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CAMINHANTES FAZENDO CAMINHOS

Elsa Ponce

Resumo:

Um problema central no debate sobre movimentos sociais contemporâneos é a relação entre a


estética e a política na constituição do protesto. Inscritos nesse marco, nos interessa aqui
mostrar alguns traços presentes no cenário de algumas passeatas do MST que contribuem a
radicalizá-lo, na medida que operam como identificadores da conflitividade social.
Tomando como alvo alguns sinais presentes nas marchas nacionais que o Movimento fizera
desde sua criação até o presente, trata-se de mostrar como os recursos expressivos se
incorporam na mobilização política e atravessam o imaginário, vigorizando as posições
adversas e favoráveis aos objetivos do Movimento. Quer dizer, atuam como prelúdios de uma
reflexividade coletiva que permite dar ao protesto uma visibilidade diferenciada.
O simbólico se faz presente em todas as transversalidades do agir coletivo do MST como
ferramenta eficaz no aprofundamento do sentido dos seus objetivos.

Palavras-chave: simbólico - imaginário - visibilidade diferenciada.


Doutoranda em ciência política no IUPERJ - pesquisadora Argentina.
Considero este ensaio importante já que será a primeira publicação no Brasil editada, em breve, pelo grupo de
pesquisa RIZOMA da UFSC e porque ela reúne alguns elementos de uma investigação de três anos sobre o
Movimento Sem-Terra.
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Os protestos do MST se apresentam na cena social seguindo um rico repertório de ritos e

símbolos que conservam uma base performativa relativamente fixa. Nas marchas,

particularmente, isto aparece marcado pela presença de momentos que estão coordenados

antecipadamente, com o que o agir adquire um sentido de subordinação aos objetivos de cada

passeata.

Considerando apenas duas das marchas mais impactantes na opinião pública que o

Movimento organizou e protagonizou, advertiremos que elas estão sinalizadas por recursos de

diversa índole que apelam tanto à tradição religiosa como a práticas culturais menos antigas,

reforçadas por elementos artísticos múltiplos.

Nos referimos à Marcha Nacional a Brasília, que culminara em Abril de 1997, cujo lema foi

“Por Reforma Agrária, Emprego e Justiça”, e à Marcha por “Terra, Emprego e Democracia”,

ocorrida entre julho e outubro de 1990, que culminara também na capital, coordenada junto

com a Central de Movimentos Populares (CMP), a CUT, a CNBB, o MPA (Movimento de

Pequenos Agricultores) e a MMTR (Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais),

denominada “Marcha Popular Pelo Brasil”.

Se bem como o próprio MST afirma as marchas não são uma novidade na história mundial,

nem menos na do país, elas se configuram como uma viagem a um centro político que a

organização considera que periodicamente deve ser interpelado quanto à questão agrária.

De modo que usamos aqui a idéia de que as práticas estéticas se oferecem como os pontos

nodais que dão significados parciais aos objetivos do protesto na medida que exercem um

jogo explicativo do ator MST em termos de diferenças com respeito a outros agentes.

A idéia revelada em entrevistas com alguns participantes é que sair de pontos diversos teve

como objetivo mostrar a extensão do problema agrário no país, reunindo acampados,

assentados, simpatizantes e organizações de todos os estados. No caso da Marcha de 1990,

sob o lema “Por Terra, Trabalho e Democracia”, o objetivo central foi fazer uma Consulta
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Popular sobre o projeto político que o Brasil merecia. De modo que incluiu consultas dos

marchantes junto à população de localidades por onde a marcha passava. Já a de 1997 exigia

também a punição dos responsáveis pelos assassinatos massivos cometidos um ano antes em

Eldorado de Carajás.

O conjunto de atividades programadas ao longo das caminhadas incluiu acampamentos na

beira das estradas e em praças públicas, ocupações de terras e instituições governamentais,

saques, jejuns coletivos, panfletagens e atos diversos, que podemos exemplificar em uma série

de quadros cênicos.

