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Sesc | Serviço Social do Comércio
Departamento Nacional

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ISSN 1809-9815
Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 23 | p.1-160 | set-dez 2013

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Sesc | Serviço Social do Comércio
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Antonio Oliveira Santos
DIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL
Maron Emile Abi-Abib

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ago. 2006)- . – Rio de Janeiro : Sesc, Departamento
www.sesc.com.br. Nacional, 2006 - .
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SUMÁRIO

Apresentação 5

Editorial 6

Dossiê: Lazer

Organização
Edmundo de Drummond Alves Junior 9

Sobre o conceito de lazer


Victor Andrade de Melo 15

O profissional do lazer
Hélder Ferreira Isayama 37

Lazer: um direito de todos


Edmundo de Drummond Alves Junior
Cleber Dias 63

Por uma história da assistência medieval: o caso de Portugal


Priscila Aquino Silva 87

A forma e as formas de “Alumbramento”


André Vinícius Pessôa 121

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APRESENTAÇÃO

A origem do Sesc vincula-se à intenção de contribuir para o desenvolvi-


mento do Brasil a partir de uma profunda compreensão de seu potencial
e dos obstáculos ao seu progresso.

Uma tarefa desafia aqueles que receberam como legado a missão de


realizar no presente os ideais vislumbrados pelos líderes do passado: a
revisão e a ampliação permanente dessa compreensão.

Assim como ao Sesc cabe atuar sobre a realidade social, cabe valorizar e
difundir o entendimento acerca dessa realidade, dos conceitos e ques-
tões fundamentais para o país e das políticas públicas e formas diversas
de promover o bem-estar coletivo.

antonio oliveira santos


Presidente do Conselho Nacional

Ler, estudar, pesquisar. Divergir, argumentar, contrapor. Comparar, deba-


ter, discutir. Criticar, questionar, propor. Fundamentar, elaborar, testar.
Organizar, encadear, remeter. Rever, revisar, publicar. Apresentar, expres-
sar, transmitir.

Com a revista Sinais Sociais, colaboramos para que esses verbos sejam
conjugados em favor de uma sociedade que traduza de forma mais
fidedigna a expressiva riqueza cultural e o potencial realizador de seus
cidadãos.

Conhecer para compreender, difundir para mobilizar, agir para transfor-


mar: eis as vertentes que definem a linha editorial da Sinais Sociais no
ambiente do pensamento e da ação social.

maron emile abi-abib


Diretor-Geral do Departamento Nacional

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A era da técnica que marca as sociedades contemporâneas nos coloca
cada vez mais reféns da velocidade. Somos constantemente tomados
por um estado de alerta, um sentimento de urgência. Vivemos em um
tempo “de obrigações pendentes e expectativas à espreita”, nas palavras
de Paul Valéry.

Como então dilatar o tempo, prolongar o olhar, ampliar a liberdade


que se contrapõe à lógica da razão instrumental? No contexto de um
modelo civilizatório centrado no trabalho produtivo e nos discursos da
ciência e da tecnologia, ressiginificar o tempo livre, a falta de objetivo
concreto ou finalidade útil e de prazo a cumprir, é um grande desafio.
Esses são, contudo, elementos indispensáveis às experiências do pen-
samento e da reflexão, à produção de obras de arte, em sua variação e
acabamento cuidadoso.

A pausa para pensar é um convite renovado a cada edição da Sinais


Sociais, que traz como tema central deste número o campo de conheci-
mentos e práticas do lazer, compondo um dossiê temático direcionado
às reflexões teóricas, éticas e políticas que articulam esse campo às di-
ferentes disciplinas e às dimensões da vida humana.

O entusiasmo com o tema está presente na apresentação de Edmundo


de Drummond Alves Junior aos três artigos que integram o dossiê,
anunciando a contribuição da publicação aos estudos do lazer. Seu arti-
go em parceria com Cleber Dias problematiza o lazer como direito social
e aborda os desafios para as ações políticas setoriais. Em articulação, a
perspectiva histórica das construções conceituais subjacentes à noção
de lazer, os destinos sociais do campo, bem como os desafios da forma-
ção e da inserção profissional são alvo da reflexão de Victor Andrade de
Melo e Hélder Ferreira Isayama.

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É, portanto, na organização dos tempos sociais, do trabalho e do não
trabalho, que a noção de lazer se funda, trazendo com ela a dimensão
da ludicidade e da criatividade. Desse modo, algumas aproximações se
tornam inevitáveis: o prazer, a arte, a dimensão estética da subjetivida-
de, bem como a distribuição mais democrática de recursos e oportuni-
dades, as liberdades substantivas, que tornam possível o exercício da
escolha social.

A presente edição da Sinais Sociais traz, assim, o artigo de Priscila Aquino


Silva, que resgata as bases históricas da atividade assistencial a partir
da Idade Média, revelando as mudanças na conformação do campo
como resultado do incremento populacional e da incapacidade de
a sociedade atender todas as suas necessidades. O artigo de André Viní-
cius Pessôa traz a dimensão da arte, que sem servir para nada, vale por
si. O autor aborda a originalidade do fazer poético de Manuel Bandeira
e assim nos remete aos impasses do uso do tempo e ao prazer de pen-
sar com todas as nossas faculdades, sobretudo com nossa capacidade
de imaginação e sensibilidade.

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DOSSIÊ

Lazer

Organização:
Edmundo de Drummond Alves Junior

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Edmundo de Drummond Alves Junior
Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) no
Programa de Pós-Graduação em Ciências do Cuidado em
Saúde e no curso de Licenciatura em Educação Física,
do Instituto de Educação Física. É responsável por dois
grupos de pesquisa cadastrados no CNPq: “Envelhecimento
e Atividade Física e Esporte” e “Lazer e Atividades na
Natureza”. É autor de livros sobre os temas lazer e
envelhecimento.

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Edmundo de Drummond Alves Junior

Foi com grande satisfação que aceitei o desafio de organizar este dossiê
Lazer. Primeiro pela temática, que se coaduna com minhas preocupa-
ções intelectuais e com as atividades acadêmicas que desenvolvo na
Universidade Federal Fluminense (UFF), onde atuo como professor e par-
ticipo de grupos de pesquisa que incluem os estudos do lazer em suas
linhas de pesquisa.

Depois, pelo fato de esta publicação reunir os autores Victor de Andrade


Melo, Hélder Ferreira Isayama e Cleber Augusto Gonçalves Dias, colegas
de profissão de longa data. Juntos, conseguimos ultrapassar o formalis-
mo das relações acadêmicas e muito rapidamente pude incluí-los no rol
das boas amizades que cultivamos no decorrer da vida. Com eles tenho
percebido na prática o sentido do que entendemos como lazer.

Contudo, vale ressaltar que a escolha desses autores ultrapassa a aproxi-


mação pessoal, justifica-se sim pela conexão de seus artigos à temática
proposta e pelo forte senso de compromisso profissional que eles man-
têm com os estudos do lazer. Além disso, merece registro e dá peso à
empreitada o fato de o Sesc estar envolvido.

Nos últimos anos, essa entidade sempre esteve presente nas principais
reflexões que foram realizadas em nosso país sobre o lazer, apresentan-
do propostas que contribuíram para o avanço nos estudos dessa área e
também para o desenvolvimento de eventos acadêmicos. Um exemplo é
o Encontro Nacional de Recreação e Lazer (Enarel), que este ano terá sua
25ª edição em Ouro Preto (MG).

Concordamos que é na organização dos tempos sociais, e em espe-


cial nas relações tempo do trabalho e tempo do não trabalho, que
está a origem do que chamamos lazer. Nos três textos serão abor-
dadas reflexões sobre o que estamos entendendo com o conceito
e suas repercussões no campo profissional e acadêmico. Como vere-
mos, o lazer já é área de estudos em níveis de mestrado e doutorado, em

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Dossiê: Lazer

programas de pós-graduação com boas avaliações da Coordenação de


Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Os autores aqui reunidos atuam em cursos de pós-graduação e, por cau-


sa dessas atuações, o estudo do lazer vem sendo tratado de forma mais
rigorosa. Incluímos também algumas reflexões sobre a prática do lazer
presente tanto nas áreas rurais como também nos centros urbanos.

No artigo “Sobre o conceito de lazer”, do professor Victor Andrade Melo,


da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), somos informados de
que no Brasil, já no século XIX, se percebiam discussões sobre os diversos
sentidos do que era divertir-se. Entre as décadas de 1920 e 1930 surgiram,
de forma mais sistematizada, os primeiros debates sobre os conceitos
relacionados ao que hoje chamamos de campo do lazer.

Mais recentemente, no final da década de 1970 pode-se perceber uma


maior estruturação do lazer no campo acadêmico e sua consequente en-
trada no meio universitário. Victor de Andrade Melo argumenta que se
por um lado há uma “consolidação do campo acadêmico”, por outro lado,
a diversificação do mercado de trabalho para os profissionais do lazer re-
flete a “configuração de uma indústria do entretenimento cada vez mais
influente e poderosa”. E para discutir a formação do conceito e empre-
ender sua reflexão, o autor apresenta uma proposta bastante instigante,
construída a partir de suas observações cotidianas como um participan-
te ativo das ações do campo acadêmico dos estudos do lazer no Brasil.

No seguinte texto, “O profissional do lazer”, o professor Hélder Ferreira


Isayama, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), alerta que
embora poucos estudos tenham sido realizados sobre a qualificação dos
profissionais que atuam nessa área, encontramos ações voltadas para
uma melhor qualificação dos quadros envolvidos. Ele destaca que o não
reconhecimento da importância do lazer frente à “supervalorização do
trabalho” é um desafio tanto aos debates, como a formulação de políticas
públicas, que uma vez institucionalizadas, serão capazes de absorver os
profissionais do lazer. O autor lembra ainda que como direito social, o lazer
está previsto na Constituição Federal de 1988. E a partir de uma pesquisa
na plataforma Lattes, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
tífico e Tecnológico (CNPq), observa também o caráter multidisciplinar
do lazer e o fato de o envolvimento multiprofissional ser uma realidade.

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Edmundo de Drummond Alves Junior

Por isso propõe para a melhoria da qualidade dos profissionais que atuam
no âmbito do lazer uma intervenção interdisciplinar. Hélder Ferreira
Isayama aponta alguns problemas como os cursos centrados no “fazer
por fazer”, em receitas de atividades ditas “recreativas” e em uma ten-
dência à comercialização das propostas de formação profissional na
área, que, segundo ele, de maneira geral, restringem a compreensão so-
bre o lazer. Entretanto reconhece que iniciativas variadas, tanto em uni-
versidades como em alguns órgãos públicos, já produzem reflexões sobre
o lazer de forma “abrangente e contextualizada”.

E, finalmente, em “Lazer: um direito de todos”, Edmundo de Drummond


Alves Junior e Cleber Dias tratam de alguns dos desafios para ações polí-
ticas no âmbito do lazer, a partir de uma reflexão sobre o significado geral
de políticas públicas de lazer para populações urbanas e rurais.

O primeiro caso, ligado às populações urbanas, já é um espectro relati-


vamente bem-consolidado, contando com iniciativas diversas. O papel
do Sesc, inclusive, tem concorrido decisivamente, graças a uma atuação
contínua e perene, visando a diversos grupos sociais urbanos, entre eles
os “idosos”, que estão certamente entre os mais beneficiados.

Por vários motivos, que este artigo examina, atividades de lazer em am-
bientes urbanos e associativos encontram, entre indivíduos com mais
idade, um público privilegiado. É bastante revelador que o surgimento
histórico de algumas das primeiras políticas assistenciais, com ativida-
des recreativas de lazer como objeto privilegiado no Brasil, esteja relacio-
nado à organização ou reorganização do sistema previdenciário.

Nesse contexto, Edmundo de Drummond Alves Junior e Cleber Dias


iniciam suas reflexões sobre o assunto dimensionando as categorias
geracionais como velhice ou juventude no universo da cultura, isto é,
observando como dados biológicos são manipulados culturalmente. Em
particular, os autores expõem que a velhice é uma construção histórica
peculiar, condicionada por circunstâncias sociais diversas. No caso do
Brasil, conforme argumentam, ainda são restritas as propostas que vi-
sem diminuir barreiras geracionais.

Já no segundo caso, das populações rurais, os autores problematizam


parte das diretrizes que têm orientado ações setoriais no âmbito das po-
líticas públicas de lazer. Em particular, eles questionam a ênfase sobre

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Dossiê: Lazer

situações urbanas, desconsiderando, de certo modo, a estruturação


social do Brasil, que conta ainda com considerável contingente populacio-
nal em situações rurais.

Os autores apontam a necessidade de se revisar concepções de cultura


implícitas nas propostas de atividades de lazer e propõem: “o melhor
seria que se dissolvessem mesmo quaisquer fronteiras entre esses dois
campos de atuação: o lazer e a cultura”.

Ao terminar, registro mais uma vez o meu agradecimento e a disponibi-


lidade dos colegas que atenderam ao chamado para deixarem suas con-
tribuições. Esperamos que você, leitor, faça um bom proveito deste que
pretende ser mais um dos importantes documentos produzidos sobre os
estudos do lazer.

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Sobre o conceito de lazer

Victor Andrade de Melo

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Victor Andrade de Melo
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), onde atua nos Programas de Pós-Graduação em
História Comparada (Instituto de História) e em Educação
(Faculdade de Educação). É também docente do Programa
de Pós-Graduação em Estudos do Lazer da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) e editor da revista Licere.
Integra a direção da recém-criada Associação Brasileira de
Pesquisa e Pós-Graduação em Estudos do Lazer (Anpel) e
coordena o Sport: Laboratório de História do Esporte e do
Lazer. É autor de livros sobre lazer e pesquisador bolsista
de produtividade em pesquisa do CNPq (2010-2014).

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Sobre o conceito de lazer

Resumo
No Brasil, os debates sobre os conceitos relacionados ao
que hoje chamamos de campo do lazer têm origem com os
primeiros projetos de intervenção implantados no país, ainda
que discussões sobre os sentidos do divertir-se já estivessem
presentes no cenário nacional desde o século XIX. Tais debates
tornam-se mais comuns a partir dos anos 1970, quando
começa a se conformar um campo acadêmico sobre o tema.
Nessa trajetória recente, lazer consagra-se como o termo mais
utilizado, ao redor do qual se percebe um conceito majoritário,
estabelecido a partir do cruzamento das dimensões tempo e
atitude. Recentemente alguns autores vêm tentando apontar os
limites desse conceito, sugerindo novos elementos que devem
ser considerados. Partindo de um olhar sobre essas iniciativas,
este artigo intenta promover uma reflexão sobre a importância
da discussão conceitual, a partir de considerações sobre os
limites e potencialidades do conceito de Lazer.

Palavras-chave: Lazer. Conceito. História.

Abstract
In Brazil, the debates on the concepts related to what we now
call “leisure” scope have originated with the early intervention
projects established in the country, although discussions on
the meanings of fun have been already present on the national
scene since the nineteenth century. Such debates became
more common since the 1970s, when it begins to settle an
academic field around the theme. In this recent history, leisure
is established as the most used term in which a majority
concept is realized, instituted by the crossing of time and
attitude dimensions. Some authors have currently trying to
point out the limits of this concept, suggesting new elements
that shall be considered. From a view on these initiatives, this
paper attempts to promote a reflection on the importance
of conceptual discussion, based on considerations about the
limits and potentialities of the Leisure concept.

Keywords: Leisure. Concept. History.

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Dossiê: Lazer

Ainda que discussões sobre os sentidos do divertir-se já estivessem pre-


sentes no cenário nacional desde o século XIX , foi a partir dos primeiros
projetos de intervenção realizados no país, nas décadas de 1920 e 1930,
nas cidades de Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo, que os debates so-
bre os conceitos relacionados ao que hoje chamamos de campo do lazer
se tornaram mais comuns no Brasil.1

Nos conceitos mobilizados naquele momento, sem a mesma estrutura-


ção dos dias atuais, o que é compreensível dado que não tínhamos ainda
constituído um pensamento acadêmico sobre o assunto, já se percebem
diversos posicionamentos teóricos dos distintos termos mobilizados, no-
tadamente sobre a ideia de “recreação”. Durante muitos anos esse foi o
termo de uso mais generalizado. Importa observar que eram as neces-
sidades e as experiências de intervenção que traziam à baila os debates
fundamentais, ao contrário do que ocorreria alguns anos depois.

É somente nos anos finais da década de 1970 que começa a melhor se es-
truturar um campo acadêmico do lazer. Esse conceito, aliás, tornar-se-ia
o mais usado e amplamente aceito. As experiências de organização de
grupos de estudos — notadamente na PUC/RS, com o Celar, dirigido
por Zilah Totta (WERNECK, 2003) e no Sesc-SP, com o Celazer, dirigido por
Renato Requixa (BICKEL, 2013) —, bem como de promoção de um maior
número de congressos e seminários sobre o assunto, anteciparam e mes-
mo criaram uma ambiência para o que viria a ocorrer nos decênios se-
guintes: a definitiva entrada do tema nas universidades.2

Progressivamente aumentaria o número de coletivos de pesquisa e de


eventos científicos. Percebe-se o crescimento do oferecimento de disci-
plinas ligadas ao tema, notadamente em cursos de formação das áreas
de educação física e turismo. É notável o incremento, quantitativo e qua-
litativo, da produção sobre o assunto, refletida na forma de teses e dis-
sertações, trabalhos apresentados em congressos, livros e capítulos de
livros, artigos em periódicos, entre os quais muitos publicados na Licere,
uma revista especificamente dedicada ao lazer, já em publicação há 15
anos, conforme mostra o estudo de Isayama e Melo (2013).

Além disso, já existe um curso de pós-graduação stricto sensu (mestrado e


doutorado) dedicado ao assunto, oferecido pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), e recentemente foi criada a Associação Brasileira

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Sobre o conceito de lazer

de Pesquisa e Pós-Graduação em Estudos do Lazer (Anpel). Trata-se de


um campo consolidado, ainda que, inclusive em função de sua estrutu-
ração recente, haja muito a fazer para que sua legitimidade seja definiti-
vamente conformada.3

Nesse percurso recente é possível afirmar que os posicionamentos con-


ceituais de Joffre Dumazedier estiveram entre os mais mobilizados. Seja
por aqueles que concordavam com o sociólogo, inclusive os que estavam
envolvidos com as iniciativa pioneiras dos anos 1970, seja contestados
pelos novos agentes que se tornaram protagonistas nas décadas de 1980,
1990 e mesmo já na primeira década do século XXI (GOMES, C.M., 2004).

Nesse processo de conformação do campo, tanto se consolidou um con-


ceito de lazer amplamente utilizado, compreendido basicamente a partir
do cruzamento das dimensões tempo (de caráter mais objetivo, mais so-
cial) e atitude (de caráter mais subjetivo, psicológico),4 quanto surgiram
algumas críticas ou sugestões de novas conceituações, como as de Chris-
tiane Gomes (2004) e Mascarenhas (2005), entre outros.

Vejamos que, nesse debate, ao contrário do período anterior, não neces-


sariamente se tem em conta as necessidades de intervenção, mas sim a
própria dinâmica interna da produção de conhecimento. O que tem a ver
com as peculiaridades desse novo momento em que, pari passu à con-
solidação do campo acadêmico, diversificou-se o mercado de trabalho
para profissionais de lazer; fruto da definitiva, embora imprecisa e incon-
clusa, configuração de uma indústria do entretenimento cada vez mais
influente e poderosa. Aliás, devemos assumir que nem sempre têm sido
constantes os diálogos entre essas duas esferas (academia e mercado),
uma ocorrência que deveria merecer maior atenção por parte de agentes
de ambos os lados.

É inegável o valor dos esforços de discussão do conceito de Lazer, pelo


que eles trazem de arejamento aos debates, e também no que tange à
desestabilização de compreensões consolidadas no campo. No entanto,
considero que tais esforços têm sido procedidos ainda de forma pou-
co consistente (e pouco convincente). A despeito das boas intenções,
eles não chegaram a aportar grandes contribuições para se repensar o
conceito, que parece seguir sólido nos moldes que o consagrou no uso
acadêmico.

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Dossiê: Lazer

A fragilidade dessas iniciativas se deve a carências nos dois grandes


aportes que podem e devem conformar um conceito, o sociológico e o
histórico, sem os quais as tentativas de “inovação” podem não passar de
uma abstração que não dá conta da peculiaridade da característica abs-
trata que deve ter um conceito.

Devemos reconhecer que a circulação de um conceito não se deve apenas


a aspectos que se referem especificamente à questão epistemológica. Há
o fato, por exemplo, de ele passar a ser adotado por grupos específicos,
sem esquecer o valor que lhe agrega o prestígio de seus formuladores,
entre outros aspectos. Contudo, se essa dupla dimensão, sociológica e
histórica, não está claramente compreendida e constituída, mesmo que
obviamente nos padrões possíveis em cada momento, dificilmente há
condições de grande utilização de tal conceito, tornando-o no máximo
um tiro de curso curto e tempo breve.

