Você está na página 1de 48

SEMINÁRIO DE CURADORIA

XXIV Bienal de São Paulo:


Antropofagia e Histórias de Canibalismos
ESCOLA SÃO PAULO
SEMINÁRIO DE CURADORIA - XXIV Bienal de São Paulo:
Antropofagia e Histórias de Canibalismos
Idealização e organização: Lisette Lagnado
Convidado internacional: Pablo Lafuente
Palestrantes convidados : Renato Sztutman, Tania Rivera e Mirtes Marins de Oliveira
Mediação: Fabio Cypriano e Lisette Lagnado.

A Escola São Paulo apresenta o SEMINÁRIO DE CURADORIA - XXIV Bienal de São


Paulo: Antropofagia e Histórias de Canibalismos, com a colaboração da Central Saint
Martins da Universidade de Londres e com a editora inglesa Afterall.

O Seminário, idealizado e organizado por Lisette Lagnado (curadora do Panorama


33 do Museu de Arte Moderna de São Paulo - MAM-SP), servirá como plataforma reflexiva
para a preparação do volume temático sobre a XXIV Bienal (1998) dentro de sua prestigiada
série intitulada “Exhibition Histories”.

A XXIV Bienal tem sido objeto de pesquisa de Lagnado desde 2008, tendo publicado
um número da revista marcelina, da qual foi editora, sobre o assunto: http://pt.scribd.
com/doc/76994626/Revista-Marcelina-1 marcelina antropofágica. Juntamente com Mirtes
Marins de Oliveira, coordena o Curso de Curadoria da Escola São Paulo, sendo o Seminário
uma de suas atividades paralelas mais importantes.

A Bienal de 1998, com curadoria de Paulo Herkenhoff e também conhecida como a


Bienal da Antropofagia, tornou-se uma referência internacional no âmbito curatorial. Em
2012, a editora inglesa Afterall, junto com a Central Saint Martins, convidou Lagnado para
organizar o volume temático sobre a XXIV Bienal para a série “Exhibition Histories”. Segue
o link da série na Afterall: http://www.afterall.org/books/exhibition.histories

Pablo Lafuente, um dos editores, participará do Seminário que reunirá especialistas


em torno de duas linhas de debate: a pertinência do campo da antropologia nos estudos
culturais (e seu papel a partir do Modernismo); e os modos como a antropologia foi
tematizada na exposição.

O seminário faz parte do curso CURADORIA: História das Exposições


Seminário realizado em 13/04/2013
No periodo das 10:30 às 18:00
Sumário

Palavras de abertura
Lisette Lagnado

Introdução à conferência de Renato Sztutman


Fabio Cypriano

O retorno dos antropófagos


Renato Sztutman

Introdução à conferência de Tania Rivera


Lisette Lagnado

O Fio do Desejo: Antropofagia em Maria Martins, Lygia Clark e Louise


Bourgeois
Tania Rivera

Recepção crítica da 24ª Bienal de São Paulo: notas iniciais


Mirtes Marins de Oliveira

Lado a lado: modos de exposición (24ª Bienal de São Paulo y otras


exposiciones)
Pablo Lafuente

Biografias

3
Palavras de abertura
Lisette Lagnado

Palavras de abertura

É uma grande alegria receber vocês 2 - Depois do almoço (!!), o segundo momento
nesta casa onde, junto com Mirtes Marins de será dedicado às implicações da Psicanálise
Oliveira, estou desde março coordenando na Bienal que estamos estudando. Teremos
um Curso sobre o pensamento e a prática comnosco a Profª Tania Rivera, que oferece
curatorial, para o qual mobilizamos um como percurso a problematização do desejo,
grupo seleto de profissionais que atuam na sob a perspectiva de três mulheres: Louise
área da crítica e da pesquisa. Bourgeois, Maria Martins e Lygia Pape.

O Seminário de hoje integra essa 3 - A recepção crítica ficou a cargo da Profª


disciplina e tem o privilégio de contar com Mirtes Marins de Oliveira, sinalizando as
a presença, entre nós, de Pablo Lafuente, dificuldades de absorção da mostra tanto na
professor da Central Saint Martins e editor imprensa local como na academia.
da Afterall em Londres, que falará (em
espanhol) no final do dia. 4 - Por fim, trataremos de questões relativas
ao display museológico. Pablo Lafuente,
São tantos os aspectos a serem nosso convidado da Afterall e prof. da Central
abordados para dar conta do projeto Saint Martins de Londres, escritor, editor
curatorial da 24ª Bienal de São Paulo, que e curador, estabelece uma relação entre
poderíamos dedicar um semestre inteiro ao o conceito de contaminação, empregado
tema. Não foi fácil imaginar um leque de por Paulo Herkenhoff, e outros conceitos
contribuições que pudessem caber dentro articulados por curadores para justificar a
do formato de um único encontro. organização das obras no espaço. Falará de
“afinidade”, “migração das formas” e “zonas
Vou rapidamente expor o plano de de contato”.
trabalho dessa longa jornada que se inicia,
ciente desde já que não será possível esgotar Para concluir esta rápida apresentação
o assunto. Espero, contudo, que forneça um geral, é importante deixar claro que não
mapeamento de algumas questões a serem se trata de construir um “ismo” a partir de
tratadas no livro sobre a 24 BSP que Pablo um modelo - a 24 BSP -, mas de fortalecer
Lafuente e eu esperamos lançar em 2014. a curadoria como disciplina e forma de
pensamento que, a cada vez que se encontra
1 - Voltar às origens da antropofagia como diante da tarefa de organizar uma exposição,
ritual e perspectiva ameríndia. O Prof. inventa e coloca em prática modos distintos
Renato Sztutman nos dará o contexto de agenciamento e enunciados críticos.
necessário para pensarmos em que consiste
uma “filosofia canibal”, contrastando com
os cânones do pensamento ocidental. Nesta
mesa, contaremos com a mediação do
jornalista, crítico e Prof. da PUC-SP, Fabio
Cypriano.

4
Introdução à conferência de Renato Sztutman
Fabio Cypriano

Seminário de Curadoria – Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Mesa 1 – Antropofagia, Antropologia – idas e vindas
Conferencista: Renato Sztutman

É com grande satisfação que dou Monteiro, de 1921, que antecipa a temática
início aos trabalhos do Seminário de da Antropofagia. Ele foi realizado sete anos
Curadoria – Antropofagia e Histórias de antes do “Abaporu” (1928), de Tarsila do
Canibalismos, organizado e idealizado Amaral, e do “O Manifesto Antropófago”, de
pela curadora Lisette Lagnado, com a Oswald de Andrade.
colaboração da Central Saint Martins da
Universidade de Londres e com a editora No desenho, Vicente do Rego
inglesa Afterall, ambas representadas aqui Monteiro apresenta um índio, recostado
por Pablo Lafuente. Agradeço a presença na placidez do ócio, saboreando um fêmur.
de todos, e, especialmente, a Escola São O artista pernambucano, de acordo com
Paulo, que sedia o seminário. Walter Zanini1 , foi o primeiro modernista
brasileiro a se ocupar de forma sistemática
Cabe a mim a tarefa de mediar a com os aspectos congênitos do país, através
conferência do professor Renato Sztutman, da temática indigenista, e algumas de suas
nesta mesa denominada Antropofagia, obras chegaram a estar na 24a Bienal, como
Antropologia – idas e vindas. “Cacique sentado em tartaruga com cabeça
humana”, de 1923.
Como introdução a essa temática, e
antes de apresentar formalmente o professor “Antropófago”, contudo, veio a
Sztutman, eu gostaria de abordar dois público, pela primeira vez, apenas
pontos para reflexão dentro deste seminário, na exposição “Brasil, da Antropofagia a
que afinal é uma plataforma reflexiva para Brasília”, organizada em 2002, pelo professor
a preparação do volume temático sobre a Jorge Schwartz para o Instituto Valenciano
24ª Bienal (1998) dentro da série intitulada de Arte Moderna, e exibida, no mesmo ano,
“Exhibition Histories”, da After All. Ambas no Museu de Arte Brasileira da Faap. Digno
as questões estão associadas a temática da de nota é que, muito possivelmente,
mesa. Ambas referem-se a ausências na
24ª Bienal.
A primeira delas diz respeito ao
1. Cf Zanini, W. (1997) Vicente do Rego Monteiro. Artista e poeta.
desenho “Antropófago”, de Vicente do Rego São Paulo: Empresa das Artes/Marigo Editora. (p. 69).

5
Oswald era conhecedor desse desenho já olhares sobre a relação entre antropologia
que acompanhava a obra de Rego Monteiro, ou arte o canibalismo”.
que estava presente na Semana de 22.
Rego Monteiro foi ainda autor de um livro Assim, lembrando que mostras se
ilustrado “Legendes, croyances et talismans configuram também como ausências e
des indiens de l’Amazone”, publicado em frustações, e seminários como esse podem
Paris, em 1923, antecipando também mitos preencher algumas espaços deixados em
explorados no romance antropofágico de branco, eu passo a palavra ao Renato
Mario de Andrade, “Macunaíma”, de 1928. Sztutman, Professor do Departamento de
Em 1930, Rego Monteiro chegou a ser Antropologia da Universidade de São Paulo
convidado por Oswald para pertencer à tribo (USP).
antropófaga, mas recusa o pedido pois ele
se considera anterior ao grupo, e, portanto, Sztutman possui mestrado e doutorado
seu precursor2. em Antropologia Social pela USP, na área de
etnologia indígena., além de ter estudado
Assim, me parece que a 24a. Bienal Jornalismo na PUC-SP. É pesquisador do
deixou de abordar um aspecto de forma mais Centro de Estudos Ameríndios (CEstA)
ampla, que é a relação de Rego Monteiro e do Laboratório de Imagem e Som em
com a Antropofagia. Antropologia (LISA). Foi um dos fundadores
e coeditou, entre 1997 e 2007, a revista
A segunda ausência não é involuntária, Sexta-Feira. Sztutman publicou “Imagens-
como parece ter sido a primeira.Trata-se Transe: Perigo, Possessão e a Gênese do
do cancelamento de uma sala dedicada Cinema de Jean Rouch”, em Imagem-
à Antropologia programada para a 24a. Conhecimento: Antropologia, Cinema e
Bienal, mas que não obteve patrocínio para Outros Diálogos (Papirus, 2009).
sua realização. A sala seria organizada pela
professora Manuela Carneiro da Cunha e
seu cancelamento foi comunicado por carta
de Paulo Herkenhoff, de 28 de agosto de
1998, poucos meses antes da abertura da
exposição.

“Frustra-me (...) que a XXIV Bienal


não venha a ter essa sala, que cumpria um
papel tão importante na formulação de um
juízo crítico sobre a prática do canibalismo a
partir do conhecimento científico. Ademais,
numa perspectiva inversa, a arte serviria à
ciência”, escreveu Herkenhoff.

Ainda na carta, diz o curador:


“Frustra-me porque haverá um percurso
de etnógrafos na Bienal como o livro de
Léry, a pintura de Siqueiros e a instalação
de Bruce Nauman, sendo que Levis-Strauss
e Florestan Fernandes possibilitariam a
apresentação de um caleidoscópio de

2. Cf Schwartz, Jorge (2002). Da Antropofagia à Brasilia, 1920 –


1950. São Paulo: Cosac Naify (pág. 146).
6
O retorno dos antropófagos
Renato Sztutman

O retorno dos antropófagos3 Exterior e devolver-lhe uma nova forma.


Embora já explorada em outras vanguardas
Nessa atual revisão da 24a Bienal artísticas do começo do século XX (por
de São Paulo, a Bienal da Antropofagia, exemplo, no início dos anos 1920 com
cabe a mim, como antropólogo, trazer à Francis Picabia, criador da revista dadaísta
cena o referente etnográfico do “Manifesto “Cannibale”), Oswald extraiu a imagem
Antropófago” de Oswald de Andrade: as da devoração do homem pelo homem de
práticas antropofágicas tal como concebidas uma prática real: o ritual antropofágico
e praticadas pelas populações indígenas que dos antigos Tupi da costa brasílica (mais
habitaram (e habitam) o Brasil. Mais do que conhecidos como Tupinambá) do século
isso, pretendo evidenciar ou ainda estreitar XVI, no qual inimigos de guerra eram
as conexões entre a proposta contida no executados, tendo sua carne ingerida em
“Manifesto”, com suas proliferações na um movimentado festim. Como nos fazem
literatura e nas artes visuais, e aquela compreender estudos antropológicos que
que pode ser identificada nas metafísicas floresceram na segunda metade do século
e estéticas (artes) das populações XX, essa antropofagia não era apenas
indígenas, depois de algumas décadas de “literal”, uma vez que comer o Outro era
investigações realizadas por antropólogos, um ato investido de forte significado (como
esses incansáveis cartógrafos dos mundos bem compreendera Oswald, estamos aqui
possíveis4. longe de uma dieta): comer o Outro era
constituir-se a partir da Alteridade, a partir
No “Manifesto Antropófago” de de um Fora.
1928 o ato antropofágico se oferece
5

como metáfora, ou melhor, alegoria para o Oswald sempre manifestou interesse


processo de criação e, mais especificamente, pela antropologia e pelos textos de viajantes
para o processo de criação na arte brasileira. que versavam sobre as populações tupi-
Devorar o Outro, no caso, absorver os guarani da costa brasílica. Mas o seu
elementos culturais que vêm de fora do “primitivismo”, se assim podemos chamá-
país, é o contrário de se subordinar. Devorar lo, não incluiu – à diferença de um Mário
o Outro é criar de maneira ativa, digerir o de Andrade – as viagens ou as coleções de
objetos da cultura popular e/ou indígena6.
Embora o autor do “Manifesto” tenha lido uma
3. Agradeço ao gentil e desafiador convite de Lisette Lagnado vasta literatura antropológica, esta ainda
e Mirtes Marins de Oliveira para participar do Seminário na repousava em conceitos excessivamente
Escola São Paulo sobre a Bienal da Antropofagia. Agradeço a etnocêntricos – por exemplo, os conceitos
elas e também a Pablo Lafuente e Tânia Rivera pelos instigantes
comentários.  de “evolução” e “mentalidade pré-lógica”– e
4. No que diz respeito a esse retorno ao “referente” para pensar a quase nada dizia sobre os povos das terras
Antropofagia oswaldiana, mas sob diferentes prismas, ver textos
de dois antropólogos, o primeiro deles, especialista em populações
tupi-guarani da atualidade: Fausto, Carlos. “Cinco séculos e meio
de carne de vaca: antropofagia literal e antropologia literária”.
In: Ruffinelli, J. & Rocha, J. C. C. Antropofagia hoje? Oswald de 6. Mário de Andrade constituiu, ao lado de Lévi-Strauss e Dina
Andrade em cena. São Paulo: Realizações Editora, 2011. Calavia Dreyfus, entre 1935 e 1938, a Sociedade de Etnografia e Folclore.
Saez, Oscar. “Antropofagias comparadas” In: Sobre essa experiência, ver o trabalho recente de Luísa Valentini:
5. “Manifesto Antropófago”. In: Do Pau-Brasil à Antropofagia Um laboratório de antropologia: o encontro entre Mário de
e às utopias: Obras Completas. Rio de Janeiro: Civilização Andrade, Dina Dreyfus e Claude Lévi-Strauss (1935 e 1938).
Brasileira, 1978. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2011. 
7
baixas da América do Sul. O mundo tupi (A grande exceção a esse quadro estaria no
serve a Oswald de alegoria, mas também trabalho de Claudia Andujar – “Yanomami,
como lição (ou mesmo utopia) para o na sombra das luzes”, sobre o qual voltarei
“nosso” mundo, isto é, essa alegoria só vale ao final do ensaio. Vemos aí o trabalho
a pena se pode realmente nos afetar, nos de uma fotógrafa européia, ávida todavia
alterar. por traduzir aspectos da cosmologia e da
estética desse povo.) Não podemos esquecer
Tendo em vista essas relações entre da presença nessa mesma Bienal de outras
alegoria, utopia e referentes etnográficos, populações não-ocidentais, reconhecidas
a questão que me coloco neste texto é erroneamente por nós como “primitivas”;
a seguinte: agora que os antropólogos por exemplo, os aborígenes australianos e
deram a conhecer de maneira positiva os índios da Colúmbia Britânica, Canadá,
(lutando contra as pré-concepções, contra que se tornaram “famosos” no meio
o etnocentrismo) algumas das riquezas dos artístico ocidental por conta do fascínio
universos indígenas – estes que continuam causado pelos seus objetos rituais: as
povoados pelas imagens do canibalismo –, pinturas “abstratas” que ganharam espaço
em que medida podemos voltar a conectar no mercado da arte, no caso dos primeiros,
a Antropofagia deles com a Antropofagia e as máscaras zoomórficas tão exploradas
semeada por Oswald. Em outras palavras, pelos surrealistas, no caso dos últimos8.
meu interesse recai na discussão em
torno da atualidade de uma noção tão Para além do fenômeno da
profícua como a Antropofagia, esta que nos apreciação e da apropriação pelo mercado
possibilita tantas conexões transversais. de arte dessas artes ditas “tradicionais”
Inicio este ensaio por um breve reexame a Austrália e a América do Norte deram
da Antropofagia de Oswald e sua relação lugar já há algum tempo à nova figura
com a Antropologia de sua época para, em do “artista contemporâneo indígena”. No
seguida, passar à consideração de alguns caso da Austrália, destaque-se o lugar dos
estudos antropológicos sobre a antropofagia pintores e da intensa circulação das telas
dos povos tupi-guarani, do passado e do e instalações reavivando os antigos mapas
presente, com foco especial na obra de cosmológicos, os “dreamings”, mas também
Eduardo Viveiros de Castro. Fecho, enfim, de videoartistas nativos, como Francis
com uma discussão em torno das assim
chamadas “artes indígenas”, que aqui 8. Ver a esse respeito dois textos publicados nos Catálogos da
designo – assumindo os riscos de tamanha Bienal. O primeiro, de Jean Hubert Martin (“A religião, herética
para a arte moderna”, In: Histórias de Canibalismos), reflete
generalização – como “artes antropófagas” sobre a relação entre arte e religião, tendo em vista as pinturas
avant la lettre. dos aborígenes australianos, tradicionalmente executadas
sobre superfícies de cascas de árvores ou sobre o corpo, e mais
recentemente executadas sob as técnicas ocidentais de pintura
* acrílica sobre tela. Mais conhecidas como “dreamings” –
tradicionalmente, mapas cosmológicos que representam eventos
míticos –, essas pinturas foram nas últimas décadas, talvez por
Antes de prosseguir, gostaria de tecer um se assemelharem curiosamente aos nossos abstracionismos,
comentário relativo à Bienal da Antropofagia, incorporadas ao mercado internacional da arte, tornando-se
tendo em vista justamente esse olhar tanto também forte instrumento de luta e resistência política. O segundo
texto, de Deborah Root (“Devorando o canibal: um conto de
para a antropologia como para as artes precaução da apropriação cultural”, In: Roteiros, Roteiros,
indígenas. Sempre me intrigou a relativa Roteiros, Roteiros, Roteiros, Roteiros, Roteiros), discute a
problemática apropriação das máscaras rituais kwakiutl (povo
ausência dos povos indígenas brasileiros na do noroeste da América do Norte) pelo universo modernista,
Bienal de 19987. a começar pelos surrealistas que traziam esses objetos para o
ambiente dos museus. Imbuída de forte sentido crítico, a autora
se pergunta em que medida temos o direito de tomar esses objetos
como arte e encerrá-los em museus, uma vez que eles ganham
7. Na proposta original da Bienal da Antropofagia, estaria prevista vida nos cerimoniais. Nesse sentido, como antídoto à ideia de
uma sala destinada à antropologia voltada aos povos indígenas apropriação dessas artes pela gramática da arte ocidental, ela
brasileiros. No entanto, esta acabou sendo cancelada por ausência encontra no trabalho de artistas indígenas canadenses uma imagem
de patrocínio.  de hibridismo como resistência.
8
Jupurrula, integrante do grupo Warlpiri Media, as “mais desconhecidas” do planeta. À
que explora, entre outras coisas, relatos diferença das artes da África, da América
sobre esses mesmos “dreamings”. Como do Norte e da Oceania, permaneceram
conta Louise Neri, curadora de “Roteiros praticamente ausentes das exposições do
– Oceania: explorando, não conhecendo”, período das vanguardas. Contudo, e este é
que tomou como fio condutor a “síndrome o ponto com que concluirei este ensaio, elas
de coração nas trevas” unindo artistas carregam um forte sentido antropofágico,
australianos aborígines e não aborígenes, capaz hoje de nos reconectar de maneira
vemos nas imagens de Jupurrula (incluído original com a proposta profunda do
na Bienal de 1998) a transposição do “Manifesto Antropófago”, proposta que
discurso cosmológico do povo warlpiri para ainda não terminamos de decifrar.
a linguagem do vídeo, o que acaba por se
converter em instrumento político visando Alegoria e utopia
a denúncia de um passado de massacres
e a reivindicação territorial. No caso da Afirmar que a Antropofagia de
Colúmbia Britânica, Deborah Root define o Oswald de Andrade é alegórica não implica
novo “artista indígena” como aquele que afirmar que ela rompe com o registro do
explora hibridismos, por exemplo, o pintor conhecimento sobre povos não ocidentais.
Lawrence Paul que “joga com o fascínio dos Oswald de Andrade foi um leitor assíduo
surrealistas pelo desenho da costa noroeste tanto das fontes primárias sobre os povos
como uma forma simultaneamente de do passado como das obras de antropologia
complicar e subverter as presunções disponíveis em sua época. E essas referências
da ciência ocidental”9. Tanto Neri como podem ser encontradas tanto no “Manifesto
Root reconhecem nessas explorações e Pau Brasil”11 (de 1924) como no “Manifesto
hibridismos indígenas gestos antropofágicos Antropófago”, e também nos textos de
no sentido oswaldiano do termo, isto é, atos envergadura mais teórica, escritos décadas
que invertem a apropriação hegemônica10. depois, tais “A crise da filosofia messiânica”
(de 1951) e “A marcha das utopias” (de
Esse duplo processo, da entrada das 1966, publicação póstuma)12.
artes indígenas no ambiente e no mercado Se o “Manifesto Antropófago” oferece um
de arte (entrada sempre problemática, programa para um modo antropofágico de
uma vez que corre o risco da apropriação criação artística, esses textos posteriores
descontextualizada e da objetificação de aspiram à proposição de uma “concepção
seu caráter ritual e relacional) e da gênese de mundo”, uma filosofia propriamente
do artista indígena politizado (que reage antropofágica, baseada na síntese dialética
aos estereótipos, recusando a subordinação entre o mundo selvagem e o mundo
tanto estética como econômica), encontra- civilizado, entre o popular e o erudito, entre
se em fase muito incipiente no Brasil. a liberdade e a técnica, e que vai de encontro

