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Elsa Ponce
Resumo:
Doutoranda em ciência política no IUPERJ - pesquisadora Argentina.
Considero este ensaio importante já que será a primeira publicação no Brasil editada, em breve, pelo grupo de
pesquisa RIZOMA da UFSC e porque ela reúne alguns elementos de uma investigação de três anos sobre o
Movimento Sem-Terra.
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Os protestos do MST se apresentam na cena social seguindo um rico repertório de ritos e
símbolos que conservam uma base performativa relativamente fixa. Nas marchas,
particularmente, isto aparece marcado pela presença de momentos que estão coordenados
antecipadamente, com o que o agir adquire um sentido de subordinação aos objetivos de cada
passeata.
Considerando apenas duas das marchas mais impactantes na opinião pública que o
Movimento organizou e protagonizou, advertiremos que elas estão sinalizadas por recursos de
diversa índole que apelam tanto à tradição religiosa como a práticas culturais menos antigas,
Nos referimos à Marcha Nacional a Brasília, que culminara em Abril de 1997, cujo lema foi
“Por Reforma Agrária, Emprego e Justiça”, e à Marcha por “Terra, Emprego e Democracia”,
ocorrida entre julho e outubro de 1990, que culminara também na capital, coordenada junto
Se bem como o próprio MST afirma as marchas não são uma novidade na história mundial,
nem menos na do país, elas se configuram como uma viagem a um centro político que a
organização considera que periodicamente deve ser interpelado quanto à questão agrária.
De modo que usamos aqui a idéia de que as práticas estéticas se oferecem como os pontos
nodais que dão significados parciais aos objetivos do protesto na medida que exercem um
jogo explicativo do ator MST em termos de diferenças com respeito a outros agentes.
A idéia revelada em entrevistas com alguns participantes é que sair de pontos diversos teve
sob o lema “Por Terra, Trabalho e Democracia”, o objetivo central foi fazer uma Consulta
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Popular sobre o projeto político que o Brasil merecia. De modo que incluiu consultas dos
marchantes junto à população de localidades por onde a marcha passava. Já a de 1997 exigia
também a punição dos responsáveis pelos assassinatos massivos cometidos um ano antes em
Eldorado de Carajás.
saques, jejuns coletivos, panfletagens e atos diversos, que podemos exemplificar em uma série
de quadros cênicos.
Cena 1
objetivo de não perturbar o trânsito. A coluna que sai de Minas Gerais com 400 marchantes
interrompe o tráfego durante quarenta minutos num ponto da estrada em sinal de protesto
Cena 2
Fevereiro 1997. Praça da Igreja Matriz de São Francisco, Minas Gerais. Ato ecumênico. Os
assentados marchantes distribuem frutas, legumes e verduras aos presentes como fariam em
Cena 3
preparou uma cerimônia para os marchantes, com direito a música, faixas, aplausos e um
“túnel” feito com uma bandeira do Brasil gigante por onde todos foram passando. No
acostamento, a inscrição feita com pedrinhas: “Dois meses de marcha, dois meses na estrada”.
chão e duas pilhas de lenha foram colocadas dentro, significando os pontos de partida e
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Episódio acontecido em fevereiro de 1997 na fazenda de São Domingos, Sandovalina, quando 1500
trabalhadores sem-terra ocuparam a propriedade e foram reprimidos violentamente por jagunços.
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chegada da marcha. Depois de aceso o rastilho de pólvora, o fogo percorre o contorno do
mapa, incendeia a primeira fogueira, que representa o Rio de Janeiro, cruza a linha que leva
Cena 4
Fevereiro de 1997. Ato na praça central de Limeira. Os marchantes queimam um boneco que
representa o ministro de Justiça Nelson Jobim, em cuja calça pode-se ler: “FHC”. No cenário
Cena 5
Outubro de 1999. Chegada a Brasília: “... foi entregue ao Armínio Fraga, que era presidente
do Banco Central, uma bandeira do Brasil. Esperto, ele agradeceu. Mas que na verdade tem
um simbolismo de mostrar que o Armínio, que é a pessoa, vamos dizer, mais sintonizada com
o governo dos Estados Unidos e com o governo dos países ricos do que com o governo
brasileiro, não do governo brasileiro, do que com a sociedade. Então, simbolicamente, deram
Cena 6
seu destino, soma-se a outros que vivem a mesma situação; empreendem uma ocupação e
bandeira do MST. Então o hino do Movimento começa a tocar. A bandeira do MST é erguida,
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Fragmento do diário da marcha da repórter Cláudia Ferreira.
