamento de efluentes e águas de reuso que atualmente inexistem nas
Resoluções CONAMA vigentes e em legislações estaduais. De certo que o marco carece de maior
integração e participação do Ministério do Meio Ambiente, CONAMA e demais órgãos
ambientais, como fomentadores da educação ambiental e vigilantes da qualidade de vida e meio
ambiente. Adicionalmente, o marco também não menciona a participação pública ou de órgãos
científicos na instituição das normas de referência.

Neste âmbito, tomadas as devidas precauções, os ganhos podem ser potenciais. Segundo a
Organização Mundial da Saúde para cada R$1 investido em saneamento, gera-se uma economia
de R$ 4 com a prevenção de doenças causadas pela falta do serviço. O acesso à água de forma
universal pode garantir assim a diminuição de mortalidade infantil e da disseminação de
doenças endêmicas, reduzindo gastos com a saúde. E mesmo não sendo o objetivo e com um
atraso de três anos, o Brasil pode atender o sexto objetivo de desenvolvimento sustentável das
Nações Unidas, assegurando a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para
todas e todos.

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