Dialoguemos com um autor que se dedicou a discutir a questão dos con-


ceitos, a partir da própria indagação sobre a natureza do conhecimento
produzido pela sociologia: Georg Simmel. Para o autor:

Se deve existir uma Sociologia como ciência particular, é necessário que


o conceito de sociedade como tal, por cima da agrupação exterior dos
fenômenos, submeta os fatos sociais históricos a uma nova abstração e
ordenação, de modo que se reconheçam como conexas, formando assim
objeto de uma ciência (SIMMEL, 1983, p. 59).

Ao sugerir que os conceitos devem ter algo de abstração, Simmel de ma-


neira alguma está propondo qualquer forma de descolamento da reali-
dade. Muito pelo contrário, o autor infere que o conceito somente pode
ter alguma validade se, de fato, se referir à concretude dos objetos que
pretende definir. Sem isso, sem que possamos efetivamente a partir dele
lançar o olhar para os fenômenos investigados, trata-se apenas de um
exercício retórico, que não terá maiores desdobramentos.

O que Simmel propõe, todavia, é que um conceito não pode se prender


a todos os casos particulares, sob o risco mesmo de não existir como
conceito. Não se deve esperar que ele nos explique todas as peculiari-
dades de cada uma das possíveis manifestações do objeto, mas sim que,
como uma generalização, diga-nos o máximo possível sobre suas regula-
ridades, dando-nos condição de entender de maneira articulada práticas
que podem até parecer bastante distintas, mas que têm muitos pontos

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Sobre o conceito de lazer

em comum (exatamente os elementos de generalização que permitem a


construção do conceito).

Há um tipo de situação que ocorre em muitas ocasiões docentes em


que tratamos do conceito de lazer. É comum algum aluno encontrar um
exemplo que escapa à definição. Esse tipo de “descoberta” não deve cau-
sar apreensão. Isso é absolutamente aceitável, na medida em que o con-
ceito não pode mesmo dar conta de todas as particularidades de práticas
tão distintas que reunimos sob a capa de um mesmo objeto.

A questão a ser pensada é se esse conceito dá conta de muitas coisas


em comum disso tudo que reunimos sob o manto do que chamamos de
lazer, que em si já é uma abstração, uma criação teórica para dar conta de
fenômenos por vezes mesmo muito díspares (e que geraram ao seu redor
os mais diferentes termos, como diversão, divertimento, ócio, ociosidade,
ludicidade, tempo livre etc.). Por que nenhum desses termos logrou, em
nossa realidade, tanto sucesso quanto lazer? Certamente por questões
conjunturais diversas (que não vamos debater para não fugir do cerne de
nosso debate), mas talvez também pela força e qualidade da construção
de sua definição.

Logo, os bons conceitos, isso é, aqueles que logram sucesso em se aproxi-


mar da forma mais ampla possível do objeto ao qual se propõem concei-
tuar, têm sempre algo de generalização e algo de particular, sem descon-
siderar nenhum dos dois aspectos. Conforme apresenta Simmel:

O objeto que abstraímos da realidade pode, por um lado, ser considerado,


do ponto de vista das leis, que, partindo da pura estrutura objetiva dos
elementos, se apresentem independentemente de sua realização espaço-
temporal. Têm a mesma validade, quer as realidades históricas as façam
manifestar-se uma ou mil vezes. Por outro lado, porém, aquelas formas
de associação podem ser examinadas, com igual validade, em relação à
sua ocorrência em lugares e tempos específicos, e de seu desenvolvimen-
to histórico em grupos determinados (SIMMEL, 1983, p. 66).

A consideração do autor merece nossa atenção: “A verificação, neste últi-


mo caso, encontra-se na própria finalidade histórica, por assim dizer; no
primeiro caso, é necessário colher material para a indução das leis que
não se sujeitam ao tempo” (SIMMEL, 1983, p. 66). Isto é — sem deixar de
considerar a questão da particularidade, que será testada pelo caráter in-
vestigativo da pesquisa histórica —, um esforço de construção conceitual

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Dossiê: Lazer

deve saber dos seus limites enquanto explicação, dado que sua potencia-
lidade é de outra dimensão. E nesse sentido deveríamos nos perguntar
se pode, ou como pode, ou quanto pode o conhecimento histórico contri-
buir para esforços de conceituação. Vejamos o que diz o autor:

Prescindo aqui da questão de se existe uma igualdade absoluta de formas


com diversidade de conteúdos. A igualdade aproximada que apresentam
as formas em circunstâncias materiais bem diferentes, assim como o
contrário, é suficiente para, em princípio, considerá-la possível (SIMMEL,
1983, p. 67).

Como podemos perceber, em momento algum o autor abandonou a


história como um dos elementos definidores do conceito. Valerá então
prospectar a materialidade histórica dos conceitos para termos em conta
seus limites. Isso não deve ser feito necessariamente para substituir o
conceito (ou para dizer que ele não é válido). É de outra natureza o valor
inegável dessa atitude: afinar os mecanismos de análise e interpretação
tendo em conta os conceitos, sempre lembrando que sem eles corremos
o risco de mergulhar em particularidades sem nenhuma síntese ou ex-
trapolação possível.

Neste momento da reflexão, devo deixar claro que o esforço que tento
entabular não tem a menor pretensão de sistematizar um novo conceito
de lazer, tarefa para a qual não tenho competência, para a qual ainda não
há materialidade e, por conseguinte, para a qual ainda não vejo urgência.
Embora pense que existam indícios de mudança, debruçar-me-ei sobre
as duas últimas considerações no decorrer do artigo.

Na verdade, minhas considerações têm mais a ver com meu exercício


cotidiano de pesquisador. Um historiador do esporte, que cada vez mais
se entende como um historiador do lazer e que, de fato, se pretende um
historiador independente de qualquer denominação. E ainda um obser-
vador e participante ativo das ações do campo acadêmico dos estudos
do lazer no Brasil, um agente que entende que sem o rigor conceitual
adequado, estaremos longe de caminhar para a sua definitiva confor-
mação. Logo, meu compromisso de debate se alinha ao que já observei
sobre iniciativas recentes semelhantes: tem em conta não os arranjos da
intervenção, e sim os desafios da investigação acadêmica. O que, aliás, já
se deve ter percebido, não considero nenhum problema.

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Sobre o conceito de lazer

O fato que me chamou a atenção para as questões conceituais foram as


iniciativas no âmbito da história do lazer. O que considerar como lazer
no século XIX, período com o qual tenho trabalhado já há alguns anos?
O conceito de Lazer com o qual trabalhamos nos dias de hoje ajudaria ou
mais atrapalharia a observação sobre aquele período, no qual ainda não
estavam, em nosso país, consolidadas as bases materiais que fundamen-
tam a construção conceitual? Sejam quais forem as respostas a essas
questões, não as considero suficientes para “derrubar” o conceito, mas
creio que, no mínimo, conclamam a uma compreensão mais adequada
dos limites dos usos conceituais, obviamente tendo em vista a natureza
da pesquisa histórica, mais afeita às particularidades.

Para tentar entender melhor os desafios que se apresentam, tenho traba-


lhado com a história dos conceitos:

A história dos conceitos coloca-se como problemática indagar a partir de


quando determinados conceitos são resultado de um processo de teori-
zação. Essa problemática é possível de ser empiricamente tratada, objeti-
vando essa constatação por meio do trabalho com as fontes (KOSELLECK,
1992, p. 3).

Sua configuração partiu de uma crítica à baixa contextualização de ideias


e conceitos utilizados em investigações históricas, a um olhar essencial
acerca de algumas noções, o que estaria na raiz de abordagens eivadas
de anacronismo. Assim, a proposta é:

Os conflitos políticos e sociais do passado devem ser descobertos e inter-


pretados através do horizonte conceitual que lhes é coetâneo e em ter-
mos dos usos linguísticos, mutuamente compartilhados e desempenha-
dos pelos atores que participaram desses conflitos (JASMIN, 2005, p. 31).

A pergunta que devemos fazer, portanto, é: quanto serve o conceito de


lazer para entender um período no qual ele poderia não fazer sentido
na estrutura de sentimentos? Essa é uma questão a ser investigada. Ou
será que fazia sentido? Se não fazia, que conceitos daquele tempo davam
conta desse sentido? Quanto esses conceitos se aproximam e se afastam
do conceito atual?

Um indicador interessante é a própria existência de certas palavras. Vale


considerar que Koselleck chama a atenção para que se perceba que há dis-
tinções entre estas e os conceitos: “Todo conceito se prende a uma palavra,
mas nem toda palavra é um conceito social e político. Conceitos sociais

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Dossiê: Lazer

e políticos contêm uma exigência concreta de generalização, ao mesmo


tempo em que são sempre polissêmicos” (KOSELLECK, 2006a, p. 107).

Não se trata, por certo, de um empreendimento puramente etimológico.


Bem de acordo com a ideia de que o conceito é uma generalização, e isso
significa que pode mesmo o ser do ponto de vista transtemporal, ainda
que reconhecendo que a palavra é um importante indicador, Koselleck
chama a atenção para o fato de considerar “teoricamente errônea toda
postura que reduz a história a um fenômeno de linguagem, como se a
língua viesse a se constituir na última instância da experiência histórica”
(KOSELLECK, 1992, p. 3).

Isso significa que inegavelmente uma palavra se gesta ou adquire o cará-


ter de conceito somente quando há uma determinada experiência histó-
rica que gera sua necessidade. Na mesma medida essa palavra/conceito
também torna possível os desdobramentos da experiência histórica:

O conceito, portanto, aparece como fenômeno da linguagem com conse-


quências para “fora da linguagem”, porque conforma a própria vida his-
tórica, enquanto elemento fundamental da disputa política. A afirmação
de um conteúdo – de um conceito – é a vitória de um determinado pro-
jeto, de uma determinada maneira de ver as coisas (JASMIM, 2005, p. 34).

A palavra leisure surgiu no século XIV, com o sentido de “oportunidade


de fazer algo”, derivada do francês medieval leisour, originário do francês
antigo leisir, que significava “ser permitido”, que por sua vez vinha do
latim licere, que significava “ser lícito”. Já o conceito moderno de Lazer se
sistematizou a partir do século XVIII. Isto é, mesmo que a palavra exista
há cerca de seis séculos, o que hoje chamamos de lazer não tem mais de
três séculos, ainda assim tendo uma trajetória específica de conforma-
ção nesse tempo.

Aliás, não se deve perder de vista que no processo de definição desse


conceito, também houve uma conformação de certas dimensões mais
afeitas a outros conceitos. Por exemplo, até o século XVIII, o conceito de
sport contemplava grande parte do que hoje está contemplado no con-
ceito de lazer, enquanto houve uma mudança no conceito de sport, que
adquiriu novos sentidos.5

É bem interessante a sugestão de Koselleck: “Todo conceito só pode en-


quanto tal ser pensado e falado/expressado uma única vez. O que signifi-

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Sobre o conceito de lazer

ca dizer que sua formulação teórica/abstrata relaciona-se a uma situação


concreta que é única” (KOSELLECK, 1992, p. 5). Nesse sentido, “a história
dos conceitos mostra que novos conceitos, articulados a conteúdos, são
produzidos/pensados ainda que as palavras empregadas possam ser as
mesmas” (KOSELLECK, 1992, p. 7).

Assim, o que hoje chamamos de lazer é o que se tornou preponderante em


função de condições históricas específicas. Trata-se, portanto, de um pro-
jeto vencedor, não devendo ser confundido com o mesmo uso da palavra
em outros cenários. Devemos atentar ainda que, mesmo quando a palavra
não era usada exatamente no sentido atual, algumas dessas novas dimen-
sões podem ter sido paulatinamente manifestas, já que há uma trajetória
conceitual, isto é, um percurso de transição entre um conceito e outro.

O conceito de lazer conforme hoje operado encontra suas bases histó-


ricas no que ocorreu no decorrer do século XVIII, a articulação entre o
desenvolvimento de um novo modelo econômico (que tem como um
dos parâmetros centrais o modo de produção fabril), uma nova organiza-
ção política (o fim do Absolutismo e a gestão da ideia de Estado-Nação),
a melhor estruturação de um conjunto de posições acerca da vida em
sociedade (decorrentes do Iluminismo e do Liberalismo) e a nova confor-
mação de classes sociais (o crescimento do poder da burguesia e o surgi-
mento da classe operária), configurando um momento histórico marcado
pela ruptura com o passado.

Não pretendo prolongar a discussão neste artigo. Isso já foi feito em outras
ocasiões, dialogando com dois grandes pesquisadores que, aparentemen-
te antagônicos, têm muitos pontos em comum, muitas possibilidades de
diálogo: E. P. Thompson e Max Weber. Nessas ocasiões, também procurei
me debruçar sobre a história social inglesa, para tentar esmiuçar melhor o
processo de transição da produção doméstica para a produção da fábrica e
desta para a grande indústria (MELO, 2010b).

Devo, todavia, resumir esse debate, para dar sequência à minha argumen-
tação. O que chamamos de lazer é fruto de uma nova organização dos tem-
pos sociais, que gestou uma mais clara separação entre o tempo de
trabalho e o tempo de não trabalho, bem como de um processo de raciona-
lização que impregna todas as instâncias sociais a partir de determinado
momento.

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Dossiê: Lazer

Não é somente a manifestação da diversão em uma sociedade marcada


pelas noções de consumo e espetáculo. É uma conformação bastante dis-
tinta das anteriores formas de diversão, uma expressão (ou invenção, se
preferirem) de uma nova ordem social, se relacionando às novas possibi-
lidades de reunião social, ao intenso (e cada vez maior) trânsito (inclusive
transnacional) de produtos e dinheiro, às necessidades de estabeleci-
mento de novos elementos de status e distinção (adequados à dinâmica
do novo regime). Tudo isso manifesto naquele espaço que se configurou
como o prioritário das experiências humanas: a cidade.

Não se trata de pensar que o “mercado” apreendeu o lazer, mas sim de


dizer que o lazer é inseparável do mercado, tendo que ser entendido a
partir das ambiguidades que isso traz: hiperestimulação e controle; cria-
ção de muitas alternativas e acesso restrito.

Essa nova apreensão de uma antiga palavra, esse novo conceito, carre-
ga, contudo, uma ambivalência; ou melhor, uma dimensão de passado e
uma expectativa de futuro. Como sugere Luísa Pereira sobre os concei-
tos em geral: “Por um lado expressam conteúdos de experiências, con-
junturas, modos de pensar já sedimentados. Por outro, são projeções,
visualizações de um futuro possível, projetos e prognósticos” (PEREIRA,
2005, p. 49).

Ao dizer tanto sobre o que já é quanto sobre aquilo que se espera que
seja, a transição conceitual nos ajuda a perceber o processo simultâneo
de constituição do fenômeno. Portanto, do antigo formato da diversão
para o novo formato da diversão há um percurso não linear e heterogê-
neo. Assim, a constituição do conceito, que tem a ver com a gestão ou
ressignificação de uma palavra, é tanto decorrência quanto agente desse
percurso. Por isso nos parece tão útil esse esforço de entender a história
do conceito:

A história dos conceitos, ao investigar as mudanças e permanências dos


significados dos conceitos, pode indicar permanências estruturais na
realidade social e contribuir para a elaboração e a crítica dos conceitos
científicos atuais utilizados pela disciplina histórica (PEREIRA, 2005, p. 49).

Vemos que essa transição de um fenômeno para outro, de um conceito


para outro, não ocorre da mesma forma em todos os lugares. Muitas prá-
ticas têm um ou mais epicentros de onde vão se espraiando, sendo apre-

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Sobre o conceito de lazer

endidas nunca de forma linear, mas sim dialogando com as condições de


possibilidades específicas de cada um desses novos espaços.

O lazer e também o esporte são fenômenos típicos desse processo. É na


Inglaterra que se conformam: a situação histórica do século XIX criara
as condições para sua gestação e na esteira dos cada vez mais frequen-
tes contatos transnacionais vão se difundindo pelo mundo. Assim, é im-
portante também entendermos como essas práticas foram traduzidas,
inclusive do ponto de vista linguístico, em cada país, um indício tanto
das reapropriações quanto da peculiaridade da estrutura de sentimentos
que acolheria aquilo que desembarcava. Ou seja, a própria língua coloca
condições para inteligibilidade dos conceitos que estão chegando.

Melvin Richter chama a atenção para que não vejamos a tradução so-
mente pelo viés da coerção, mas também a partir das ideias de releitura,
interpretação, reformulação: “O problema real é definir o processo em
marcha em seus próprios termos, e não nos termos de uma teoria ex-
planatória geral que pretende informar antecipadamente o resultado da
dominação ou da hegemonia” (RICHTER, 2006, p. 115).

O caso do Brasil do século XIX é bem interessante para pensarmos esse


tipo de ocorrência. Uma consulta aos jornais, romances e memórias
do período nos fará perceber que o termo lazer praticamente não era
utilizado. Todavia, desde pelo menos 1850, no caso da capital do Impé-
rio à época, já se percebia uma melhor conformação e diversificação
da estrutura de entretenimentos, marcada pela tentativa de sintoniza-
ção com o que se passava no “mundo desenvolvido” (MARZANO; MELO,
2010). Já começavam então a ser operados alguns parâmetros do novo
arranjo da diversão. Mas isso ainda não estava completamente defini-
do, inclusive pelas características estruturais da nação que começava a
ser forjada.

Não tínhamos ainda, por exemplo, uma organização dos tempos sociais
nos moldes do modelo fabril, embora já caminhássemos para tal, não só
em função do primeiro surto industrial, como também pelas lutas dos
trabalhadores, inclusive dos ligados ao comércio. O país ainda era rural,
mas já tínhamos cidades que apresentavam uma malha urbana em di-
versificação, caso do Rio de Janeiro e de Recife. A melhor estruturação
de um mercado de luxos e diversões, que estava relacionado a intuitos

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Dossiê: Lazer

civilizatórios, já criava tensões no tocante à ocupação do tempo livre e do


espaço público, choques com hábitos e costumes locais.

Entende-se, portanto, porque nem a palavra nem o conceito de lazer es-


tivessem em pleno uso: as condições concretas para tal ainda tardariam
algumas décadas, antecedidas, como vimos, da ideia de recreação.

Essa trajetória nos alerta para os cuidados que devemos ter na operação
de conceitos. Não estamos dizendo que o conceito de lazer necessaria-
mente seja incapaz de ser operado no século XIX, apenas que devemos
ter claro quais são os seus limites. Isso chega a ferir a força de sua ge-
neralização? Somente se de forma nenhuma ele puder ser explicativo, o
que não é o caso, pois, como vimos, havia sim indícios de primórdios da
operação daquilo que constitui sua base histórica.

Por isso Koselleck dedicou-se também a discutir as possíveis relações


entre a história dos conceitos e a história social. Para ele, a história dos
conceitos pode contribuir para que os historiadores sociais compreendam
melhor o que exatamente pretendem estudar a partir do entendimento
dos usos de linguagem daqueles que vivenciaram os fatos investigados.
Sem ser a única alternativa, a história é, sem dúvida, uma ferramenta útil:

A história dos conceitos é, em primeiro lugar, um método especializado


da crítica de fontes que atenta para o emprego de termos relevantes do
ponto de vista social e político e que analisa com particular empenho ex-
pressões fundamentais de conteúdo social e político (KOSELLECK, 2006a,
p. 103).

Ressaltamos de novo o que nos parece fundamental nesse esforço de


entendimento conceitual: “Registrar as diferentes designações para os
fatos (idênticos?), de forma que lhe seja possível explicar o processo de
cunhagem dessas designações em conceito” (KOSELLECK, 2006a, p. 11).
Não se trata de reificar as questões linguísticas e abandonar outros es-
forços de pesquisa empírica; mas sim de afinar os instrumentais para os
trabalhos de investigação. Nesse sentido, a história dos conceitos teria a
potencial contribuição de tornar mais preciso o estabelecimento de cate-
gorias de conhecimento, possibilitando:

[...] conhecer a correspondência ou não de seu uso [do conceito] nas pes-
quisas com as estruturas e realidades vigentes. [...] O estudo conceitual
pode servir para indicar à história social aqueles conceitos que podem
servir como categorias formais de conhecimento por sua capacidade de

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Sobre o conceito de lazer

significar permanências estruturais. Da mesma forma, pode mostrar sig-


nificados que já não correspondem a nenhuma realidade, a estados de
coisas que já se extinguiram (PEREIRA, 2005, p. 50).