Cena 1

17 de Fevereiro de 1997. Os marchantes avançam em fileiras de quatro pessoas, com o

objetivo de não perturbar o trânsito. A coluna que sai de Minas Gerais com 400 marchantes

interrompe o tráfego durante quarenta minutos num ponto da estrada em sinal de protesto

contra a repressão ocorrida na ocupação da fazenda São Domingos.1

Cena 2

Fevereiro 1997. Praça da Igreja Matriz de São Francisco, Minas Gerais. Ato ecumênico. Os

assentados marchantes distribuem frutas, legumes e verduras aos presentes como fariam em

diversos povoados ao longo do percurso da marcha.

Cena 3

25 de Setembro de 1999. Depois de 28 quilômetros, uma boa surpresa. A equipe da mística

preparou uma cerimônia para os marchantes, com direito a música, faixas, aplausos e um

“túnel” feito com uma bandeira do Brasil gigante por onde todos foram passando. No

acostamento, a inscrição feita com pedrinhas: “Dois meses de marcha, dois meses na estrada”.

À noite, as comemorações continuam. Um contorno imenso do mapa do Brasil foi traçado no

chão e duas pilhas de lenha foram colocadas dentro, significando os pontos de partida e

1
Episódio acontecido em fevereiro de 1997 na fazenda de São Domingos, Sandovalina, quando 1500
trabalhadores sem-terra ocuparam a propriedade e foram reprimidos violentamente por jagunços.
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chegada da marcha. Depois de aceso o rastilho de pólvora, o fogo percorre o contorno do

mapa, incendeia a primeira fogueira, que representa o Rio de Janeiro, cruza a linha que leva

até a outra pilha de lenha e acende o objetivo: Brasília 2.

Cena 4

Fevereiro de 1997. Ato na praça central de Limeira. Os marchantes queimam um boneco que

representa o ministro de Justiça Nelson Jobim, em cuja calça pode-se ler: “FHC”. No cenário

final os marchantes acendem velas e as exibem em fileiras.

Cena 5

Outubro de 1999. Chegada a Brasília: “... foi entregue ao Armínio Fraga, que era presidente

do Banco Central, uma bandeira do Brasil. Esperto, ele agradeceu. Mas que na verdade tem

um simbolismo de mostrar que o Armínio, que é a pessoa, vamos dizer, mais sintonizada com

o governo dos Estados Unidos e com o governo dos países ricos do que com o governo

brasileiro, não do governo brasileiro, do que com a sociedade. Então, simbolicamente, deram

a ele a bandeira brasileira de presente” 3.

Cena 6

Fevereiro de 1997. Encenação na Praça da Igreja Matriz de São Francisco de Assis, em

Sumaré, de “O Funeral do Lavrador”: um trabalhador rural espoliado pelo patrão, cansado de

seu destino, soma-se a outros que vivem a mesma situação; empreendem uma ocupação e

iniciam um plantio coletivo. Surgem jagunços armados, destroem o trabalho comum e

aprisionam o líder. As tentativas de negociação e resgate fracassam. O líder é morto. Ao som

da música “Funeral de um lavrador” seus companheiros aproximam-se e cobrem-no com a

bandeira do MST. Então o hino do Movimento começa a tocar. A bandeira do MST é erguida,

2
Fragmento do diário da marcha da repórter Cláudia Ferreira.
3
Entrevista com Sérgio Almeida – diretor do Sindicato de Engenheiros do Rio de Janeiro.
5
junto com ela o morto levanta-se. De pé, crianças enfileiram-se em frente à platéia, mantendo

elevada a bandeira do Movimento enquanto a execução do hino continua.4

Cena 7

Abril de 1997. Doação de sangue no Hemocentro de Brasília porque: “estamos aqui para fazer

o gesto de doação de sangue, para dizer que o sangue serve não para ser derramado no chão, e

sim para salvar a vida... num momento em que a política faz derramamento de sangue através

da competição sem freios, queremos representar o gesto de solidariedade, a significação da

vida”.5

Cena 8

Encerramento da marcha. 19 de Abril de 1997. No Grancircolar, durante o Acampamento

Nacional, desfilam mascarados, simulando Tio Sam e as autoridades políticas, palhaços, drag

queens, performistas etc.