Com efeito, as artes dos povos


indígenas do Brasil permanecem talvez
11. “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, idem. Este texto foi
publicado originalmente em 1924. 
12. In: Do Pau-Brasil à Antropofagia e às utopias: Obras
9. Idem, p. 184.  Completas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. Para
10. Para uma discussão sobre esses “hibridismos”, incluindo um comentário dessas obras, em especial de “A crise da filosofia
o tema da entrada no mercado de arte, tal como efetuados por messiânica”, da ver Nunes, Benedito. “Antropofagia ao alcance
“artistas contemporâneos indígenas”, australianos e norte- de todos”, idem e Oswald canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979.
americanos, ver, entre outros, os recentes estudos: Moiroux, Como conta Antonio Candido, Oswald quis inscrever “A crise...”
Sophie. “Les objets de Jimmy Durham en conversation: au défi de no concurso para docente de filosofia da Universidade de São
l’art contemporain” In: Images-Revues – Histoire, Anthropologie Paulo, mas não teve êxito por decisão do Conselho Nacional de
et théorie de l’art, v. 4, 2007 [Na web: http://imagesrevues.revues. Educação, que exigia que o candidato apresentasse diploma de
org/153]. Goldstein, Ilana. “Autoria, autenticidade e apropriação: curso superior específico da matéria. Ver “Digressão sentimental
reflexões a partir da pintura aborígene australiana”. In: Revista sobre Oswald de Andrade”. In: Vários escritos. São Paulo, Rio de
Brasileira de Ciências Sociais, v. 27, 2012. Janeiro: Duas Cidades, Ouro sobre Azul.
9
às filosofias e religiões da transcendência De encontro a essa ideia, Bachofen nega o
– intituladas “messiânicas” –, atreladas a patriarcado como forma universal sugerindo
formas políticas devedoras de um modelo a existência remota de regimes matriarcais,
patriarcal. nos quais não haveria nem despotismo nem
propriedade privada.
Os textos teóricos de Oswald
procuram desenvolver alegorias presentes A associação direta do tema do
no “Manifesto Antropófago” a partir de matriarcado com a antropofagia voltaria
temas, extraídos da antropologia de sua em uma passagem de “A crise da filosofia
época, como o “matriarcado primitivo” e a messiânica”, na qual Oswald opõe o mundo
“consciência participativa”. É preciso, antes matriarcal, em que a devoração canibal
de tudo, evitar uma leitura anacrônica costumaria ocorrer, ao mundo patriarcal, em
desses textos. Feitas as devidas ressalvas, que reinaria a subordinação, seja pela via da
é possível voltar a Oswald e reencontrar, por escravidão, seja pela via da dominação de
trás de noções antiquadas e equivocadas, classe. Oswald está certamente influenciado
a sua contribuição, considerando que ele pela leitura que Engels faz dos antropólogos
escreve não com antropólogo interessado do século XIX, o que o faz abraçar uma
em descrever outros modos de vida, mas leitura dialética que é tributária da visão
como pensador e artista, que quer extrair evolucionista, que prevê a passagem do
desses modos toda uma potência criativa e mais simples ao mais complexo. Contudo,
intelectual13. o mais interessante dessa sua leitura não
é o caráter evolutivo, mas a ideia de que a
O “matriarcado de Pindorama” – dominação – o Pai, o Um, o Estado, figuras
figura que desponta nos aforismos do de uma filosofia propriamente messiânica
“Manifesto” – há de ser lido, antes de tudo, – não é a “lei do homem”, pois podem
como alegoria, que no entanto extrai sua ser encontradas outras leis, como a “lei
matéria menos das descrições sobre os antropofágica”15. O patriarcado e suas formas
antigos Tupinambá do que de um livro nem sempre estiveram lá, tiveram de ser
do antropólogo e jurista alemão Johann instituídos com a derrocada do matriarcado.
Bachofen, sobre o suposto direito materno A subordinação tampouco pode ser pensada
no “mundo antigo”14. Em linhas gerais, como inerente ao homem, ela pode ser
Bachofen se contrapunha a teses como as negada pela devoração (pela antropofagia),
de H. Maine, outro antropólogo e jurista, que é antes de tudo o reconhecimento de
que tomava o patriarcado como forma mais uma igualdade de condições e uma liberdade
elementar da dominação, como direito constitutiva.
primordial baseado na ideia de propriedade.
Em “A marcha das utopias”, o
matriarcado aparece de maneira diferente.
Não como algo confinado ao passado, mas
13. A antropologia da segunda metade do século XX descartou
tanto a hipótese do “matriarcado primitivo”, proposta por Johann como uma utopia – não apenas sonho, mas
J. Bachofen, como a ideia de uma “consciência participativa”, sobretudo protesto. Nesse ponto, Oswald
proposta por Lucien Lévy-Bruhl. Acusou-se a confusão entre cita Lênin: “quando há contato entre o
os regimes de descendência matrilinear e a hipótese de um
governo das mulheres em algum tempo remoto – hipótese jamais sonho e a vida, tudo vai bem”. E continua,
confirmada nas pesquisas arqueológicas. Claude Lévi-Strauss, agora em suas próprias palavras: “A utopia
divisor de águas na história da antropologia, escreveu toda a
sua obra contra a ideia de uma “consciência participativa” e um
pensamento pré-lógico. Para ele, os povos ocidentais pensam
de maneira absolutamente lógica e racional. O ponto é que
precisamos alargar a Razão e compreender outras lógicas, por 15. Alexandre Nodari discorreu sobre a tópica do “direito
exemplo, a lógica das qualidades sensíveis que rege o mundo dos antropofágico”, como lançada no “Manifesto”, a partir da questão:
mitos e das classificações do mundo natural.  “como entender uma lei que, assim reduzida, parece desativar
14. Mother’s right: a study in the religious and juridical aspects of a Lei?”. “A única lei do mundo”. In: Oliveira Filho, Edson M.
gynecocracy in the ancient world. Londres: Edwin Mellen Press, Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em cena. São Paulo: É
[1961]2008. Realizações, 2011, p. 455.  
10
é sempre um sinal de inconformação e o nascimento da lógica entre nós”. Mais
um prenúncio de revolta”16. Para Oswald, importante do que a Lógica, que opera
nesse texto já um tanto distanciado da distinções claras, seria essa “consciência
ortodoxia marxista, a maior utopia seria participativa”, traduzida muitas vezes pela
a volta do tal matriarcado, desta vez sob experiência do “sagrado”. Oswald imagina o
o signo da técnica, esta que pode acabar ritual antropofágico tupinambá e o sacrifício
com a imposição do trabalho, gerador do inimigo de guerra como um ato sagrado,
de desigualdades. Ainda nas palavras de um ato de união entre o matador e sua
Oswald: “o trabalho humano conduz ao vítima. Vale a pena voltar ao Manifesto:
ócio. Fase paradisíaca do matriarcado”17. “Antropofagia. Absorção do inimigo sacro.
Aqui reencontramos a figura do ‘bárbaro Para transformá-lo em Totem”.
tecnizado” presente no “Manifesto”. Se o
matriarcado foi derrotado pelo patriarcado, A ideia lévy-bruhliana de uma
a liberdade reduzida à subordinação, “consciência participativa”, de um
caberá à técnica restituí-lo, pois a técnica “pensamento pré-lógico” conecta-se com
minimiza o trabalho e devolve ao homem a imagem do sagrado, discutida por outros
a sua liberdade. Aqui Oswald recupera a antropólogos da mesma época e apropriada
fé na técnica e na ciência própria de sua de maneira particular pelos surrealistas,
geração, mas projeta-a numa outra imagem bem como com os conceitos de instinto e
de mundo, capaz de integrar modernização pulsão, propostos por Freud. Aqui Oswald
e primitivismo e realizar a utopia entrevista faz uma leitura singular do pai da Psicanálise
por Marx em A Ideologia Alemã, na qual e seu célebre ensaio de 1913, Totem e
o homem deixaria de estar submetido tabu: transformar o Tabu em Totem é tornar
às exigências do trabalho para realizar- sagrados os instintos pré-racionais (aqueles
se enquanto ser livre. Como vemos, a que ativam a consciência participativa, a
Antropofagia de Oswald, a um só tempo arte mistura entre o humano e o não humano)
e pensamento, revela-se Alegoria e Utopia, em momentos rituais. Essa prática seria
extraindo sua potência do mundo possível cultivada pelos Tupi antropófagos, porém
dos outros. Menos que uma alegoria de nós reprimidas por nós, civilizados. Benedito
mesmos, ela se oferece como alegoria para Nunes chama a atenção para essa “leitura
nós. libertária” de Freud: em vez de tomar
primitivos como neuróticos, incapazes de
Examinemos agora a ideia de superar instintos primários, como o complexo
“consciência participativa”, extraída do de Édipo, Oswald propõe uma desrepressão
trabalho do filosofo e sociólogo Lévy- de instintos, não os incestuosos, mas sim
Bruhl, para quem o “primitivo” tomaria aqueles que promovem um retorno ao
as forças da natureza como forças estado de participação19. Nesse ponto,
humanas18. Oswald associa Lévy-Bruhl a sua Antropofagia conecta-se com algumas
Freud, ambos empenhados em uma crítica propostas dos surrealistas, empenhados
da razão canônica do Ocidente. Como também em reavivar o sagrado, em abrir as
consta no “Manifesto”: “Nunca admitimos portas do inconsciente. Sabe-se, aliás, que
muitos artistas de algum modo identificados
16. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às utopias: Obras Completas.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 200. com o surrealismo mantinham ligações
17. Idem, p. 209. com a antropologia, na universidade ou fora
18. Ver, nesse sentido, La mentalité primitive. In Lévy-Brihl,
Lucien. Primitifs. Paris: Anabet Éditions, [1922]2007. Em “A dela20.
marcha das utopias”, o próprio Oswald reconhece o caráter
problemático das reflexões de Lévy-Bruhl, mas nota como ele
revisou seus argumentos carregados etnocentrismo nas obras de 19. Benedito Nunes. Oswald canibal. São Paulo: Perspectiva,
maior maturidade, sobretudo nos escritos reunidos nos Carnets. 1979. 
Para uma discussão sobre o pensamento de Lévy-Bruhl, ver 20. Ver, a esse respeito, o artigo de James Clifford. “Sobre
Goldman, Marcio. Razão e diferença: afetividade, racionalidade e o surrealismo etnográfico” In: A experiência etnográfica:
relativismo no pensamento de Lévy-Bruhl. Rio de Janeiro: Ed. Da antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Ed. da
UFRJ/Grifo, 1994.  URFJ, 2011. Ver também a recente dissertação de Júlia Goyatá
11
No tempo das vanguardas, antropologia e muitas vezes sufocadas. Em linhas gerais,
arte uniam-se nessa busca pelo alargamento podemos distinguir duas formas indígenas
da Razão e das formas de expressão. do canibalismo: o exocanibalismo, de caráter
guerreiro, que consiste no consumo da carne
O que será criticado por Lévi-Strauss do inimigo sacrificado, e o endocanibalismo,
tendo em vista tanto Lévy-Bruhl como essas associado a cerimoniais funerários. Muitas
leituras é, no entanto, o fato de essa critica populações comiam ou ainda comem seus
da Razão resvalar em sua negação, sendo mortos; o ponto é que quem come o morto
mais importante iluminar suas regiões não é jamais um parente próximo21.
selvagens, escondidas.
Na antropologia brasileira, sobretudo
Em suma, a Antropofagia de Oswald aquela que se debruçou sobre os povos de
de Andrade projeta uma alegoria e uma língua tupi-guarani, o tema da Antropofagia
utopia: o sagrado aparece como crítica da é tão presente quanto o é no domínio
Razão, de uma Razão localizada, burguesa, das artes. Ele funda os primeiros textos
e como proposta de recuperação de algo – ainda não antropológicos no sentido
esquecido, por exemplo, a experiência da estrito – que trazem o olhar dos europeus
celebração, o sentimento de participação (portugueses, franceses, entre outros)
em mundo que volta a ser animado. Tópicas sobre os índios, como os relatos de viagens
como a “revolução caraíba”, o “matriarcado e as correspondências missionárias. No
de Pindorama” e o “bárbaro tecnizado”, Brasil, é somente com Florestan Fernandes
que povoam o “Manifesto”, não propõem que o tema ganha análise substantiva. Com
a volta a um passado ancestral, mas sim A função social da guerra na sociedade
o estabelecimento de um futuro, o futuro Tupinambá (de 1952), reflexão baseada
do “Bárbaro tecnizado” e dos hibridismos num trabalho exaustivo de cotejo das fontes
experimentais. históricas disponíveis, Florestan propunha
compreender a guerra tupi por sua função
Metafísicas antropófagas social: guerreava-se para manter coesa a
sociedade22. O sacrifício do inimigo no rito
Passemos então da alegoria e/ou antropofágico era o que selava a unidade do
utopia para a tentativa de restituir o sentido grupo, reforçando a continuidade dos vivos
indígena da Antropofagia. Isso não significa com seus ancestrais.
opor uma antropofagia simbólica a uma
antropofagia real. Pois a antropofagia real Décadas depois, a interpretação de
dos povos indígenas é no mais das vezes Florestan seria revista por Manuela Carneiro
também simbólica. Comer um outro ser da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro num
humano “literalmente” é um ato carregado artigo intitulado “Vingança e temporalidade”
de simbolismos, da mesma forma que (de 1985)23. Relendo as fontes antigas, os
um ato simbólico de devoração costuma autores criticam a abordagem funcionalista
ter conseqüências reais sobre a vida das de Florestan, propondo que a guerra não
pessoas. O canibalismo , não como dieta
mas como ética, sempre esteve presente
entre boa parte das populações indígenas 21. Para uma leitura geral sobre os canibalismos indígenas, ver:
das terras baixas da América do Sul. Fausto, Carlos. “Banquete de gente: comensalidade e canibalismo
na Amazônia. Mana (8/2), 2002. Para trabalhos etnográficos que
descrevem sistemas canibais de povos do presente, ver: Vilaça,
Com a Conquista, porém, iniciaram-se as Aparecida. Comendo como gente: formas de canibalismo wari’.
ações de Pacificação, e estas práticas foram Rio de Janeiro: UFRJ, 1992. Albert, Bruce. Temps de sang, temps
de cendres: répresentations de la maladie chez les Yanomami. Du
Sud Est (Amazonie). Tese de doutorado. Nanterre: Universidade
Paris X.
sobre as reflexões de Georges Bataille e Michel Leiris em torno 22. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 2006.
da noção de “sagrado”. Georges Bataille e Michel Leiris: a 23. In: Carneiro da Cunha, Manuela. Cultura com aspas. São
experiência do sagrado (1930-1940). São Paulo: USP, 2012. Paulo: Cosac Naify, 2009.
12
teria por finalidade a promoção de uma (Estes, aliás, sequer são devorados, depois
coesão social, tampouco a celebração de mortos sobem aos céus como Maï). Esses
de uma ancestralidade. A guerra seria, deuses são inimigos devoradores dos vivos.
diferentemente, o veículo da vingança, Poderíamos dizer que estamos diante de
ideal de todo ato guerreiro. Guerreia- um caso de canibalismo simbólico. Insisto,
se não para manter unido o grupo, mas porém, que o simbolismo é a nossa maneira
para realizar a vingança. A relação entre de tratar um problema que, para aqueles
o matador e sua vítima, relação mínima que o vivem, é perfeitamente real, pois
para o estabelecimento da vida social a alma a ser devorada não é uma mera
Tupinambá, deve ser compreendida pela representação da pessoa, mas uma parte
sua reversibilidade: o matador de hoje é ativa dela. (E, como veremos, as almas
a vitima de amanhã e, sob essa lógica, os ameríndias também têm corpos, comem e
Tupinambá se perpetuariam no tempo sob podem ser canibais).
a imagem de um espiral. Será devorado
aquele que terá devorado outros, e isso é Entre os Araweté, o inimigo é, como
uma honra. Aqui reencontramos um tema entre os Tupinambá do passado, uma figura
oswaldiano: o cativo de guerra é um ser central. Os matadores araweté quando
livre, não foge jamais de seu cativeiro, saíam da reclusão que sucede o homicídio
onde será familiarizado, trocando de nome, tinham de executar os cantos que haviam
recebendo uma esposa, participando da recebido dos inimigos mortos. Esses cantos,
vida cotidiana até o dia derradeiro do festim conta Viveiros de Castro, portavam a palavra
canibal. O cativo de guerra não é o escravo, dos inimigos. Não era jamais o matador
e a devoração, relação entre guerreiros que que cantava, mas sim o inimigo. Entre os
reconhecem mutuamente a sua glória, não é Tupinambá algo parecido acontecia: as
a subordinação, marcada pela possibilidade palavras cantadas eram sempre de outros.
de objetificação de um pelo outro. Em ambos os casos, o matador se coloca do
“ponto de vista do inimigo”, o que significa
Os anos 1980 foram marcados por que experimenta uma afecção ou um
uma profusão de estudos sobre povos devir inimigo, isto é, um estado bastante
tupi-guarani da Amazônia. Destaque- perigoso seja para ele mesmo, seja para
se, entre eles, o trabalho de Viveiros de seus parentes. Se o matador é o modelo da
Castro sobre os Araweté, povo do Ipixuna, figura masculina araweté, o devir-inimigo
sudeste do Pará24. Os Araweté são um lhe é constitutivo. Estendendo ainda mais
povo guerreiro, mas foram aos poucos o argumento, seria possível concluir que
convencidos pela Funai a “pacificar-se”. Eles o devir-outro – e não a identidade – é a
não costumavam devorar seus inimigos em marca da pessoa araweté. Comparando sua
festins antropofágicos, como o faziam os etnografia com aquela de outras populações
Tupinambá, tampouco seus mortos, como o tupi-guarani, Viveiros de Castro ilumina uma
fazem os Yanomami. No entanto, em suas ética canibal que define a pessoa tupi como
fabulações sobre o destino pós-morte da um “anti-Narciso”, em constante alteração.
pessoa, contam que uma porção da alma
humana sobe aos céus e lá é devorada por Comer o Outro seria ocupar a posição
deuses canibais, os Maï. Ao ser devorada do Outro – o inimigo, o deus e também o
essa mesma alma torna-se ela também animal. Isso não significa incorporar as
um deus. Deuses canibais são, portanto, o virtudes da vítima, como muito se pensou,
destino póstumo de todos os Araweté, em mas sim deixar-se afetar por ela, o que
especial dos grandes matadores. representa via de regra um perigo. Com
Viveiros de Castro, estamos longe tanto uma
explicação psicanalítica ou irracionalista.
24. Araweté, os deuses canibais. Rio de Janeiro: Zahar/Anpocs, O canibalismo não seria a realização de um
1986.  instinto primário tampouco a irrupção de
13
uma irracionalidade. Ele seria a realização possíveis, em outros contextos, por exemplo
de um devir-outro, baseado na lógica da no xamanismo muitas vezes associado
predação: a constituição do Eu depende à caça, em que os xamãs podem ocupar
do Outro, a fabricação da identidade e da o ponto de vista de animais ou de outros
interioridade dependem da diferença e da não-humanos associados a esse mundo
exterioridade. Nesse sentido, a antropofagia animal. Xamãs ameríndios são, com efeito,
não é nem uma dieta nem uma pulsão, mas aqueles que podem transitar por entre os
revela toda uma lógica, uma ética, uma diferentes pontos de vista, podem visitar o
ontologia – enfim, uma metafísica. mundo dos mortos, podem negociar a caça
com os donos animais, podem adentrar
Metafísicas canibais é, não por acaso, domínios subaquáticos e celestiais. Se o
o título de um livro recente de Viveiros de guerreiro araweté canta com as palavras
Castro25, no qual o que ele havia observado do inimigo, canta como um inimigo, o xamã
entre os Araweté pôde ser generalizado araweté é aquele que veicula a mensagem
para a Amazônia ou as terras baixas da dos mortos. Os xamãs ameríndios são na
América do Sul como um todo, a despeito maior parte das vezes aqueles mais aptos
das inúmeras variações que se fazem a experimentar um devir-outro – cantam as
notar nessas paisagens. Essa metafísica palavras dos outros, vêm sob os olhos dos
está baseada na ideia de que o problema outros, trocam de perspectivas, algo que é
Ser – próprio das metafísicas ocidentais – muito perigoso para não dizer mortal aos
deve ser dissolvido no problema do Devir. humanos comuns.
Canibalizar é ocupar a posição de outro. Nos
canibalismos guerreiros, ocupa-se a posição Tanto na predação como no
de inimigo, ao passo que nos canibalismos perspectivismo o que temos é o Devir,
funerários, devorar um parente distante a alteração como maneira de habitar o
(muitas vezes tido como um afim potencial) mundo, que é um mundo composto de
é ocupar o lugar deste afim, o que não muitos mundos, um “pluriverso”, para
deixa de ser um devir-outro, pois nessas tomar emprestado um termo do filósofo
paisagens a afinidade e a inimizade são William James. Tanto na predação como
figuras intercambiáveis. Em suma, todos no perspectivismo o que temos é o Devir,
esses canibalismos – e haveria muito mais a alteração como maneira de habitar o
do que dois – colocam em pauta o lugar da mundo, que é um mundo composto de
alteridade, tomando o sujeito como mera muitos mundos, um “pluriverso”, para tomar
posição. “Só me interessa o que não é meu”, emprestado um termo do filósofo William
diria Oswald de Andrade. James.