O que parece interessante é perceber que “permanência, transformações


e inovação” podem ser compreendidas diacronicamente, permitindo-
nos, inclusive, acesso a uma “estrutura profunda de sentimentos”. Uma
história dos conceitos teria o potencial de detectar continuidades e rup-
turas, não mais entendidas de forma estanque, mas como constituintes
de qualquer processo a ser estudado. Somente dessa forma teremos me-
lhores condições de compreendermos as analogias, julgando o quanto
de cada momento pode ajudar a entender outro momento. Sem isso,
“se encaramos os acontecimentos singulares simplesmente como even-
tos radicalmente únicos, particulares, jamais poderemos explicá-los”
(KOSELLECK, 2006b, p. 140).

Voltamos aqui a dois temas que já discutimos antes. O leitor atento já


percebeu que este texto está escrito em espiral, retomando determina-
dos assuntos, tendo em conta consolidar uma reflexão plausível sobre
as transições, potencialidades e limites do conceito de lazer e das ten-
tativas de sua renovação. O primeiro assunto é a própria importância
da discussão conceitual. Para Koselleck isto é claro: os conceitos seriam
categorias formais que permitem ao pesquisador sair da espuma dos
acontecimentos e melhor compreender o que pretende investigar, su-
plantando a equivocada dicotomia evento-estrutura.

Nesse sentido, é absolutamente louvável que alguns colegas estejam


encarando esse debate conceitual fundamental para a realização de in-
vestigações de melhor qualidade, que possam mais adequadamente se
aproximar do que tentamos entender. Todavia, esse é o segundo ponto,
esse esforço não pode prescindir de uma clara compreensão sociológica,
a já citada condição de que a generalização seja plausível, e uma clara
compreensão histórica, a trajetória do conceito tendo em vista sua mate-
rialidade, as condições que sustentam o conceito, que o gestaram e que
foram fortalecidas com sua sistematização.

A partir dessas reflexões, no caso dos meus estudos históricos do Rio


de Janeiro do século XIX, tenho operado com a noção de diversão. Para
tal, tenho partido do que os informantes dizem ser a diversão, tentando
captar naquela duração de um século como foram mudando os sentidos

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Dossiê: Lazer

e significados ao redor do tema. Não abandonei o conceito de lazer. Pelo


contrário, o que estou investigando é como se gestaram as condições
para que a diversão se materializasse no que hoje chamamos de lazer,
discutindo, portanto, os momentos primordiais que antecederam a pró-
pria sistematização desse conceito. Isto é, ele já estava lá embora ainda
não existisse, e quando passou a estar, anunciou e ajudou a conformar o
futuro em que estaria.

Obviamente, para fazer isso estou me dedicando a entender o mais pro-


fundamente possível o espírito daquele tempo, tentando desvendar tan-
to o que restringia a conformação definitiva do conceito de lazer quanto
o que anunciava que ele iria se conformar. E posso fazer isso porque o
presente me mostra que se conformou, não sendo, portanto, um exercí-
cio de futurologia.

Nesse sentido, não seria equivocado denominar “estudos da diversão” o


que academicamente temos constituído como Lazer. Isso nos permiti-
ria tanto incorporar com tranquilidade recortes temporais anteriores à
modernidade quanto considerar com maior acuidade o fato de que não
foi de uma hora para outra que se substituiu o antigo formato da diver-
são pelo novo que se instituía, da mesma maneira que isso não ocorreu
também com o trabalho. Trata-se de um processo que tem relação com
a própria construção das ideias da modernidade: controlar e adequar o
não trabalho foi tão importante e tenso quanto foi o mesmo processo
com o trabalho.

Aliás, as questões da transição e da releitura ajudam a entender porque


durante muito tempo (e mesmo até os dias de hoje) convivem, nem sem-
pre de forma harmônica, diversões “tradicionais” e “modernas”, embora
cada vez mais as primeiras tenham dialogado e sejam influenciadas pelo
formato das segundas, na mesma medida que as segundas consideram
atentamente as primeiras. Isto é, nem sempre as persistências mantêm os
mesmos sentidos e significados de períodos anteriores, o que seria mes-
mo impossível dado que todo fenômeno é histórico. De qualquer modo,
vale a pena estar atento: quanto o que chamamos de lazer carrega de rup-
tura e continuidade com outros formatos de diversão de outros períodos?

Já caminhamos para a conclusão e como falamos muito de passado e de


presente, talvez valha, nesses momentos finais, falar algo sobre o futuro,

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Sobre o conceito de lazer

terreno sempre muito pantanoso para o historiador. A essa altura deve


ter ficado claro que defendo que o conceito majoritário de lazer, a partir
das dimensões tempo e atitude, permanece válido. Continuo consideran-
do que seu grau de abstração e materialidade ainda é suficiente, inclusive
para nossas necessidades de operação empírica. A própria operação que
faço da noção de diversão deve ter ficado clara, tem em conta entender o
conceito de lazer, na sua expectativa de futuro, à luz do tempo que tenho
investigado.

Todavia, já que defendemos tanto a base material, devemos observar as


mudanças que hodiernamente se apresentam exatamente nesse aspec-
to. Para ser coerente com a ideia de que o conceito pode nos ajudar a
melhor considerar a mudança de sentidos e significados no decorrer do
tempo, inclusive no que tange à sua própria configuração, necessitamos
perceber as novas injunções que parecem estar em curso na contempo-
raneidade, pelo menos nos últimos dez, vinte ou trinta anos.

No caso do lazer, isso tem relação com a nova reordenação dos tempos
sociais em função da telemática, em si um novo conceito, criado no final
da década de 1970 para explicar o impacto que a informática tem na so-
ciedade. Trata-se, em linhas gerais, do conjunto de tecnologias de trans-
missão de dados a serviço dos indivíduos, o que contempla, nos dias de
hoje, cada vez maior integração entre mídias distintas, desde as tradicio-
nais, como televisão, telefone, rádio, até as mais modernas, notadamente
oriundas de recursos computacionais.

O que quero argumentar é que a base material que tornou possível a


construção da abstração que é o conceito de Lazer pode estar com seus
dias contados. Falo aqui do rompimento, para o bem e para o mal, das
fronteiras rígidas entre trabalho e não trabalho, entre rural e urbano, en-
tre exterior e interior; do rompimento dos limites físicos de duas dimen-
sões fundamentais à experiência humana, tempo e espaço, o que causa
profundas mudanças em nossas vivências sociais.

Não me prolongarei nesse assunto, é tema para outro artigo. Apenas


devo dizer que do ponto de vista conceitual o que temos por enquanto
são suposições. Os desdobramentos desse processo podem vir a gerar
um novo conceito (ainda que mantendo a mesma palavra). Seria algo si-
milar ao que estava ocorrendo em fins de século XIX. As coisas mudavam

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Dossiê: Lazer

rapidamente, anunciando que novidades estavam em curso, sem que se


pudesse ter certeza do que estava exatamente acontecendo. Pode ser que
daqui a algum tempo nossos livros e reflexões, inclusive esta (tomara
que sim!) estejam bastante desatualizados por essa nova configuração
do fenômeno.

De toda forma, o conceito não vai mudar de uma hora para outra, como
vimos, mas sim quando perca em definitivo o seu poder e capacidade de
abstração. E isso somente se dará com um processo histórico suficiente.

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Sobre o conceito de lazer

Notas

1 Para mais informações, ver Melo (2003), Werneck (2003), Gomes e Melo (2003)
e Brêtas (2010). Já há um grande número de estudos brasileiros sobre o tema.
Cito apenas dois: Araújo (1993) e Popinigis (2007).

2 Para um panorama sobre a produção no campo nas últimas décadas, ver


Peixoto (2007).

3 Para mais informações sobre a conformação do campo no Brasil, ver Melo;


Alves Júnior (2003).

4 Para um debate sobre a conformação do conceito, ver Munné (1980).

5 Para uma discussão sobre o conceito de esporte, ver Melo (2010a).

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Dossiê: Lazer

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O profissional do lazer

Hélder Ferreira Isayama

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Hélder Ferreira Isayama
Doutor em Educação Física pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), com Pós-Doutorado em Educação
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Docente do Programa de Pós-Graduação em Estudos do
Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Líder do Oricolé – Laboratório de pesquisa sobre formação
e atuação profissional no lazer. Membro dos grupos GPL/
Unimep e Labec/UFRJ. Bolsista de Pós-Doutorado da
Faperj e do Programa de Pesquisador Mineiro (PPM –
2012-2014), da Fapemig.

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Resumo
O objetivo deste texto é discutir os caminhos da formação
dos profissionais do lazer buscando compreender os limites e
as possibilidades, bem como a inserção desse profissional no
mercado de trabalho. Na atualidade existe ainda uma tendência
à comercialização das propostas de formação profissional na
área, focalizada como uma possibilidade de ganhos financeiros
no mercado. Essas ações são associadas ao consumo exacer-
bado e alienado de bens materiais e de serviços de recreação e
entretenimento que podem auxiliar na fuga e na distração dos
problemas apresentados no cotidiano. No entanto, já podemos
vislumbrar propostas pautadas na competência técnica, cien-
tífica, política, filosófica, pedagógica e no conhecimento crítico
da realidade. Por isso, é preciso romper com a visão tecnicista,
buscando uma práxis consciente, que crie possibilidades de par-
ticipação e de democratização social.

Palavras-chave: Lazer. Formação profissional. Animação cultural.

Abstract
The aim of this paper is to discuss the ways of leisure
professionals’ education in order to understand the limits
and possibilities, as well as insertion of such professional
in the labor market. At present there is a trend to the
commercialization of proposals in the area of vocational
training, with focus as a possibility for financial gains in the
market. These actions are associated with exacerbated and
alienated consumption of material goods and services of
recreation and entertainment that can assist in the escape
and distraction from problems presented in everyday. However,
we can already glimpse on proposals guided by the technical,
scientific, political, philosophical, pedagogical and critical
knowledge of reality. Therefore, it is necessary to break the
technical view and seek for a conscious praxis that creates
opportunities for social participation and democratization.

Keywords: Leisure. Professional education. Cultural animation.

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Dossiê: Lazer

Introdução

O debate e o investimento na formação profissional é um processo es-


sencial para a qualificação de diferentes campos de intervenção social na
realidade brasileira. Por isso, as reflexões sobre a formação profissional,
em diferentes áreas, têm sido ampliadas frente às exigências atuais que
buscam qualificar as ações para o atendimento das demandas da socie-
dade. Apesar de um número ainda pequeno de estudos sobre a formação
para atuar no campo do lazer (ISAYAMA; SILVA; LACERDA, 2011), é possí-
vel observar nas diferentes ações realizadas uma preocupação centrada
nesse debate. Isso pode ser visualizado em periódicos que publicam tra-
balhos sobre lazer; em cursos de graduação, especialização, mestrado e
doutorado; em comunicações e pôsteres apresentados em eventos cien-
tíficos, entre outras ações.

Nesse contexto, destaco que as transformações sociais contribuem para


novas configurações do lazer na sociedade. As modificações que ocorrem
na organização política, econômica ou no comportamento social permi-
tem a organização de diferentes vivências culturais e, consequentemen-
te, emergem percepções múltiplas sobre o lazer. Isso se torna um desafio
para as políticas, ações e debates sobre a formação profissional daqueles
que desejam atuar nessa área.

Além disso, é importante destacar a supervalorização da dimensão do


trabalho, e o entendimento do lazer como algo não sério, descompro-
missado e destituído do seu valor como possibilidade de descanso, di-
vertimento, aprendizado e desenvolvimento. É comum ele ser associado
apenas à fuga da realidade, já que é considerado como espaço para es-
quecer os problemas cotidianos ou para combater o estresse derivado do
trabalho desgastante, presente na vida da maioria dos brasileiros.

No entanto, considero o lazer como um espaço privilegiado para vivên-


cias lúdicas de conteúdos culturais, o que o caracteriza como esfera
abrangente, em profundas relações com o trabalho, com a educação, com
a família, entre outras esferas da vida dos sujeitos. Além disso, destaco
a sua compreensão como direito social previsto na Constituição Federal
de 1988, portanto um direito de todos. E dessa maneira penso na supe-
ração da ideia de lazer apenas como momento de não trabalho ou como
uma mercadoria a ser consumida. Ele deve estar relacionado com dife-

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O profissional do lazer

rentes dimensões, tais como: saúde, educação e trabalho. É por isso que
o considero como um dos elementos fundamentais para uma vida com
qualidade.

Essa perspectiva me faz acreditar na necessidade de formação de pro-


fissionais no campo que compreendam o seu papel político e cultural.
Assim, a ação profissional deve avançar na ideia de estímulo à prática do
lazer, sendo necessário contextualizar sua ação e atribuir novos signifi-
cados e olhares sobre ela.

Alguns estudos pesquisados demonstram essa necessidade. Entre eles


estão: o que se propõe a discutir o trabalho desenvolvido nas disciplinas
sobre lazer nos cursos de licenciatura e bacharelado em Educação Física
(GOMES, R.G., 2013); o tratamento do lazer no currículo da formação dos
profissionais do programa Segundo Tempo, do Ministério do Esporte
(RIBEIRO, 2012); o perfil de formação profissional de curso técnico em
lazer (SANTOS, 2011); a construção do saber docente de professores uni-
versitários do campo do lazer ao longo de suas trajetórias (SILVA, A.G.,
2010) e a interface entre lazer e educação no programa Escola Integrada,
do município de Belo Horizonte (SILVA, M.S., 2013).

Buscando aprofundar o debate sobre a formação de profissionais para


atuarem no campo do lazer, este artigo tem por objetivo discutir os ca-
minhos dessa formação na atualidade, tendo em vista a compreensão de
seus limites e de suas possibilidades, bem como a inserção desse profis-
sional no mercado de trabalho.

1 Lazer e formação profissional: considerações iniciais

Pensar sobre a formação de profissionais para atuar no âmbito do la-


zer é destacar, inicialmente, que o lazer se configura como um campo
multidisciplinar, por meio da participação de profissionais com diferentes
formações (arte-educação, educação física, pedagogia, psicologia, socio-
logia, terapia ocupacional, turismo e hotelaria, entre outros). No entanto,
para qualificar as intervenções no campo é necessário avançar no sentido
de organizar uma intervenção que possa ser interdisciplinar.1

Apesar dos esforços empreendidos para qualificar o debate e a visão so-


bre a formação profissional no lazer, ainda é corrente a ideia de que para

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Dossiê: Lazer

atuar na área não é necessário ter formação específica e aprofundada do


tema. Por isso, é preciso (re)pensar os pressupostos que encaminham a
formação de profissionais e como ela está sendo processada na realidade
brasileira.

A partir dos anos 1970, a produção teórica no campo foi ampliada, des-
sa forma emergiram livros, artigos científicos, monografias, dissertações
e teses, assim como foram aperfeiçoadas as técnicas de pesquisas e as
avaliações dos programas de lazer desenvolvidos em nossa realidade.
Esse avanço na produção sobre o lazer contribuiu de forma significativa
na ampliação das ações no âmbito da formação profissional em nosso
país, principalmente no que se refere ao desenvolvimento de cursos cen-
trados no “fazer por fazer”, em receitas de atividades ditas “recreativas”.

Segundo Werneck (1998), a formação profissional no lazer é vislumbrada


como uma possibilidade de ascensão social e financeira. E por isso mui-
tas das oportunidades de qualificação são comercializadas e reforçam
ainda mais a visão do lazer como um simples produto da sociedade de
consumo.

Por isso, existe uma tendência à comercialização das propostas de for-


mação profissional na área que, de maneira geral, restringem a compre-
ensão sobre o lazer. Este é focalizado como um filão no mercado que abre
amplas possibilidades de ganhos e é associado ao consumo exacerbado
e alienado de bens materiais e de serviços “recreativos”, o que pode pro-
piciar a fuga e a distração dos problemas apresentados em nosso cotidia-
no. Nesse caso, a expansão desenfreada de cursos que apresentam essa
tendência é preocupante e deve ser analisada cuidadosamente pelos in-
teressados em ampliar seus conhecimentos sobre o lazer.

Analisando-se propostas de cursos de aperfeiçoamento e de disciplinas


ministradas em diferentes cursos técnicos e de graduação, pode-se ob-
servar uma ênfase na reprodução de atividades diversas mediante o en-
sino de uma variedade de jogos e brincadeiras (ISAYAMA, 2002; SANTOS,
2011). Essas propostas disponibilizam “receitas” de atividades, não su-
perando a tradição prática e tendo dificuldades de fomentar a sistema-
tização de conhecimentos efetivamente teórico-práticos. Além disso,
algumas propostas ainda privilegiam as atividades físicas e esportivas em
detrimento de outras práticas culturais que podem ser vividas no âmbito

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O profissional do lazer

do lazer (RIBEIRO, 2012). No entanto, já existem iniciativas de universida-


des, grupos de pesquisa e órgãos públicos que procuram enfocar o lazer
de maneira abrangente e contextualizada.

A partir disso, observo que no Brasil é cada vez maior o interesse de alu-
nos e professores pela discussão da temática do lazer, tendo em vista
as opções de estudo e de intervenção profissional que esse campo de
trabalho oferece. Especialmente nos últimos anos, aumenta a preocu-
pação com o lazer como um dos fatores fundamentais para a promoção
da vida com qualidade. Além disso, o lazer vem sendo destacado por
diferentes instituições sociais como uma das áreas mais promissoras do
século XXI. Ampliam-se as possibilidades de formação profissional nesse
campo, que devem ser analisadas com cuidado por aqueles que desejam
se envolver com essas ações.

Segundo Gomes (2008), formar significa fecundar um conjunto de ideias


e reflexões, criar possibilidades que nos retirem de posições acomoda-
das, mobilizando e transformando o outro de alguma maneira. É uma
maneira de nos colocarmos avessos às incertezas cristalizadas, com
curiosidade e desejo de saber, para a construção do conhecimento. Nesse
sentido, o desafio é agregar esforços para formar profissionais capazes de
construir coletivamente ações teórico-práticas sobre o lazer.

No Brasil, a formação profissional em lazer vem-se concretizando, princi-


palmente, a partir de duas perspectivas. A primeira tem como ênfase
a preocupação em formar um profissional mais técnico, que tem como
orientação primordial o domínio de conteúdos específicos e metodolo-
gias. Nesse caso, a formação privilegia a familiarização com as práticas
e as atividades que se apresentam no dia a dia do animador cultural. A
preocupação central é com a instrumentalização técnica e com o domí-
nio de procedimentos e metodologias (ISAYAMA, 2010).

Como resultado surge o tecnicismo, que restringe o profissional a um


“simples” técnico, e a mediação técnica torna-se substantiva, norteando
os fins e os valores do processo de formação. A prática torna-se o eixo da
formação, e sua realização tende a minimizar o papel da teoria na ação
profissional. Dessa forma, reafirma-se a dicotomia entre teoria e prática,
enfatizando-se a segunda e atribuindo menor importância às reflexões
de cunho filosófico, político, cultural e sociológico, fundamentais no pro-

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Dossiê: Lazer

cesso de atuação profissional nesse âmbito. Muitas vezes, os sujeitos de


diferentes cursos de formação na área do lazer anseiam por “receitas
prontas de atividades” e reforçam o interesse por um número bastante
variado de modelos e alternativas.

É importante frisar que um sólido referencial teórico possibilita a com-


preensão da prática a partir de novos olhares, permitindo a consolidação
da práxis. Um animador cultural que atue em clubes, por exemplo, e co-
nheça questões sobre as diferentes faixas etárias (criança, adolescente,
adulto e idoso) e grupos sociais (portadores de necessidades especiais,
negros, índios, homossexuais) terá sua prática a partir de outra perspec-
tiva. A relação teoria/prática adquire então uma função muito diferente
de um simples fazer mecânico e técnico.

A segunda perspectiva aponta como prioridade a formação centrada no


conhecimento, na cultura e na crítica, que se dá por meio da construção
de saberes e competências que devem estar alicerçados no comprome-
timento com os valores disseminados em uma sociedade democrática,
bem como na compreensão do papel social do profissional na educação
para e pelo lazer. A formação deve possibilitar o domínio de conteúdos
que devem ser socializados a partir do entendimento de seus significa-
dos em diferentes contextos e articulações interdisciplinares. Deve, ain-
da, promover o conhecimento de processos de investigação que auxiliem
no aperfeiçoamento da ação do animador cultural e no gerenciamento
do próprio desenvolvimento de ações educativas lúdicas, críticas e cria-
tivas (ISAYAMA, 2010).

A formação de profissionais no campo do lazer necessita, portanto, ser


pautada na competência técnica, científica, política, filosófica e peda-
gógica e no conhecimento crítico da realidade. É preciso romper com a
visão tecnicista, buscando uma práxis consciente. A ação deve ser com-
prometida com mudanças que considerem as lutas contra as injustiças
sociais, na intenção de concretizar uma sociedade mais igualitária que
respeite as diferenças culturais e crie possibilidades de participação e
democratização social (MARCELLINO, 2010).