Cena 9

Atos depois de finalizada a marcha de 1997. Em frente ao Ministério da Justiça dramatização

do massacre de Eldorado de Carajás e do assassinato do índio Jesus Galdino. Empregando

caixões e simulacros de disparos de pistolas se alude ao assassinato dos militantes, criando

uma atmosfera de lamento e dor.

Enquanto as cenas se sucedem os marchantes pronunciam palavras de ordem que sintetizam o

ideário do Movimento. Nas marchas de que nos ocupamos se ouviram gritos de: “reforma

agrária, na lei ou na marra”, “na luta do povo, ninguém se cansa”, “CUT - MST aliança pra

valer”, “reforma agrária, uma luta de todos”, “pátria livre, venceremos”.

Outras palavras de ordem operam como práticas articulatórias com outras organizações ou

processos históricos, e se ouvem, por exemplo: “Che, Zumbi, Antônio Conselheiro, na luta

por justiça nós somos companheiros”.

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Estes e outros fatos são narrados no livro de Christine de Alencar Chaves - A Marcha dos Sem-terra.
5
Idem anterior.
6
Sobre um dos elementos distintivos, o próprio MST explica:

A bandeira é vermelha porque simboliza o sangue que corre pelas veias dos sem-terra e dos

caídos na luta pela terra. É branca porque representa a busca de paz. É verde porque simboliza

a produção e ao mesmo tempo a existência de latifúndios improdutivos. É preta pelos que

tombaram na luta contra o sistema. O mapa do Brasil indica que o MST é um Movimento

nacional. O casal significa a luta da família pela terra. A foice simboliza todas as ferramentas

de trabalho.

Outro ingrediente permanente nas marchas é a musica, já que ao longo das caminhadas se

ouvem cânticos improvisados e canções do MST interpretadas pelos seus músicos.

Também cabe assinalar um detalhe que o Movimento não despreza, a roupa, já que ao longo

dos percursos cada marchante dispôs de um kit que consistia de duas camisetas, boné e um

par de chinelos. O mesmo também foi entregue a simpatizantes, população em geral e

convidados do ato final representando a integração entre o Movimento e a sociedade.

Mas o recurso mais marcante nas marchas é certamente o que denominaremos ‘ecos do

mundo religioso’, presentes nos atos ecumênicos que reúnem líderes de diversos cultos e seus

fiéis em torno de celebrações onde a reivindicação da luta pela terra é entronizada junto com

elementos que acompanham o dia-a-dia dos sem-terra. A eles se sucedem ações como a

formação de cruzes com bandeiras, a realização de Vias Sacras, a cerimônia de Lava-pés,

como ocorrera durante a quaresma na marcha de 1997, ou mesmo o preenchimento do mapa

do Brasil com cruzes que simbolizam os mortos na luta pela terra.

As referências ao valor da terra e do meio ambiente se expressam em uma atividade que se

reitera ao longo das caminhadas: a plantação de árvores em contextos diversos, como sucedeu

em frente ao Tribunal Superior de Justiça ou as que enfeitam o mapa do Brasil contendo as

árvores típicas de cada estado, durante o encerramento da caminhada em Abril de 1997. Na

ocasião, o palco situado em frente ao Congresso Nacional teve como cenário 32 mastros com
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bandeiras do Movimento representando os estados do país, junto aos quais se via o mapa do

Brasil feito com sacos de terra.