Metafísica antropófaga? Conhecer seria aí a possibilidade de trocar


de ponto de vista. Daí a importância do
O canibalismo operaria também xamanismo. Só se conhece à medida que
uma “troca de perspectivas”, o que envia se ocupa outras perspectivas, e ocupar
para outro tema importante da obra de outras perspectivas é um ato canibal.
Viveiros de Castro que é a propriedade
“perspectivista” do pensamento ameríndio26. Mais uma vez podemos traçar um
Nos canibalismos guerreiros tem lugar a paralelo com a Antropofagia oswaldiana:
troca de perspectivas entre matadores e para criar algo novo é preciso devir-outro,
vítimas. Outras trocas de perspectivas são ocupar um ponto de vista, metamorfosear-
se. Essa outra metafísica, essa des-definição
do Ser pelo Devir – possibilidade já aventada
25. Métaphysiques cannibales: lignes d’anthropologie post- em termos mais propriamente filosóficos
structuraliste. Paris: PUF, 2009. 
26. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de por Gilles Deleuze –, exige uma outra teoria
antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.  
14
do conhecimento: não aquela que se baseia próprios antropófagos. Resta agora saber
na fixidez de posições como sujeito e objeto se esse pensamento antropofágico indígena
– fixidez baseada em hierarquias – mas em pode revelar-se também no campo das
outra na qual são sempre sujeitos que se formas expressivas, isto é, se é possível
relacionam, e portanto podem devorar-se. conceber entre os antropófagos uma arte
A posição de sujeito não é uma garantia, propriamente antropófaga.
mas algo a ser ocupado. Na esteira da
dicotomia sujeito/objeto, coloca-se em Artes antropófagas
risco a dicotomia natureza/cultura. Viveiros
de Castro propõe de modo perspicaz uma Nessa última seção pretendo discutir
inversão: se para o pensamento moderno, a ideia de que essas “metafísicas canibais”
há uma só natureza ou um só mundo, para podem ganhar forma nas assim chamadas
várias culturas ou várias “visões de mundo”, artes dos povos das terras baixas da
para o pensamento ameríndio haveria América do Sul. Diferentemente de outros
múltiplas naturezas, múltiplos mundos primitivismos, a Antropofagia oswaldiana
para uma só cultura ou “visão de mundo”. não foi inspirada diretamente pelos objetos
De um lado, a diferença está na cultura, etnográficos de povos indígenas brasileiros,
na proliferação das almas (à medida que mas sim por descrições de seus rituais e
o corpo é a medida comum de todos os mitologias, descrições que não deixam de
existentes), de outro, está na natureza, sugerir imagens. Nessas últimas décadas,
na proliferação dos corpos (à medida que em que vemos florescer uma série de estudos
todos partilham uma só alma, que carece sobre formas expressivas ameríndias,
ser particularizada.) Sob esse regime poderíamos afirmar que as artes desses
perspectivista, o sujeito é uma posição povos contêm um potencial fortemente
passível de ser ocupada por todo existente, antropofágico. E isso se explicaria pelo fato
o que significa que tudo pode ser sujeito – de que, para esses povos, tudo o que possui
isto é, tudo pode ser humano –, e isso é valor artístico é concebido como tendo uma
muito perigoso, podendo levar à devoração. proveniência alheia. Arte seria aquilo que
tem origem no mundo dos inimigos, dos
O “perspectivismo” é certamente animais, dos espíritos – esses diferentes
uma metafísica ameríndia. Viveiros de domínios da Alteridade.
Castro nos apresenta uma tradução possível
desse outro mundo para o nosso mundo. Uma pergunta não deixa de ecoar:
Afinal, traduzir é conectar mundos, sem em que sentido podemos tomar objetos
que com isso esperemos atingir uma síntese e performances de povos não-ocidentais
final. Em entrevista a Luisa Elvira Belaunde como objetos e performances artísticos?
(2008), Viveiros de Castro afirma que “o Não há tempo para visitar o imenso debate
perspectivismo é a retomada da Antropofagia ocasionado por essa pergunta tampouco a
oswaldiana em outros termos”27. profusão de definições sobre o que vem a
ser afinal Arte. Nesse sentido, vou me ater
Com isso, ele coloca em conexão, à resposta dada por Alfred Gell em seu livro
revela uma afinidade entre um manifesto Art and agency28. Compactuo com ele a
artístico e um pensamento indígena. Tudo se posição de que para estender a noção de
passa como se o pensamento antropofágico, Arte a todos os povos do planeta – o que
que Oswald teria visualizado em seus últimos é, antes de tudo, uma decisão política – é
escritos, encontrasse uma inesperada e preciso afastá-la dos campos da estética
positiva conexão com o pensamento dos clássica e do simbolismo, tomando por

27. In: Sztutman, Renato (org.) Entrevistas com Eduardo Viveiros 28. Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Oxford
de Castro. Rio de Janeiro: Azougue, 2008, p. 114.  University Press, 1997. 
15
objeto de arte tudo aquilo que tem a esculpo uma flecha para produzir a sua
capacidade de provocar uma ação, tudo eficácia, desenho em um corpo para
aquilo que “faz fazer”, isto é, que possui protegê-lo de um ataque sobrenatural, canto
agência. Assim como Lévi-Strauss alargou a para tornar-me como um deus ou espírito.
Razão, democratizando-a, Gell alarga a Arte, Ornamentos não são meramente enfeites,
reintegrando-a à vida, atitude aliás bastante mas modos de potencializar um corpo, de
presente nas vanguardas modernas e na produzir nele determinadas afecções. É
arte contemporânea, em sua crítica aos possível, assim, fazer um corpo-pássaro,
espaços expositivos e à própria aura das um corpo-onça, um corpo-espírito etc. A
obras. Ao apostar na ideia de agência, Gell arte inscreve-se aqui também no campo do
reaproxima toda arte da definição de magia, devir e do corpo, e não no da representação
tecnologia baseada no princípio de eficácia, ou da alma, no campo da eficácia, e não
e não na pressuposição de uma realidade no da contemplação. Ela estaria implicada
transcendente, como é o caso da religião29. na vida, justamente porque não haveria
Objetos ou performances artísticos não separação entre arte e vida. Nesse sentido,
podem ser reduzidos nem à sua forma, nem toda arte seria uma anti-arte, arte ritual ou,
à possibilidade dada de simbolizar algo, o por que não, “arte ambiental” – em que o
que eles fariam é produzir uma realidade, acontecimento é mais importante do que a
conduzindo novamente à problematização materialidade –, para voltar à expressão de
da dicotomia real e simbólico, literal e Hélio Oiticica, esse expoente de uma outra
metafórico. arte antropófaga.

A ideia de arte como agência encontra- Voltemos todavia à proposição que


se com a definição de Gilles Deleuze e abriu esta seção: a arte indígena é no
Félix Guattari da arte como produção e mais das vezes antropófaga, celebra a
conservação de afectos30. antropofagia!

Um objeto artístico causa uma ação Em diferentes lugares, ouvimos que


sobre mim, produz afecções em mim. esses objetos ou performances “artísticos”,
Essas ideias lançam luz sobre os exemplos essas formas dotadas de eficácia, têm
indígenas e podem nos ajudar a apreciar sua origem no mundo dos inimigos, dos
suas artes. É comum, por exemplo, ouvir que animais, dos espíritos, mundos nos quais
desenhar sobre uma superfície é um modo é possível transitar mediante uma troca
de ativá-la, que fazer um objeto é conceber de perspectivas, ato arriscado que pode
um corpo vivo, que a performance de um resvalar em devoração. O cosmos é povoado
canto é a atualização de uma realidade, por espíritos canibais, comedores de almas,
e que, sinestesicamente, o que se canta afinal a noção ameríndia de alma não é
é o que é visto, desenhos e cantos sendo incorpórea. As almas têm corpos e podem
ambos “caminhos”31. A arte que tendemos a ser devoradas, mas por isso mesmo também
chamar de decorativa, como a dos padrões podem devorar. A arte seria justamente um
gráficos aplicados em diferentes suportes modo de domesticar toda essa ferocidade,
utilitários, não o seria meramente. Pinto ou pois não basta afetar-se, é preciso conservar
essas afecções, amansá-las, transformá-las
em outra coisa. Nisso reside a aproximação
29. Tendemos, curiosamente, a pensar as artes indígenas no nessas paisagens entre arte e xamanismo
campo da “religião”: “artes religiosas”, “artes cerimoniais”. Gell, (e, por conseguinte, canibalismo), pois os
surpreendemente, nos oferece a via da Magia, que é também a via xamãs são justamente esses diplomatas
da imanência.
30. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1991. de mundos, que trocam de perspectivas
31. Este ponto é especialmente abordado por Pedro Cesarino, sem se deixar aprisionar pela perspectiva
em seu estudo do xamanismo dos Marubo (povo de língua pano
da Amazônia meridional). Oniska: poética do xamanismo na dos outros e, assim, retornam ao seu
Amazônia. São Paulo: Perspectiva, 2011.  mundo trazendo parte dessa alteridade na
16
bagagem, familiarizando-a. Não por acaso, em diversos suportes (pele, cestaria,
xamãs aparecem muitas vezes aos nossos cerâmica etc.). De todo modo,esses
olhos como artistas, é na conexão entre desenhos permanecem sob a posse de
mundos que eles são levados a inventar Tulupërë, sendo referidos como “a pele da
coisas novas. Lagarta sobrenatural” (Tulupërë imilikut).
Dela provêm todos os desenhos existentes,
A ideia da arte como domesticação da que podem representar ao mesmo tempo
ferocidade de mundos outros é desenvolvida os mais diferentes seres, já que o que
por Lúcia Van Velthem em seus diversos está em jogo é justamente a potência
trabalhos sobre os Wayana, povo de língua metamórfica33.Haveria inúmeras narrativas
caribe do norte do Pará. Na apresentação míticas que falam de roubos ou saques para
do catálogo da exposição “Artes Indígenas”, se referir à origem de grafismos ou objetos.
da Mostra do Descobrimento, de 2000, Van Outro exemplo interessante é o de um tipo
Velthem afasta o senso comum de que as de padrão gráfico utilizado na fabricação de
artes indígenas são repetitivas, sem espaços flechas de ponta de tabocas, cuja origem
para inovações. A partir de um repertório diz-se remontar a um guerreiro mitológico,
supostamente finito de motivos abrir-se-ia, inimigo e cativo dos Wayana.
segundo ela, espaço para a reelaboração
incessante de padrões gráficos32. Van Velthem A imagem dos saques mitológicos
aposta portanto na criatividade desse fazer sugerem que nesses regimes não haveria
artístico, associando-a com uma certa criação ex-nihilo, mas sim experimentações
potência antropofágica. Isso porque todas constantes com criações alheias. Regimes
essas formas têm sua origem em modelos como estes exigem que se “crie um outro
alheios, cujo conhecimento é possível graças conceito de criação”. Esta é, aliás, uma
às narrativas mitológicas e ao xamanismo. sugestão de Viveiros de Castro em entrevista
Não se trata simplesmente de reproduzir a Sergio Cohn e Pedro Cesarino34: ele faz
esses modelos, mas sim de submetê-los a aí referência a uma possível conexão entre
uma constante experimentação, tornando modos indígenas e modos contemporâneos
inevitável o processo de diferenciação. de criação; por exemplo, samplers e
ferramentas para partilha de conhecimentos
Para os Wayana, conta Van Velthem, e produtos, como o Creative Commons.
os padrões gráficos ou milikut (termo
também utilizado para se referir à escrita Em ambas as pontas, rejeita-se a ideia
ensinada na escola) não são propriedade de criação absoluta, partindo sempre de
dos próprios Wayana, mas sim de seres algo já existente. Que seria, nesse sentido,
“arquetípicos”, especialmente personagens a arte xamânica senão uma combinação
míticos que podem ser materializados. Um entre criação e citação, já que nela toda
mito bastante difundido na região conta que expressão – visual, verbal ou sonora – é já
a origem desses desenhos ocorreu com a uma composição de imagens, vozes ou sons
observação da pintura de Tulupërë, Lagarta que pertencem a agentes outros? Não por
ou Sucuri sobrenatural, ser metamórfico acaso, os Araweté dizem que seus xamãs
por definição, que muda de forma ou de são como rádios, e os Yanomami dizem que
pele, oferecendo uma imagem durável para a floresta possui gravadores e amplificadores
a imortalidade. Os Wayana, acuados com o que difundem as palavras dos espíritos, com
monstro, matam-no e, então, copiam seus
incontáveis desenhos, até hoje reproduzidos
33. A ideia de uma Sucuri mitológica e sobrenatural de onde vêm
todos os desenhos reaparece em outros povos amazônicos. Ver,
a esse respeito, o livro de Els Lagrou: A fluidez da forma: arte,
alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawá).
32. “Em outros tempos e nos tempos atuais: arte indígena” In: Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. 
Catálogo “Artes Indígenas” da Mostra do Redescobrimento. São 34. In: Sztutman, Renato (org.) Entrevistas com Eduardo Viveiros
Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2000.   de Castro. Rio de Janeiro: Azougue, 2008.
17
quem seus xamãs se comunicam. Esses rituais ocorrem quando um ex-doente
resolve retribuir a cura propiciada pelos
Em vez de criação absoluta, xamãs, que visualizam, trazem para perto de
metamorfoses, desdobramentos. O próprio si e então amansam os espíritos causadores
mundo humano seria a contínua imitação da doença, compreendida como “roubo de
e atualização improvisada de modelos alma”. Para tal retribuição, os parentes do
mitológicos. Entre os Wayana, Van Velthem ex-doente têm de materializar a presença
distingue objetos cotidianos de objetos desses apapaatai através da fabricação de
rituais não pela sua natureza, mas pela máscaras e aerofones e do oferecimento
relação que mantêm com os corpos de seres de uma festa comunitária. O ex-doente
sobrenaturais. Objetos cotidianos, como torna-se, nesse contexto, dono da festa e
cestos, casas, remos, bordunas e redes, dos apapaatai, seres sobrenaturais dotados
seriam reproduções de corpos ou partes de de intencionalidade humana e ávidos pela
corpos de seres mitológicos, atualizando apropriação das almas humanas, que
sua potência. De sua parte, objetos só podem ser resgatadas pelos xamãs.
rituais, como máscaras e instrumentos Os apapaatai também são chamados
musicais, podem materializar corpos de yeruhopo, seres invisíveis, cujas “roupas
seres sobrenaturais, transformando-se em animais” só podem ser vistas pelos xamãs,
seus modelos e, por isso mesmo, devendo que os representam através de desenhos.
ser manipulados com cautela. (Ainda que (Tradicionalmente, esses desenhos são
ausente entre os Wayana, é comum entre realizados sobre objetos, mas hoje em dia,
muitas populações indígenas a presença são executados também sobre papel37).
de casas especiais em que determinados
objetos – como determinados tipos de Cada máscara, que cobre todo o corpo
flautas e máscaras –, devido à sua agência do dançarino, pode ser identificada por um ou
excessiva, são mantidos fora do campo de mais desenhos, que designam a identidade
visão de crianças e mulheres). específica do apapaatai homenageado. Não
basta vestir a máscara, é preciso dançar
Van Velthem resume a arte wayana para que os espíritos sejam ativados.
por meio da máxima “o Belo é a Fera”, isto Como sugere Aristóteles Barcelos Neto,
é, a experiência estética estaria diretamente não há aqui motivos propriamente fixos,
relacionada à ferocidade dos seres a materialização do apapaatai dependem
sobrenaturais, à dimensão da predação. da performance realizada. Como entre os
Criar seria, nesse sentido, imprimir sobre a Wayana, os desenhos de apapaatai são
superfície de corpos ou objetos as formas todos desdobramentos incessantes de um
desses seres predatórios. No entanto, toda repertório prototípico. Mais uma vez, objetos
essa ferocidade tem de ser domesticada, é artísticos, como máscaras, constituem
preciso transpor a predação em produção de um modo de capturar os espíritos e sua
coisas, mas também de pessoas e relações agência. Feitas de palha, material perecível,
adequadas35. devem ser descartadas pouco tempo após o
seu uso, pois enquanto estiverem ali terão
A relação entre arte e ferocidade fome, que pode se tornar excessiva e pôr
dos seres sobrenaturais é tematizada por em perigo todo o grupo.
outros povos indígenas, por exemplo, os
Wauja do alto Xingu, com seus sofisticados
rituais de máscaras e aerofones, todos eles 36. Faço referência aqui a dois livros pioneiros do antropólogo
materializações dos espíritos apapaatai36. e museólogo Aristóteles Barcelos Neto: A arte dos sonhos: uma
iconografia ameríndia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.