Por isso, é preciso estar atento às expectativas do mercado, formando


profissionais que venham dar conta dos desafios que se apresentam com
intensidade e rapidez. O que torna ainda mais relevante a necessidade

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O profissional do lazer

de se ter o domínio de determinados conhecimentos, a fim de que a for-


mação dos profissionais possa reverter as expectativas do lucro fácil,
com a venda de pacotes efêmeros, que se apresentam no sentido de ape-
nas divertir e “desviar a atenção” da realidade com a qual convivemos no
cotidiano.

Assim, é necessário pensar a construção de saberes e competências que


devem estar relacionados ao envolvimento com os valores de uma so-
ciedade democrática e à compreensão do papel social do profissional na
educação para e pelo lazer. Além disso, a formação deve proporcionar o
domínio de conteúdos a serem socializados, a partir do entendimento
de seus significados em diferentes contextos e articulações interdisci-
plinares. E, por fim, o conhecimento de processos de investigação que
auxiliem o aperfeiçoamento da ação profissional no campo do lazer. Pois
nesse momento é possível verificar que o conhecimento novo pode con-
tribuir com o desenvolvimento do campo de estudos, vivências e das in-
tervenções (GOMES, 2010).

Com isso, uma sólida formação profissional voltada para o lazer não
pode visar somente ao simples processo de transmissão de saberes. Essa
formação deve buscar uma constituição subjetiva e o posicionamento de
nossa própria inserção, como sujeitos, nas várias divisões socioculturais
apresentadas em nossa realidade (GOMES, C. L., 2008).

Ao pensar na formação profissional no campo do lazer, penso ser impor-


tante destacar quatro pontos fundamentais para orientar as ações; tendo
em vista o entendimento do animador cultural em uma perspectiva edu-
cacional ampla de transformação da realidade social.

O primeiro ponto está relacionado à unidade entre teoria e prática. Enten-


do que teoria e prática devem ser consideradas o núcleo articulador da
formação de profissionais no campo do lazer. Para tanto, esses dois eixos
devem ser trabalhados simultaneamente como elementos indissociá-
veis. É preciso superar uma das tendências encontradas nesse campo,
que considera a recreação como a prática e o lazer como teoria.

A teoria deve ser pensada, formulada e aplicada a partir da realidade


concreta da animação cultural, que acreditamos ser fundamental para a
transformação das vivências de lazer presentes no mercado. Para tanto,
todos os componentes da formação devem trabalhar a unidade teoria-

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Dossiê: Lazer

prática a partir de diferentes configurações, buscando pensar a totali-


dade da intervenção profissional e da formação como possibilidade de
minimizar as distorções decorrentes da priorização de um dos dois eixos.

Por isso, concordo com Pimenta e Lima (2012) que me ajudam a compre-
ender que a ação do animador cultural pode ser uma atividade teórica de
conhecimento, fundamentação, diálogo e intervenção na realidade (que é o
objeto da práxis). Portanto, é no contexto do lazer e da sociedade que a prá-
xis acontece. Entendo a práxis como uma possibilidade de articular conhe-
cimento teórico com a capacidade de atuação, mas que envolve também a
vontade para atuar, a responsabilidade com o trabalho, a capacidade para
decisão e a estabilidade emocional para atuar em diferentes contextos.

O segundo aspecto está relacionado à característica multidisciplinar do la-


zer. Nesse sentido, apesar de certa dificuldade presente na formação, em
consequência das diferentes áreas com as quais esse objeto de estudo
e de intervenção se relaciona, é fundamental pensar em possibilidades
coletivas e interdisciplinares de trabalho a partir da formação dos profis-
sionais. Dessa forma, é possível então superar a ideia de que esse campo
é propriedade particular de uma determinada área.

A multidisciplinaridade no âmbito do lazer contribui de forma substan-


cial para avanços qualitativos sobre a intervenção. As diferentes pos-
sibilidades de estudo e intervenção estimulam a construção de novas
ideias e abordagens, aumentando o interesse e o engajamento nas ações
referentes ao tema. Olhares múltiplos devem ser considerados e analisa-
dos, pois podem fomentar a reflexão e a crítica, referenciando diferentes
perspectivas e questionamentos e, dessa forma, contribuindo para o de-
bate e o aprofundamento de conhecimentos sobre o lazer.

Um terceiro ponto a ser ressaltado é a sólida formação teórica e cultural dos


profissionais que atuam no campo do lazer. E, nesse sentido, acredito ser
fundamental um maior interesse, por parte dos animadores, na busca
dos conhecimentos que envolvem os estudos sobre o lazer, tornando seu
trabalho mais coerente com os objetivos propostos. Além disso, é fun-
damental que o profissional busque sua participação crítica e criativa
em diferentes práticas culturais como forma de manter constantemente
atualizada sua cultura geral, priorizando uma ampliação de suas próprias
vivências de lazer, de modo condizente com sua prática profissional.

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O profissional do lazer

Melo e Alves Júnior (2003) apontam a necessidade de que a formação de


profissionais assuma a função de educar as sensibilidades, possibilitando
experiências que ampliem as vivências culturais dos sujeitos. Para tanto,
sugerem que as ações de formação devem voltar-se para atividades que
estejam além da exclusiva discussão teórica em sala de aula. E também
promover o estímulo à compreensão de que a preparação profissional
deve incluir um maior número de referências, expandindo os espaços e
as iniciativas para além dos limites tradicionalmente instituídos.

Por isso, concordo com Melo (2010) quando afirma que além de ser fun-
damental para o futuro animador cultural, a formação cultural também
é papel dos espaços de formação, na medida em que é uma possibilidade
de expressão e de síntese da realidade. Por isso, devemos pensar cons-
tantemente como formar um profissional, que assume o papel de educar
sensibilidades, se a formação cultural deles é bastante restrita.

O quarto e último ponto que ressalto é a necessidade de pensar a forma-


ção continuada nesse campo. Analisando os projetos de formação conti-
nuada no campo do lazer é possível identificar a perspectiva “clássica”.
A perspectiva “clássica” utilizada por Candau (1996) indica que a ênfase
é atribuída à educação permanente dos profissionais, o que significa vol-
tar e atualizar a formação recebida. Assim, os sujeitos retornam à uni-
versidade para fazer cursos de diferentes níveis, além da possibilidade
de participação em simpósios, congressos, encontros de alguma forma
orientados para seu desenvolvimento profissional.

Entretanto, essa não é a única maneira de promover uma formação con-


tinuada. Apesar dessas iniciativas serem necessárias e fazerem parte
desse processo, não deveríamos restringi-las a esse formato. Por isso,
Candau (1996) aponta que construir uma nova concepção de formação
continuada significa entender o local da prática como um locus privile-
giado. No entanto, o fato de desenvolver uma prática não garante a pre-
sença das condições mobilizadoras desse modelo formativo. Para que ele
se concretize é fundamental que a prática seja reflexiva, sendo capaz de
identificar os problemas e propor soluções criativas.

No entanto, penso que o processo de formação continuada em lazer deva


acontecer a partir de uma perspectiva que possa focalizar três eixos: o
espaço de intervenção como locus privilegiado de formação; a formação

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Dossiê: Lazer

continuada deve ter como referência fundamental o saber profissional, o


reconhecimento e a valorização desse saber; para um adequado desen-
volvimento do projeto é necessário ter presentes as diferentes etapas do
desenvolvimento profissional, já que não deveríamos tratar do mesmo
modo o animador profissional iniciante e o animador experiente.

Caldeira (2001) nos chama a atenção para a valorização da subjetivida-


de do profissional no seu processo de formação. Sobre esse aspecto, re-
forçamos a necessidade de levar em conta a subjetividade dos sujeitos
que estão intervindo, sem deixar de considerar que ela é socialmente
condicionada. E isso implica considerá-la como resultado de diferentes
aspectos culturais, econômicos, sociais e políticos. A autora afirma ainda
que considerar a subjetividade é reconhecer que os próprios indivíduos
contribuem para a formação e a transformação dos contextos.

2 Possibilidades e desafios para a formação profissional no


âmbito do lazer

Apesar do aumento da discussão sobre o lazer nos cursos de adminis-


tração, artes, educação física, fisioterapia, hotelaria, pedagogia, terapia
ocupacional e turismo, a análise de muitos desses currículos demonstra
que os conhecimentos sobre o lazer têm pequeno espaço no interior das
propostas. Isso caracteriza uma incompatibilidade entre a forma como
esses temas são tratados nos currículos e as diferentes oportunidades de
estudo e atuação que o campo vem abrindo para profissionais formados
(ISAYAMA, 2002).

Um aspecto importante a ser ressaltado é que no Brasil, desde 1998, já


vêm sendo ofertados cursos de graduação específicos sobre o lazer, de-
monstrando uma tendência que se abre no mercado. Alguns desafios
permeiam a implantação e o desenvolvimento desses cursos, tais como:
a necessidade de buscar referências locais que norteiem a construção
curricular; a falta de recursos humanos especializados e qualificados e,
ainda, a inadequação das estratégias de implantação e difusão geral-
mente adotadas pelas instituições.

Na atualidade, as pós-graduações, lato e stricto sensu, se apresentam


como uma interessante possibilidade de formação de profissionais para
se atuar no âmbito do lazer, tendo em vista a formação docente para agir

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O profissional do lazer

em diferentes níveis e de pesquisadores interessados em aprofundar co-


nhecimentos sobre a temática. No entanto, ainda é pequeno o número de
cursos ofertados, se comparado ao número de profissionais interessados
em aprofundar conhecimentos nesse campo.

No contexto brasileiro, desde 2006, é possível desenvolver a formação


stricto sensu (nível mestrado), específica em lazer, na Universidade Fede-
ral de Minas Gerais (UFMG). E desde 2012 a instituição aprovou o funcio-
namento do curso de doutorado, que passou a se chamar Programa de
Pós-Graduação em Estudos do Lazer. Esses cursos específicos, em nível
de mestrado, já são desenvolvidos desde 1997 na América Latina, confor-
me apontam Gomes e outros (2012).

O estudo realizado por Gomes (2004) analisa o avanço no campo de estu-


dos a partir da produção acadêmica (teses e dissertações) dos cursos de
pós-graduação, principalmente vinculados aos cursos de educação física,
turismo, educação, comunicação, sociologia, entre outros.

Além disso, outra possibilidade de formação é vislumbrada em um nú-


mero expressivo de grupos de estudo/pesquisa que estão sendo criados
em diferentes faculdades, escolas, departamentos e cursos, conforme
pode ser visualizado no trabalho de Melo e Alves Júnior (2003). Em um
mapeamento feito por Isayama e Souza (2006) sobre os grupos de pesqui-
sa existentes no Brasil, tendo como fonte os dados da plataforma Lattes,
do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), foram identificados 84 grupos
que abordam o tema lazer em seus trabalhos. Esses grupos estão vin-
culados a diferentes áreas do conhecimento, no entanto é importante
ressaltar que 36 deles são provenientes do campo da educação física,
seguido da educação, com 12, e do turismo, com oito grupos de pesquisa.

Em outro mapeamento realizado por Marinho e outros (2011), portanto


seis anos após, foram encontrados 211 grupos de pesquisa que estudam,
direta ou indiretamente, o lazer no Brasil. Nessa pesquisa foram encon-
trados 98 grupos relacionados à educação física. Os outros 113 grupos
de pesquisa confirmam o caráter multidisciplinar do lazer: educação (25
grupos); turismo (22 grupos); antropologia (12 grupos); psicologia, e so-
ciologia (14 grupos, sendo sete em cada); planejamento urbano e regional
(seis grupos); geografia (quatro grupos); fisioterapia e terapia ocupacio-
nal, história, administração e arquitetura e urbanismo (12 grupos, sendo

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Dossiê: Lazer

três em cada); medicina, saúde coletiva, economia, serviço social, e enge-


nharia de produção (10 grupos, sendo dois em cada); desenho industrial,
museologia, comunicação, engenharia naval e oceânica, ecologia, e para-
sitologia (seis grupos, sendo um em cada). Essas pesquisas demonstram
a ampliação constante dos grupos e das áreas envolvidas com o lazer
no Brasil.

A realização de eventos técnico-científicos específicos constitui-se em


outra rica possibilidade de formação profissional no campo. O Encon-
tro Nacional de Recreação e Lazer (Enarel) e o seminário “O lazer em
debate” são eventos realizados anualmente e que contam com a par-
ticipação de profissionais de diferentes áreas. Além disso, áreas como
a educação física e o turismo têm em seus congressos espaços para a
discussão da temática, tais como o Congresso do Colégio Brasileiro de
Ciências do Esporte (Combrace), o Encontro da Associação Brasileira
dos Bacharéis em Turismo (ABBTUR), o Congresso Internacional de Edu-
cação Física e Motricidade Humana (Unesp/RC). Cabe destacar também
que, em junho de 2013, foi criada a Associação Brasileira de Pesquisa
e Pós-Graduação em Estudos do Lazer (Anpel), que tem como uma de
suas ações, a realização do Congresso Brasileiro de Estudos do Lazer,
com periodicidade bianual.

Além disso, destaco outras iniciativas que contribuem para essa forma-
ção profissional, como a criação de listas de discussão na internet e a
publicação de artigos científicos em revistas das mais diferentes áreas,
com destaque para a revista Licere (atualmente o único periódico espe-
cífico sobre o lazer no país). E, recentemente, com a criação da Anpel foi
aprovada a proposta de criação de um novo periódico específico, Revista
Brasileira de Estudos do Lazer, que está em processo de organização pela
diretoria da Associação.

Há muito a ser feito no âmbito da formação para se atuar no campo do


lazer, mas é preciso fornecer elementos para a consolidação de profis-
sionais criativos, questionadores, reflexivos, articuladores, pesquisado-
res, interdisciplinares, que saibam praticar efetivamente as “teorias” que
propõem a grupos com os quais irão atuar. Por isso, a formação não deve
ser pensada de modo fragmentado, e sim como um processo que não se
inicia e nem se esgota na formação inicial.

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O profissional do lazer

Destaco alguns desafios para a formação de profissionais do lazer em


nosso país. Primeiro é preciso entender essa formação como um proces-
so contínuo, que deve ser incentivada e constantemente alimentada pela
participação em cursos de diferentes naturezas (técnicos, de atualização,
de aperfeiçoamento, de especialização, de mestrado, de doutorado), em
eventos técnico-científicos, em listas de discussões, entre outras ações
que podem fazer parte do cotidiano dos profissionais que desejam atuar
com o lazer. Concordo com Caldeira (2001) quando afirma que a forma-
ção é um processo inacabado, em constante movimento de reconversão,
sendo a formação inicial apenas parte do processo, que prossegue com a
formação continuada, entendida de forma ampla.

Além disso, saliento que é necessário um esforço sistemático para res-


ponsabilizar as instituições pela formação continuada de seus profissio-
nais, investindo na produção de conhecimento sobre essa formação e
nas mudanças que isso pode gerar nos processos de atuação profissional,
objetivando a efetiva participação cultural. Por isso, é preciso garantir
que a formação em serviço se constitua em espaço para o animador cul-
tural aprender, tendo como ponto de partida a reflexão sobre sua inter-
venção cotidiana.

Com relação às universidades ou aos espaços de formação, Marcellino


(2000) destaca 13 pontos que devem ser trabalhados nesse campo. Alguns
desses itens serão discutidos a seguir. Um primeiro aspecto a ser pensado
é a ampliação das possibilidades de pesquisa sobre o lazer. As informa-
ções resultantes das pesquisas devem orientar as decisões de formação
e por isso precisam ser compreendidas como eixo fundamental para os
avanços na formação profissional no âmbito do lazer. É importante pon-
tuar que com relação à investigação científica está praticamente quase
tudo por fazer.

Os cursos de graduação devem receber uma atenção especial, inclusive


possibilitando a realização de diversas atividades curriculares, tais como
a atuação em projetos de extensão que funcionem como verdadeiros la-
boratórios de pesquisa.

Outro ponto fundamental é a ampliação e o favorecimento dos inter-


câmbios institucionais, seja com outras universidades e faculdades, ou
com empresas e com o poder público. Nesse caso é preciso entender as

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Dossiê: Lazer

expectativas profissionais desses parceiros, trabalhando a partir delas,


mas não ficando restritas a elas, e mostrando como vem se organizando
a formação profissional no campo do lazer.

Marcellino (2010) sugere o equilíbrio de quatro eixos complementares


na formação de profissionais: teoria do lazer; relatos de experiências re-
fletidas; vivências de conteúdos culturais; e políticas e diretrizes gerais
no campo. Segundo o autor, esses eixos podem permitir que se estude a
especificidade do lazer, ou seja, sua “disciplinaridade”.

É preciso ainda minimizar o entendimento restrito sobre o lazer e sobre


a formação profissional no campo, que deve ultrapassar a mera informa-
ção e o simples desenvolvimento de conteúdos e técnicas. Dessa forma,
a ação profissional com a diversidade de grupos pode ampliar os inter-
câmbios de experiências culturais, objetivando uma efetiva participação
dos sujeitos.

Apesar da lógica do lucro que impera em muitos espaços de formação


profissional, acredito ser fundamental pensar na qualidade das ações
desenvolvidas como prioridade para a construção de uma nova realida-
de. Dessa maneira, a formação profissional no lazer deve ter como res-
ponsabilidade pensar encaminhamentos mais humanos, participativos e
inclusivos, não somente no campo do lazer, mas em todas as dimensões
do nosso viver.

3 Inserção do profissional do lazer no mercado de trabalho: quem é o


profissional?

Na atualidade, há uma demanda crescente da prestação de serviços de


lazer, o que leva a um aumento no número de ofertas para pessoas que
desejam atuar na área. Se por um lado representa uma expansão e uma
conquista para a atuação de “bons” profissionais, por outro, pode tornar-
se um risco, caso o trabalho seja desenvolvido a partir de uma aborda-
gem mercantilizada, que prioriza a ação em uma perspectiva tradicional.

Esse aumento nas ofertas para o trabalho com lazer tem resultado no
aparecimento de uma diversidade de funções que se pode assumir, des-
de administração até organização e execução de atividades. Podemos ob-
servar o aparecimento de um promissor mercado de trabalho em lazer,
o que nos permite destacar a presença de profissionais com formação

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O profissional do lazer

diversa trabalhando em várias instituições privadas (acampamentos,


clubes, colônias de férias, hotéis, empresas de eventos, empresas de tu-
rismo, academias de ginástica); públicas (prefeituras, centros comuni-
tários, parques, universidades, secretarias, museus) e de terceiro setor
(organizações não governamentais, associações de bairros). Isso sugere
um aumento das exigências no que diz respeito à formação de recursos
humanos para atuar nesses vários locais.

As diversas possibilidades de intervenção nesse campo e a inter-relação


do lazer com diferentes fenômenos sociais contribuem para uma disper-
são dos profissionais, atrelando-os diretamente ao tipo de organização
em que atuam e não ao tipo de ação que exercem. Em muitos casos, é
difícil associar a natureza do trabalho com o lazer, ou então essa associa-
ção é mal-compreendida, enfocando até mesmo o lazer como um “sim-
ples” entretenimento. Além disso, existe no mercado de trabalho uma
associação do lazer às atividades físicas ou esportivas, aspecto analisado
por Melo e Alves Júnior (2003), e que restringe a compreensão sobre a
intervenção dos profissionais.

Outra dificuldade que observo na ação do profissional do lazer é a questão


da prestação de serviços. Na atualidade, o lazer é um dos mais importan-
tes campos da prestação de serviços, principalmente quando pensado na
perspectiva do setor privado. No entanto, é fundamental compreender o
que isso representa do ponto de vista social, político e econômico para
o conjunto de trabalhadores.

Segundo Werneck (2001), os prestadores de serviços são, na realidade,


trabalhadores destituídos de quaisquer direitos para além do pagamento
pelo trabalho desenvolvido. As possibilidades de emprego formal vêm
sendo largamente substituídas pelo envolvimento informal com a di-
mensão do trabalho. A informalidade torna esse tipo de trabalho clan-
destino, dispensando tanto o empregador de pagar, como o empregado
de recolher, as contribuições à Previdência Social e ao Fundo de Garantia
por Tempo de Serviço (FGTS). Permite ainda o não pagamento de férias,
de décimo terceiro salário e de aviso prévio, entre outros direitos, o que
acaba isentando as instituições da responsabilidade pelos encargos tra-
balhistas e fazendo com que o trabalhador abra mão da garantia de seus
direitos, mesmo contrariando a lei.

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Dossiê: Lazer

Werneck (2001) aponta ainda que a prestação de serviços tem seu tra-
balho pautado muito mais pelo montante de serviços prestados do que
pelo tempo trabalhado. E nesse sentido, percebo que os profissionais do
lazer tendem a trabalhar cada vez mais, procurando ganhar o suficiente
para manter um padrão mínimo e desejável de vida.