Trata-se de elementos que também se observaram no palanque elevado do Grancircolar para

os atos de encerramento, forrado de preto, contendo o mapa do Brasil feito de grãos de cereais

com ferramentas de trabalho da terra, e frutos e legumes distribuídos no seu interior, com

faixas exibindo as consignas da marcha.

O reconhecimento destes elementos é possível mediante o uso de categorias que permitem

substituir a idéia de “modos de atuar” (interno e externo) com que a teoria sobre movimentos

sociais aborda as formas em que os atores coletivos definem suas ações e as apresentam na

cena política. Sigo aqui a distinção de Edgar Morín sobre programa e estratégia, entendidas

como formas possíveis dessa relação entre significação e a ação que preludiam a experiência.

O programa se conforma de uma seqüência preestabelecida de ações que se desencadeiam

entre si ante um signo dado, enquanto que a estratégia se constrói no curso da ação,

modificando-se segundo o contexto de eventos ou a recepção dos conteúdos da ação.

É dentro desse conceito de ‘programa’ que localizamos a mística do MST, cuja função para o

Movimento é de outorgar aos militantes o fôlego necessário para a luta, e que se organiza

através de equipes de liturgia que coordenam os atos e os momentos mais significativos dos

processos de mobilização coletiva.

A demanda de reforma agrária é central e está associada sucessivamente à necessidade de

eliminar a pobreza e os males derivados dela, como a indigência de menores e a prostituição,

ao melhoramento da qualidade de vida e à segurança e moradia para todos os brasileiros. As

‘estratégias’ para explicitá-la vão desde a utilização de materiais próprios da vida no campo

até praticas expressivas tomadas do campo da arte, quer dizer as formas em que a mística se

desenvolve em cada circunstância são possíveis mercê a utilização de recursos rituais e

simbólicos conforme os momentos em que os atores se encontram (chegada a uma instituição,


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passagem por uma cidade, visita de uma figura determinada, encerramento de uma jornada,

etc).

Diremos também que um eixo do ‘programa ‘do Movimento é a ocupação do espaço publico

reconhecendo-o como âmbito onde é possível sua visibilidade como organização,

abandonando assim o papel tradicional que a sociedade civil mobilizada lhe adjudica em geral

ao sacralizá-lo e reivindicá-lo como patrimônio nacional ou histórico. Este caráter celebratício

do espaço público que os atos rituais e simbólicos inauguram mediante as praticas expressivas

nas marchas resulta de uma inversão da relação entre as funções e os espaços em que elas se

cumprem que o MST redefine no seu discurso. De modo que, as marchas interpelam a

centralidade das instituições políticas que supostamente é possível exercer no espaço publico:

participação, democracia e etc. na medida que se apropriam de ruas, praças e sedes de órgãos

públicos e lhes convertem em mediadores de suas demandas.

A ‘estratégia’ compreende dispositivos para buscar sentidos no seio da incerteza do social e

tem a capacidade de modificar o desenvolvimento da ação utilizando efeitos que mobilizem a

empatia dos observadores. Nos casos em questão, isto aparece claramente no teor dos

discursos das lideranças frente a declarações de autoridades ou práticas que dificultam o

decorrer dos protestos, tal como acontecera ante os anúncios do presidente Cardoso de que

não receberia o MST uma vez finalizada a marcha de 1997.

O programa está predeterminado na suas ações, enquanto a estratégia está em suas

finalidades. A estratégia está associada à inteligência, à perspicácia e à consciência e demanda

de numerosos automatismos, que inclusive pode-se controlar quando necessário. (Morín,

1986).

Os símbolos do Movimento, as palavras de ordem, os modos de organizar as fileiras,

compõem também o programa dos marchantes. A espinha dorsal do protesto então é a

tentativa de convencer o coletivo social sobre o paradigma ao qual subscreve o sujeito MST,
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apelando a esse programa, que tem o valor de pautar os traços gerais das mobilizações e

reclamos.