37. Como sugere Els Lagrou, a arte gráfica indígena tem


35. Van Velthem, Lúcia. O belo é a fera: a estética da predação predileção por suportes tridimensionais. “Existiria uma arte das
entre os Wayana. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.   sociedades contra o Estado” In: Revista de Antropologia, v. 54,
n.2, 2011. 
18
O sonho é, entre os Wauja e outros auxiliares na luta contra espíritos canibais,
povos, um espaço privilegiado para a visão que devoram as almas das pessoas). Xapiri
e interação com esses espíritos invisíveis. é, aliás, o termo para se referir tanto a
Sonhando, os xamãs wauja os vêem esses espíritos como aos xamãs, o que
vestidos com suas “roupas animais”, fonte indica que o xamã é de certa maneira um
dos desenhos. Em outras populações, a espírito. Como nos contam Davi Kopenawa
experiência visionária própria dos sonhos Yanomami e Bruce Albert, essas gentes-
pode ser potencializada com o consumo de espírito (xapiri thëpë) são imagens (utupë,
substâncias psicoativas, como a ayahuasca, algo que poderia ser traduzido de forma
o paricá e o toé. Peter Gow conta que entre simplificada como “duplos” ou mesmo
os Piro da Amazônia peruana a experiência “almas”) dos “ancestrais animais” (yaori),
visionária propiciada pela ayahuasca faz com imagens que só podem ser vistas sob o
que a pessoa volte ao estado fetal, estado uso da yãkoana40. Elas são – para usar
no qual se convive com a placenta, tecido uma metáfora fotográfica – o negativo do
repleto de desenhos, “duplo” que deve ser mundo humano: o dia deles é a nossa noite;
abandonado pela criança38. Aquele que morremos facilmente, eles são imortais.
bebe ayahuasca se transforma em espírito São seres minúsculos, “poeiras luminosas”
(mamanetu), ser sem corpo, mas que vê a invisíveis aos comuns. Quando “descem”,
si mesmo e aos outros espíritos sob forma aparecem aos xamãs como convidados de
corpórea. A ayahuasca, acompanhada dos grandes festas intercomunitárias. Com seus
cantos xamânicos, faz os homens verem corpos adornados e brilhantes, fazem uma
os espíritos extraindo deles uma multidão linda dança de apresentação, entoam cantos
de desenhos. Ver os desenhos é ver como que se propagam e penetram os xamãs.
espírito: eis o significado da arte piro para Não tocam jamais o chão, estão sempre
Gow. Os Piro, acrescenta Gow, associam suspendidos sobre espelhos, que refletem
a experiência visionária da ayahuasca ao brilhos e como que cegam os que o vêem41.
cinema dos brancos. As visões da ayahuasca
seriam, assim, o “cinema da floresta”: A experiência xamânica yanomami
momento de materialização de imagens é uma experiência de materialização de
que permaneciam invisíveis na experiência imagens e cantos. Mais uma vez, a analogia
ordinária. Os Piro diferenciam, no entanto, com a experiência artística se faz notar.
esse “cinema da floresta” do “cinema dos Foi sob esse espírito de analogia que
brancos”, pois se no último as imagens vêm Bruce Albert reuniu um grupo de artistas
de fora (são projetadas na tela), no primeiro internacionais para realizar uma “residência”
elas vêm de dentro (do corpo das pessoas e na aldeia Watoriki, onde vive Davi Kopenawa
dos seres da floresta): tudo se passa como e sua família. Disso resultou a exposição “O
se o interior se tornasse exterior, como se o espírito da floresta”, organizada em 2003
mundo virasse do avesso39. por Albert e Hervé Chandès na Fondation
Cartier pour l’Art Contemporain. O objetivo
Entre os Yanomami, algo parecido era promover o encontro entre xamãs
se apresentaria. Os xamãs yanomami yanomami e artistas contemporâneos,
costumam inalar a yãkoana (paricá) para provocando “livres associações” entre esses
fazer “descer” e “dançar” os espíritos diferentes processos criativos42.
xapiri. (Muitas das sessões xamânicas
estão associadas à cura de doenças, é 40. Yanomami, Davi Kopenawa & Albert, Bruce. La chute du ciel:
preciso domesticar os xapiri, tornando-os paroles d’un chaman yanomami. Paris: Plon, 2010. 
41. Para uma reflexão sobre a dificuldade de conceituar esses
espíritos e a experiência de interação com eles, ver Viveiros de
Castro, Eduardo. “A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos
38. Gow, Peter. An amazonian myth and its history. Oxford: espíritos amazônicos”. Cadernos de Campo 14/15, 2006.
Oxford University Press, 2001. 
39. Gow, Peter. “O cinema da floresta: filme, alucinação e sonho
na Amazônia”. Revista de Antropologia 38/2, 1995. 42. Ver o catálogo da exposição Yanomami: l’esprit de la forêt.
19
Duas artistas da Bienal da se apresentaria. Os xamãs yanomami
Antropofagia de 1998 participaram da costumam inalar a yãkoana (paricá) para
exposição na Fondation Cartier, com fazer “descer” e “dançar” os espíritos
trabalhos novos e antigos: Claudia Andujar xapiri. (Muitas das sessões xamânicas
e Adriana Varejão. Claudia Andujar, estão associadas à cura de doenças, é
sabemos, não apenas trabalhou com os preciso domesticar os xapiri, tornando-
Yanomami por muitas décadas como se os auxiliares na luta contra espíritos
engajou em muitas de suas lutas políticas canibais, que devoram as almas das
(notadamente pela demarcação da atual pessoas). Xapiri é, aliás, o termo para
Terra Indígena, na denuncia de massacres se referir tanto a esses espíritos como
e invasões, na construção de programas aos xamãs, o que indica que o xamã
de saúde, entre outras coisas). Mais do é de certa maneira um espírito. Como
que ninguém, ela buscou trazer para suas nos contam Davi Kopenawa Yanomami
fotografias a experiência visual e visionária e Bruce Albert, essas gentes-espírito
do xamanismo yanomami. O que acabo de (xapiri thëpë) são imagens (utupë, algo
escrever, baseado nos minuciosos relatos de que poderia ser traduzido de forma
Davi Kopenawa sobre as visões xamânicas simplificada como “duplos” ou mesmo
– povoadas por espíritos e seus espelhos – “almas”) dos “ancestrais animais”
parece ganhar plena tradução nas fotos de (yaori), imagens que só podem ser
Claudia Andujar. Luminosidade que bloqueia vistas sob o uso da yãkoana1. Elas são –
a nitidez das figuras, imagens translúcidas para usar uma metáfora fotográfica – o
que se fundem umas nas outras. Tudo isso negativo do mundo humano: o dia deles
está presente em séries como “Sonhos é a nossa noite; morremos facilmente,
yanomami” e “Yanomami, na sombra das eles são imortais. São seres minúsculos,
luzes”, esta última, a instalação que integrou “poeiras luminosas” invisíveis aos
a Bienal de 1998. comuns. Quando “descem”, aparecem
aos xamãs como convidados de grandes
À diferença de Claudia Andujar, festas intercomunitárias. Com seus
que parece acessar diretamente o mundo corpos adornados e brilhantes, fazem
xamânico, trazendo-o para a experiência uma linda dança de apresentação,
com a luz que permeia suas imagens, entoam cantos que se propagam e
Adriana Varejão incluiu na exposição da penetram os xamãs. Não tocam jamais
Fondation Cartier trabalhos realizados nos o chão, estão sempre suspendidos sobre
anos 1990 (anteriores, portanto, à estada espelhos, que refletem brilhos e como
com os Yanomami), que revelam uma que cegam os que o vêem2.
associação indireta – metafórica, poderíamos
dizer – com esse mundo. Indireta, porém A experiência xamânica yanomami
surpreendente. Dentre esses trabalhos, é uma experiência de materialização
estão alguns das séries “Proposta para uma de imagens e cantos. Mais uma vez, a
catequese” e “Terra Incógnita”. Na primeira, analogia com a experiência artística se
pinturas em azulejos trazem imagens de faz notar. Foi sob esse espírito de analogia
relíquias de mártires cristãos, do festim que Bruce Albert reuniu um grupo de
canibal tupinambá, de pedaços de corpos artistas internacionais para realizar uma
de animais de caça que se acoplam aos “residência” na aldeia Watoriki, onde
pedaços de corpos humanos. Na segunda,
pinturas acadêmicas “mutiladas”, fazem
com a tela se revele carne e a tinta, sangue. 1. Yanomami, Davi Kopenawa & Albert, Bruce. La chute du ciel:
Destaque-se aí “Comida”, de 1992, em paroles d’un chaman yanomami. Paris: Plon, 2010. 
que o corpo de uma mulher (talvez o da 2. Para uma reflexão sobre a dificuldade de conceituar esses
espíritos e a experiência de interação com eles, ver Viveiros de
própria artista) figura pendurado de ponta Castro, Eduardo. “A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos
Paris: Fondation Cartier pour l’Art Contemporain, 2003.  espíritos amazônicos”. Cadernos de Campo 14/15, 2006.
20
é recuperada aqui, agora em movimento: que é a Antropofagia, esta que “Manifesto”
o verde da floresta se torna vermelho, os Oswald de Andrade soube tão bem semear.
corpos se tornam translúcidos passando a
conter a projeção de outros corpos, uma luz
brilhante ofusca os olhos do espectador44.
Enfim, aproximamo-nos por meio de um
objeto tanto etnográfico como artístico –
o filme – de uma experiência fortemente
estética que é essa da sessão xamânica
yanomami, na qual se fundem de maneira
estonteante luz, imagem, canto, sons,
coreografia.

De maneira pouco conclusiva, gostaria


de terminar este ensaio insistindo na ideia de
que, apesar de todas as diferenças entre as
artes indígenas e as artes contemporâneas,
é possível buscar entre elas certas conexões
interessantes e plenas de potencialidade. As
“associações livres” provocadas por Bruce
Albert, e atualizadas nos diferentes projetos
acima citados, oferecem um bom começo
dessa exploração, sobretudo por implicarem
a participação indígena, não como mera
fonte de inspiração, mas como alternativa de
pensamento, ação e figuração. (A passagem
da inspiração para a alternativa, do Outro
como alegoria para o Outro como alteração
de nós mesmos é justamente o maior
desafio desse exercício de transversalidade).
Como escreveu Pedro Cesarino, “o desvio
para o alheio é uma maneira de buscar
a alma potente, a potência criativa em
estado de ebulição, o pensamento posto
constantemente em xeque”45. Se as artes
indígenas realmente desenvolvem esse seu
potencial antropofágico – materializando
essas metafísicas canibais, invocando a
metamorfose e o devir em detrimento da
identidade e do Ser, insistindo que a alma é
corpo e o corpo é carne –, isso significa que
elas bem podem nos fazer refletir sobre, e
mesmo estender essa intrigante tradição de
nossa arte moderna e contemporânea,

44. O paralelo entre a estética de Andujar e a do filme me foi


apontado pelo antropólogo Paulo Maia.
45. “Atualidade e alteridade” In: Atual: o Último Jornal da Terra,
v. 1, maio de 2009.

21
Introdução à conferência de Tania
Lisette Lagnado

Creio que nunca houve antes uma rebater o eurocentrismo? Se a Antropofagia


mostra dessa magnitude que articulasse é uma “estratégia de emancipação cultural”
para o grande público uma terminologia (nas palavras do curador), seria a reunião
extra-artística e tão específica quanto de Louise Bourgeois, Maria Martins e Lygia
“Lei do Pai”, “castração”, “tabu”, “fetiche”, Clark, um indício de outra estratégia de
“interiorização”, “pulsão”, “auto-destruição”, emancipação apresentada na 24 BSP?
junto com personagens carregados de Podemos pensar que sua escolha traduz
simbologia, tais como Ugolino, Édipo, também um partido pela Alteridade (um
Prometeu, Saturno… A pergunta dos sentidos da Antropofagia), ecoando
básica decorrente dessa constatação é: Simone de Beauvoir (O Segundo Sexo)
como toda essa terminologia foi transmitida que denuncia a posição histórica da figura
na exposição? O visitante precisava feminina a partir do paradigma masculino.
ter familiaridade com esse arsenal de
conceitos para comprender a Bienal? Ou, Considerando a presença importante
inversamente, a Bienal colaborou para de conceitos emprestados de Freud e
esclarecer a incidência do pensamento Lacan (não somente “totem” e “tabu”, mas
psicanalítico (notadamente a noção de outros), passamos para a segunda mesa,
Inconsciente) sobre a produção da arte? com a Profª e psicanalista Tania Rivera,
a fim de perceber como as três artistas
A primeira mesa hoje buscou acima, permitem, no raciocínio curatorial de
compreender o significado da Antropofagia Paulo Herkenhoff, remediar uma história de
na Antropologia. Nesta segunda etapa, paradigmas modernos sempre masculinos
a ideia é oferecer um percurso dentro da (Picasso, Duchamp, Pollock). Não por acaso
exposição concebida por Paulo Herkenhoff fiz questão de usar apenas o prenome
e sua equipe em 1998. Poderíamos pensar (Louise, Maria e Lygia) para demarcar a
em mil promenades possíveis, uma deles, diferença de tratamento que o discurso
a mais evocada, consiste em rastrear como crítico costuma estabelecer entre artistas
o conceito de “contaminação” foi posto do sexo masculino e do sexo feminino.
em prática, sobretudo no Núcleo Histórico Guardadas as singularidades de cada
daquela Bienal1. uma, seria possível identificar uma matriz
comum?
Como vimos na sessão da manhã,
o manifesto de Oswald de Andrade nos Pode uma exposição conseguir o feito
prepara para uma “revolução caraíba” e de reverter interpretações que reduziran,
um “matriarcado”. Que outros aspectos até recentemente, o trabalho dessas artistas
emblematizavam a posta em questão da a um universo apenas relevante para
sociedade patriarcal na exposição, além de circunscrever a subjetividade de artistas
mulheres a clichês (infância, informe, arte
relacional etc.)?

1. Em janeiro de 2013, a convite de Pablo Lafuente, apresentei um Em sentido inverso, quais os ganhos
seminário interno aos alunos do Curso “Historías das Exposições”,
que organiza com Lucy Steeds na Central Saint-Martins College of de interpretação que estas três artistas
Arts and Design da University of the Arts London (material inédito trouxeram para o entendimento do processo
que será objeto de uma aula no curso aqui na Escola São Paulo, no
dia 7 de junho próximo). criativo? Renato Sztutman mencionou de
22
manhã Claudia Andujar e Adriana Varejão. É respeito) se compararmos com o movimento
bom lembrar que se a imagem do cartaz da de André Breton e seus companheiros,
23 BSP, logo anterior, foi extraída da própria inimigos e rivais, na Europa. Na 24 BSP,
Louise, o cartaz da 24 BSP se baseou num a sala do pintor chileno Roberto Matta
desenho de Leonilson. ajudou a atenuar esta lacuna. Por um lado,
é compreensível que países da América
“Arte é uma garantia de sanidade” do Sul procurassem distância do Realismo
é uma inscrição de uma litografia bem fantástico que impõe um imaginário exôtico,
conhecida da Louise. Devemos ler esta primitivo, irracional. É um fator a ser levado
frase como um atestado poético contra em consideração, ainda que um cineasta da
a racionalidade burocrática do cotidiano. grandeza de Glauber Rocha não negasse
No entanto, não posso deixar de lembrar esta bagagem. Por outro lado, há cada vez
que, historicamente, uma das construções mais evidências de que falta escrever esta
simbólicas mais degradantes à integridade história a partir de uma outra perspectiva.
da mulher talvez tenha sido a relação entre
histeria (do grego hystéra, matriz) e útero2. Enfim, muito assunto. Sem mais,
Então, o terreno está minado. deixo a palavra à Tania.

Ora, em Lygia, qual o lugar da


transgressão do trauma? “O retângulo”,
escreveu em 19/1/1964, referindo-se a
Mondrian, “não satisfaz como meio de
expressão”. Passar do sentido representativo
do quadro para a “realidade viva” e para
a “possibilidade de atuar na obra” são
premissas que correspondem ao que
poderíamos chamar de “arte antropofágica”.
Eis um caminho promissor.

Meu objetivo, nesta mesa, não é


apresentar uma comunicação, mas cuidar
da mediação. Gostaria de concluir com um
último comentário, sinalizando a diferença
que existe em falar de Maria Martins hoje
(depois da magnífica publicação da editora
Cosac & Naify, da participação da artista na
documenta 13, e, em breve, da retrospectiva
que ganha no MAM-SP com curadoria de
Verônica Stigger) e a “aparição” insólita,
por assim dizer, das esculturas de Maria ao
lado de Alberto Giacometti na 24 BSP.

Na minha memória, aquilo foi um


choque estético. A questão do Surrealismo
no Brasil é muito mal tratada (nos dois
sentidos: tratado sem importância e sem

2. Cf. Wikipédia: O termo histeria foi utilizado por Hipócrates que


pensava que a causa da histeria fosse um movimento irregular de
sangue do útero para o cérebro.
23
O fio do Desejo
Antropofagia em Maria Martins, Lygia Clark
e Louise Bourgeois
Tania Rivera