Dificuldades ainda são encontradas quando pensamos nas longas e in-


tensas jornadas de trabalho que esse profissional assume, e muitas vezes
sem condições dignas de trabalho e de lazer. Os profissionais do lazer
atuam em finais de semana, férias e feriados e na maioria das vezes têm
um tempo mínimo de descanso ao longo do período de trabalho, fato
observado em muitos acampamentos, hotéis fazenda, clubes, colônias
de férias, etc. Werneck (2001) chama atenção também para o pequeno
número de trabalhadores, em geral, que atuam nessa área, insuficiente
para atender com qualidade a todos os usuários dos serviços de lazer.

Com relação aos requisitos para o profissional que deseja atuar como
animador cultural, Silvestre Neto (1980) afirma a importância de: 1) uma
formação cultural ampla e profunda, que é condição importante, mas
não exclusiva, tendo por objetivo o bom desempenho profissional; 2) li-
gação afetiva à prática cultural; 3) ação sociocultural voluntária; 4) cará-
ter opinativo; 5) intenção de exercer influência; 6) desconfiança da rotina
e do consumismo; 7) inquietação diante da situação cultural (crença
na ação).

É importante frisar que, para esse autor, as três primeiras característi-


cas deveriam estar presentes na maioria dos animadores. No entanto,
as outras não são evidenciadas com facilidade, mas são desejáveis. Além
disso, algumas questões precisam ser repensadas, como a questão da
ação sociocultural voluntária. Essa ideia contribui para a contratação de
pessoas sem capacitação, ou sugere um trabalho mal-remunerado, e até
mesmo gratuito, em vez de pautar-se nos princípios fundantes do traba-
lho voluntário, tão importante em nossa realidade.

Outro requisito bastante exigido, segundo Silvestre Neto (1980), na con-


tratação de profissionais na área do lazer é a ligação afetiva com a práti-
ca. E com base nessa relação, muitas vezes são contratadas pessoas que
tiveram experiências positivas com diferentes possibilidades de atuação
ou com conteúdos culturais específicos (música, esporte, teatro, entre

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O profissional do lazer

outros). Nesse caso, pouco se leva em conta a capacitação técnica especí-


fica e a sólida cultura geral, necessárias para a realização de um trabalho
qualificado nesse campo.

Traçando outra abordagem sobre as características do profissional do la-


zer, Pina (1995) sugere que ele deve apresentar, em maior ou menor grau,
um perfil composto por algumas características básicas. Assim, a forma-
ção superior é desejável, apesar de não ser imprescindível, podendo ser
realizada por diferentes cursos superiores. O profissional deve ser uma
pessoa muito bem-informada, tanto em termos de conhecimentos gerais
como em específicos, e, consequentemente, deve ser atualizado social e
culturalmente. Criatividade, imaginação, cooperativismo, dedicação e co-
municação são outras características importantes para esse profissional.

Apesar de apresentar ideias interessantes sobre lazer e atuação profis-


sional, esse autor parece direcionar seu entendimento para a noção de
empregabilidade. Uma vez que enfatiza as características profissionais
como uma questão individual, desconsiderando assim os aspectos so-
ciais, culturais, políticos e econômicos mais amplos, que constituem
nossa realidade. Além disso, essa forma de traçar o perfil acaba apon-
tando para a necessidade de ajustamento e adaptação à sociedade tal
como ela é, de tal forma que coloca no profissional a responsabilidade
de estar disponível e preparado para todas as mudanças requeridas pelo
mercado.

Melo e Alves Júnior (2003) apontam algumas características específicas


que devem ser buscadas pelo profissional que atua no campo do lazer e
que podem servir de parâmetro aos responsáveis pela formação profis-
sional. Os autores estabelecem características referentes à postura pro-
fissional e ao domínio de conteúdos.

Quanto à postura profissional, os autores destacam: 1) formação: que


deve buscar romper os limites de sua formação original e o estabeleci-
mento de diálogos com diferentes profissionais; 2) liderança: conduzir
o trabalho para que a participação aconteça de forma crítica e criativa,
buscando construir em conjunto com o público-alvo da ação; 3) comuni-
cação: importância de estabelecer contatos frequentes com os sujeitos
e com outros profissionais e entender que a sisudez pode dificultar o
trabalho; 4) criatividade: incentivar a capacidade de inovação, criação e

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Dossiê: Lazer

recriação nas propostas desenvolvidas; 5) organização: instaurar a ca-


pacidade de planejar, executar e avaliar os projetos e as ações a curto, a
médio e a longo prazos; 6) atualização: empenhar-se na atualização per-
manente, tanto em relação aos aspectos técnicos como no que se refere
ao cotidiano social; 7) senso crítico: capacitar-se para compreender as
diferenças sociais e suas influências no trabalho do profissional do lazer,
tendo em vista construir práticas responsáveis de inclusão social e de
contribuição para a superação das barreiras sociais.

Com relação ao domínio de conteúdos, Melo e Alves Júnior (2003) apontam


três características: 1) linguagens: compreender as diferentes manifesta-
ções culturais como fenômenos culturais, com todas as peculiaridades
e contradições presentes em uma sociedade que privilegia o consumo;
2) lazer: entender a atuação profissional no campo de forma ampla, como
uma intervenção pedagógica no âmbito da cultura, que pode contribuir
significativamente para a melhoria da qualidade de vida dos sujeitos;
3) cultura: compreender a cultura como um conjunto de valores, enten-
dendo suas peculiaridades, importância e as diferentes formas de apre-
sentação em nossa sociedade.

Com relação às funções profissionais e às exigências de formação e expe-


riência, Pina (1995) apresenta a ideia de uma pirâmide, com o intuito de
identificar as diferentes lideranças que desenvolvem ações nesse campo.
Na base da pirâmide encontram-se os chamados voluntários, que são
lideranças espontâneas das comunidades e grupos que colaboram na
mobilização, no planejamento, na execução e na avaliação das vivências
de lazer. Em seguida estão os profissionais com formação específica, for-
mados nas diferentes áreas do saber e que se constituem em “monito-
res” de atividades, animadores, programadores, etc. E, por fim, no ápice
da pirâmide, estão os profissionais com formação geral, com estudos e
experiências mais abrangentes e que assumem os papéis de consultores,
professores universitários, gerentes.

Apesar de concordar com a proposta de atuação dessas diferentes lide-


ranças, conforme proposto por Pina (1995), penso que a ideia da pirâmide
pode apresentar um entendimento hierárquico entre os diferentes ato-
res envolvidos nesse tipo de ação profissional. Nesse caso, poderia ser
utilizada outra figura que demonstrasse a importância da participação
de todas as lideranças, em uma perspectiva equilibrada.

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O profissional do lazer

Há muito que se discutir ainda sobre a ação do profissional que atua


no âmbito do lazer. No entanto, é preciso ampliar os estudos que nos
ajudem a compreender a ação profissional, bem como a perspectiva da
animação cultural. Apesar da existência de experiências no contexto na-
cional, ainda carecemos da ampliação desse debate que já tem maior
trajetória em países como Espanha, França e Portugal.

Considerações finais

Longe de querer esgotar as questões que permeiam a formação dos pro-


fissionais que atuam com vivências de lazer, apresento essas reflexões
na tentativa de contribuir com a ampliação do debate sobre o tema, já
que são escassos os trabalhos que o analisam. Assim, é necessário lem-
brar que apesar do aumento das iniciativas que vêm contribuindo para
o avanço das discussões sobre o campo do lazer, necessitamos de mais
estudos teórico-práticos focados na qualidade das ações desenvolvidas
no âmbito da formação profissional nesse campo.

Desse modo, é urgente o encaminhamento de propostas de ação que con-


templem o desenvolvimento e a sistematização de experiências interdis-
ciplinares no âmbito do lazer. O que temos na atualidade são iniciativas
multidisciplinares em busca de consolidar ações interdisciplinares. Esta-
mos no início de um longo caminho a ser percorrido que abre perspecti-
vas não só para um novo entendimento do lazer, mas também para um
melhor embasamento da atuação profissional nesse campo.

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Dossiê: Lazer

Nota

1 A multidisciplinaridade diz respeito à justaposição de diversas disciplinas, às vezes


sem relação aparente ou sem que se manifestem explicitamente as relações que podem
existir entre elas. Já a interdisciplinaridade envolve as interações existentes entre duas
ou mais disciplinas, em um esforço de comunicação e de procura de um ponto comum,
podendo muitas vezes resultar em um novo corpo disciplinar (FAZENDA, 1998).

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Lazer: um direito de todos

Edmundo de Drummond Alves Junior


Cleber Dias

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Edmundo de Drummond Alves
Junior
Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) no
Programa de Pós-Graduação em Ciências do Cuidado
em Saúde e no curso de Licenciatura em Educação
Física, do Instituto de Educação Física. É responsável
por dois grupos de pesquisa cadastrados no CNPq:
“Envelhecimento e Atividade Física e Esporte” e “Lazer e
Atividades na Natureza”. É autor de livros sobre os temas
lazer e envelhecimento.

Cleber Dias
Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
no Programa de Pós-Graduação em Estudos do Lazer. É
autor de diversos trabalhos sobre o fenômeno social do
lazer, em suas diferentes interações com a sociedade e a
cultura em geral.

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Resumo
O objetivo deste artigo é abordar dois desafios às políticas
setoriais do lazer. O primeiro deles é o conjunto de iniciativas
voltadas aos adultos, sobretudo idosos, que já gozam de tradição
nas ações políticas no âmbito do lazer. E o segundo é o con-
junto de ações mais recentes, ainda incipientes, direcionadas a
populações rurais, especialmente aquelas identificadas como
“culturas tradicionais”. De certo modo, esses dois espectros,
quando articulados, dizem respeito a desafios importantes para
a consolidação do lazer como um direito social.

Palavras-chave: Lazer. Adultos. Comunidades tradicionais.

Abstract
The aim of this paper is to address two challenges for the
leisure sector policies: The first of them is the set of initiatives
oriented to the adults, especially the elderly, who already
enjoy the tradition in political actions in the leisure scope. The
second is the set of more recent actions, still incipient, oriented
to rural populations, especially those identified as “traditional
cultures”. Somehow, these two spectra, when articulated, refer
to the important challenges for the consolidation of leisure as
a social right.

Keywords: Leisure. Adults. Traditional cultures.

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Dossiê: Lazer

Introdução

Independentemente da época analisada, é fato comum encontrarmos a


presença de diversas formas de divertimento nas  relações sociais, seja
como rituais,  em festas, na preparação das crianças para a vida adul-
ta,  ou mesmo no  trabalho (HUIZINGA, 1993). Todavia, a manifestação
desses aspectos da vida social parece ter características próprias e bem
delimitadas em arranjos sócio-históricos específicos.

Nesse sentido, estamos de acordo com aqueles que identificam o lazer


como um  fenômeno sociocultural com fortes características derivadas
dos processos de modernização. Ainda que isso não signifique associá-lo
à industrialização ou à consequente artificialização do tempo do traba-
lho e do não trabalho; uma vez que processos modernizadores foram e
são excessivamente polissêmicos e variados.

Pensar no lazer como uma forma de divertimento contemplado em duas


relações básicas, tempo e atitude, tem sido o foco de diversas interven-
ções e pesquisas que merecem maior  articulação com as políticas pú-
blicas. Se em determinado momento pouco se falava do lazer como um
conceito com características próprias, mesmo que a provisoriedade des-
sas características sejam alteradas com o passar do tempo, não se pode
negar que o prazer ambicionado no tempo do lazer está inserido nas
diversas manifestações culturais.

Tem sido mais frequente pensar no lazer como necessidade social mais
afetada aos que estão inseridos no modo de vida urbano do que o ru-
ral. Em sentido contrário, mas articulado a esse processo, também é re-
cente a preocupação com um lazer que busque a integração de adultos
residentes em regiões urbanas de diversas gerações, sem segmentá-los,
como frequentemente vem sendo feito; especialmente ao se propor in-
tervenções voltadas para um público mais idoso.

Nesse contexto, nossa contribuição a este dossiê é no sentido de articular


teoria e prática, apresentando elementos que possibilitem uma melhor
reflexão sobre as práticas de lazer que são propostas a grupos consti-
tuídos de adultos. Como também apresentar contribuições dos estudos
do lazer fora do âmbito urbano, discutindo formas de divertimento em
comunidades rurais.

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Lazer: um direito de todos

1 Lazer e adultos

Quando verificamos estudos que abordam a história da velhice ou mes-


mo como cada sociedade em épocas das mais diversas determinava
quem seria velho e qual o papel desses na sociedade, podemos afirmar
que não se envelhece mais como o foi em outras épocas.1

Segundo Riley e Riley (1991), os papéis sociais observados por uma ma-
neira considerada cômoda podem ser divididos em três etapas: aposen-
tadoria com a primazia do tempo destinado ao lazer, o tempo do trabalho
estaria destinado aos considerados adultos e no primeiro extremo a edu-
cação seria exclusiva ao tempo dos jovens.

Nesse modelo banal, originário de um tempo mais antigo, a aposenta-


doria estaria muito próxima da morte e haveria uma dificuldade adap-
tativa a novos modos de vida na velhice. O declínio se acentuaria com o
decorrer dos anos e se fortaleceriam as concepções consideradas como
preconceituosas com relação ao processo normal do envelhecimento e
da velhice. Essa seria uma divisão considerada prática para a sociedade,
pois não possibilita muitos questionamentos.

Concordamos com Riley e Riley (1991), autores que nos dão elementos
para a discussão que queremos empreender na defesa de uma interge-
racionalidade (ALVES JUNIOR, 1998) nas propostas de lazer para “adultos
idosos”2 e aposentados.

Seguindo essa linha de raciocínio, em uma proposta que integra as ida-


des, seria possível experimentar diferentes papéis em todas as estrutu-
ras. Assim sendo, tanto na escola, como no trabalho, como no lazer, as
pessoas estariam integradas, diminuindo as barreiras geracionais.

Atualmente são bem diversificadas as contribuições dos estudos do la-


zer, incluindo nele a abrangência do campo da animação cultural, que
tem como foco o atendimento de grupos sociais cuja maioria é de idade
avançada ou aposentados.

O que estaria por trás dessa pretensa redenção social para com aqueles
que envelhecem? Será que a sociedade contemporânea está passando a
ter mais preocupação, respeito e solidariedade, ou, ao contrário, estaria
cada vez mais individualista, tentando encontrar meios de se afastar e

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Dossiê: Lazer

negar um modelo de velhice que associa a pessoa à ideia de inutilidade


e de peso para a sociedade?

Tem sido nosso interesse discutir o que originou esse fato contemporâ-
neo, o envelhecimento populacional e os estudos do lazer. Como, e por
que, os adultos idosos passaram a ser reconhecidos como cidadãos de
direitos (ALVES JUNIOR, 1992, 2004).

Estudar a velhice e o envelhecimento nos dias atuais é se debruçar sobre


as questões mais diversas, que entre outros fatores envolvem: os direitos
sociais, como acesso à saúde, à educação e ao lazer; a aposentadoria e o
sistema de idades no qual estão fundamentadas as gerações dos atuais
idosos; o modo de vida, bem como as atividades assumidas no período
que ronda a aposentadoria.

Como forma de diminuir os preconceitos em relação ao envelhecimento


e à velhice, adotamos a ideia de que propostas intergeracionais, aliadas
a uma pedagogia social, são estratégias capazes de diminuir as barreiras
geracionais (ALVES JUNIOR, 2006). Quando questionados sobre as prin-
cipais motivações que os levaram a participar de um projeto destinado
ao lazer de adultos, no qual regularmente se oferece uma diversidade de
oficinas que contemplam os interesses culturais do lazer (ALVES JUNIOR,
2011), os frequentadores manifestaram como respostas expressões tais
como saúde, lazer, manter o corpo, sociabilidade, pertencimento e uma
espécie de prazer. As pessoas consideradas como idosas que participam
de atividades semelhantes em modelo associativo tendem a se movi-
mentar em um tempo que lhes é específico, explicado, como supomos,
por um “fenômeno geracional”, o que não permite qualquer equivalência
com fatos ocorridos em outras épocas.3

O século XX é peculiar e viu crescer como grupo social uma categoria


que sempre existiu, a dos mais velhos. Nesse momento um fenômeno
tipicamente urbano, cujos limites cronológicos, por serem bastante im-
precisos, possibilitam manipulações das mais diversas. De imediato não
cairemos na armadilha de dizer quando começa essa etapa e nem uti-
lizaremos denominações no mínimo ingênuas, como “feliz idade”, “me-
lhor idade” ou mesmo “terceira idade”, que estigmatizam e contribuem a
preconceitos relacionados à idade. E que frequentemente estão presen-
tes nas propostas de lazer para esse grupo social.

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Lazer: um direito de todos

Assim, de acordo com Pierre Bourdieu (1980), a idade deve ser considera-
da como uma variável biológica, passível de manipulações diversas. Por
esse motivo, ele diz que critérios baseados em uma determinada idade,
além de serem bastante ambíguos, não servem como parâmetro único
para dizer quando alguém passa a ser identificado como um velho. Ba-
seando-se na invenção social da juventude, podemos considerar que no
outro extremo, a velhice é mais uma categoria criada culturalmente. Os
cortes cronológicos só contribuem para aumentar as barreiras entre ge-
rações (ATTIAS-DONFUT, 1988).

Demograficamente falando, as proporções que hoje se apresentam entre


a porcentagem de velhos e jovens e a forma como temos tratado os mais
velhos nas nossas políticas públicas,4 indicam tempos difíceis para os
que envelhecem nesse século XXI. Em um futuro próximo quando com-
paradas às proporções, irá se perceber a tendência de, a cada ano, ocorrer
um aumento no número de velhos, e a distância entre esses dois grupos
será ainda maior. O que significa que teremos cada vez mais velhos do
que jovens.

Esse fato impõe um repensar do que é ser um “adulto idoso” e quem


passará a ser reconhecido como tal e qual será seu papel na sociedade
atual. Muitas reflexões podem ser feitas no sentido de verificar que esse
crescimento sugere que com o envelhecimento da população teremos
acentuado o que já foi apontado recentemente como um “problema so-
cial do momento” (LENOIR, 1996), e ao que tudo indica com forte chance
de ser duradouro. O aumento tanto quantitativo como nas proporções de
adultos velhos é um resultado previsível do fenômeno conhecido como
“transição demográfica”.

Taxas de fertilidade e de mortalidade infantil diminuídas, combinadas


com uma maior longevidade, são os principais indicadores que fizeram
despertar para o crescimento de um “grupo social” que em um primeiro
momento se concentrava em países mais desenvolvidos, mas que logo
chegou a países como o Brasil. Tomando a França como exemplo, o Pós-
Segunda Guerra Mundial ficou marcado pelo que se conheceu como
“trinta gloriosos”. Uma época de franco crescimento, que veio a ser
acompanhado por diversos avanços no campo da proteção social e das
oportunidades de lazer.

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Dossiê: Lazer

Fica claro que é no contexto das políticas sociais que se esboçam os pri-
meiros passos do que se pode interpretar como benefícios para a po-
pulação idosa e seu acesso ao lazer. Preocupações que acompanharam
outras, como assistência hospitalar, aposentadoria, sistema de pensões,
financiamento das contribuições e uma política pública voltada aos que
envelhecem.

A procura de uma proteção social intensificou-se na direção de satisfazer


as novas exigências como, por exemplo, o acesso a melhores condições
de saúde, ao lazer e reivindicações a uma vida profissional mais curta
(ANDREANI et al., 1984). A generalização dos sistemas de aposentadoria
foi uma realidade dessa época, que paralelamente viu aumentar a ex-
pectativa de vida após a aposentadoria e, mais importante ainda, veio
acompanhada de melhores condições para o envelhecimento de grande
parte da população.

Guillemard (1986) sugere que foi em um cenário de crescimento econô-


mico e do estado de bem-estar social, aliado ao crescimento da categoria
aposentado, que uma política de modo de vida se desenvolveu no senti-
do de ocupar de forma qualitativa os anos de um novo tempo disponível
de trabalho, que encontrou campo fértil para as propostas de lazer para
adultos idosos.

Nesse momento exerceu grande influência a discussão sobre a melhor


forma de envelhecer, e isso se deu a partir de duas teorias psicossociais
que se opunham: uma que sugeria o desengajamento e outra que defen-
dia o engajamento como forma de se ter um melhor envelhecimento,
sendo que a última ficou conhecida como “teoria da atividade”.

É marcante como a proposta ativista repercutiu e contribuiu a uma difu-


são indiscriminada do que foi chamado de “invenção social da terceira
idade”: novo modelo de envelhecer em que se manter inserido social-
mente e bastante engajado em um sem-número de atividades distingui-
ria quem se aproximava de um bom envelhecimento.

Os adeptos do modelo ativista sugeriam um modo de vida específico


para a contribuição de um envelhecimento com a preservação da auto-
nomia e da independência. Já o outro modelo, abrangia os que por moti-
vos diversos ficavam confinados, seja na residência, em hospitais ou em
Instituições de Longa Permanência (ILPIs). Esse grupo se enquadrava no

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Lazer: um direito de todos

discurso das perdas e de uma inexorável fragilização dos que envelhe-


cem, que de uma forma geral era constituído de inativos e dependentes,
um peso para sociedade, o que corresponderia ao mau envelhecimento.