De maneira que se abre uma questão: diferenciar se o que está em cena é só um jogo

expressivo dos atores que expõem o sentido lúdico que está na base da ação e que permite

orientar seus conteúdos sob um modelo não racional, ou se se trata de uma organização

simbólica de formas em relação a um esquema hierarquizado de idéias com um caráter

instrumental, ou seja, orientada a fins.

Dado que a ação coletiva se impõe como uma primeira resposta a uma ordem social

vivenciada como conflitiva pelos atores, as práticas rituais, neste sentido, tomam o lugar da

socialização, já que integram ao conjunto do protesto agentes externos ao próprio coletivo.

Dita integração cumpre ao mesmo tempo um papel simbólico enquanto consegue traduzir em

interesse de um conjunto mais amplo seu reclamo.

À diferença de uma cultura política tradicionalista, o que o MST consegue eliminar na ação

coletiva é a diferença entre incluídos e excluídos da organização, precisamente porque na sua

base constitutiva descansa o princípio de que seus valores pretendem atingir uma

universalidade tal que qualquer cidadão se identifique com seus conteúdos. Não há ritos

exclusivos dos militantes, senão em termos de sublinhar os ideais fundacionais do

Movimento. Neste sentido a figura da relação entre a terra e o trabalho é recorrente nas

encenações do protesto.

Quer dizer, os rituais ocupam, na dimensão simbólica, o lugar do assinalamento daquelas

condições que são adversas no quotidiano social dos agentes, atuando como ordenadores de

um cenário social onde se vivencia a conflitividade. Neste sentido se trata do que Canclini

chamara ‘ritual de instituição’, entendido como ‘delírio bem fundado’, ou o que Bourdieu

denominara ‘ato de magia social’, já que exorta os sujeitos a assumir papéis já pautados

socialmente que teriam sofrido um deslocamento na realidade por obra do conflito.


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As práticas rituais então tem a tarefa de corrigir imaginariamente uma ordem perdida ou

desejada. Seu caráter é, neste sentido, restaurador, pelo que estamos diante de um processo

semiótico, ou seja, de reconstrução de sentido do social que se completa com um

fortalecimento do sentido da política, na medida que outros agentes se aproximam

identificando-se ou distanciando-se das demandas do ator mobilizado.

Mas poderíamos afirmar também que a relação entre o programa e a estratégia se tece numa

articulação que dá coesão à ambigüidade das práticas que evidenciam as diferenças, seja entre

os próprios atores do MST, seja entre estes e outros sujeitos, ou seja, entre seus objetivos e os

interesses que lhes são adversos. Digamos que há uma racionalidade que se operativiza

através dos ritos e dos símbolos para reforçar a eficácia da mobilização.

Entendemos que estes recursos operam em um duplo sentido. Primeiramente mostrando a

autonomia da própria organização exposta mediante elementos como cartazes com consignas

que levam a marca do objetivo central da passeata, gritos de palavras de ordem que expressam

os ideais do Movimento e roupas identificatórias da organização. Em segundo lugar

desenhando uma expansão das fronteiras identitárias, o que se evidencia na apropriação de

elementos procedentes de outros universos sociais, particularmente da arte e da religião, em

cenas como vigílias, teatralizações, músicas e etc.

De maneira que, há matrizes que ainda que se conformam como ‘pontos nodais’ na

constituição do político, dão conta de princípios de identificação dos objetivos do protesto,

tomando sentidos de práticas de outros contextos de ação.

A autonomia opera então por trás das ‘fronteiras flexíveis’ e remete a pensar que os atos

performativos do protesto em questão não servem só para indicar as contradições de um

oponente à questão ‘reforma agrária’, mas também, no repertório de ações das marchas

analisadas, a memória histórica se constitui como uma vértebra para unir um passado que se

relaciona com a luta pela terra bem como os seus símbolos mais prezados.
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O caráter restaurador dos ritos que já assinalamos expõe nas encenações das caminhadas do

MST um texto que acusa uma carência originária: terra e liberdade. Na verdade não se trata de

uma reprodução exata da experiência traumática dos agentes, senão de uma redefinição dela,

de maneira que consegue decodificar os elementos que a perpetuam, criando um novo texto

que gera participação dos observadores: indignação, réplica, rejeição, solidariedade etc.