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Entrevista com Sérgio Almeida – diretor do Sindicato de Engenheiros do Rio de Janeiro.
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junto com ela o morto levanta-se. De pé, crianças enfileiram-se em frente à platéia, mantendo
Cena 7
Abril de 1997. Doação de sangue no Hemocentro de Brasília porque: “estamos aqui para fazer
o gesto de doação de sangue, para dizer que o sangue serve não para ser derramado no chão, e
sim para salvar a vida... num momento em que a política faz derramamento de sangue através
vida”.5
Cena 8
Nacional, desfilam mascarados, simulando Tio Sam e as autoridades políticas, palhaços, drag
Cena 9
ideário do Movimento. Nas marchas de que nos ocupamos se ouviram gritos de: “reforma
agrária, na lei ou na marra”, “na luta do povo, ninguém se cansa”, “CUT - MST aliança pra
Outras palavras de ordem operam como práticas articulatórias com outras organizações ou
processos históricos, e se ouvem, por exemplo: “Che, Zumbi, Antônio Conselheiro, na luta
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Estes e outros fatos são narrados no livro de Christine de Alencar Chaves - A Marcha dos Sem-terra.
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Idem anterior.
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Sobre um dos elementos distintivos, o próprio MST explica:
A bandeira é vermelha porque simboliza o sangue que corre pelas veias dos sem-terra e dos
caídos na luta pela terra. É branca porque representa a busca de paz. É verde porque simboliza
tombaram na luta contra o sistema. O mapa do Brasil indica que o MST é um Movimento
nacional. O casal significa a luta da família pela terra. A foice simboliza todas as ferramentas
de trabalho.
Outro ingrediente permanente nas marchas é a musica, já que ao longo das caminhadas se
Também cabe assinalar um detalhe que o Movimento não despreza, a roupa, já que ao longo
dos percursos cada marchante dispôs de um kit que consistia de duas camisetas, boné e um
Mas o recurso mais marcante nas marchas é certamente o que denominaremos ‘ecos do
mundo religioso’, presentes nos atos ecumênicos que reúnem líderes de diversos cultos e seus
fiéis em torno de celebrações onde a reivindicação da luta pela terra é entronizada junto com
elementos que acompanham o dia-a-dia dos sem-terra. A eles se sucedem ações como a
reitera ao longo das caminhadas: a plantação de árvores em contextos diversos, como sucedeu
ocasião, o palco situado em frente ao Congresso Nacional teve como cenário 32 mastros com
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bandeiras do Movimento representando os estados do país, junto aos quais se via o mapa do
os atos de encerramento, forrado de preto, contendo o mapa do Brasil feito de grãos de cereais
com ferramentas de trabalho da terra, e frutos e legumes distribuídos no seu interior, com
substituir a idéia de “modos de atuar” (interno e externo) com que a teoria sobre movimentos
sociais aborda as formas em que os atores coletivos definem suas ações e as apresentam na
cena política. Sigo aqui a distinção de Edgar Morín sobre programa e estratégia, entendidas
como formas possíveis dessa relação entre significação e a ação que preludiam a experiência.
entre si ante um signo dado, enquanto que a estratégia se constrói no curso da ação,
É dentro desse conceito de ‘programa’ que localizamos a mística do MST, cuja função para o
Movimento é de outorgar aos militantes o fôlego necessário para a luta, e que se organiza
através de equipes de liturgia que coordenam os atos e os momentos mais significativos dos
‘estratégias’ para explicitá-la vão desde a utilização de materiais próprios da vida no campo
até praticas expressivas tomadas do campo da arte, quer dizer as formas em que a mística se
etc).