No modelo ativista se insere a manutenção de uma vida com autonomia,


se sustenta a importância do lazer que nela está fortemente representa-
do, principalmente após o tempo dedicado às obrigações profissionais,
religiosas, familiares ou outras. A aposentadoria é um momento bastan-
te importante no processo do envelhecimento, e nela incluiríamos uma
grande parcela de mulheres que no século passado não exerceram regu-
larmente atividade profissional fora do lar, mulheres que certamente tive-
ram dentro de casa uma rotina de trabalho de muita responsabilidade.

A vida ativa das mulheres adultas idosas desperta interesse particular,


pois, ao que se percebe, elas são as que mais se adaptam ao ambiente as-
sociativo onde o lazer está bastante presente. E nesse caso, temos afirma-
do que sua forte representação não se justifica pela simples constatação
de que existem mais mulheres do que homens. Os adultos idosos ainda
autônomos se enquadrariam em uma nova categoria que se diferencia
do velho decrépito, aqueles que veem a vida passar sem qualquer reação.

A distinção ficou bem marcante pelos significados que se aproximam dos


usos dados ao termo “terceira idade”. Merece registro que essa denomi-
nação ganhou muito apelo na França, país onde o termo foi criado, como
também pelo fato de esse país ser aquele que o incorporou, na forma de
política pública, sendo assim um dos precursores de uma ideologia da
terceira idade. Entretanto, o termo entrou em desuso com o passar dos
anos, a partir da resistência por parte daqueles que envelheciam e que
tinham uma visão crítica do que essa denominação trazia em si.

Recentemente, já no século XXI, vimos surgir uma nova denominação


em que a característica idade deixa de ter relevância e parece con-
templar mais esses adultos idosos, trata-se agora dos seniors (GUÉRIN,
2011). Grupo ativo e engajado que passou a não ser mais identificado
pela característica de pertencer a uma determinada idade ou de ser um
aposentado.

Ao se descaracterizar a idade cronológica como marcador fundamental


de um grupo social, viabiliza-se a proposta da “intergeracionalidade”.
Essa sim, considerada como estratégia educacional e princípio capaz de

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Dossiê: Lazer

integrar e contribuir à diminuição dos preconceitos relacionados a uma


idade qualquer (ALVES JUNIOR, 2011). “Etarismos” ou “ageismos” que
acabavam por afastar jovens dos velhos e vice-versa. O “ageismo” é um
verbete ainda sem uma definição disponível em dicionários de língua
portuguesa. A palavra é escrita em francês como âgisme5 e quando escrita
em inglês, ageism. Entretanto, mesmo que no meio acadêmico essas duas
palavras mereçam conceituação e pesquisas que se desenvolvem funda-
mentadas no seu significado (LAGACÉ, 2010), os dicionários dessas duas
línguas ainda não a definem.

Na tentativa de conceituação pode-se perceber com maior clareza que


tanto jovens como os mais velhos podem sofrer algum tipo de precon-
ceito semelhante. Entretanto, verifica-se esse tipo de preconceito acon-
tecendo com mais intensidade em direção aos mais velhos. Trata-se da
exclusão ou mesmo da categorização de um indivíduo, baseado em um
critério bem claro, a idade. No caso desse critério, e principalmente com
as pessoas mais velhas, até agora as denúncias não são tão veementes
quanto em relação a outros preconceitos.

Na tradução para o português, o livro Sociologia, de Antony Giddens


(2012), apresenta esse tipo de preconceito como se fosse uma ideologia;
ele é descrito como “etarismo”. Termo ainda não considerado nos nos-
sos dicionários, mas que também já surgiu em outros textos de língua
portuguesa.

Não resta dúvida de que mesmo detectando problemas com relação à


generalização das oportunidades sociais, são concretas e bastante diver-
sificadas as contribuições saídas do campo da animação cultural e dos
idosos (ALVES JUNIOR, 2009). Contudo, no caso brasileiro, ainda são res-
tritas as propostas que visam à intergeracionalidade. Avanço conceitual
sugerido pela primeira vez formalmente na Europa, em 1993, no que fi-
cou conhecido como o ano europeu da solidariedade entre as gerações.

A questão da intergeracionalidade em projetos de lazer não tem sido


tão privilegiada no Brasil6 como em outros países. Sendo poucos os que
se dispõem a discuti-la no âmbito dos centros de convivência, ou espa-
ços educativos que atendem a essa parcela da população, que frequen-
ta tanto ambientes formais de educação quanto ambientes não formais
(ALVES JUNIOR, 2012).

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Lazer: um direito de todos

Não é difícil reconhecer que as atividades de lazer, e principalmente as


destinadas aos adultos com mais idade, quase sempre são relegadas ao
segundo plano; privilegiando-se outros tipos de abordagem que mantêm
à margem os principais interessados. Daí, em muitos casos, a qualidade
do que é oferecido carece de maior preocupação. Ao se propor qualquer
coisa para os idosos, sem sua participação na elaboração, demonstra-se
que o mais importante é fazê-los ficar um pouco mais ocupados, evitan-
do-se assim maiores custos sociais e econômicos com o envelhecimento.

O acesso ao lazer não é exclusivo de um grupo social e tampouco se


esse grupo pertence ao meio urbano ou rural. É um salutar desafio para
os responsáveis pela elaboração das políticas públicas porem em prática
propostas de lazer em uma perspectiva de integrar as diversas gerações,
evitando a formação de guetos isolados, sem que isso modifique a pro-
posta central que é a de atender as demandas de idosos e aposentados.
Essas preocupações têm marcado as sugestões dos gestores de diversos
projetos, como o “Prev Quedas”, realizado na Universidade Federal Flu-
minense (UFF) desde 2001 (ALVES JUNIOR, 2001, 2008, 2009).

Tais projetos se fundamentam nos estudos do lazer e da animação cultu-


ral, integram a discussão do ideário da promoção da saúde e usam como
princípio e estratégia a intergeracionalidade.

2 Lazer em áreas rurais e entre culturas tradicionais

De certo modo, a maior parte das diretrizes que orientam ações setoriais
no âmbito do lazer parece ter em vista uma população urbana, não rural.
Formulações teóricas sobre o lazer colaboram muito para esse tipo de
enquadramento. Tradicionalmente, teorias do lazer têm vinculado esse
fenômeno a um quadro geral de modernização, com destaque para a in-
dustrialização e a urbanização (RUSSEL, 2013).

Nesse sentido, a cidade, isso é, o ambiente urbano, aparece como o locus


privilegiado para a emergência histórica do lazer. Não por acaso, ações
educativas nessa esfera, como a animação cultural, geralmente pressu-
põem um conjunto de equipamentos e instalações ligados ao ambiente
das cidades, tais como os cinemas, os teatros ou os centros culturais.

Mas como operar diante de realidades não urbanas? Esses contextos por
acaso desconhecem práticas e vivências de lazer? Esses talvez sejam um

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Dossiê: Lazer

dos principais desafios para uma política de lazer que tome o Brasil por
inteiro, pois embora a maioria dos brasileiros viva em cidades que pode-
ríamos chamar de “grandes”, há também um número expressivo de pes-
soas vivendo em cidades pequenas, com estrutura propriamente urbana
quase inexistente.

Segundo dados do IBGE, 35% da população brasileira vivem em 15 me-


trópoles (que abrangem 204 munícipios). Outros 29% da população vi-
vem em cidades médias, que abrangem 400 municípios. De início, esses
dois grupos, que somam 64% da população, podem ser considerados
habitantes de cidades. Isto é, lugares cujo cotidiano é hipoteticamente
marcado por uma experiência social urbana: frenesi, agitação, entorpe-
cimento dos sentidos e tudo aquilo que tanto espantou homens e mu-
lheres de vários países desde o quartel final do século XIX, quando sur-
tos de urbanização foram se registrando progressivamente. É assim que
se imagina a vida em uma cidade – em oposição ao que se imagina de
uma vida no campo.

Por outro lado, 36% dos brasileiros vivem em cidades com menos de 50
mil habitantes, que abrangem 4.958 munícipios, ou 89% do total de mu-
nicípios do Brasil. Oficialmente, muitos deles, apesar de pequenos e com
baixíssima densidade populacional, caracterizam-se como “cidades”,
elevando para quase 80% o percentual da população que vive em tais
situações.

Em muitas dessas “cidades”, porém, não se encontrarão nenhum daque-


les elementos historicamente associados aos ambientes urbanos. São
paisagens rurais em última instância. E esse cenário não é exclusivo de
regiões mais ou menos isoladas dos eixos geográficos economicamente
mais dinâmicos. Mesmo em cidades maiores, às vezes próximas de me-
trópoles, virtualmente com mais possibilidades de emprego e também
maior potencial para acesso à cultura, ao esporte e ao lazer, não se iden-
tifica com facilidade uma experiência social urbana.

Segundo dados de 2012, 75% dos munícipios brasileiros não têm nenhum
museu, 78% não têm nenhum teatro e 90% não têm nenhum cinema.
Embora tenham se registrado evoluções com relação aos números de
1999, as possibilidades de acesso ao lazer e à cultura ainda são escassas
na maioria das cidades brasileiras.

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Lazer: um direito de todos

A precariedade de serviços urbanos relacionados ao lazer, sem men-


cionar a precariedade dos serviços urbanos de modo geral, autoriza, em
suma, uma problematização a respeito da própria classificação dessas
“cidades”. José Eli da Veiga (2002) é um dos que já criticou a definição de
cidade adotada pelas pesquisas censitárias no Brasil desde 1938, quando
o decreto-lei 311 estabeleceu que as sedes dos municípios considerar-se-
iam sempre como “cidades”, a despeito de suas funções, tamanhos ou
situação. Desde então, um dos efeitos desse dispositivo legal, segundo o
autor, tem sido a distorção das reais proporções entre a população brasi-
leira que vive no campo e àquela que vive na zona urbana.

De acordo com a definição adotada no Brasil, “cidades” com população


inferior a dez mil pessoas e densidade demográfica de 0,3 habitantes por
quilômetro quadrado são oficialmente classificadas como áreas urbanas.
Adotando-se, porém, critérios como os da Organização de Cooperação
e de Desenvolvimento Econômico, que prescreve densidade mínima de
150 habitantes por quilômetro quadrado para definir uma área urbana,
apenas 411 dos 5.507 municípios brasileiros enquadrar-se-iam em tais
termos, em 2000, diminuindo em pelo menos 10% o índice da população
brasileira que vive em “cidades” (VEIGA, 2002).

Tudo isso impõe a necessidade de se reavaliar princípios que geralmente


orientam ações políticas para o setor do lazer. A defesa da desobstru-
ção dos canais de acesso ao lazer como principais bandeiras de luta aos
interessados em constituí-lo como direito social talvez se aplique com
propriedade para regiões metropolitanas, onde há relativa abundância
de oferta de serviços nesse setor.

Mas para grande parte da população brasileira, reinvindicações, discur-


sos e estratégias desse tipo, comuns às políticas públicas de lazer, podem
até não fazer sentido. A retórica da democratização, por exemplo, ganha
contornos particulares nesse contexto, pois aí já não se trata de distribuir
de maneira mais equitativa equipamentos e oportunidades de fruição
de lazer entre os diferentes cidadãos de uma cidade. Regra geral, nesses
casos, simplesmente nem sequer há o que ser distribuído. São, portanto,
desafios de outra natureza.

Diretrizes para políticas de lazer, nesse contexto, talvez tivessem mais


êxito se buscassem maior interação com costumes culturais locais. Ao

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Dossiê: Lazer

invés de tão somente transplantar para regiões rurais demandas típicas


aos centros metropolitanos urbanos. A ausência de cinemas, teatros ou
centros culturais em muitas cidades não necessariamente significa que
ali não há lazer. Tampouco quer dizer que a construção de espaços dessa
natureza seja a única ação política relevante para a garantia desse direito
social. Embora, no médio prazo, medidas nesse sentido mostrar-se-iam
fundamentais, obviamente.

De maneira mais imediata, porém, o fortalecimento e a potencialização


das atividades lúdicas e recreativas já desenvolvidas, por vezes preca-
riamente, talvez sejam ações mais óbvias, mas que devem ser acom-
panhadas por outras medidas. Trata-se de todo um universo de festas
(religiosas ou profanas), objetos e práticas culturais que já permeiam o
cotidiano de regiões rurais, oferecendo-lhes ocasiões de lazer e diversão.

Nesse sentido, políticas de lazer para essas regiões talvez devessem ra-
dicalizar suas inter-relações com outras esferas setoriais, especialmente
com as políticas culturais. O melhor seria que se dissolvessem mesmo
quaisquer fronteiras entre esses dois campos de atuação: o lazer e a cul-
tura. Nesse ponto, formas consolidadas de compreensão, tanto de lazer
quanto de cultura, impedem uma renovação ampliada das políticas des-
ses dois setores. Prevalecem ainda ideias que concebem a cultura, quase
sempre no singular, em contraposição ao lazer.

Nesses termos, cultura seria tão somente a expressão de um senso esté-


tico elaborado, algo, de todo modo, muito além do entretenimento – visto
como sinônimo de banalidades superficiais. Trata-se de uma espécie de
atualização das polarizações entre cultura popular, cultura erudita e cul-
tura de massas, edificadas e consagradas em larga medida pelas teoriza-
ções da Escola de Frankfurt.

Toda produção cultural, porém, além de múltipla em sentidos, o que as


pluraliza em culturas, é também perpassada por três dimensões neces-
sariamente simultâneas: a produção, a circulação e o consumo. Nesse
sentido, em algum momento de sua cadeia produtiva, muitos objetos,
artefatos ou produtos culturais serão em alguma medida ocasiões de la-
zer. E a motivação de espectadores e consumidores de cultura pode estar
fortemente radicada, justamente, na esfera das diversões (BOURDIEU;
DARBEL, 2003; DABUL, 2008).

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Lazer: um direito de todos

O que não elimina, entretanto, a possibilidade de esses momentos serem


apreendidos de forma complexa ou promissora do ponto de vista edu-
cativo. Não há necessariamente uma oposição antitética entre diversão,
contemplação estética ou aprendizado de conteúdos formais. Tudo isso
pode perfeitamente conviver entre si em um mesmo espaço-tempo.

Políticas públicas no setor cultural, no entanto, parecem enfatizar sobre-


maneira a motivação e os sentidos atribuídos a experiências culturais pe-
los produtores de cultura (especialmente os artistas), mas não tanto pelos
consumidores (o público). Essa ênfase talvez explique a relutância e até o
preconceito de ações culturais entenderem a si mesmas como lazer.

Além disso, entre estudiosos do lazer, nota-se o que poderíamos chamar


de uma “ética do ativismo”, que diz respeito a uma quase obsessão em
celebrar a participação ativa em momentos de lazer e cultura, tais como
nos esportes ou nas artes cênicas, ao mesmo tempo em que se condena a
participação nesses momentos na condição de espectador, o que estaria
associado, nessa perspectiva, a uma postura de passividade e até aliena-
ção (PIMENTA, 2013, especialmente capítulo 1).

Dicotomias desse tipo, opondo um lazer ativo a um lazer passivo, a parti-


cipação à assistência, a participação ao consumo, têm se mostrado limi-
tadas na reflexão sobre estratégias mais adequadas para políticas nesses
setores. Ou as políticas de cultura se admitem também como políticas
de lazer, bem como o contrário, ou ambas continuarão condenadas a um
grau de eficiência bastante discutível.

Todos esses desafios se expressam de maneira ainda mais flagrante – e


também mais complexa – quando tratamos de contextos não urbanos
específicos, imersos em culturas particulares, como indígenas, quilom-
bolas ou povos de culturas tradicionais, em geral. No âmbito dos estudos
do lazer no Brasil, o interesse pelo estudo dessas situações é ainda relati-
vamente recente. O número de trabalhos a esse respeito parece pequeno,
embora já se possa identificar uma sutil tendência de crescimento.

Alguns desses trabalhos inclinam-se às vezes em direção a uma idealização


dos conceitos de cultura e de identidades, concebendo-os de maneira está-
tica. Assim, celebra-se o resgate de tradições ancestrais, ao mesmo tempo
em que se lamenta a suposta perda da autenticidade cultural e o afasta-
mento que estaria se operando atualmente nos hábitos dessas populações.

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Dossiê: Lazer

Nesse sentido, práticas atuais de lazer que frequentemente experimen-


tam popularidade em muitas dessas comunidades, como o futebol, o
forró, a televisão ou a sinuca, entre outros, são condenadas por repre-
sentarem, de acordo com essa interpretação, o risco de “extinção” dessas
culturas. Trata-se de um velho diagnóstico a respeito das persistentes
culturas tradicionais. Nesses termos, o retorno ou a permanência a há-
bitos pré-modernos seria a única forma realmente crível de dotar essas
comunidades de uma identidade cultural verdadeira.

A partir de princípios do século XX, o crescente interesse de acadêmicos


no estudo de costumes populares foi paulatinamente reforçando e am-
pliando essa forma de olhar. Tal postura inauguraria uma longa tradição
intelectual. Dessa maneira, movidos por interesses em larga medida fol-
clóricos, intelectuais foram imprimindo um dado sentido a manifestações
culturais populares, supondo-as avançando a passos largos em direção ao
desaparecimento, o que animava, inclusive, esforços para registrá-las antes
que fosse tarde demais.

Preocupados em identificar sinais de identidade capazes de assegurar


a conservação ou a autenticidade de culturas tidas como puras e ima-
culadas, buscavam-se, no passado, seus traços “essenciais”, ao mesmo
tempo em que se criticavam quaisquer transformações sofridas por elas
(ARRUTI, 1995; VILHENA, 1997).

Até os dias de hoje nota-se certa expectativa de encontrar o passado no


presente. Informados por visões pessimistas, a dinâmica de transforma-
ção desses grupos – que em qualquer sociedade é permanente – é apre-
endida negativamente, tal como se fosse indesejável. Diante do risco de
dilaceramento das culturas tradicionais, idealiza-se nostalgicamente o
passado, ao mesmo tempo em que se critica o presente, virtualmente
degradado pela mudança dos modos de vida desses grupos. Ao invés,
portanto, de enxergar uma identidade cultural em construção, tende-se
a reduzir a alteridade à eleição de traços estereotipados definidores de
uma identidade que se quer fixa.

Mas na prática, a incorporação de novas formas de diversão por essas


culturas tradicionais não necessariamente implica uma conversão cul-
tural absoluta. A interação de diferentes grupos a partir de jogos e outros
lazeres pode significar apenas mais um veículo de interação entre dife-

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Lazer: um direito de todos

rentes culturas e não o canal para o aniquilamento de costumes e estilos


de vida. Muitas vezes, ao incorporarem novas práticas ou objetos, grupos
indígenas atribuem-lhes sentidos e significados particulares, de acordo
com seus próprios sistemas culturais (SAHLINS, 1997a, 1997b).

Em várias situações tem sido esse o caso da assimilação de práticas de


lazer. Nascimento Junior e Faustino (2009), tratando do futebol entre os
índios kaingang, mostraram que esse esporte atua naquele contexto
como “um dos principais agentes socializadores da etnia” (NASCIMENTO
JUNIOR; FAUSTINO, 2009, p. 2). O futebol se articula com todo o universo
cosmológico daquele povo, especialmente as estruturas de parentesco
orientadas pela descendência patrilinear e o dualismo simbólico kamé e
kairu, que divide o mundo em duas metades. É essa forma de organização
social que norteia todas as práticas kaingang, inclusive o futebol, como
mostram os autores: “A importância e o significado do futebol entre os
grupos kaingang, certamente têm ramificações na organização sociocul-
tural do grupo [...] O futebol nas aldeias incorporou elementos da tradi-
ção kaingang” (NASCIMENTO JUNIOR; FAUSTINO, 2009, p. 9).

De maneira semelhante, Beleni Grando (2006) analisou o futebol entre


os índios bororo, concluindo que o significado dessa prática, para esses
índios, só é compreensível considerando-se a própria estrutura dessa so-
ciedade, organizada com base na divisão de sua aldeia em duas metades
clânicas, cada qual dividida em quatros outros clãs, localizados com o
curso do sol e em direção ao rio. Assim, a organização das equipes de
futebol, o lugar e o espaço de destaque, atribuídos a cada jogador, bem
como a própria forma de nomear as equipes (de baixo ou de cima) têm
relação direta com a posição dos participantes no interior dessa estrutu-
ra clânica e de parentesco.

O estudo de Vianna (2008) sobre o futebol entre os índios xavante aponta


também para a sua organização por intermédio de um sistema concei-
tual e simbólico característico. A formação dos times segue os padrões
tradicionais de organização social daquele grupo, constituindo-se com
base em metades de idade, dos lados opostos da aldeia ou dos clãs, de
modo que o futebol permite a plena expressão dos valores, esquemas,
referências e práticas simbólicas que compõem a vida social xavante.