Assim, num novo molde os fatos que ocupam um espaço e um tempo determinado na própria

história dos sem-terra e na história que reconhecem como a da luta pela terra, se postulam

como o texto com o qual se debate a legitimidade da organização e suas demandas, já que

opera como argumentação destas.

Então, se por uma parte os atos rituais e simbólicos aparecem costurando a consciência

histórica dos sem-terra sobre sua problemática vital, isto é, a terra e o trabalho, por outra agem

como intermediários entre o mundo externo ao coletivo MST e seus interesses.

Mas se por uma parte o caráter problemático da história nas encenações durante o percurso

das caminhadas não se desvincula da referência ao sujeito MST, por outra ela expõe a

desaparição do autor individual nos atos rituais e simbólicos e fortalece a imagem de que os

próprios recursos expressivos da organização são de índole coletiva, o que ressitua a

caminhada como uma metáfora do longo e controverso caminho que a luta pela terra impõe

não só em termos da geografia do país senão da própria história da organização. Espaço e

tempo se mostram então como duas matrizes a serem desafiadas permanentemente para fazer

visível a existência do Movimento e sua luta.

Abandonando o eixo da estética moderna, para a qual o autor das obras é o centro, os atos

rituais e simbólicos, e as artes diversas que o MST combina ao longo das suas caminhadas

constroem uma linguagem que outorga um traço inovador à ação coletiva e que consiste

menos na força da massa mobilizada e mais no vigor que adquirem as demandas, uma vez

formuladas em conjunto.
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A autoria é aqui relocalizada no coletivo que a produz e também na intersubjetividade de

quem recepta e interpreta seus conteúdos. O receptor não é aqui um público destinatário de

um espetáculo, senão agentes sociais cujos interesses se advertem diferenciados em relação ao

sistema democrático frente ao qual se reclama reforma agrária.

A autoria então é uma construção, porque nasce de uma relação entre os marchantes e sua

interpretação da história e da política, elaborada em instâncias prévias pelos agentes

(acampamentos, assentamentos, oficinas, escolas do Movimento).

Também não se trata de uma obra que se pretende situar como perfeita ou coesa

esteticamente, senão como um conjunto de significados que buscam ser aprovados

socialmente. Sem público nem mercado, a estética tem a tarefa de aportar ingredientes na

politização do protesto e dos agentes que não participam do MST, mas que são testemunhas

de sua mobilização.

Mas a encenação das práticas rituais e simbólicas dos marchantes é uma estratégia enquanto

vai se aproveitando dos dados da realidade da luta pela terra no imediato, por exemplo, das

reações do governo frente às próprias marchas, de maneira que seu caráter passa do criativo

ao recreativo e toma o sentido de um aperfeiçoamento do protesto em termos de seu objetivo,

isto é, a chegada à Esplanada dos Ministérios chamando a atenção de todos os setores da

sociedade.

Por outra parte o caráter programático dos atos rituais e simbólicos está embutido num

conceito mais amplo de política que envolve a idéia de ‘defender e recriar a cultura popular’,

à qual se reconhece um valor transformador da consciência dos membros do movimento. 6

Ou seja, que não há uma coletividade que se expressa apenas reclamando reconhecimento,

senão uma identidade que se mostra como membro de uma cultura mais ampla, dando com

isso transparência às práticas que dão corpo ao protesto. A unidade de sentido que dá forma

6
Em Bogo, Ademar - A Arte Como Parte da Cultura – Escritos do Coletivo Cultura do MST.
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aos atos em questão cria uma unidade na sua significação, na medida que ela se vale de

mensagens uniformes sobre os problemas chaves em torno da reforma agrária: direito a terra,

liberdade de trabalho e organização no campo e direito a obter recursos para sustentar a

sobrevivência mediante a exploração agrícola.