Antropofagia e identidade
A antropofagia de Oswald de Andrade homens submetidos a um pai que detinha
é uma afirmação radical de abertura à todos os poderes, inclusive a posse de todas
alteridade. Ela não se reduz, porém, à ideia as mulheres. Um dia, encorajados talvez
de uma identidade capaz de encontrar e pela invenção de uma nova arma, os irmãos
assimilar outra identidade, como é muitas unem-se e assassinam o pai. Em seguida,
vezes entendida a partir do modelo do devoram-no em um grande banquete.
canibalismo praticado por alguns dentre os Arrependem-se e identificam-se com o pai
ditos “povos primitivos”. -- ou melhor, dele incorporam algo, algum
traço. Transformam-no em um totem em
A antropofagia oswaldiana parece- torno do qual organizam-se tabus. E assim
me consistir, mais fundamentalmente, nasce a sociedade dos irmãos, a fratria.
em uma crítica da própria noção de
identidade – ou seja, da concepção do Essa narrativa ficcional tem um
ser como idêntico a si mesmo e indivisível importante alcance teórico, pois permite
(in-divíduo) e, secundariamente, capaz a articulação de elementos fundamentais,
de uma relação com um outro igualmente sem que se perca de vista que toda
delimitado identitariamente. Mais do narrativa sobre as origens é mítica, tenha
que uma apropriação da tese freudiana ela pretensão religiosa ou científica. A
proposta em Totem e Tabu, acrescida de incorporação canibalística do pai da horda
uma genial mescla à “comunhão” com o primitiva marca um primeiro momento de
“inimigo valoroso” visada pelo canibalismo identificação, apontando para o fato de que
de certos indígenas brasileiros, a o sujeito se constitui de saída no campo
antropofagia oswaldiana mostra-se, assim, do Outro. Ela não constitui, porém, uma
profundamente influenciada pelo legado de identificação global e totalizante, dotando o
Freud como afirmação do sujeito dividido – filho de uma identidade conforme o modelo
outro para si mesmo. do pai morto, mas sim de algo fragmentário
que lhe fornece o traço necessário para que
O eu não se duplica, apenas, por um outros elementos venham se agregar. Após
inconsciente “primitivo”, “menos evoluído o crime fundamental do assassinato do pai
ou adaptado”, oculto e misterioso. Não terrível, perverso, algo dele ( uma parte
basta formular, com Arthur Rimbaud, que de seu corpo, no mito) será absorvido,
“Eu é um outro”. É necessário afirmar a compartilhadamente, e assim o sujeito
inquietante ideia de que eu é outros. tomará lugar em relação à lei que funda a
sociedade.
O mito freudiano de Totem e Tabu
trata da origem simultânea de tal sujeito Tal mito permite também que se
descentrado e da sociedade. No começo, afirme um ato, uma transgressão primordial
segundo a hipótese darwiniana adotada como origem primeira da lei. A constituição
pelo psicanalista, havia uma horda de do totem regula o pertencimento de
24
cada membro da fratria àquilo no qual podemos qualificar de irônica ou satírica.
se transformou o pai morto: um ideal
compartilhado. A forte ligação a esse ideal Isso se opõe, podemos dizer, à lógica
assegura a cada irmão uma posição subjetiva da colonização, se a concebermos como
e social, de um modo que podemos dizer relação de poder que constrange a uma
totalizante. O fato de o totem demandar identificação maciça com o colonizador, sob
determinados ritos e prescrições que a forma de um ideal adotado sem restrições
conformam a noção de tabu e devem ser pelo colonizado. Tomemos tal “lógica” como
reafirmados regularmente parece denunciar, ponto extremo de um leque mais nuanceado
contudo, a relativa fragilidade de tal posição de possibilidades, do qual a outra ponta
identitária. seria uma recusa ferrenha à aceitação de
tal ideal: entre esses dois pólos, teríamos
Em acréscimo, a partir deste momento não apenas diferentes graus de adoção do
mítico em que se funda a sociedade como ideal do colonizador, mas também possíveis
grupo de irmãos semelhantes, herdeiros transformações deste ideal, pela adoção
do mesmo pai e submetidos à mesma de estratégias de miscigenação que talvez
interdição de ocupar o lugar do pai, possamos qualificar, pelo menos em certos
outras identificações virão sucessivamente casos, como subversivas.
constituir o eu como uma espécie de
mosaico mais ou menos bem ajambrado. Na dialética da antropofagia, o
Várias figuras em posição equivalente modernismo brasileiro se revela portanto,
àquela do pai se apresentarão ao longo da ao mesmo tempo, como busca de uma
vida, deixando suas marcas identificatórias. identidade nacional e afirmação da
Além disso, o sujeito tenderá a se assimilar impossibilidade ou da gratuidade de tal
à compacta massa de irmãos, reforçando, caracterização identitária. Tal dialética
por identificação, sua ligação a esses outros se formula, parodicamente, no lema
semelhantes ao eu. Ele poderá, também, “tupy or not tupy, that’s the question”. O
optar por mimetizar-se especialmente a um “genuinamente” nacional só pode se formular
ou outro dentre seus semelhantes. em uma língua estrangeira, e seguindo
a tradição de Shakespeare. A identidade
O canibalismo do mítico banquete “autóctone” é assim questionada, recusando
totêmico permite que Freud enuncie a lógica do auto, para adotar aquela do
uma afirmação fundamental: o momento hetero: apenas pelo outro, através dele,
primordial de constituição do eu se dá por pode-se afirmar alguma identidade, em
introjeção, em uma identificação de base que uma estratégia retórica que performa sua
lhe serve de esteio e sobre a qual virão se constituição alteritária. Nisso desempenha
acrescentar outras identificações, ao longo um papel a multiplicidade étnica e a ampla
da vida. A antropofagia oswaldiana sublinha miscigenação que marca a história do Brasil,
e assume tal condição de modo radical. tornando difícil a clara delimitação dos
Ela recusa, portanto, a ilusão de um eu atores culturais em jogo (em contraste com
autônomo, constituído como uma mônada a situação de regiões da América Latina em
independente, que apenas em um segundo que as civilizações pré-hispânicas mativeram
momento seria capaz de se relacionar uma delimitação mais nítida e duradoura
com os outros. Assumir a apropriação em relação aos colonizadores europeus).
de traços do Outro como fundamento Nesse contexto, a proposta oswaldiana não
do eu implica uma problematizacão do é mera negação da questão da identidade,
próprio eu – e, consequentemente, da mas sim afirmação de sua problematização
dinâmica de suas ligações com os outros. O como uma marca identificatória, um traço
antropófago é aquele que toma em mãos tal fundamental, expresso magistralmente em
problematização e com isso estabelece em outro trecho do Manifesto Antropófago: “só
relação ao Outro uma certa distância, que me interessa o que não é meu”.
25
“Só me interessa o que não é meu”: tal determina no presente, ela está sempre
é a “lei do homem”, a “lei do antropófago”. E aberta a uma invenção de futuro.
também, poderíamos dizer, a lei do desejo.
No mito freudiano, a interdição excessiva “No começo era o ato”, afirma Freud2.
que o pai da horda exercia sobre seus Esse ato criminoso e antropófago deve
filhos, proibindo-lhes o acesso às mulheres, ser retomado na pré-história de cada um,
não desaparece uma vez cumprido seu marcando a necessidade de uma apropriação
assassinato, mas torna-se lei introjetada ativa do contexto em que o sujeito pode
em cada membro da sociedade de irmãos. surgir – a Lei, o pai ou a ordem simbólica,
Da privação imposta pelo pai perverso os para falar como Lacan. Como escreve
filhos passam, graças ao ato assassino, ao ainda Freud, citando o Fausto de Goethe,
desejo: articulação entre a pulsão e a lei que “o que herdastes de seus pais, adquira-o
instaura uma satisfação parcial, limitada, e para possui-lo”3 . Em uma conformação
portanto sempre capaz de relançar o desejo narrativa, que se constitui de modo sempre
em busca de outro objeto. Em busca do radicalmente singular, e recebe de Freud a
“que não é meu”. denominação geral de Complexo de Édipo,
se conjugam assim as origens “da religião,
Por isso “só a antropofagia nos da moralidade, da sociedade” e, last but
une”, como estabelece a primeira frase not least, “da arte”4 . Como explicita a
do Manifesto. Em contraste com a lógica tragédia grega, a arte seria uma maneira
da massa coesa vigiando seus tabus em de retomar tal ato primordial e lidar com
torno de um ideal inquestionado, Oswald a culpa dele decorrente. Freud limita-se
de Andrade propõe um modo de relação a indicar esse caminho, sem se debruçar
que, assumindo a antropofagia como mais longamente a respeito da questão da
uma espécie de identidade alteritária (se arte. Oswald de Andrade é o único a levá-
me permitem o oxímoro) seria aquele do lo adiante, colocando em primeiro plano a
desejo, aquele da arte. Uma vez explicitado questão da apropriação como mecanismo
o jogo identificatório que faz de mim de constituição do eu, e radicalizando a
mesmo um outro, nesse hiato entre mim articulação entre arte e antropofagia de modo
e mim mesmo pode surgir um espaço de a fazer desta uma proposta de compreensão
intersecção com o hiato que constitui o e intervenção artística e literária em geral, e
outro. Em lugar da massa coesa, afirmada especialmente no Brasil.
na semelhança ilusória entre os eus e
submetida a um líder, delineia-se assim uma Destruição do pai e problematização do
possibilidade de constuição de laços sociais eu em Louise Bourgeois
pelo descentramento, nas diferenças.
Como potência crítica da identidade e
O eu, como o Rei da fábula, de convite à alteridade, além de reflexão sobre
repente está nu e, uma vez cônscio da a própria arte, a antropofagia se espraia,
montagem precária que se oferecia a ele portanto, bem além dos limites de um tema
próprio como firme e genuíno arrimo, pode para a arte e para as ciências humanas. Nos
brincar com suas identificações de modo a debruçaremos aqui, para tentar desdobrá-
refazer os laços ao outro – e assim levar la, sobre as suas relações com o desejo e
adiante o fazer incessante da Cultura. Pois, a feminilidade, convocando especialmente
como dizia Hélio Oiticica – grande herdeiro três artistas privilegiadas pela curadoria da
de Oswald – a Cultura é “raiz-aberta”1 , ou XXIV Bienal de São Paulo: Maria Martins,
seja, a raiz estabelecida no passado só se Lygia Clark e Louise Bourgeois.

2. Sigmund Freud. Totem et Tabou. OEuvres Complètes. Seuil:


Paris, 1998, vol. XI, p. 382
1. Hélio Oiticica. Crelazer. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de 3. Ibid., p. 379.
Janeiro: Rocco, 1986, p. 116.  4. Ibid., p. 377.
26
No mito freudiano trata-se de um psicanalítico” de Bourgeois, iniciado ao
grupo de irmãos; às mulheres parece mesmo tempo que sua análise, em 1952.
destinado apenas o papel de objeto de As obras mais tardias teriam, segundo
satisfação sexual do pai ou dos irmãos. Isso ele, “mais um caráter de crítica: o par de
não significa, porém, que os seres do sexo células Red Room (Quarto Vermelho) critica
feminino não tenham que se haver com a cena originária, o Arch of Hysteria (Arco
as mesmas questões, ou seja, com o que da Histeria) critica Charcot etc”.6
chamamos Complexo de Édipo. Seria muito
longo expor em detalhes todas as nuances Mais importante do que ter algum
e considerações a que esta questão nos valor “catártico”, Destruição do Pai parece-
obriga, mas não posso deixar de ressaltar o me importante por assumir a questão do
fato de que, para a psicanálise, feminilidade banquete totêmico como propriamente
e masculinidade não se definem de saída artística, e apresentar-se como uma
pelo sexo biológico. As mulheres não estão apropriação do mito freudiano de modo
necessariamente de fora desta trupe de singular, sob o foco da filha, como vêm
irmãos assassinos; pelo contrário, elas dela confirmar muitas outras referências
fazem parte, é claro, na medida em que biográficas (ou pseudobiográficas) de
consideramos tal ato como constituinte de Louise presentes em seu trabalho. Essa
todo sujeito. Louise Bougeois parece afirmá- apropriação transformadora não deixa de
lo, ao tomar para si a indicação freudiana de carregar alguma centelha crítica, na medida
que a arte trataria de atualizar tal narrativa, em que ela não é mera citação obediente
em seu famoso trabalho A Destruição do ao mestre, mas parece-me, antes, uma
Pai, de 1974, sobre o qual faz o seguinte espécie de paródia. Louise devora e destrói
comentário. Freud. Ela não deixa declarar, inclusive, que
Lacan e Freud, assim como André Breton, a
Há uma mesa de jantar e pode-se decepcionaram, pois teriam lhe prometido
ver que acontecem vários tipos de coisas. O muitas coisas, mas nada lhe teriam dado.
pai está se pronunciando, dizendo à plateia
cativa como ele é ótimo, todas as coisas O recurso da artista à psicanálise,
maravilhosas que fez, todas as más pessoas comumente aceito como elemento inato
que prendeu hoje. Mas isso acontece dia – se não uma espécie de “prova” – de
após dia. Uma espécie de ressentimento uma proposta radicalmente “subjetivista”,
cresce nas crianças. Chega o dia em que parece-me antes uma sutil porém vigorosa
elas se irritam. Há tragédia no ar. Ele já fez maneira de pôr em questão a própria
demais esse discurso. possibilidade de afirmação de um eu em
As crianças o agarram e o põem sobre a uma obra de arte.
mesa. E ele se torna a comida. Elas o
dividem, o desmembram e o comem. E Louise não economiza referências
assim ele é liquidado5. à própria história de infância, e constrói
cuidadosamente uma espécie de
Ficção sobre ficção, fabulação sobre personagem de si mesma, constantemente
mito, a referência da artista à psicanálise se reafirmada. Porém, identificar totalmente tal
dá como citação quase literal, neste caso. personagem à artista e tomar literalmente
Para Phillip Larrat-Smith, a “realização suas histórias biográficas, seja qual for o grau
catártica” deste trabalho fecharia o “período de fidelidade à vida que elas apresentam, é
fechar os olhos à reflexão que seu trabalho

5. Louise Bourgeois, Marie-Laure Bernadac e Hans-Ulrich Obrist.


Louise Bourgeois. Destruição do pai. Reconstrução do Pai. 6. Philip Larrat-Smith. Introdução: A Escultura como Sintoma.
Escritos e Entrevistas 1923-1997. São Paulo: Cosac & Naify, Louise Bourgeois: O Retorno do Desejo Proibido. São Paulo:
2000, p. 115.  Instituto Tomie Ohtake, 2011, p. 19. 
27
artístico realiza, nele mesmo, a respeito é verdade na medida em que a artista
da questão da identidade. Esta é desfeita faz da memória uma desmemória. Trata-
e explorada como múltipla e distorcida, se não de ausência de memória, mas sim
como por exemplo em Cell XXIV (Retrato, da lembrança de algo que se assume como
2001). Nesta “célula”, rostos duplos são não-recordação. “Tive um flashback de
costurados em trio e disseminam-se em algo que nunca existiu”9 , diz Bourgeois em
inúmeros pontos de vista graças a dois um livro feito artesanalmente em tecido
espelhos duplos, fazendo ângulo, na parte e sugestivamente chamado Ode à l’Oubli
inferior da caixa. Onde está a imagem, o (Ode ao Esquecimento), de 2002.
reflexo “correto”? Onde localizar aí alguma
identidade? Em tal trabalho de desmemória/
ficção, constrói-se um certo retrato de si,
A presença inegável do sujeito na em muitas esculturas e instalações de Louise
obra de Louise localiza-se mais em tais Bourgeois. Há algo dela, em cada objeto por
hiatos, em tais jogos de espelho, do que na ela construído. Mas ela mesma não sabe bem
afirmação da personagem de Abuso Infantil do que se trata: há algo que se apresenta
(1982), por exemplo, que se apresenta como como busca, hesitação, porque é impossível
memória de infância da artista, narrando o chegar a uma verdade cabal a respeito de
drama do caso de sua professora de inglês si própria. E isso é um endereçamento,
com seu pai, e o fato de sua mãe usá-la um convite ao outro, na apresentação de
para vigiar o marido. tais elementos supostamente biográficos e
íntimos.
A própria Bourgeois afirma: “Jamais
falo literalmente; para compreender-me é É nisso que a obra de Bourgeois
preciso usar analogia e interpretação, saltos parece-me falar da feminilidade, mais do que
de todo tipo...”7. na adesão à iconografia feminina clássica
ligada à costura, à tecelagem, ao roman à
Essa afirmação é um tanto irônica, clef e a figuras como a da histérica e a da
pois um trabalho como Abuso Infantil mãe. Ela performa uma problematização da
impede qualquer interpretação no sentido identidade de que a mulher pode dar notícias,
de uma decifração de algo que ali estaria pois seu estatuto se duplica diante do
disfarçado. Mas ao negar a literalidade a banquete totêmico entre sujeito e objeto de
artista aponta que um trabalho como este desejo, oferecendo-lhe eventualmente um
já é interpretação, e não mais propriamente leque maior de opções identitárias a partir
memória, nem muito menos fato ocorrido. da incorporação de algum traço paterno.
Quando algo é aí apresentado como uma A feminilidade está ligada a essa condição
lembrança, é na medida em que esta que alguns homens podem partilhar (e que
se assume como ficção, em sua própria não se aplica a todas as mulheres, pois
apresentação – seja qual for o seu grau de muitas delas podem se posicionar como
fidelidade em relação às vivências factuais membro do grupo de irmãos da horda): não
da artista. estando inteiramente tomada no processo
identificatório que substitui ao banquete
Se, como afirma Phillip Larrat-Smith, canibal o totem e o tabu, ela permanece
os escritos recém-revelados de Louise mais próxima do canibalismo. Por essa via,
Bourgeois e intitulados Escritos Psicanalíticos talvez a feminilidade implique ou possibilite
“certamente confirmam a centralidade da que se assuma mais claramente uma
memória em seu processo criativo”8, isso só mobilidade diante da problemática coesão

7. Louise Bourgeois. Destruição do pai..., op. cit., p. 16. 


8. Philip Larrat-Smith. Introdução: A Escultura como Sintoma, op. 9. Apud Philip Larrat-Smith. O Retorno do Recalcado. Louise
cit., p. 13. Bourgeois: O Retorno do Desejo Proibido, op. cit, p. 77.
28
do eu (afinal, “La Donna è Mobile”, como já se ponha em movimento.
afirmava Giuseppe Verdi em seu Rigoletto).
O enunciado mais apto a definir
Desconfiada em relação à ilusória o Surrealismo parece-me caracterizar
unidade do eu, sua presença como sujeito magistralmente tal parada, ao afirmar que
implica no reconhecimento da alteridade que “nada do que nos cerca nos é objeto, tudo
a constitui, e torna-se ato de convocação nos é sujeito”11 , como afirmava André
desejante do outro, quite a deixar que este Breton em 1928, brincando com a dupla
a transforme. acepção francesa do termo sujet: “tema”,
assim como “sujeito”. O poder de um
Dito de outra maneira, como o faz objeto artístico dar lugar ao sujeito é algo
Louise Bourgeois em uma entrevista de que ultrapassa em muito os limites deste
1997, “a beleza é a busca do ‘outro’”10 . movimento, mas talvez nunca antes dele
Tal busca pode chegar às raias da ameaça tenha sido tão claramente formulado.
de aniquilação do outro, como fariam
as enormes aranhas de Louise, ao nos Com o exotismo que parecia a Breton
convidarem a ocupar o espaço entre suas carregar alguma verdade mais pungente
patas delgadas no qual elas poderiam talvez a respeito do sujeito, as esculturas de
nos aprisionar e até devorar, como fazem Maria Martins, muitas vezes referindo-se a
com seus machos após a cópula. Seja como mitos amazônicos, aludem a uma presença
for, essa busca só é tornada possível graças luxuriante e excessiva que é a do sujeito
a um ato – aquele da destruição do pai – como desejo. Reside nisso o que elas têm
que a arte retomará e atualizará a cada de barroco, aliado a uma autorreferência
momento. explícita no título de uma obra como Não
esqueça que venho dos Trópicos (1945).
Maria Martins e o mundo do sujeito
Na obra de Maria, a presença
A incorporação da lei paterna abre de elementos da natureza que se
ao sujeito o campo do desejo, como vimos, antropomorfizam de modo fantástico, ou
por interditar a satisfação total e por isso de um mimetismo pelo qual um corpo se
mesmo abrir a possibilidade de satisfações confunde à natureza, deve ser relacionada a
parciais. O objeto de desejo jamais satisfaz tal lógica do sujeito como desejo. O mundo
inteiramente, pois ele é mero substituto de e seus objetos dão notícias do sujeito. Em
um objeto absoluto e para sempre perdido seu texto sobre o trabalho da artista, Breton
(digamos que se trataria da mãe, no mito afirma que “é (…) o universo que deve ser
do Complexo de Édipo). primeiro interrogado a respeito do homem,
e não o homem a respeito do universo”.12
O desejo é busca do objeto. Sua
deriva incessante fornece a base firme para De forma similar, no Manifesto
o consumo, mecanismo que conduz objetos Antropófago Oswald defende a passagem
descartáveis a desfilarem um após o outro, “da equação eu parte do Cosmos ao axioma
diante de um sujeito imóvel, no dispositivo Cosmos parte do eu”. Tal axioma é uma
capitalista. Talvez apenas as proposições variante da afirmação bretoniana de que
artísticas sejam capazes de deter e subverter “nada que nos cerca é objeto, tudo nos é
essa procura, ao oferecerem objetos que sujeito”, citada acima. No cosmos, está o
são um convite a uma parada: aquela do sujeito – fora de si, na arte. Seu íntimo está
deleite, aquela da reflexão. Tal parada do fora, é êxtimo, no neologismo de Lacan.
objeto permite, em revanche, que o sujeito