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Dossiê: Lazer

Considerações finais

O fato de determinadas práticas de lazer constituírem o produto histórico


da modernidade, não significa que elas sejam, por princípio, incompatí-
veis com culturas tradicionais, pois, a priori, não existe oposição irrecon-
ciliável entre tradição e modernidade (HUNTINGTON, 1997; EISENSTADT,
2000; GOODY, 2008). Grupos indígenas, por exemplo, podem perfeitamen-
te incorporar a eletricidade, telefones celulares ou a prática de esportes
e continuarem vivendo suas vidas como índios. A cultura indígena não
é algo estático, alheio às transformações e aprisionada no passado. É,
portanto, no mínimo, politicamente pernicioso tentar advogar que povos
tradicionais devam viver como se imagina terem vivido seus antepassa-
dos do século XVI, sob o risco de não mais serem tradicionais.

O lazer é uma prática social, o que significa que o conteúdo dessas prá-
ticas se define a partir de um conjunto de relações sociais e não a partir
de características ontológicas. Identidades culturais não têm essência;
qualquer arranjo cultural é resultado de fatores históricos (BARTH, 2000;
LINTON, 2000). O lazer, portanto, tal como as próprias culturas em que
estão radicados, não tem “essência”, e seus sentidos históricos são defi-
nidos por circunstâncias cotidianas do seu uso social (DIAS, 2011).

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Lazer: um direito de todos

Notas

1 Para aprofundar a discussão ver Minois (1987), Beauvoir (1990) e Bois (1994).

2 Usamos essa denominação pelo fato de considerarmos limitantes aquelas


que parecem opor jovens a velhos. O que obscurece a percepção de que esta é
uma questão relacional, em que a cada situação podemos ser vistos como uma
pessoa jovem ou velha.

3 Claudine Attias-Donfut acredita que mereça ser feita uma problematização


no simbólico do que pode significar uma geração, merecendo reflexões sobre
a história, a memória coletiva e os tempos sociais. Considerando que a noção
de geração não é nem quantificável, nem codificável, aceitando-se que sua
qualificação seja entendida como uma “união espiritual” é necessário dissociá-
la da noção de idade (ATTIAS-DONFUT, 1991).

4 No Brasil é considerado como idoso quem tem mais de sessenta anos


(BRASIL, 1997, 2003), já na Europa usa-se como limite a idade de 65 anos.

5 Foi o gerontólogo Robert Buttler que no final da década de 1960 veio a ser
o primeiro pesquisador a usar essa palavra no sentido de demonstrar que
estereótipos e discriminações podem ser justificados por uma relação com uma
idade qualquer (ALVES JUNIOR, 2001).

6 Os programas brasileiros voltados a manter os adultos idosos inseridos na


sociedade, em geral limitam o acesso dos que podem participar pelo critério
“idade cronológica”. É interessante observar que tais propostas sugerem a
importância de manter os idosos inseridos na sociedade, esquecendo que
a sociedade não é constituída só de idosos. Em geral seguem a legislação
brasileira e usa-se a idade de sessenta anos como limite para caracterizar quem
pode ter acesso a determinados projetos sociais que visam, pelo menos no
discurso, manterem os que envelhecem inseridos na sociedade.

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DOSSIÊ

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Por uma história da assistência
medieval: o caso de Portugal

Priscila Aquino Silva

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Priscila Aquino Silva
Professora do Instituto GayLussac, da Universidade Unisalle
e da Faculdade São Bento e pesquisadora vinculada ao
Scriptorium – Laboratório de Estudos Medievais e Ibéricos.
Doutora e mestre em História Medieval pela Universidade
Federal Fluminense (UFF). Bacharel e licenciada em História
pela mesma Universidade. Jornalista pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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Resumo
Lançar o olhar para a história da assistência na Idade Média é uma
tarefa de alteridade, de entendimento de uma realidade completa-
mente diversa e fortemente influenciada pela caridade cristã. Durante
toda a Idade Média, o assistencialismo não contou com uma estrutura
centralizada que se encarregasse de gerir o apoio a doentes, pobres e
desamparados. As iniciativas são quase sempre individuais, de pessoas
que agem como “o pecador que busca a redenção”. Afinal, na época,
acreditava-se que a “esmola matava o pecado” e era utilizada como ins-
trumento de salvação da alma. A análise presente neste artigo recairá
nos quadros assistenciais da Idade Média, iniciando uma reflexão sobre
o papel dos pobres e doentes e da caridade no mundo medieval e em
Portugal. O artigo apresentará, portanto, a história do desenvolvimento
das instituições de assistência aos pobres e desvalidos do medievo por-
tuguês – hospitais, albergarias, gafarias, mercearias, confrarias etc.

Palavras-chave: Assistência. Caridade. Pobreza. Instituições assistenciais.

Abstract
The study of history of care in Middle Ages is a task of otherness, of
understanding a completely different reality, strongly influenced by Christian
charity. The welfare did not have, throughout the Middle Ages, a centralized
structure in charge of managing the support for the sick, poor and helpless.
Initiatives are often from individual people who acted as “the sinner seeking
redemption”. After all, at the time, people believed that “alms kills sin” and
it was used as an instrument of salvation. The analysis in this article will
focus on the welfare system of the Middle Ages, discussing the role of the
poor and sick and of charity in the medieval world and in Portugal. The paper
presents, therefore, the development history of institutions to assist the poor
and disabled of medieval Portugual – hospitals, lodgings, institutions for lepers,
stores, friaries, etc.

Keywords: Assistance. Charity. Poverty. Welfare. Institutions.

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Por uma história da assistência medieval: o caso de Portugal

1 Assistência na Idade Média: um conceito a ser discutido

Travar um diálogo com os grandes historiadores que se debruçaram so-


bre o importante tema da pobreza e da assistência no mundo medieval
significa revelar raízes, enquadramentos, leituras, formas de se fazer e de
se pensar a história.

O estudo da temática da assistência engloba diversas esferas: a esfera


das mentalidades, na qual a caridade cristã consolida sua importância; a
esfera social, na qual o problema da relação entre as autoridades eclesi-
ásticas e civis é essencial; a esfera econômica, referente às redes viárias;
a esfera judicial, já que o marginal é um problema para a justiça; a esfera
da saúde, na qual as histórias urbana e sanitária, da medicina e da far-
macologia se entrecruzam. Enfim, se lançar ao estudo da caridade e da
noção de assistência na Idade Média é um exercício polivalente e com-
plexo que aponta para o desafio de uma autêntica interdisciplinaridade
(MARQUES, 1989, p. 13).

Para mergulhar nos meandros dessa temática busca-se discutir o concei-


to de assistência no mundo medieval e verificar a quem essa ação assis-
tencial se dirigia – quem, afinal, era considerado pobre e desvalido nesse
período no qual a maior riqueza era a posse da terra, que se encontrava
concentrada nas mãos de uma parca nobreza feudal? Investigar o inte-
rior das instituições assistenciais medievais, desvendando suas funções
e funcionamento é uma das intenções deste artigo, bem como abordar a
grande reforma assistencial que teve como palco Portugal e como grande
artífice o rei D. João II (1481 a 1495).

O historiador José Marques ressalta a importância de conceituar o termo


“assistência”, no caso da Idade Média. Para isso recorre a Fernando da Silva
Correia, grande especialista no tema, que considera a palavra assistência, no
seu sentido amplo ao fazer-se história, como sinônimo de auxílio, socorro:

Onde quer que haja uma necessidade que o interessado não possa re-
solver por si ou não possa pagar com dinheiro seu, a assistência tem o
seu lugar. Assistência a doentes, a famintos, sedentos, nus desabrigados,
desalojados, mal aconselhados, pobres de pão ou pobres de consolação,
tudo é assistência, auxílio, socorro. A assistência material ou moral tem
assim lugar onde haja uma falta, sendo o mesmo que dizer onde quer
que haja um homem (CORREIA apud PEREIRA, 2005, p. 9).

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Priscila Aquino Silva

Ivo Carneiro de Sousa nota, ainda, que o termo “assistência social” é mais
uma noção recente, de nossas sociedades atuais do que um conceito que
nos permita reconstruir as atividades assistenciais do passado que, na
realidade, continuavam a mobilizar-se em torno da perspectiva religiosa
e da ideia de caridade cristã (SOUSA, 1998, p. 25). Para a Idade Média, por-
tanto, o termo assistência é válido no sentido de assistir, auxiliar, ajudar,
e não no sentido moderno de “assistência social”.

Maria José Pimenta Ferro Tavares observa que compreender a amplitude


da assistência na Idade Média significa mergulhar na esfera da religiosi-
dade do homem medieval para o qual a salvação da alma passa por uma
atuação no mundo. As fontes medievais revelam acreditar que “assy como
a agua mata ho fogo, a esmolla mata o pecado” (TAVARES, 1983, p. 635).1

A assistência aos pobres e desvalidos era compreendida como uma fun-


ção individual do bom cristão e um investimento para a salvação eterna
– uma troca de dons entre o homem e Deus, que passava pelo próximo.
Ao lado do conceito de pobreza segue a prática da caridade. O estímulo e
o fundamento principal das ações assistenciais da Idade Média era, de-
certo, a concepção de caridade cristã. O compromisso de uma confraria
do ano de 1387 esclarece que a ideia de caridade corresponde ao “amor
de Deus e de seu próximo sem a qual nenhuum nom se pode salvar” (PAIVA,
2002, p. 8).

A obra de caridade materializava esse amor ao próximo e a Deus, que era


a garantia de salvação da alma. Nesse sentido, a caridade praticada entre
os leigos era desinteressada em relação às recompensas materiais, mas
possuía todo um interesse simbólico e espiritual subjacente. Na realida-
de, as práticas assistenciais foram vinculadas ao longo da Idade Média
aos trechos dos Evangelhos, aos exemplos dos apóstolos, e ao próprio
modelo de Cristo – o que testemunha a importância central da doutrina
cristã para a assistência dessa época.

A Bíblia exortava: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcan-


çarão a misericórdia” (Mateus, 5, 7), incentivava: “Vai, vende os teus bens,
dá-os aos pobres” (Mateus, 19, 21) (MATTOSO, 1973, p. 637) e determinava:
“Pois nunca cessará o pobre do meio da terra pelo que te ordeno, dizen-
do: livremente abrirás a tua mão para o teu irmão, para o necessitado”
(Deuteronômios) (SALGADO, A. M; SALGADO, A. J., 1992, p. 26). Fala-se da

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Por uma história da assistência medieval: o caso de Portugal

tessitura de uma verdadeira doutrina das obras de misericórdia, gran-


demente embasada em textos bíblicos que estava presente em Portugal
não apenas na literatura dos príncipes da Dinastia de Avis, mas também
difundida no discurso dos pregadores (PAIVA, 2002, p. 10).

Por exemplo, o franciscano João Álvares, já na segunda metade do século


XV, exorta a “fazer misericordia emquanto vivermos”, pois são pelas obras
de misericórdia “por que nos ham de preguntar no Dia do Juizo” (PAIVA, 2002,
p. 11). O dia do Juízo Final, temido e aguardado pelos fiéis medievos é
lembrado continuamente. O auxílio, a proteção aos pobres e as obras de
misericórdia aparecem como moeda de troca simbólica. É uma garantia
de que as portas do céu estariam sempre abertas.

Fala-se de uma sociedade que vive em espera. A visão escatológica da


Idade Média, que conjuga o tempo cíclico da liturgia com o tempo linear
que se estabelece entre a Criação e o Juízo Final, orienta os homens para
a busca incessante da salvação da alma. Para Bronislaw Geremek (1986),
o ethos da pobreza medieval comporta em seu âmago uma antinomia: va-
loriza o gesto heroico da renúncia e estima o dever de socorrer os pobres
com esmolas. Tal ideia convida, a um só tempo, a enveredar pelos mean-
dros da perfeição cristã e proclama a fatal coexistência entre riqueza e
pobreza. Nesse sentido, o elogio da esmola permite aos ricos a possibili-
dade de abrirem as portas do paraíso, justifica ideologicamente a riqueza
e confere aos pobres uma utilidade dentro daquilo que Geremek chama
de “economia da salvação”.

O conceito de “economia da salvação” implica uma distribuição de fun-


ções pela sociedade cristã, que legitima, entre as diversas funções da
Igreja no mundo terreno, a assistência aos pobres e a gestão da salvação
(GEREMEK, 1986, p. 30). Uma “economia” que tem por base a humildade e
a abnegação – na terminologia bíblica e na literatura patrística pauperitas
é um termo assimilado a humilitas, associando assim, humildade e fra-
queza ao elogio da pobreza.

Segundo essa teoria, a pobreza se torna uma virtude principalmente


quando ela procede de uma livre escolha, ou seja, se corresponde a uma
renúncia voluntária. Desse modo, ela é vista então como um valor espi-
ritual, um ideal de vida cristã (GEREMEK, 1986, p. 28). Tema complexo e
polivalente, não se pode falar em assistência sem questionar a quem ela

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se propunha socorrer. Ou seja, é preciso inevitavelmente falar sobre eles:


os pobres e marginalizados na sociedade portuguesa medieval. E será
esse o nosso próximo passo.

2 Pobreza e assistência na Idade Média

Geremek (1986, p. 13) observa que a pobreza adquire um estatuto san-


tificante em todas as grandes religiões, e na tradição judaico-cristã não
seria diferente. Conceito relativo e repleto de variações, a pobreza precisa
ser definida em sentido amplo: para Michel Mollat o pobre é aquele que,
de forma permanente ou temporária, se encontra diante uma situação
de fraqueza, de dependência e de humilhação caracterizada pela priva-
ção dos meios, variáveis segundo sua época e sociedade, de potência e
consideração social: dinheiro, relações de influência, poder, ciência, qua-
lificação técnica, honra de nascença, vigor físico, capacidade intelectual,
liberdade e dignidade pessoal (MOLLAT, 2006, p. 14). Maria José Pimenta
Ferro Tavares identifica – os assistidos ou pobres são: os pobres por vo-
cação; o carente de meios materiais para subsistir; o doente; o velho; o
órfão; o peregrino; as viúvas e temporariamente as mulheres grávidas
(ANDRADE apud TAVARES, 1983, p. 635).

Bronislaw Geremek nota que a sociedade ocidental da Alta Idade Média


não se incomodava com o fato de alguns optarem por viver de esmolas
e a ajuda aos pobres era considerada uma incumbência da Igreja, ainda
que até o século XII a indigência fosse considerada como um castigo e
não como um sinal de eleição. Nesse sentido, por um lado, via-se nela
o resgate do pecado e, por outro, uma desgraça. A riqueza, pelo contrá-
rio, era considerada uma manifestação do favor divino, que permitia a
obtenção de graças mediante doações às igrejas e esmolas aos pobres.
Afinal, só se pode renunciar ao que já se tem (VAUCHEZ, 1995, p. 127).

Assim, durante a Alta Idade Média nota-se a disseminação da prática da


caridade em um ambiente no qual é evidente o desprezo pelos pobres,
fruto de uma concepção que os considera responsáveis pela sua própria
pobreza e começa inclusive a percebê-los como perigosos (SILVA, 2005,
p. 150). A pobreza assume nessa primeira fase da sociedade medieval o
rosto da maldição divina, do pecado original, da degradação. Tanto que,
nessa visão, os pobres seriam aqueles que “Deus mantém nesse estado

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Por uma história da assistência medieval: o caso de Portugal

para que os ricos possam praticar a virtude da generosidade que os as-


semelha ao Senhor Onipotente” (MATOSO apud SALGADO, A. M.; SALGA-
DO, A. J., 1992, p. 75).

A caridade com os doentes andava lado a lado com o medo do contágio


e com a aversão aos aleijados. E mesmo no final da Idade Média exis-
tem fontes que fazem perceber a pobreza como infortúnio, consequência
da roda da fortuna, um castigo. Gil Vicente, no Diálogo sobre a Ressurrei-
ção, parafraseia um ditado popular bastante revelador: “Não sejas pobre,
morrerás honrado” (ALMEIDA, 1973, p. 41-42).

Mas essa visão é questionada quando, em um momento de decadência


social, surge no século XIII o franciscanismo. Inspiradas por sentimentos
de paixão e caridade, fonte segura para obter a salvação, desenvolvem-
se as Ordens Mendicantes. Com Francisco de Assis, nasce também um
novo olhar sobre os pobres, que trata a pobreza como um fato concreto e
vai buscá-la nas cidades. Assim, nos séculos XI e XII, por meio das ideias
dos padres da Igreja e da atividade monástica oriental, a pobreza começa
a ser vista como um valor espiritual. A originalidade da mundividência
franciscana reside justamente em se embrenhar pela pobreza e andar
sem restrições pelas leprosarias com seus pés descalços e panos rudes a
cobrir-lhes o corpo (TEIXEIRA, 1999, p. 6).

Ao fim do século XII a expressão Pobres de Cristo, usada para designar pre-
ferencialmente religiosos, é alargada para designar os miseráveis, agora
considerados como vigários de Cristo (MOLLAT, 2006, p. 149). Assim, a
partir dos séculoss XII e XIII, a caridade se reveste de novas fórmulas, sur-
gindo uma verdadeira revolução e propiciando o aparecimento de uma
autêntica espiritualidade da beneficência, que se baseia na devoção a
Cristo e na sua humanidade. Assiste-se a um fato novo no Ocidente: a
predileção mística pela pobreza (VAUCHEZ, 1995, p. 127).

Paralelamente a essa doutrina da pobreza surge o elogio da caridade,


considerada como dever do bom cristão. A esmola se apresenta então
como instrumento que permite a remissão dos pecados, e a presença
dos pobres se inscreve na sociedade cristã no plano da salvação. A partir
de então, o historiador André Vauchez percebe que a verdadeira caridade
passa a ser descobrir as misérias e aliviá-las por meio de organizações. O
espírito de beneficência transformou-se.

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Evolui igualmente a ideia de que a esmola era mais um dever de justiça


do que um ato de obtenção de graça ou gesto de purificação. Passa-se
a percebê-la como direito dos pobres (VAUCHEZ, 1995, p. 130). O autor
identifica a origem desse aperfeiçoamento da caridade na convicção de
que os pobres, réplicas do Cristo sofredor, partilhariam com ele a sua
função salvadora. Por isso são tratados em alguns textos como vigários
de Cristo. O nascimento da civilização urbana faz Geremek apontar para
novas questões sociais e morais que surgem a partir de então e que fa-
zem nascer um novo ethos da pobreza, também fundado na antinomia da
aprovação da riqueza e da valorização da renúncia ao dinheiro.

Georges Duby observa que a verdadeira miséria, a que assusta e inco-


moda, aquela que as sociedades contemporâneas veem todos os dias
embaixo dos viadutos e dos sinais de trânsito, surge no século XII, nos
arredores das cidades, onde se amontoam os marginalizados. “Vindos do
campo para aproveitar a forte onda de crescimento que sacode a Idade
Média, eles encontram as portas fechadas. Desse abandono nasce um
novo cristianismo, o de Francisco de Assis” (DUBY, 1998, p. 25).

Quando cessam as invasões no século XI, a população da Europa vive um


período de crescimento da taxa de natalidade. O aumento da população
é acompanhado por um avanço da pauperização. No século XI, a insufi-
ciência crônica dos recursos alimentares torna a pobreza uma condição
quase normal para a maioria da população (LOPEZ, 1984, p. 126). A mi-
séria e a exclusão social aparecem nas margens do processo de renasci-
mento urbano, no século XII.

Muitos migram dos campos para as cidades em busca de uma parte des-
se crescimento e riqueza que os prósperos centros urbanos pareciam
oferecer. Deixam suas famílias e amigos, cortam seus laços de solida-
riedade e chegam sozinhos a um ambiente hostil. A migração maciça,
decorrente da explosão demográfica e do processo de pauperização no
campo, tornou inoperante o sistema tradicional de assimilação dos mar-
ginais que chegavam às cidades. A partir dessa miséria, ameaçadora e
percebida como perigosa, desenvolvem-se rapidamente instituições de
caridade para abrigar e socorrer os pobres (GEREMEK, 1986).

A historiadora portuguesa Maria José Pimenta Ferro Tavares apresenta


uma definição específica de pobreza a partir do pensamento de Franz

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Por uma história da assistência medieval: o caso de Portugal

Graus, que alia a noção de pobreza ao desenvolvimento das cidades: “A


população citadina pobre compreende indivíduos fora da sociedade, tru-
ões, estropiados, prostitutas, vagabundos – em uma palavra, todos os que
foram forçados a mendigar, a viver como parasitas; mas também assala-
riados de todas as espécies, tanto os criados dos ricos burgueses até aos
jornaleiros” (TAVARES, 1989, p. 14).