Mas há um território onde se criam possibilidades diversas de problematizar as demandas da

organização, o do questionamento aos poderes do Estado e suas figuras administradoras e ao

ideário político mais em longo prazo, o que revela um conhecimento específico e um modo de

elaborar os conteúdos da política com argumentos que o diferenciem de outros atores.

Assim, quando os marchantes metaforizam sua admiração por líderes de outros movimentos

ou organizações, ou quando denunciam a cumplicidade entre Poder Executivo e Poder

Judiciário, que impedem a punição aos atos repressivos sobre o Movimento, ou mesmo

obstaculizam o curso legal de suas reivindicações, a dimensão de suas práticas deixa de ser

simbólica para se configurar como cognoscitiva e ética.

Por outra parte essa passagem favorece também uma interlocução do contexto onde

acontecem as marchas, contexto esse que dá sinais de ter captado os conteúdos das cenas

desenvolvidas ao longo da trajetória estabelecida. De modo que o agir coletivo se completa

quando os atores do MST recebem esses sinais que indicam a identificação ou distanciamento

que ditos agentes vivenciam com respeito aos significados do protesto. Perceber que há um

processo no qual se identificam observadores da Marcha com os próprios marchantes permite

distinguir a intensidade de dito processo. A estética operacionalizada no protesto do MST se

converte assim numa tática provocadora da interlocução de um contexto que é sempre suposto

como avesso à luta pela terra. É, pois a ele que se dirige. Sua participação na política não está

determinada por seu questionamento ao Estado ou ao latifúndio, antes está dirigido a

sensibilizar o social que o ignora ou o desqualifica, e a convertê-lo no seu parceiro numa

instância mais apoteótica, como é propriamente a chegada a Brasília no caso das duas
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marchas. Essa é a culminação do glamour político do MST nas suas caminhadas: uma massa

que adere aos reclamos e que delibera em torno dos seus princípios, e que por isso mesmo se

converte em fonte de pressão aos poderes com que o Movimento se debate em torno da

questão agrária.

A estética operacionalizada nos atos rituais e simbólicos e recriada em atos artísticos no

percurso das caminhadas dá uma densidade política ao protesto, que consegue atingir a

atenção dos poderes públicos, pois ela evidencia uma mesma demanda através de várias

linguagens, e consegue operar como um estímulo fecundo da sensibilidade da opinião pública

na medida que apela a fontes de significação cultural já legitimadas socialmente ou

discriminadas pelo imaginário social.


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Bibliografia:

 Alencar Chaves, Christine - A Marcha Nacional dos Sem-Terra - Relume – Dumara -


Rio de Janeiro - 2000.
 Ferreira, Cláudia - Diário da Marcha Popular Pelo Brasil.
 Alvarez, Sonia; Dagnino, Evelina e Escobar, Arturo - Cultura e Política nos
Movimentos Sociais Latino-americanos - Editora UFMG - 2000.
 dos Santos, Paula; Salgado Ribeiro, Suzana e Bom Meihy, José Carlos - Vozes da
Marcha Pela Terra – Edições Loyola – 1998.
 Mançano Fernandes; Bernardo e Stedile, João Pedro – Brava Gente - Editora
Fundação Perseu Abramo - 1999.
 MST - A histórias da luta pela terra e o MST - Editora Expressão Popular – 2001.
 Melucci, Alberto - ¿ Qué hay de Nuevo en los Nuevos Movimientos Sociales? en
Laraña, E. e Gusfield, J. (editores) - Los Nuevos Movimientos Sociales - CIS
Academia – Madrid – 1994.
 Morim, Edgar: Cultura de Massas no Século XX - Ed. Brasileira do Espírito do
Tempo - 9 edição - 2000.

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