11. André Breton. Le Surréalisme et la Peinture. Paris: Gallimard,


1965, p. 56. 
10. Louise Bourgeois. Destruição do pai..., op. cit., p. 358.  12. Ibid., p. 411-412. 
29
Isso lembra que a incidência do secando sua força. Boiuna, o espectro de
surrealismo no pensamento de Oswald não cada gozo proibido, de cada êxtase roubado.
pode ser menosprezada, e deve ser levada a A vingança dos deuses!
sério a deferência um tanto jocosa que a ele
é feita no trecho: “Já tínhamos o comunismo. O canibalismo, em toda sua
Já tínhamos a língua surrealista. A idade crueza e avidez destruidora, pode ser
de ouro”. Referindo-se aos tempos pré- evocado pela imagem perturbadora de
colonização, a alusão à “língua surrealista” “bocas inumeráveis”. Em seu impulso
sugere que o Brasil carregaria em sua sugador sem freios, seria essa a potência
história algo de autenticamente surrealista, pulsional que empurrou ao assassinato e
sem nada dever ao movimento literário à devoração do pai da horda primitiva, e
e artístico francês. Assim Oswald comeu que seria capaz de retornar e desfazer a
Breton, e reafirmou que a Cultura só se identificação sublimatória e formadora de
define retroativamente, como raiz-aberta. um eu identitário. Seria tentador nomeá-la
pulsão antropofágica, seguindo a proposta
Diante da obra de Maria Martins, oswaldiana de um “instinto antropofágico”.
com quem ele convive em Nova York Mas é importante lembrar que a proposta
durante a Segunda Guerra, e mais tarde do escritor com tal denominação assinala
em Paris, Breton encanta-se especialmente apenas um retorno à devoração mortífera.
com Cobra Grande (esta obra, de 1943, Ela substitui o “instinto sexual” pela “escala
provavelmente sem intenção, ecoa o trecho termométrica do instinto antropofágico”,
do Manifesto “no país da cobra grande”), e recusando a ideia de sublimação do
afirma que ela seria, em última análise, o primeiro em prol de uma passagem entre
desejo elevado à potência do pânico e é o os diferentes estágios do segundo, que
desejo mestre do mundo – tal como, pela “de carnal” se tornaria “eletivo” e criaria a
primeira vez na arte, ele consegue obter “amizade” (e por que não o amor? Essa é,
plena licença – que continuará a infundir, à infelizmente, uma questão que Oswald não
maneira de um veneno, sua virtude única, chega a abordar, apesar de a antropofagia
sublimatória-confusional, em obras de referir-se vigorosamente a isso, não há
inspiração decididamente interior (...) tais dúvida).
como O Impossível e O Caminho; a Sombra;
Longos Demais, Estreitos Demais.13 Do canibalismo à antropofagia,
mesmo a amizade não deixaria de carregar,
Em contraste com o desejo domado ainda que silenciosamente, suas bocas
pela lei, Breton concebe com o trabalho inumeráveis, sua força de aniquilamento
de Maria Martins um “desejo-veneno”, um do outro – que, na dialética eu-outro que
desejo “elevado à potência do pânico”. caracteriza a antropofagia, revela-se,
Há uma face do desejo que é mortífera e igualmente, um aniquilamento do eu.
que não se contenta com a identificação
simbólica por incorporação, mas reclama “Nada existe fora da Devoração.
o aniquilamento e a devoração do outro. O ser é a Devoração pura e eterna”, diz
A respeito de Boiuna, de 1942 – outra Oswald quase vinte anos mais tarde, em sua
denominação para a “cobra grande” da “Mensagem ao Antropófago Desconhecido”14
lenda amazônica, Maria escreve: hino de alinhamento da antropofagia ao
comunismo. Essa bela e terrível sentença
É Boiuna, em suas rondas proféticas, parece talhada para a escultura Très Avide
matando homens – Boiuna com suas bocas (Muito Ávido (ou Ávida), 1949-1950), de
inumeráveis, chupando o sangue deles, Maria Martins. O oco, muito presente em

14. Andrade, Oswald de. Obras Completas. Estética e Política.


13. Ibid, p. 411.  São Paulo: Globo, 1992, p. 286. 
30
outros trabalhos, como na inquietante O 1950).
Oitavo Véu (1949), por exemplo, configura
um espaço comparável àquele sob as O Canibalismo de Lygia Clark
aranhas de Louise Bourgeois. Guardadas
– literalmente – as devidas proporções, Em carta enviada de Paris em 1964,
já que Muito Ávido tem menos de trinta Clark fala a Hélio Oiticica da saudade que
centímetros de largura, enquanto as aranhas sente dos amigos que deixou no Brasil, e
da artista franco-americana possuem prossegue: “Acho que virei até antropófaga.
estatura monumental, podemos dizer que Tenho vontade de comer todo mundo que
ambas exercem aquele poder que Breton amo e que se ache aí... (...) Bom, vamos
denominava “sublimatório-confusional”: um moderar esta voracidade senão... bem
apelo para que nos entreguemos a elas de passarei o resto da minha vida na cadeia
forma plena, como quem é sugado por esse como Genet, como devoradora de machos
espaço oco e nele se perde. (o meu signo é escorpião, lembra-se?)”16.

É em O Impossível (em suas três É de saída sob o signo de uma


versões, de 1944-46) que essa potência devoração ávida e sem peias que Clark trata
talvez fique mais complexa e bem trabalhada de antropofagia, nesta carta. Apesar de não
na obra de Maria Martins. Aqui, o que os dois estar se referindo a seu trabalho, talvez
corpos tendem um ao outro é, mais do que esse traço possa ser transportando para ele
seus tentáculos espetaculares, os espaços de forma pertinente.
ocos que eles circundam. Em uma espécie
de devoração sem união, eles permanecem Como se sabe, é radical o apelo da
distanciados um do outro, transmitindo obra da artista ao outro, como partícipe
talvez algo do que Freud chama Pulsão de indispensável. Pelo menos desde os Bichos,
Morte – auto-destruição, auto-devoração a ou seja, desde 1960, isso se dá de uma
ser aproximada da antropofagia na medida maneira perfeitamente coerente com o
em que ela faria lembrar – como uma questionamento da identidade, ao lado e
espécie de posição filosófica do indígena, imbricado à problematização do objeto de
segundo Oswald de Andrade – “que a vida arte. O conhecido Caminhando, de 1963,
é devoração opondo-se a todas as ilusões já desmaterializava a obra e questionava
salvacionistas”15. radicalmente o eu. Lygia afirma que neste
trabalho teria se despojado com nunca
Sob a aparente exuberância tropical de sua individualidade. O sujeito é um
especialmente presente nas obras que se “itinerário interior fora de mim”, escreve ela
referem à Amazônia, Porquoi Toujours (Por em 196517. A proposição artística constitui-
que Sempre), de 1949, fecha questão e se, assim, como nada além de um convite a
nos faz rever a ideia do desejo como pura que o sujeito realize esta mesma experiência
afirmação do ser no cosmos: em sua torre que é ao mesmo tempo extremamente
barroca, os pingentes são inúmeras caveiras íntima e exterior, necessitando do outro
– sempre e repetidamente, pois a devoração para completar seu circuito.
opera sempre em busca do aniquilamento
total, e suas asas e flores e formas sinuosas, Talvez em Lygia Clark tenhamos,
seus corpos-natureza em grito de gozo, não mais do que nunca na arte brasileira, a
são mais do que desvios em relação a um aguda consciência da produção artística
chamado implacável. Em altos brados, esse
chamado é uma escultura que não é mais 16. Lygia Clark. Hélio Oiticica. Cartas 1964-1974 (organização
que uma boca: A tue-tête (Em Altos Brados, Luciano Figueiredo). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998, 2a.
edição, p. 25. 
17. Lygia Clark (Catálogo da exposição realizada na Fundació
Antoni Tàpies, Barcelona, no Paço Imperial, Rio de Janeiro e
15. Ibid., p. 231.  outros museus), op. cit., p. 164.
31
como algo que se passa radicalmente – volta os jovens, que estão ajoelhados,
corporalmente, existencialmente – entre põem na boca um carretel de linha de
uma pessoa e outra de maneira a incitar várias cores. Começam com a mão a tirar
uma experiência transformadora de ambos. a linha que cai sobre a deitada até esvaziar
Nesse sentido, ela é a mais antropofágica o carretel. A linha sai plena de salive e as
de nossos artistas. pessoas que tiram a linha começam por
sentir simplesmente que estão tirando um
Diversos trabalhos de Clark convidam, fio, mas em seguida vem a percepção de
de fato, a rever os limites corporais, que estão tirando o próprio ventre para
brincando com as fronteiras do corpo em sua fora. Aliás, é a fantasmática do corpo que
fricção com arquiteturas e vestimentas de me interessa e não o corpo em si. Depois
modo a construir uma organicidade (quase elas se religam com essa baba e aí começa
uma visceralidade) vivida coletivamente uma espécie de luta que é o défoulement
(penso no labirinto A Casa é o Corpo (1968), [liberação] para quebrar a baba, o que é
por exemplo). feito com agressividade, euforia e mesmo
dor, porque os fios são duros para serem
Em 1974, a artista se refere à quebrados. Depois peço o vécu [vivência],
“fantasmática do corpo” como terreno de o que é o mais importante, a assim vou
troca experiencial, trabalhando com grupos me elaborando através da elaboração do
de alunos no curso que ministrava na outro...”20
Sorbonne, em torno das proposições que ela
chama “corpo coletivo, baba antropofágica ou A baba é fio, é liga, ligação entre
canibalismo”. “Voracidade imensa, introjeto sujeitos, fala que circula de um a outro.
tudo”, escreve Lygia a respeito dessas Antropofagia é fio estendido, amarração,
experiências. E prossegue: “sou enorme encontro visceral. Ela estabelece um circuito
boca que engole o mundo, as pessoas, os que só se completa com o outro – melhor
objetos. Sou um ser antropofágico”18 . dizendo, o sujeito não está de saída em
um nem no outro, ele está entre os dois,
Na experiência que nomeia surge do ato antropófago e não antes dele.
Canibalismo, uma pessoa vestindo um O antropófago não é exatamente aquele
macacão de plástico deita-se no chão, com que deglute o outro, mas sim o resultado
os olhos vendados, tendo à sua volta as da devoração mútua que, em ato, faz surgir
demais participantes. Estes abrem um zíper entre eles, porém fora deles, o que lhes é
presente no macacão na altura do abdome mais íntimo. “Baba coletiva”.
e de seu interior retiram frutas, que comem,
deixando e recolhendo os pedaços que Minha boca se abre, mandíbula
outros mordiscam19. ao chão: sai de dentro uma baba que
escorre num delírio obsessivo, fluindo
O banquete antropofágico revela-se, obstinadamente para fora. Envolve tudo
assim, compartilhamento. Da barriga da que me cerca, passando a borracha na
pessoa deitada, como se já digerida por ela, identidade do meu eu, nos contornos do meu
pega-se a comida, que se trata de mordiscar corpo, invertendo o sentido do espaço real
para deixar que outro também a coma. vivido por mim como o ‘dentro’ na nostalgia
do retorno. No interior que é o exterior: eu
Em carta a Hélio Oiticica, a artista e uma janela. Quero passar através dessa
descreve a Baba Antropofágica: janela para o “fora” que para mim era o
“dentro”21.
Uma pessoa se deita no chão. Em

18. Ibid., p. 289.  20. Ibid, p. 288. 


19. Ibid., p. 302. 21. Ibid., p. 289-290.
32
No prosseguimento deste longo coletivo”24. Ato final pelo qual o antropófago
manifesto antropofágico, Lygia chegará a se alimenta do psiquismo dos outros e se
afirmar: “sou um ser que se alimenta do auto-aniquila ao devorar o outro. Uma vez
psiquismo dos outros”. Perder sua identidade tendo atravessado a “janela”, ele volta,
seria, ela percebe então, “a procura de deixando a porta aberta para que o outro
engolir todas as outras identidades para, entre – em seu apartamento, em sua
no enriquecimento, devolvê-las: baba fantasmática. Entrega total. Afinal, como
coletiva”22. A baba, secreção que vem do consta no Livro-Obra publicado em 1983:
interior do corpo, já é coletiva. O dentro
está fora. O psiquismo se constitui fora e em Nós somos os propositores: nós
uma experiência comum, compartilhada. somos o molde, cabe a você soprar dentro
dele o sentido da nossa existência. Nós
A antropofagia é uma experiência somos os propositores: nossa proposição
com o outro capaz de construir uma ligação é o diálogo. Sós, não existimos. Estamos à
coletiva que vai muito além da mera sua mercê25.
comunicação, para atiçar a “cultura viva”,
forma viva de produção que será alcançada
por um processo através do qual o homem
se dá, fazendo-se autor. Toda criação
decorre desta forma de vômito (bave) ou de
canibalismo (repas canibalique). Daí decorre
muito mais que comunicação. Geometria
em todas as criações fantásticas (sic), que
são uma contínua troca intersubjetiva23.

A antropofagia é uma proposta de


compreensão e intervenção na cultura,
como já ensinara Oswald de Andrade. A
geometria é antropofágica. E o pulo do gato
antropófago, sua última (e muito ávida)
cartada em busca do outro, não poderia ser
outra senão o atravessamento da janela da
arte. A antropofagia clarkiana desemboca,
assim, na radical proposta de “Estruturação
do Self”, que me parece até hoje mal
comprendida – quando não sumariamente
ignorada pelos críticos. Trata-se do
atendimento individual que ela pratica em
seu apartamento, a partir de 1976 até perto
de sua morte, em 1988, utilizando “objetos
relacionais” variados, além de proposições
realizadas anteriormente pela artista e
eventalmente novos objetos trazidos por 24. Apud Suely Rolnik. Uma Terapêutica para tempos desprovidos
de Poesia. Lygia Clark. Da Obra ao Acontecimento. Somos o
seus “clientes”. Molde. A Você Cabe o Sopro. Musée des Beaux-Arts de Nantes/
Pinacoteca de São Paulo, 2006, p. 13.
Em nota sobre esse seu trabalho dito 25. Lygia Clark (Catálogo da exposição realizada na Fundació
Antoni Tàpies, Barcelona, no Paço Imperial, Rio de Janeiro e
“terapêutico”, Lygia afirma: “dissolvo-me no outros museus), op. cit., p. 233.

22. Ibid., p. 292.


23. Ibid., p. 301.
33
Recepção crítica da 24ª Bienal de São Paulo: notas iniciais
Mirtes Marins de Oliveira

O objetivo desse breve relato é localment1. Para ficarmos em exemplos


delinear um mapa inicial das múltiplas significativos: “Primitivism” in 20th Century
formas pelas quais a 24a Bienal de Sao Art: Affinity of the Tribal and the Modern2,
Paulo (BSP) foi recebida criticamente. Para III Bienal de la Habana3 , Magiciens de la
essa finalidade foram realizadas consultas Terre4 e The Other history: Afro-Asian
no Arquivo Wanda Svevo e na plataforma de Artists in Post War Britain5.
pesquisa do currículo Lattes (que centraliza
o banco de dados dos pesquisadores do pais) Em termos locais, a Fundação Bienal
e em outros bancos de dados disponíveis. havia entrado em rota de gigantismo e
espetacularização marcada pelas concepções
Com sua plataforma curatorial em de Edemar Cid Ferreira na presidência da
torno do eixo conceitual da antropofagia - BSP, substituído - na 24a BSP - por Julio
chave interpretativa para todo o campo das Landman. A década 1990 também havia
humanidades desde a década de 1920 -, a começado no Brasil injetada de vitalidade
24a BSP revigorou e reelaborou a apreensão graças aos movimentos sociais e políticos que
do primitivo e do irracional realizada por levaram – dentro do processo democrático
Oswald de Andrade, que já se diferenciava – ao impeachment do presidente Fernando
daquela realizada pelas vanguardas Collor. Mas a injeção teve efeitos colaterais:
históricas. O curador da exposição, Paulo os intensos processos de privatização que
Herkenhoff, propôs a antropofagia em novo se seguiram nos governos subsequentes.
contexto, de um capitalismo globalizado dos
anos 1990. Recuperado o debate, resgatou- Herkenhoff realizou a transposição
se toda a constelação oswaldiana em torno da alegoria antropofágica para o campo
daquela noção: Patriarcado/Matriarcado; curatorial. Em quais instâncias esse debate
mito/razão; metrópole/colônia. E de reverberou? Como essa proposta foi
maneira surpreendente, a crítica irreverente recebida pela imprensa local e internacional?
que o Manifesto Antropofágico fazia ao Com quem estabeleceu diálogos? E a
academismo e à grande História linear universidade, talvez hoje um lugar possível
e hegemônica ressurge, agora de forma para o pensamento crítico, como dialogou
estratégica – como forma de inserção com a exposição e suas propostas? Em
no circuito internacional - e faz eco 2008, quando do debate sobre os dez anos
internamente e fora do Brasil. da 24ª, Lisette Lagnado já apontava para a
ironia de uma recepção crítica brasileira rala
Esse resgate – da antropofagia - em contraposição ao conceito operacional
serviria para distinguir a exposição nesse
circuito, também interessado no debate
sobre o primitivo e sua apropriação moderna,
face à abertura política e econômica global.
A década anterior, marcada pelo final da
Guerra Fria, havia explorado possibilidades 1. Esche, Charles. “Making Art global: A Good Place or a No
Place?” in Weiss, Rachel. 2011. Making art global. the third
expositivas que tentavam realizar uma Havana Biennial 1989 (Part 1). London: Afterall Books. 
visão internacionalista da arte em termos 2. no Modern Art Museum – MoMA, em N.York (EUA), em 1984.
que foram moldados e compreendidos 3. em Centro Wifredo Lam, Havana (Cuba), em 1989.
4. 1989, Centre Georges Pompidou e Grande Halle de la Villete,
Paris (França)
5. em Hayward Gallery, Londres (Grã-Bretanha), 1989.
34
de densidade – apropriado de Lyotard- “Exposição começa com rombo:
proposto pelo curador . 6
Telesp não doou os recursos prometidos
pelo Governo Federal e que completariam
Em 1998, a imprensa brasileira, talvez os R$ 15 milhões necessários para evitar o
acostumada com o perfil das edições dos anos vermelho no caixa7”.
imediatamente anteriores, focava o aspecto
mundano e fazia uma leitura reduzida e “24ª Bienal. Banquete da arte. Maior
anedótica da exposição, mostrando o apego mostra de arte do país começa hoje em
a categorias anacrônicas. Foram algumas São Paulo com a antropofagia de Oswald de
das chamadas dos jornais: Andrade como tema, e espera atrair meio
milhão de visitantes”8.
“Banquete das artes
“Retorno ao modernismo” “Bradesco segura 334 obras da
“Velho e Novo Mundo se encontram” Bienal. valor total é de R$ 178 milhões;
“Arte mundial digerida” obras estão avaliadas entre R$ 1,5 milhão e
“Um jeito tropical de fazer cultura” R$ 35 milhões”9.
“A angústia da ‘autofagia’”
“Em busca do espontâneo” Outros comentários enfocando as questões
“Receita à moda da casa” financeiras10:
“Devorando a própria arte”
“Os mestres estão no 3º andar - O Núcleo “A Bienal recebeu 6 milhões de US$
Histórico, onde só poderá entrar um número de empresas privadas e governamentais,
limitado de pessoas por vez, reúne as como exemplo: a Cesp”.
melhores obras”
“Miscelânia no 1º andar” “A privatização da Telesp celular
“A Bienal que tem fome” prejudicou a Bienal, já que o ministro Sergio
“Canibalismo no Ibirapuera” Motta morre após ter se comprometido com
“Comer com os olhos” 1 milhão, prometido em 1996”.
“Um banquete para os olhos”
“Público devora Bienal” “Coca-cola injetou 1 milhão para sala
“Curadores dominam a mostra” do Dadá e Surrealismo”.
“A cor que devora o visitante”
“O cardápio antropofágico”. “Petrobrás colaborou com 500 mil
R$: financiou a Sala Francis Bacon”.
O incidente do temporal que inundou
São Paulo na primeira semana de outubro “R$ 3,5 milhões (35% dos recursos
de 1998, também foi tratado de forma despendidos) utilizaram benefícios da Lei
impiedosa, mas o maior temor era a imagem Rouanet. Os outros 65% representam
do Brasil no Exterior, o que reforça a potência patrocínios sem incentivos fiscais”.
da instituição como lugar representativo
da arte contemporânea. De certa forma as Na imprensa internacional, a
questões escandalosas – do ponto de vista apreensão crítica ganhou contornos
financeiro e de gestão - que ambientaram mais espessos, o que aparentemente
as edições anteriores (e posteriores) contribuiu para a disseminação da noção de
também passam a evidenciar um outro foco
de interesse. Algumas chamadas:
7. comentários colhidos do jornal Diário Popular de 02 de outubro
de 1998, São Paulo. 
8. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro em 03 de outubro de 1998.
9. Coluna de Cecília Barroso (sucursal Rio de Janeiro), na Gazeta
6. marcelina. Revista do Mestrado em Artes Visuais da Faculdade Mercantil, São Paulo, 02 de outubro de 1998.
Santa Marcelina, Ano 1, v.1 (1.sem.2008). São Paulo: Fasm, 2008, 10. a partir de matéria sobre financiamento na área da cultura, em
p.17.  Mídia, Propaganda e Negócio, nº 49, dezembro de 1998.
35
antropofagia como categoria interpretativa a radicalidade dos textos explicativos; o
para além dos limites latinoamericanos. interesse pedagógico por parte da curadoria;
Vale notar, que fora do Brasil, as revistas o deslocamento da função histórica da Bienal
– mesmo aquelas de grande circulação, de lugar de formação do artista brasileiro
comerciais e patrocinadas – em geral têm para converter-se em um espaço no qual
um projeto crítico mínimo que as credencia o artista brasileiro se integra no processo
como plataforma de debate. internacional, dialoga internacionalmente14.
Esse deslocamento da função histórica da
Chamo a atenção para as sete Bienal surge a partir de um pensamento
páginas do artigo “Cannibals All” de Edward específico sobre a história proposto pelo
Leffingwell na Art in América11 nas quais são curador:
evidenciadas a tomada da antropofagia não
como tema, mas como operação presente Minha ideia é que se temos que fazer
na materialidade da exposição – descrita por o museu, vamos fazer com um sentido, para
Leffingwell em pormenores -, mas também compreender e confrontar nossa história e,
nos livros que documentam a 24a BSP, ao mesmo tempo, cruzar o presente e o
editados por Adriano Pedrosa e Herkenhoff. passado. E digo que existe um uma distorção
no processo social da Bienal e o peso que
Outro destaque da recepção toma a parte histórica: minha afirmação
internacional foi a entrevista de Paulo constante durante toda a Bienal é que o fato
Herkenhoff à Rosa Olivares para Lapiz12 que a parte histórica seja um grande exito
, cujo aspecto central ressaltado foi a indica a crise da instituição. Quanto maior
desconstrução da abordagem histórica o exito da parte histórica, maior a crise da
hegemônica. Olivares também capta a instituição15.
polarização do debate acerta da exposição:
O universo acadêmico – o brasileiro
O resultado [da exposição] tem sido especificamente – esteve presente na
criticado por alguns e elogiado por outros. constituição da 24a Bienal por inúmeras
Entre os primeiros o setor mais conservador colaborações pontuais: Suely Rolnik,
da crítica brasileira, com saudades de outros
tempos e outras demonstrações artísticas Aracy Amaral, Ana Belluzzo, entre outros.
mais decorativas e menos radicais e, No entanto, sua reverberação dentro da
também, partidários da idéia que considera universidade – portanto como foco de
que a história não pode ser alterada. Entre investigação gerando novas reflexões -
aqueles que têm considerado esta Bienal tomou outras características.
como uma ruptura no declínio tradicional
de tais exposições encontramos a crítica A primeira é que algumas apropriações
internacional e as centenas de milhares de se realizam de forma periférica, na qual a
espectadores puderam aproximar-se de da exposição aparece como parte de um grande
arte contemporânea de uma forma mais caldo antropofágico/canibal.
amigável e mais crítica, compreendendo
que é muito mais próxima de suas próprias Como exemplo, Raul Antelo16, que atua fora
vidas do que jamais poderiam ter pensado13. dos polos hegemônicos pelos quais circulam
grande parte da cultura de pesquisa no
Ainda nessa entrevista, outros
aspectos são enfatizados: a montagem;
14. Olivares, op.cit., p.154.
15. idem.
11. “Cannibals All”, in: Art in America, 5, Nova York, 1999.  16. Antelo é docente e pesquisador de literatura brasileira na
12. Olivares, Rosa. “Ahora es necesario olvidar la historia” Universidade Federal de Santa Catarina. Cf. “Politicas canibais: do
(entrevista a Paulo Herkenhoff). Lápiz, Madrid, nos. 149/150, antropofágico ao antropoemético” in Transgressão e Modernidade.
enero-febrero, 1999, pp. 153-161. Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2001. 
13. Olivares, op.cit., p. 153. 
36
Brasil, reafirma o canibalismo como tradição O levantamento não é conclusivo,
não circunscrita à América Latina, mas mas mesmo assim poucos são os projetos
internacional e contemporânea. Para o autor, de pesquisa que têm como foco a exposição.
a noção de antropofagia é outro nome para O motivo para essa produção reduzida seria
civilização. (Raul Antelo. Politicas canibais: o de que o estudo das práticas curatoriais
do antropofágico ao antropoemético in ainda dá seus primeiros passos no Brasil? A
Transgressão e Modernidade) produção em história da arte muitas vezes
prioriza os aspectos temáticos ou as obras
Especificamente significativa é a de uma exposição, em detrimento de sua
tese de doutoramento de Elisa de Sousa materialidade. Da mesma forma, algumas
Martinez17 “Textualização antropofágica: a abordagens que tratam de exposições ainda
curadoria do Espaço Museológico da XXIV se pautam pelo estudo do pensamento ou os
Bienal de São Paulo”. Defendida, em 2002, processos criativos do curador ao invés dos
no Programa de Estudos Pós-Graduados aspectos materiais da exposição (displays,
em Comunicação e Semiótica, Pontifícia percursos, textos de parede ou catálogo
Universidade Católica de São Paulo. A tese etc).
de Martinez apresenta percurso no Núcleo
Histórico e traz material documental de Muito significativo é que o debate
grande valor investigativo. sobre uma teoria da história - proposto
como questão das mais centrais pela
Outra tese: “Configurações plataforma curatorial de Paulo Herkenhoff -
identitárias na arte contemporânea: a não encontrou eco nas universidades, nem
Bienal de São Paulo, de 1998”, de Luiza mesmo nas disciplinas voltadas à história
Oliveira da Silva, foi defendida no Curso de da arte. Me pergunto se seria devido à
Pós-Graduação em Letras, da Universidade falta de “campo disciplinar” que caracterize
Federal Fluminense, em 2006. Analisa as a curadoria no Brasil. Falta de um campo
obras do período modernista em relação às constituído que compreenda as exposições
produções contemporâneas apresentadas – ao invés das obras – também como
na exposição. produtos válidos para estudo.