Diremos também que um eixo do ‘programa ‘do Movimento é a ocupação do espaço publico
abandonando assim o papel tradicional que a sociedade civil mobilizada lhe adjudica em geral
do espaço público que os atos rituais e simbólicos inauguram mediante as praticas expressivas
nas marchas resulta de uma inversão da relação entre as funções e os espaços em que elas se
cumprem que o MST redefine no seu discurso. De modo que, as marchas interpelam a
centralidade das instituições políticas que supostamente é possível exercer no espaço publico:
participação, democracia e etc. na medida que se apropriam de ruas, praças e sedes de órgãos
empatia dos observadores. Nos casos em questão, isto aparece claramente no teor dos
decorrer dos protestos, tal como acontecera ante os anúncios do presidente Cardoso de que
1986).
tentativa de convencer o coletivo social sobre o paradigma ao qual subscreve o sujeito MST,
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apelando a esse programa, que tem o valor de pautar os traços gerais das mobilizações e
reclamos.
De maneira que se abre uma questão: diferenciar se o que está em cena é só um jogo
expressivo dos atores que expõem o sentido lúdico que está na base da ação e que permite
orientar seus conteúdos sob um modelo não racional, ou se se trata de uma organização
Dado que a ação coletiva se impõe como uma primeira resposta a uma ordem social
vivenciada como conflitiva pelos atores, as práticas rituais, neste sentido, tomam o lugar da
Dita integração cumpre ao mesmo tempo um papel simbólico enquanto consegue traduzir em
À diferença de uma cultura política tradicionalista, o que o MST consegue eliminar na ação
base constitutiva descansa o princípio de que seus valores pretendem atingir uma
universalidade tal que qualquer cidadão se identifique com seus conteúdos. Não há ritos
Movimento. Neste sentido a figura da relação entre a terra e o trabalho é recorrente nas
encenações do protesto.
condições que são adversas no quotidiano social dos agentes, atuando como ordenadores de
um cenário social onde se vivencia a conflitividade. Neste sentido se trata do que Canclini
chamara ‘ritual de instituição’, entendido como ‘delírio bem fundado’, ou o que Bourdieu
denominara ‘ato de magia social’, já que exorta os sujeitos a assumir papéis já pautados
desejada. Seu caráter é, neste sentido, restaurador, pelo que estamos diante de um processo
Mas poderíamos afirmar também que a relação entre o programa e a estratégia se tece numa
articulação que dá coesão à ambigüidade das práticas que evidenciam as diferenças, seja entre
os próprios atores do MST, seja entre estes e outros sujeitos, ou seja, entre seus objetivos e os
interesses que lhes são adversos. Digamos que há uma racionalidade que se operativiza
autonomia da própria organização exposta mediante elementos como cartazes com consignas
que levam a marca do objetivo central da passeata, gritos de palavras de ordem que expressam
De maneira que, há matrizes que ainda que se conformam como ‘pontos nodais’ na
A autonomia opera então por trás das ‘fronteiras flexíveis’ e remete a pensar que os atos
oponente à questão ‘reforma agrária’, mas também, no repertório de ações das marchas
analisadas, a memória histórica se constitui como uma vértebra para unir um passado que se
relaciona com a luta pela terra bem como os seus símbolos mais prezados.
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O caráter restaurador dos ritos que já assinalamos expõe nas encenações das caminhadas do
MST um texto que acusa uma carência originária: terra e liberdade. Na verdade não se trata de
uma reprodução exata da experiência traumática dos agentes, senão de uma redefinição dela,
de maneira que consegue decodificar os elementos que a perpetuam, criando um novo texto
que gera participação dos observadores: indignação, réplica, rejeição, solidariedade etc.