Especificamente na área de Artes Em um rápido exame na bibliografia


Visuais, encontramos a dissertação de das disciplinas históricas em cursos de
Helena Pereira de Queiroz, defendida no Artes Visuais em nível superior, a noção
Programa de Pós- Graduação Interunidades de antropofagia não aparece nem em sua
em Estética e História da Arte da Universidade forma histórica (de Oswald de Andrade)
de São Paulo, em 2011: “Antropofagia ou nem em sua retomada contemporânea,
Multiculturalismo? Oswald de Andrade na via Herkenhoff e 24a Bienal. Dessa
24a Bienal de São Paulo. maneira, o confronto proposto pela postura
antropofágica é substituído pela forma
Fora do Brasil, Camila Bechelany histórica da colagem e da justaposição
desenvolve a tese ainda não finalizada dadá e surrealista, deixando de lado
“De Magiciens de la Terre à Antropofagia: definitivamente o debate pós colonialista.
Estratégias de Representação em espaços Foge à essa regra o Bacharelado em História
culturais globalizados”, no Centre des da Arte da Universidade Estadual Rio de
Recherches des Arts et du Langage, com Janeiro (UERJ), que incorpora claramente
orientação de Jacques Leenhardt. esse debate.

Os mesmos pesquisadores envolvidos


na implantação desse curso foram
17. atualmente é docente Programa de Pós-Graduação em Artes responsáveis pelo evento IV Seminário
Visuais – Universidade de Brasília de Pesquisadores do Programa de Pós
37
Graduação em Artes da UERJ, com o tema
“Vômito e não: práticas antropoêmicas
na arte e na cultura”, que abria para
apresentação de pesquisas em curso
tendo como eixo a ampliação da noção de
antropofagia proposta pela 24a BSP.

Mas a iniciativa de reativar o


debate sobre a exposição coube à Lisette
Lagnado com a idealização do Seminário
Semestral de Curadoria, em 2008, que
trouxe Herkenhoff para um balanço crítico
sobre aquela edição. A conferência dialógica
ficou registrada na revista marcelina n. 1,
marcelina antropofágica18, contribuindo
com referências para estudos do campo
da curadoria (escassos no Brasil) e sobre
a Bienal de São Paulo, que ainda hoje,
tem pouquíssimas publicações críticas
disponíveis.

Assim, nada mais bem vindo do que


o projeto da Editora Afterall de publicar um
trabalho de pesquisa verticalizada sobre a
24a BSP, colocando essa produção cultural
em contexto local e global. Só essa visada
em rede e camadas poderia ampliar o debate
e recuperar o que a história oficial ignora.

Referências bibliográficas

Leffingwell, Edward. “Cannibals All”, in: Art


in America, 5, Nova York, 1999.
marcelina. Revista do Mestrado em Artes
Visuais da Faculdade Santa Marcelina, Ano
1, v.1 (1.sem.2008). São Paulo: Fasm,
2008.

Nunes, Benedito. Oswald Canibal. São


Paulo: Perspectiva, 1979.
Olivares, Rosa. “Ahora es necesario olvidar
la historia” (entrevista a Paulo Herkenhoff).
Lápiz, Madrid, nos. 149/150, enero-febrero,
1999.

18. disponível para download em


http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=marcelina%20
antropofágica&source=web&cd=1&ved=0CDAQFjAA&url
=http%3A%2F%2Fwww.sophiamarchetti.com.br%2Findex.
php%2FPDF%2F1%2F32%2FRevista_do_Mestrado_em_Artes_
Visuais.pdf&ei=7b51UcG6H8eY0QHY4IGIAQ&usg=AFQjCNH
ctTQUMJrPkCEf3N4vTo74zeAnTg&bvm=bv.45512109,d.dmg .
38
Lado a lado: modos de exposición (24 Bienal de São Paulo
y otras exposiciones)
Pablo Lafuente
21 Abril 2013

Mi contribución hoy se centra en la 1. Historia sin historia


manera en la cuál se articula, tanto en el
discurso curatorial de la 24ª Bienal de São La 24ª Bienal fue una exposición
Paulo como en la exposición, la presencia articulada alrededor de una sección
conjunta de diferentes obras o materiales denominada ‘Núcleo Histórico’, ocupando
culturales, en comparación con una serie de la planta tercera del pabellón en el parque
estrategias adoptadas o definidas durante Ibirapuera; una exposición que es histórica
las últimas tres décadas. Este análisis: en tanto que inmediatamente se puede
identificar gran parte de su contenido como
- Es un análisis de discurso y de tal – obras de arte que forman parte en
instalación, pero dada la complejidad de la mayor o mayor medida de un canon de
exposición, es definitivamente parcial. Esto historia del arte moderno, y obras, que
quiere decir que dejo de lado gran número de en gran medida, hablan de historia (en
distancias o contradicciones entre discurso e contenido, ciertamente), y/o que se han
instalación, y soy consciente de que puede utilizado para escribir o contar historia.
haber un gran número de contraejemplos
para la mayor parte de mis afirmaciones. Pero no sólo las obras. También el
conjunto de las obras, consideradas como
- No es un estudio en detalle de la 24ª una unidad, incluso con sus peculiaridades,
Bienal, sino un ejercicio de comparación de pueden fácilmente ser leídas como una
estos aspectos en la Bienal de 1998 con colección histórica. Pero:
otras exposiciones que me han parecido
pertinentes. Podrían ser otras, pero creo que La Bienal que estamos discutiendo
estas reflejan, por un lado las implicaciones no tuvo historia. A pesar de su núcleo
de los argumentos utilizados por la Bienal, histórico, fue una bienal en la que las
y tal vez su influencia. preguntas eran completamente pertinentes
para el presente, y el sentido de los trabajos
- Este trabajo se basa en las palabras presentados en ella eran relevantes
de Paulo Herkenhoff, pero también y en para cuestiones contemporáneas. … Las
gran medida en la investigación detallada relaciones cronológicas entre las obras
que Lisette Lagnado ha estado llevando a fueron neutralizadas. La historia se tomó
cabo sobre esta exposición, y que he estado como el punto cero del arte contemporáneo1.
siguiendo durante los últimos meses.
Esta historia, como las palabras de
Voy a articular esta presentación en Herkenhoff sugieren, no es una historia en
cuatro secciones, y voy a intentar aventurar la que la cronología tenga lugar dentro de
ciertas conclusiones provisionales sobre la selección de obras, como es por ejemplo
la 24ª Bienal a lo largo del camino, que el caso exposiciones realizadas por Group
intentan establecer sus elecciones y las
implicaciones de éstas. Me temo que sin
conclusión. 1. Paulo Herkenhoff y Adriano Pedrosa, ‘The Carioca Curator’,
Trans>, no.XXX, transmag.org/nuevo_transmag/contents/vols.php
?vista=issue&tipoproy=Cultural Conditioning&proyeccion=10 3/8 
39
Material en los años 1980, en las que los independencia supuestamente absoluta, a
materiales, artísticos o no, se articulan una autoreferencia que constituye su status
unos con otros en función de una cronología de obra, y, por otro lado, su pertenencia a
‘simple’, de una única línea temporal. Tales una historia en gran medida biográfica, en
relaciones cronológicas fueron neutralizadas la que el sujeto Paul Cézanne o el sujeto
en 24ª Bienal, rechazando nociones de Willem de Kooning proporcionan a la obra
desarrollo e influencia característicos su relevancia inicial).
de una práctica museológica específica.
Esta práctica museológica, en el contexto Para responder a esa pregunta,
de museos de arte, está fundamentada volvamos otra vez a las palabras de
en nociones de desarrollo, evolución e Herkenhoff. ‘… fue una bienal en la que las
influencia, siguiendo un modelo cientifista, preguntas eran completamente pertinentes
propio de las ciencias naturales. para el presente, y el sentido de los trabajos
presentados en ella eran relevantes para
Tal noción de historia cronológica cuestiones contemporáneas.’ Es entonces
pone el énfasis en la práctica artística (en una cuestión de presente. Pero no es tanto
la producción de un artista-autor), no en la que las obras hablen del presente, sino que
obra de arte. La obra se lee en primer lugar hablan al presente, presuntamente para
dentro de una producción concebida como intervenir en él. Es por tanto cuestión de
coherente (la obra del artista, el sujeto futuro. Es en este sentido en el que se puede
que le da esa coherencia) y, en segundo entender la historicidad del núcleo histórico
lugar, dentro de unas líneas de influencia – una cronología que no se articula entre
que le proporcionan un segundo momento las obras, si no en el ‘reunirse’ de las obras,
de pertenencia a una narrativa temporal. y en el tipo de intervención que esas obras
Disrupciones o momentos de disonancia se pretenden.
leen siempre a partir de este doble fondo
de coherencia – o no se leen. Esto hace que Esta es la noción de historia que
ciertas obras o ciertos artistas sin claras Krysztof Pomian ha desarrollado en su
líneas de conexión (influencia) no entren a investigación (histórica, pero también
formar parte de la historia, a no ser que su filosófica) de la noción de colección. Pomian
excepcionalidad se convierta en relevante habla del acto de trasladar un objeto de
para la narrativa. su contexto original a otro en términos de
sacrificio – un sacrificio que históricamente
A pesar de ser una exposición en la que tiene como objeto mediar entre un mundo
gran parte de los artistas incluidos lo fueron visible y otro invisible. La colección es, así
con varias obras, el ‘Núcleo Histórico’ es una un grupo de objetos que han experimentado
exposición de obras, no de artistas. Porque, este desplazamiento. En el museo moderno
para disociar las obras de una cronología esta mediación no es entre un visible y un
histórico-artística es necesario disociarlas invisible organizados horizontalmente (como
ontológicamente de su productor, de su es, según Pomian, el caso de las colecciones
biografía e intencionalidad, de su contexto de objetos que se pueden encontrar en
y posible evolución. Así, la obra es liberada. templos), sino cronológicamente: el museo
Pero para qué? media entre pasado, presente y futuro – un
futuro que es lo invisible. El museo ‘permite
(Es tal vez interesante que en el al presente sacrificarse a sí mismo hacia el
modelo clásico de museo de arte moderno, futuro’2.
por ejemplo el MoMA de Alfred Barr o más
tarde de William Rubin, hay una tensión
constante entre la autonomía de la obra,
2. Krzysztof Pomian, Des Saintes Reliques à l’art moderne:
que se potencia a través de un modo de Venise–Chicago, XIIIe–XXe siècle, Paris: Éditions Gallimard,
instalación que promueve su aspiración a una 2003, p.13. 
40
Esta terminología puede parecer a no pertenecen al lugar en el que están, y
primera vista lejana al discurso asociado tampoco, legítimamente, a los hombres que
con la 24ª Bienal. Éste no es un discurso los rodean (o a los que rodean). Tal vez se
metafísico, tampoco un discurso de pérdida. le pueda llamar un sacrificio, aunque parece
Es un discurso ciertamente optimista, que aquí la voluntad de los antiguos dueños
un discurso caracterizado por una cierta (los dueños ‘legítimos’) no tuvo mucho
ligereza (en el sentido de carencia de que hacer. Pero los objetos, en cambio,
gravedad). Pero es también un discurso en no parecen estar sufriendo el cambio de
el que se puede localizar sin mucho esfuerzo lugar y manos – al contrario, incluso se
un momento de ruptura, de cierta violencia. podría aventurar que hay un cierto confort,
una cierta facilidad, en la manera en la
No me siento capacitado para hablar cual ocupan su lugar presente: la capa
en detalle aquí de la noción de antropofagía. envolviendo el torso de uno de los hombres,
Pero creo que esa violencia, que estaba el cuadro reposando inclinado en el jarrón,
ciertamente presente en obras en la el escritorio ofreciendo su soporte al cuerpo
exposición, es una clave importante para de otro de los hombres, o el collar de perlas
leer la operación ‘histórica’ de la Bienal. en las manos de otro, tal vez acariciado por
ellas.
2. Violencia y lo común
Benoît de l’Estoile, en su libro El Gusto
Si el sacrificio apunta a un posible de los Otros, diferencia entre los ‘museos de
acto voluntario (alguien sacrifica el objeto, sí mismo’ y los ‘museos del otro’ – museos
pero quien sacrifica pierde algo en el en los que una cultura se representa y se
sacrificio; se puede pensar también en el construye a sí misma al representarse, y
objeto como sacrificandose a sí mismo), en museos en los que una cultura representa a
el acto antropofágico, como lo entiendo, la otras culturas y las construye y se construye
decisión es unidireccional – el o lo devorado a sí misma al representarlas3. Es difícil
puede o no aceptar su destino, pero no el decidir si Perusal of Ill-Begotten Pleasures es
comienzo del proceso no es su decisión, un museo del otro (del otro burgués que fue
y el o lo devorado es, normalmente, un robado, despojado, y es ahora examinado,
agente externo al contexto en el que se da por los hombres en la imagen, que al mismo
el proceso. Es por ello me siento autorizado tiempo han ocupado su lugar y construido
a mostrar, en este contexto, una pintura de este nuevo museo en el que los objetos han
Lukas Düwenhogger titulada Perusal of Ill- sido liberados) o un museo de sí mismo
Begotten Pleasures, del año 2003 (Examen (del sí mismo burgués al que la pintura,
de Placeres Ilícitos, o de Placeres de Origen como museo, pertenece – un sí mismo que
Ilegítimo). recupera así lo que ha sido violentamente
desplazado).
El cuadro muestra una serie de
objetos en un campo sobre una colina, entre El ‘Núcleo Histórico’ presenta, me
árboles, y un grupo hombres que interactúan parece, una dificultad parecida: es un museo
con ellos de una manera que se podría decir del otro, del otro moderno (Europeo) que ha
casual (en cierto modo contradiciendo el sido despojado y apropiado, en cierto modo
‘examen’ del título). Un escritorio, un jarrón examinado y reescrito a través de objetos
azul, un cuadro sin marco, una silla, un que se suponen clave para su definición,
collar de perlas, una capa de piel blanca… para su historia. Pero a la vez es también un
Son objetos preciosos, de valor; objetos
de uso pero también contemplación,
significantes de un estatus y, como las
3. Benoît de l’Estoile, Le Goût des Autres: De l’Exposition
colecciones según Pomian, resultado de un colonial aux Arts premiers, Paris: Flammarion, 2007, p.12 y
desplazamiento. Los objetos ciertamente siguientes. 
41
museo de sí mismo, de una cierta identidad equivalente de ese grupo de hombres
nacional brasileña construida a través de turcos, o más bien su reverso. Pero también
esa operación de reinscripción. es posible pensar en las demoiselles de Les
Demoiselles d’Avignon como esos ladrones,
Una identidad que no se define a sí examinando las máscaras, vistiéndolas,
misma como una identidad furtiva, ladrona, deseándolas.)
sino una identidad que celebra su capacidad
de absorción y reinscripción. O que al menos La conclusión de esta operación es
roba discriminadamente: Herkenhoff una concepción puramente formal de la
declaró su intención de no incluir materiales afinidad, y una unidireccionalidad que hace
etnográficos que habían sido extraídos de casi imposible no pensar en una secuencia
una cultura viva, activa. – de influencia, así como cronológica – en
la que lo primitivo es germen pero también,
*** y por ello, promesa de una realización que
sólo tendrá lugar en lo moderno.
La articulación de elementos cultural
diversos en busca de una identidad propia es En la 24ª Bienal, la selección de
uno de los modos de entender ‘“Primitivism” objetos y su disposición, en el discurso
in 20th Century Art: Affinity of the Tribal curatorial, no se predica en lo común, sino
and the Modern’ (‘Afinidad de lo tribal y lo en lo diferente. Los términos utilizados,
moderno’), una exposición que tuvo lugar en algunos de los cuales hablaré más tarde,
el Museum of Modern Art in New York en 1984- son ‘contaminación’, ‘ruido’, ‘reflexión’
85. ‘Primitivism’ reconstruyó el encuentro o ‘migración’. Esta selección elimina la
original entre los artistas modernos en París, direccionalidad de la mirada moderna, de
a principios del siglo XX, y objetos culturales modo que, en principio, ningún trabajo tiene
no occidentales, de África, Sudamérica o primacía ontológica o epistemológica sobre
Polinesia. La exposición yuxtapuso unos y otros. Pero ese énfasis en la diversidad, en
otros en virtud de la noción de ‘afinidad’ cómo diferentes elementos afectan unos
entre el arte que identificó como ‘primitivo’ a otros, no puede ocultar la presencia de
(siguiendo a los artistas que protagonizaron unos elementos comunes. Un elemento
tal ‘descubrimiento’) y el arte moderno. clave, creo, es la prevalencia de la imagen:
lo común de los trabajos incluidos parece
El concepto de ‘afinidad’ y su uso en la ser una cierta capacidad de funcionar
selección y en la instalación no fue definido como imagen (y no como objeto, proceso
claramente por los curadores, Kirk Varnedoe o dispositivo, por ejemplo), y una cierta
y William Rubin, pero cuando se formuló se capacidad referencial (en su capacidad de
hizo en términos de ‘características básicas’ hablar de un pasado o a un presente).
o ‘denominadores comunes’ – concepciones
que posibilitaron una afirmación de igualdad Pero en principio estas características
entre unos y otros. Pero esas afinidades no tienen fuerza diferenciadora – es decir,
no eran recíprocas, sino una repetición no son suficientes para elaborar una
de la perspectiva Norte-Sur, o Occidente- selección. Es por ello que, en un alto grado,
no-Occidente. Las presencia de una única son aspectos temáticos los que posibilitan
perspectiva se hace evidente en el hecho de la selección y la yuxtaposición. ‘Tema’ aquí
que la obra moderna se asocia al autor (a se refiere a contenido, como el canibalismo
la subjetividad que encuentra lo primitivo), o la antropofagia; motivo, como el Radeau
mientras que la obra primitiva se disocia de de la Meduse; origen, como la pertenencia a
su autor o autores a la vez que se deslocaliza. tradiciones culturales brasileñas de algunos
(Sería fácil pensar en Pablo Picasso y André de los autores; pero también a materia,
Breton, o William Rubin y Kirk Varnedoe, como el chocolate del retrato de Freud por
los curadores de la exposición, como el Vik Muniz. Esta amplitud de definición, que
42
hace eco del intento de amplificar el campo radicalmente asimétricas4.
semántico referido por la antropofagia, no
elimina la presencia de una definición, de Según Clifford, si el museo es tal zona
una delimitación referencial del foco de la de contacto, su estructura como colección es
exposición. una serie de relaciones históricas, políticas
y morales, una serie de intercambios,
3. Negociando una gramática de negociaciones, cargados de poder,
articulados alrededor de un centro y una
Tal delimitación está por ejemplo periferia.
ausente en ‘Magiciens de la Terre’, una
exposición que tuvo lugar en La Grande Halle Todos estos elementos están presentes
de La Villette y el Centre Pompidou en Paris en ‘Magiciens’, así como hasta cierto punto
en 1989. La exposición reunió los trabajos la colaboración y la autoridad compartida
de 50 artistas occidentales y 50 artistas no que Clifford demanda. Pero no en la 24ª
occidentales, de acuerdo a un principio de Bienal. La relación entre obras, la lectura
universalismo humanista centrado en la que se propone de cierta obra, el modo en
figura del creador (‘magicien’, y no artista). el que una obra simplemente aparece… son
Aquí el objeto de selección es el autor, no la el resultado de una autoría curatorial. Una
obra – la obra tiene cabida en tanto que es autoría tal vez compartida con curadores
la expresión de una subjetividad creadora, poseedores de una cierta, tal vez mayor
una subjetividad que enmarca y da sentido a cercanía a las obras seleccionadas, pero aún
las obras de arte incluidas en la exposición. así lejos de la visión procesual, constructiva
y dialógica propuesta por Clifford. En el
Esta presencia del autor posibilita un ‘Núcleo Histórico’ no hay lugar para una
momento de negociación, una instancia en negociación entre sujetos sobre los objetos
la cual el productor (a quien se considera – sólo, tal vez, una negociación entre unos
como poseedor de un acceso privilegiado a la objetos con otros.
obra) interviene, en cierta medida al menos,
en el contexto de presentación del trabajo. ***
Tal vez pueda parecer aventurado, pero en
este sentido se puede leer ‘Magiciens’ como En contraste con la noción del
una ‘zona de contacto’, tomando el concepto museo como zona de contacto, en el que
que James Clifford a su vez tomó de Mary se puede percibir un cierto agonismo en
Louise Pratt. El término ‘zona de contacto’. una negociación que a la vez quiere ser
productiva, y en la que es fundamental
Es un intento de invocar la co- la presencia de elementos en principio
presencia espacial y temporal de sujetos formalmente externos a las obras (como
que estaban antes separados por discurso o ceremonia), en ‘Magiciens’ tanto
discontinuidades geográficas e históricas, el discurso como la instalación buscan una
y cuyas trayectorias ahora se cruzan. Al harmonía, fundamentada en una creencia
utilizar el término ‘contacto’ quiero referirme en la posibilidad de comunicación (entre las
a las dimensiones interactivas, improvisadas obras y de las obras con el público). Esta
de los encuentros coloniales que son creencia da lugar a una instalación ‘abierta’,
fácilmente ignoradas o suprimidas por parte en la que se crean correspondencias sin
de narrativas difusionistas de conquista y aparentes divisiones.
dominación. Una perspectiva de ‘contacto’
enfatiza cómo los sujetos se constituyen en
y a través de las relaciones con otros. Pone
el acento en la co-presencia, la interacción,
4. Mary Louise Pratt citada en James Clifford, Routes: Travel and
concepciones y prácticas conectadas entre Translation in the Late Twentieth Century, Cambridge, MA and
sí, a menudo con relaciones de poder London: Harvard University Press, 1997, p.192 
43
Esta idea de apertura es tanto La idea de contaminación es opuesta
una idea de apertura institucional hacia a la idea de afinidad puesta en práctica
el exterior (un intento de cuestionar el en ‘Primitivism’ – la contaminación ocurre
aislamiento físico y conceptual garantizado entre dos cuerpos de diferente naturaleza
por el museo o la galería moderna) como y a menudo de diferente nivel ontológico.
hacia el interior (una eliminación de las La contaminación no es harmónica, y
divisiones tipológicas y conceptuales del sus resultados no son necesariamente
espacio del museo). En este sentido, la positivos o visibles – en contraste con las
apertura como estrategia curatorial sugiere yuxtaposiciones de ‘Magiciens de la Terre’.
un parentesco con ideales modernistas, y La contaminación hace difícilmente posible
presenta una similitud con desarrollos que la negociación de las ‘zonas de contacto’,
tuvieron lugar en los años 1960 en el diseño ya que centro y periferia, así como las
de oficinas de plan abierto, como la diseñada relaciones de poder, se desdibujan. Es decir,
por Quickborner para la oficina de Osram ya no responden a una estructura colonial
en Munich. En contraste con una estructura de formación de sujeto, sino de articulación
geométrica en la que cada trabajador tiene de obra – la contaminación no entiende de
un lugar de acción delimitado, aquí los propiedad, y tampoco de sujetos y voces
trabajadores se localizan dentro de áreas autorizadas, o de acceso privilegiado a
de influencia que conectan con otras áreas materiales culturales.
de influencia – áreas de influencia que se
definen por medio de líneas discontinuas, La contaminación no es tampoco, en
líneas porosas que posibilitan intercambio principio, crítica – en el sentido en que se
y contaminación. Es tal vez interesante, ha entendido este término en una tradición
o tal vez sintomático de una distancia Europea. Así se diferencia, a pesar de las
entre discurso y práctica curatorial, que al semejanzas estructurales, de las estrategias
mismo tiempo que la idea de transparencia que Fred Wilson puso en práctica en ‘Mining
en tanto que transparencia institucional the Museum’ en Maryland Historical Society
y desterritorialización es defendida por en 1992–93. Wilson se apropió y examinó
Herkenhoff como consustancial a la una colección de objetos de modo que un
exposición, el diseño del ‘Núcleo Histórico’ museo de sí mismo (un museo de raza
se asemeja a una estructura clásica de red. blanca) se convirtió en un museo de sí mismo
Es difícil especular en busca de las razones que reconoce lo que le hizo al otro (al otro
de tal opción, pero tal vez el hecho de que de raza negra) y así dio forma a un nuevo sí
la exposición sea en esencia una exposición que ahora incluye tanto blanco y negro. Pero
de imagen – una exposición de pintura! – lo hizo activando una dialéctica de visibilidad
haga necesario una división del espacio, e invisibilidad, y por tanto de una unión de
una demarcación del territorio, en la que el opuestos, una estructura de contradicción
soporte es a la vez una división. en búsqueda de una síntesis dialéctica. Esa
dialéctica ‘limpia’ no es posible en la 24ª
*** Bienal dada su temporalidad (la Bienal no
reescribe una colección permanente para el
Contaminación es un término clave futuro, como hace Wilson – está obligada a
para la 24 Bienal y su ‘Núcleo Histórico’. Es tal trabajar una articulación extremadamente
vez el término clave junto con antropofagia, temporal). Pero además porque la
y como éste, es aquí un término polisémico. contaminación no resulta en síntesis – si ha
Contaminación se refiere, según Herkenhoff, de haber un cambio permanente, éste es tal
a la coexistencia de distintos tiempos vez una mutación.
(histórico y contemporáneo); a la relación
con el mundo exterior; al resultado del acto 4. Forma y contenido
de canibalismo… y éstas son solo algunas de Qué es, entonces, lo que permite
las maneras de leerlo. la articulación de los distintos materiales
44
culturales en el contexto del ‘Núcleo de McCracken. Pero esta relación formal
Histórico’? Algunos de los mecanismos ya inicial (migración de formas?) puede dar
han sido apuntados. En primer lugar, es lugar a una investigación de otras posibles
necesaria una cierta comunidad – comunidad relaciones: porque aunque en diferentes
en general, proporcionada por una tradición modos, todos las obras tienen una relación
cultural local y un aparato conceptual y con la visibilidad: en Goldblatt, de un sector
referencial más amplio desarrollado a partir de la población que no la tenía, que vivía en
de ésta. Esta comunidad es una comunidad sombras. En los rubands, la visibilidad de la
de referencia (de contenido). Una vez esta mujer que va a ser entregada a su esposo,
comunidad está dada, es cuando es posible que no se puede ver y que ve, a su vez, a
establecer una serie de disyunciones de través de la tela. En McCracken, una visión
mayor o menor grado, en las que aspectos interior, esotérica, en la que el occidente de
de forma – de formalización – emergen California abraza una cierta versión de una
en un segundo momento. Esta relativa mística oriental.
prevalencia del contenido sobre la forma en
la 24ª Bienal es quizás más aparente si se La migración de formas no es por
la compara con una exposición que, 10 años tanto exclusivamente migración de formas,
después, adoptó estrategias muy parecidas, sino también de contenidos. La relación
pero en las que el contenido retrocedía, sin formal es la que permite establecer la
desaparecer, en beneficio de la forma. discusión entre una obra y otra, entre el
contenido de una y de otra, sin necesidad
Documenta 12 se presentó, en 2007, de que esos contenidos tengan en principio
como una exposición sin forma, cuando, una relación – ni de hecho ni aparente.
tal vez, o al menos también, era una
exposición sin contenido – una exposición El uso de una relación en principio
sin ‘un’ contenido. La exposición se articuló formal para dar lugar a una relación de
de acuerdo a un principio que los curadores, contenido es tal vez la estrategia opuesta a la
Ruth Noack y Roger Buergel, definieron, 24ª Bienal, en la que en principio una relación
post-facto, como la ‘migración de formas’. de contenido da lugar a una relación formal,
Migración de formas sugiere la posibilidad de que a su vez reinscribe ese contenido. Es en
establecer relaciones formales sin necesidad este sentido en el que la 24ª Bienal puede
de confiar en un referente común, un origen ser considerada como refiriendo, una vez
o una genealogía. más, a una antropología amazónica. Porque
la perspectiva Amerindia que defiende
Un ejemplo de las relaciones creadas una unidad de almas garantizando una
por la migración es un grupo de obras comunidad la multiplicidad de naturalezas –
constituido por una pintura mandala de y que así permite una comunicación entre
John McCracken (Kapai, 1970), una serie unas y otras – puede ser entendida como
fotos en blanco y negro de David Goldblatt una comunidad de contenido que posibilita la
que documentan el viaje al trabajo de comunicación entre formas completamente
poblaciones negras en Sudáfrica durante diferentes. Así, si el jaguar se puede
el apartheid (The Transported - A South comunicar con el árbol y con el hombre, a
African Odyssey, 1983), y una serie de pesar de su diferente naturaleza, en virtud
rubands, velos matrimoniales de Tajikistan de su alma igual, entonces las obras de
del siglo XIX. Geografía, historia o arte pueden establecer una comunicación,
tradiciones culturales no hacen posible esta un diálogo y un intercambio entre ellas a
agrupación. Tampoco, en principio tema. pesar de su diferente forma. Este diálogo,
Pero su yuxtaposición obliga a una lectura que tal vez es incompatible con la idea de
conjunta. Esta lectura puede comenzar por contaminación, es tal vez otra manera de
meras relaciones formales, geométricas y pensar la antropofagia como modelo de
cromáticas entre los rubands y el mandala estar juntos para las obras de arte.
45
Biografias
Renato Sztutman

Professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo


(USP). Mestrado e doutorado em Antropologia Social pela USP, área de etnologia
indígena. É pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios (CEstA) e do Laboratório
de Imagem e Som em Antropologia (LISA). Foi um dos fundadores e co-editou,
entre 1997 e 2007, a revista Sexta-Feira. Suas áreas de atuação são etnologia
e história indígena (com foco no problema das cosmopolíticas ameríndias),
teoria antropológica e antropologia & cinema. Publicou “Imagens-Transe: Perigo,
Possessão e a Gênese do Cinema de Jean Rouch”, em Imagem-Conhecimento:
Antropologia, Cinema e Outros Diálogos (Papirus, 2009).

Fabio Cypriano

Crítico de Arte, Jornalista, Repórter e Professor. Doutor em Comunicação e


Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde é professor nos
cursos de Jornalismo (graduação) e Jornalismo Cultural e Arte: Crítica e Curadoria
(pós-graduação e graduação). Atua como crítico de artes plásticas e repórter da
“Folha de S. Paulo”, desde 2000 , é colaborar da revista inglesa “Frieze”, da italiana
“Flash Art International” e autor de “Pina Bausch” (Cosac Naify, 2005), entre outros.

Tania Rivera
Psicanalista e ensaísta. Professora do Departamento de Arte e da Pós-
Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes na Universidade Federal
Fluminense (UFF-RJ). É Doutora em Psicologia pela Université Catholique de Louvain,
Bélgica, com Pós-doutorado em Artes Visuais pela EBA-UFRJ (2006). Pesquisadora
bolsista do CNPq. Autora dos livros “O Avesso do Imaginário. Arte Contemporânea
e Psicanálise” (Cosac Naify, no prelo) e “Hélio Oiticica e a Arquitetura do Sujeito”
(EdUFF, no prelo), além de “Cinema, Imagem e Psicanálise, Arte e Psicanálise
e Guimarães Rosa e a Psicanálise” (por Jorge Zahar Editor). Co-organizadora,
com Vladimir Safatle, de “Sobre Arte e Psicanálise” (Escuta). Dirigiu os vídeo-
ensaios “Who Drivesou o Olhar Outro” (2008), “Ensaio sobre o Sujeito na Arte
Contemporânea Brasileira” (2009) e “Imagem se faz com Imagens” (2010).

46
Lisette Lagnado

Professora do Mestrado de Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina (Fasm),


co-editou a revista eletrônica Trópico, com Alcino Leite Neto e Esther Hamburger.
Entre suas curadorias, destacam-se “Desvíos de la deriva” (Museo Nacional Centro
de Arte Reina Sofía, 2010), a 27ª Bienal de São Paulo (2006) e a Sala Especial Iberê
Camargo (II Bienal de Artes Visuais do Mercosul, Porto Alegre, 1999). Foi membro
de diversos juris de seleção, notadamente do 2nd Annual Deutsche Bank Urban
Age Award (2008). É curadora do Panorama 33 de Arte Brasileira do Museu de Arte
Moderna de São Paulo (2013) e autora de inúmeros artigos publicados no Brasil
e no Exterior, em revistas especializadas. Graduada em Jornalismo pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com mestrado em Comunicação e
Semiótica na mesma Universidade e doutorado em Filosofia pela Universidade de
São Paulo (USP).

Mirtes Marins de Oliveira

Coordenou o Bacharelado em Artes Plásticas (1997-2006) e implantou e


coordenou, de 2003 a 2013, o Mestrado em Artes Visuais na Faculdade Santa
Marcelina (Fasm), em São Paulo. Foi co-editora da revista do Mestrado da Fasm,
marcelina. Responsável pela produção dos Seminários Semestrais de Curadoria,
idealizados e liderados por Lisette Lagnado, coordenou os cursos de “Estudos
Curatoriais: perspectivas críticas e experimentais” e “Práticas curatoriais e gestão
cultural”, ambos na Fasm. Trabalhou nos setores educativos do Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo (1989-91) e da Fundação Bienal
de São Paulo (1987). Atualmente, é docente do Mestrado e Doutorado em Design
da Universidade Anhembi-Morumbi. Graduada em Artes Plásticas pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Mestre e Doutora
em Educação: História, Política e Sociedade, pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP), com tese sobre a produção fotográfica da cidade de São
Paulo nos séculos XIX e XX.

Pablo Lafuente

Vive e trabalha em Londres. É escritor, editor e curador, coeditor da revista


Afterall, Londres. Curador associado do Office for Contemporary Art Norway, Oslo.
Publica regularmente em Art Monthly, Parkett, Radical Philosophy e The Wire.
Participou de inúmeras conferências e simpósios no Institute of Contemporary Art,
Londres; Camden Arts Centre, em Camden; Neue Berliner Kunstverein (NBK), em
Berlim; documenta 12, Kassel, entre outros. Desenvolve atualmente a concepção
e organização do curso MRes Art: Exhibition Studies na University of the Arts
London, Central Saint Martins.

47
EQUIPE DA ESCOLA SÃO PAULO

Conselho

Cacilda Teixeira da Costa | Cristina Ricupero | Idel Arcuschin | Luisa Malzoni


Strina | Marcos Moraes | Márcio da Rocha Camargo | Paulo Mendes da Rocha |
Paulo Vieira | Rubens Ricupero | Solange Farkas

Direção Geral Isabella Prata

48

Você também pode gostar