Assim, num novo molde os fatos que ocupam um espaço e um tempo determinado na própria
história dos sem-terra e na história que reconhecem como a da luta pela terra, se postulam
como o texto com o qual se debate a legitimidade da organização e suas demandas, já que
Então, se por uma parte os atos rituais e simbólicos aparecem costurando a consciência
histórica dos sem-terra sobre sua problemática vital, isto é, a terra e o trabalho, por outra agem
Mas se por uma parte o caráter problemático da história nas encenações durante o percurso
das caminhadas não se desvincula da referência ao sujeito MST, por outra ela expõe a
desaparição do autor individual nos atos rituais e simbólicos e fortalece a imagem de que os
caminhada como uma metáfora do longo e controverso caminho que a luta pela terra impõe
tempo se mostram então como duas matrizes a serem desafiadas permanentemente para fazer
Abandonando o eixo da estética moderna, para a qual o autor das obras é o centro, os atos
rituais e simbólicos, e as artes diversas que o MST combina ao longo das suas caminhadas
constroem uma linguagem que outorga um traço inovador à ação coletiva e que consiste
menos na força da massa mobilizada e mais no vigor que adquirem as demandas, uma vez
formuladas em conjunto.
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A autoria é aqui relocalizada no coletivo que a produz e também na intersubjetividade de
quem recepta e interpreta seus conteúdos. O receptor não é aqui um público destinatário de
A autoria então é uma construção, porque nasce de uma relação entre os marchantes e sua
Também não se trata de uma obra que se pretende situar como perfeita ou coesa
socialmente. Sem público nem mercado, a estética tem a tarefa de aportar ingredientes na
politização do protesto e dos agentes que não participam do MST, mas que são testemunhas
de sua mobilização.
Mas a encenação das práticas rituais e simbólicas dos marchantes é uma estratégia enquanto
vai se aproveitando dos dados da realidade da luta pela terra no imediato, por exemplo, das
reações do governo frente às próprias marchas, de maneira que seu caráter passa do criativo
sociedade.
Por outra parte o caráter programático dos atos rituais e simbólicos está embutido num
conceito mais amplo de política que envolve a idéia de ‘defender e recriar a cultura popular’,
Ou seja, que não há uma coletividade que se expressa apenas reclamando reconhecimento,
senão uma identidade que se mostra como membro de uma cultura mais ampla, dando com
isso transparência às práticas que dão corpo ao protesto. A unidade de sentido que dá forma
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Em Bogo, Ademar - A Arte Como Parte da Cultura – Escritos do Coletivo Cultura do MST.
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aos atos em questão cria uma unidade na sua significação, na medida que ela se vale de
mensagens uniformes sobre os problemas chaves em torno da reforma agrária: direito a terra,
ideário político mais em longo prazo, o que revela um conhecimento específico e um modo de
Assim, quando os marchantes metaforizam sua admiração por líderes de outros movimentos
Judiciário, que impedem a punição aos atos repressivos sobre o Movimento, ou mesmo
obstaculizam o curso legal de suas reivindicações, a dimensão de suas práticas deixa de ser
Por outra parte essa passagem favorece também uma interlocução do contexto onde
acontecem as marchas, contexto esse que dá sinais de ter captado os conteúdos das cenas
quando os atores do MST recebem esses sinais que indicam a identificação ou distanciamento
que ditos agentes vivenciam com respeito aos significados do protesto. Perceber que há um
converte assim numa tática provocadora da interlocução de um contexto que é sempre suposto
como avesso à luta pela terra. É, pois a ele que se dirige. Sua participação na política não está
instância mais apoteótica, como é propriamente a chegada a Brasília no caso das duas
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marchas. Essa é a culminação do glamour político do MST nas suas caminhadas: uma massa
que adere aos reclamos e que delibera em torno dos seus princípios, e que por isso mesmo se
converte em fonte de pressão aos poderes com que o Movimento se debate em torno da
questão agrária.
percurso das caminhadas dá uma densidade política ao protesto, que consegue atingir a
atenção dos poderes públicos, pois ela evidencia uma mesma demanda através de várias