Entre os pobres não se encontram apenas mendigos, prostitutas e ladrões


– mas também artesões, mercadores, escolares, clérigos vagabundos. E a
pobreza era andarilha, se colocava ora ao lado da velhice, ora da doença,
ora da solidão e da errância. De difícil acesso, a pobreza esconde seu ros-
to envergonhado da documentação medieval portuguesa, que raramente
lhe dá voz. Quando o pobre é apresentado, aparece distorcido pelos olhos
da justiça, do moralismo, ou de forma repelente (TAVARES, 1983, p. 29). O
grande desafio é, pois, abordar os diversos graus de penúria do universo
medieval, essa pobreza de rostos anônimos que aparecem de forma es-
parsa e turva nas fontes do período.

Maria José destaca que desde o século XIII ficava óbvia uma mudança
no rosto dos pobres em Portugal. A pobreza deixava de ser conhecida e
circunscrita para tomar o rosto do mendigo desconhecido nas cidades.
Armindo de Sousa (SOUSA, 1997, p. 283) destaca a mobilidade populacio-
nal do campo para o meio urbano.

A recessão demográfica do século XIV na Europa trazia consigo elemen-


tos como a peste, as fomes, a evasão dos campos, a proletarização das
cidades, a multiplicação dos mendigos e o aumento da criminalidade.
Oliveira Marques estima que havia tanta gente em Portugal em 1347
como no começo do século XV, cerca de um milhão e quinhentos mil
indivíduos, menos de 17 habitantes/km2 (SOUSA, 1997, p. 278). A recu-
peração populacional dessa crise só se nota no reino a partir de 1460. E
em 1472 o fenômeno de crescimento populacional é notório, quase um
disparo. Tanto que nas Cortes de Coimbra-Évora, os deputados do povo
dirigem-se ao rei d. Afonso V dando louvores a Deus pela gente que cres-
cia. O levantamento feito em 1527 revela a alta densidade populacional
da cidade de Lisboa: de 50 mil a 60 mil habitantes. É nesse momento de
crescimento populacional que se assiste em Portugal a toda uma refor-
mulação assistencial.

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Era sobre o povo miúdo que recaía toda a força dos impostos – os pe-
quenos trabalhadores, as viúvas, órfãos, mancebos, judeus e mouros
que arcavam com o peso do fisco (TAVARES, 1983, p. 39). Pobre e pobre-
za aparecem na documentação portuguesa de cortes expondo sentidos,
significados, valores e abrangências dessas palavras no mundo medie-
val. Abrangências que revelam a própria multiplicidade da condição e
do significado da pobreza nesse universo. Muitas vezes o termo aparece
na documentação em oposição a fidalgo, com sentido de povo (MENDES,
1973, p. 579). Outras vezes, assume toda a força da expressão “pobres de
Jesu Christo”.

José Maria Mendes explica que se pode encontrar o termo “pobres” com
duas acepções distintas: como plebeu e como pessoa carecida de recur-
sos econômicos. Porém, nesse último grupo é possível distinguir vários
graus de pobreza: desde aquele que, pelo fato de ser pobre, não perdia
certas prerrogativas, até aquele a quem era passada licença para pedir
esmola. Segundo a documentação portuguesa à qual Maria José Pimenta
Ferro Tavares (1983, p. 39-42) se dedica, pobre era aquele que não possuía
bens e que vivia ou não de esmolas. Pobre também era aquele cuja ca-
rência econômica andava ao lado da debilidade física: eram os velhos, as
viúvas, os órfãos, os doentes.

A lepra constituía um dos grandes flagelos do mundo medieval, que gera-


va exclusão pelo grande medo do contágio. As gafarias ou leprosarias se
situavam em locais periféricos em relação ao mundo urbano, segregando
os lázaros no momento da descoberta da doença. Medidas começam a
ser aplicadas com menor efeito e com menor grau de eficácia aos que
decaíam à peste – a reclusão no lar até a cura ou o encaminhamento a
hospitais especializados. A pobreza andava lado a lado com a doença.

Os hospitais medievais tinham um atendimento maciço para pobres, já


que os médicos e cirurgiões da Idade Média faziam visitas domiciliares
para aqueles que podiam pagar. A carência biológica tornava o homem
incapacitado para o trabalho e o jogava nos braços da pobreza.

Pobre era a mulher só, nova ou idosa, que era presa fácil da sociedade,
dos bandos que poderiam inadvertidamente, na calada da noite, invadir
suas casas e abusar de suas moradoras indefesas. Pecadoras, demasiada-
mente falantes, fofoqueiras ou mentirosas, fracas de espírito, incitando

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Por uma história da assistência medieval: o caso de Portugal

aos outros o desrespeito às leis de Deus. Essa era, muitas vezes, a ima-
gem edificada para a mulher medieval pelos homens, sobretudo pelos
clérigos (QUEIRÓS, 1999, p. 16).

As viúvas pobres e as donzelas eram alvo de testamentos que legavam


dotes de casamento a umas e mercearias a outras. Muitas vezes, para ga-
rantir a sobrevivência, essas mulheres solitárias punham-se a fazer atos
de bruxaria, aberregavam-se, prostituíam-se. A cidade é, aliás, o lugar por
excelência da prostituição e elege em seu interior um espaço legítimo e
especial para a prática da mancebia.

E pobre também eram as mancebas, as mulheres do segre, as mulhe-


res que fazem pelos homens, as que precisavam fazer uso de seus cor-
pos para subsistir. Mães solteiras, que desonravam a família, caíam na
marginalidade, razão pela qual muitas aderiam à condenada prática do
infanticídio. Era um problema comum, tanto que a preocupação com a
salvação eterna da alma do recém-nascido que morria sem batismo ge-
rou a criação do Hospital dos Meninos, que recebia os enjeitados – eles
também, pobres, marginais e abandonados.

Mas podia-se cair em pobreza também. Eram os pobres “envergonhados”


ou “honrados”, que por seu status social não poderiam pedir esmolas e
que eram favorecidos por reis e rainhas com as instituições das mercea-
rias. A pobreza envergonhada é o reflexo de uma sociedade que respeita a
hierarquia e protege a ordem social (SÁ, 1997, p. 26). A honra ou vergonha
era daquele que possuía meios de riqueza e que não podia assumir pu-
blicamente a falta de recursos para manutenção de sua condição social.

Esses pobres, que não têm fome ou doença, são acolhidos pelos seus
iguais, que os ajudam discretamente, de forma sigilosa. Os pobres en-
vergonhados são detectados na Idade Média sob a forma de merceeiros
e merceeiras (SÁ, 1997, p. 26), indivíduos geralmente idosos, viúvas, a
quem um patrono concedia por doação ou testamento recursos para as-
segurar a sobrevivência em troca de orações pela salvação da alma. Os
merceeiros estavam encarregados de rezar pela alma do morto, precisa-
vam assistir a um número fixo de missas e recebiam em troca o sustento
adequado a sua manutenção.

E dentro da marginalidade, precisamos inserir a marginalidade religiosa:


os judeus e os mouros – minoria excluída espacialmente nas cidades

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medievais e marginalizada juridicamente pela condição de infiel em ple-


na cristandade. Os judeus permaneceram em Portugal por cerca de três
séculos, viveram sob o estigma da acusação de deicídio, conviveram com
as duras críticas à prática da usura e com a exclusão espacial e social im-
posta – já que eram considerados “imiigos da fe catolica” (TAVARES, 1982).
Tanto judeus quanto mouros eram corpos distintos no espaço do muni-
cípio perante a lei e o costume, independência que várias autoridades
cristãs tentaram usurpar.

Pobres eram os presos, que durante o período anterior ao julgamento


precisavam arcar com o seu próprio encarceramento – o que por vezes
extinguia os recursos de toda uma família, deixada na penúria. Alvo da
caridade cristã era também a figura do cativo, que estava à mercê dos infi-
éis como prisioneiro de guerra. Pobre era aquele carente de poder, o povo
miúdo, que carecia da proteção e da justiça régia. E quem dificilmente
poderá ser incluído no mundo dos pobres é o vagabundo – aquele que
vive de forma ociosa e parasitária tendo condições físicas para a labuta.
Recorrendo ao disfarce da mendicidade, procura subsistir à custa da ca-
ridade e é perseguido pela legislação, que procura identificar e separá-los
dos verdadeiros pobres (SALGADO, A. M.; SALGADO, A. J., 1992, p. 72).

Época paradigmática, o final do século XIV documenta um empobreci-


mento generalizado em Portugal (TAVARES, 1983, p. 34). Peste, guerra,
fome, calamidades que deixavam um rastro de miséria, despovoamento
e destruição. A recuperação populacional dessa crise só se nota no reino
a partir de 1460. Faz-se necessário, então, lançar o olhar para as funções
da assistência aos pobres, desvalidos e marginais na Idade Média. Espa-
ços vitais para a ação assistencial, as instituições de beneficência do perí-
odo medieval precisam ser examinadas de perto – hospitais, albergarias,
gafarias, mercearias, confrarias etc. Que instituições são essas? Como era
sua estrutura, organização, funcionamento? Essas serão as questões que
nortearão a escrita daqui por diante.

3 Por dentro das instituições de assistência

Algumas instituições na Idade Média foram centros de caridade e assis-


tência e demonstram a evolução da preocupação com as margens sociais
no ambiente urbano. Uma instituição eclesiástica cuja ação assistencial

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Por uma história da assistência medieval: o caso de Portugal

teve grande penetração em Portugal foi o mosteiro, principalmente aque-


les que trabalhavam com a regra de s. Bento. Ali, a regra atribuía um peso
grande à prática da hospedagem caritativa. Um aspecto marcante da
hospitalidade beneditina é a orientação que todos os hóspedes fossem
recebidos como Cristo em pessoa.

Assim diz a regra: “Os pobres e peregrinos sejam recebidos com cuidado
e solicitude muito particulares, porque é principalmente na pessoa de-
les que se recebe a Cristo” (MARQUES, 1989, p. 22). Mas mesmo antes da
penetração da regra beneditina na Península, a assistência não era estra-
nha à vida monástica. Segundo José Marques, pode-se afirmar que em
uma época na qual os poderes públicos não respondiam às necessidades
relativas às margens sociais, os mosteiros beneditinos, agostinos, cister-
cienses e os conventos mendicantes constituíam uma autêntica rede de
assistência em Portugal.

Para além da prática caritativa, José Mattoso aponta para a direção da


noção de pobreza nesses meios monásticos: a renúncia aos bens pessoais
e a valorização da figura do eremita, da vida penitente. Considerados in-
termediários na relação com Deus, os monges eram beneficiados com
doações que permitiam a organização de um culto sagrado rico e solene,
além de praticar a misericórdia para os pobres. Nos mosteiros cluniacen-
ses, a prática da esmola estava inserida mesmo no contexto litúrgico, de
forma ritualizada (MATTOSO, 1973, p. 642).

Outra instituição notável na assistência medieval eram as albergarias,


que tinham suma importância para os viajantes e peregrinos. Sociedade
gregária, que valorizava a fixação em uma comunidade e os laços de boa
vizinhança, aquele que escolhe o cajado do peregrino assume uma po-
sição ambivalente. Por um lado, trata-se de uma posição modelar, já que
o cristão é visto como um viator peregrinus a caminho da sua verdadei-
ra pátria: a pátria celestial. Por outro, desenraizado de sua comunidade,
corresponde de forma mais perfeita ao conceito de marginal (GEREMEK,
1989, p. 234).

Itinerante e peregrina, a pobreza estende suas mãos ao longo das es-


tradas, lugar privilegiado de albergarias e hospitais. Situados em pontos
estratégicos das vias de comunicação, e não se podendo demorar nelas
mais que três dias, esses locais eram o abrigo propício contra os rigores

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do tempo e os perigos da noite (MARQUES, 1989, p. 37). A rede de alber-


garias costumava depender de instituições eclesiásticas. Vagabundos e
andarilhos eram acolhidos indistintamente nessas instituições (SÁ, 1997,
p. 29).

O sempre referenciado estudo de Victor Ribeiro (1907, p. 4) revela que a


mais antiga albergaria portuguesa seria a de Canavezes, em Douro, insti-
tuída pela rainha d. Mafalda, esposa de d. Afonso Henriques. O autor nota
que a rainha seguia os passos de sua sogra, d. Thereza, que também ins-
tituiu albergarias. Desde cedo, essas instituições de caridade tomavam o
cunho apontado por Mollat e Geremek – esmolas e orações eram usadas
como moedas de troca simbólica, a sobrevivência de uns, pela salvação
eterna de outros tantos.

Assim, constava do regimento da instituição “mandar dizer pola alma da


dita Rainha, cinqüenta e duas missas em cada huum anno de guisa que seia
cada semana hua” (RIBEIRO, 1907, p. 4). Já na segunda metade do século
XV e durante o reinado de d. Manuel, assiste-se a uma intensificação e
renovação de estalagens e vendas. Com d. Afonso V e d. João II, vemos a
concessão de privilégios e isenções para o fortalecimento das estalagens
(SÁ, 1997, p. 41).

Para Mollat (2006), além da assistência coletiva e dos hospitais, são na


verdade as esmolas pessoais que dão a base e a força para a obra de
caridade durante o medievo. É a caridade individual e as iniciativas pri-
vadas, cujo alvo era a salvação da alma do benfeitor, que são a base da
assistência medieval – que se modifica ao longo do período e se molda
às necessidades do crescimento urbano, do aumento da natalidade, da
ampliação da pobreza, das vagas populacionais que buscavam as cidades
e saíam dos campos.

A importância da esmola dos mercadores no meio urbano é uma novida-


de, por exemplo. Outra inovação é a adaptação da beneficência ao quadro
da economia monetária. A terceira novidade é a inclusão de esmolas nos
testamentos. Nesse sentido, Mollat destaca o processo de monetarização
da esmola como uma etapa não somente dentro do aspecto econômico,
mas também dentro dos aspectos político e social da pobreza medieval.

As confrarias ocupam grande relevo no contexto assistencial do período


medievo e são, por definição, associações de leigos que se comprometem

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Por uma história da assistência medieval: o caso de Portugal

a respeitar e cumprir as normas associativas (MARQUES, 1989, p. 42). En-


tidades fraternais, as confrarias medievais fundam e são responsáveis
pela gestão de estabelecimentos hospitalares, leprosarias, albergarias
para tratamento de enfermos e estadia de peregrinos (PAIVA, 2002, p. 13).
São responsáveis pela distribuição de alimentos, do pão e da carne. Por
isso, é importante lançar lhe um olhar mais atento. Baseiam-se na ideia
de fraternidade, presente nas Sagradas Escrituras.

Na Cristandade medieval, as relações humanas e entre homens e figuras


divinas são definidas pelos laços de parentesco (BASCHET, 2006, p. 466).
Claro está, em diversas passagens bíblicas: todos os cristãos são irmãos
(VINCENT, 1994, p. 67). Irmandade que define uma linha de separação,
excluindo todos os não cristãos. Poderoso vetor de unidade, a exigência
da fraternidade é a caridade – já que é preciso amar o próximo como a si
mesmo. A solidariedade das confrarias se estabelece, segundo Catherine
Vincent, com o objetivo de alcançar a graça divina nesse mundo e a glória
no além-túmulo.

As confrarias incorporam, em sua prática, o programa evangélico de ges-


tos de caridade prescrito na passagem bíblica de São Mateus, que acaba
ao fim e ao termo da Idade Média, por ficar conhecido como “obra de
misericórdia”. Esse impulso caritativo que levava as confrarias a se de-
dicarem às obras de misericórdia percorreu todo o Ocidente e ganhou
amplitude tanto no campo quanto na cidade, acabando por se prolongar
no Novo Mundo. Vincent nota que a atenção dada aos pobres pelas con-
frarias não se limita a apenas um simples programa de ação caritativa.
Trata-se da elaboração de “uma verdadeira teologia do pobre e da po-
breza” (VINCENT, 1994, p. 79), indicando a via da perfeição cristã, que é
abraçada voluntariamente por muitos homens medievais. Pimenta Ferro
Tavares as define como “solidariedades horizontais de oração e caridade
entre vivos e para com os mortos” (TAVARES, 1989, p. 101). Estavam muito
presentes no ambiente urbano e, por isso, é aí que se faz sentir sua ação.

Nota-se que essa assistência fraterna ganha peso em uma época em que
os poderes públicos nada tinham a oferecer aos súditos. Pode-se, então,
afirmar que “o limitado apoio dado aos pobres, aos velhos e aos moribun-
dos dependia da iniciativa dinâmica da caridade cristã” (MARQUES, 1989,
p. 46). As confrarias medievais tinham normas parecidas, que traduzem
a existência de uma doutrina comum que fica mais evidente ao se com-

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parar a proximidade formal dos compromissos escritos para cada uma


delas – documento que dita as normas de cada fraternidade.

Uma função primordial dessas instituições era acompanhar os confrades


na hora da morte, fazer o sepultamento e rezar por sua alma. Importante
notar também que muitas confrarias possuíam em seu interior hospi-
tais e albergarias para tratamento de enfermos e estadia de peregrinos
(PAIVA, 2002, p. 13). Mas não se pode reduzir as confrarias medievais a
meras instituições de assistência, já que tinham um importante papel de
sociabilidade local, sendo um lugar de propagação das virtudes cristãs e
dos ensinamentos morais da Igreja (PAIVA, 2002, p. 14).

Já a mercearia pode ser descrita, de modo geral, como uma “instituição


que dá a pobres – geralmente ao longo da vida – o necessário para a sua
subsistência” (CARVALHO, 1995, p. 24). Assim como os hospitais, as mer-
cearias tiveram origem nas doações de rendas, pretendendo dar amparo
perpétuo a alguns “pobres honrados” (CARVALHO, 1995, p. 77). Fernando
da Silva Correia define: “Mas com toda a simplicidade podemos encará-
-las como um recolhimento para pessoas honestas, em geral de idade
superior a 50 anos, carecidas do necessário para viver” (PEREIRA, 1973,
p. 724). Em Portugal, as mercearias são instituídas pelo testamento de
d. Afonso IV e foram sustentadas pela ação caritativa de d. Brites, sua
mulher. Seu testamento dizia: “Um hospital para que sejam mantheudos
para sempre homens e mulheres pobres” (RIBEIRO, 1907, p. 39).

Contudo, a instituição que seria o “senhor dos pobres” na Idade Média


foi, de fato, o hospital. Sabe-se que o termo latino hospitalis tinha um
significado mais amplo que o atual “hospital”e que compreendia o trí-
plice sentido: de albergaria, asilo e hospital, para pobres e peregrinos
(COSTA, 1973). Na realidade, o espaço hospitalar ocidental nasce à som-
bra dos mosteiros beneditinos e à luz da regra de são Bento. Em suas
enfermarias, os pobres e doentes poderiam contar com atenção, cuidado,
alimentação e outros tratamentos em horário informado pelo ritmo da
vida monástica (MARQUES, 1989, p. 17). O regime jurídico desses estabe-
lecimentos tem muito a nos dizer sobre sua importância.

Um hospital tem canonicamente o direito de ter uma igreja, um sino, um


cemitério e certos privilégios. Além disso, os hospitais estavam a serviço
de uma clientela móvel e passageira, ao contrário das leprosarias que

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recolhiam doentes incuráveis que aí residiam de forma estável e perma-


nente. Muitos dos pequenos hospitais e albergarias do território foram
instituídos a partir de testamentos e doações – cuja preocupação prio-
ritária era a salvação da alma (SÁ, 1996, p. 90). E a manutenção dessas
instituições também dependia de donativos.

Falar dos hospitais medievos significa ter em mente que suas funções
eram muito heterogêneas e que muitas vezes é difícil diferenciá-los das
albergarias e asilos. Com base em suas funções, Marques afirma que os
hospitais tinham mesmo algo de sacralidade. As poucas descrições da
época permitem saber que eram edifícios pequenos, desconfortáveis e
sem as condições mínimas desejáveis.

Uma característica da assistência medieval era a multiplicidade de hos-


pitais de pequeno porte, não ultrapassando vinte e cinco leitos. A média
era de apenas cinco leitos por hospital. A função primordial dos hospi-
tais era a de servir especificamente aos doentes, que ali deveriam passar
poucos dias. Os hospitais medievais cumprem a função não de trata-
mento e cura e sim de acolhimento de doentes e pobres. Essa ideia fica
clara ao lermos a súplica de d. Duarte ao papa, em que ele explica que
os hospitais servem “pro sustentationeet recepcione pauperum et infirmorum”
(VENTURA, 1993, p. 513).

A maior concentração hospitalar estava, decerto, nos centros urbanos. Fru-


to dos legados testamentários de pessoas desejosas de receber o sufrágio
eterno por suas almas, essas instituições conferiram particular atenção e
interesse aos órfãos e crianças. Ao lado do abandono e decadência en-
frentadas por essas instituições durante a Idade Média, observa-se uma
tendência renovadora tanto por parte dos clérigos quanto dos leigos.

A assistência hospitalar estava direcionada a dois atores sociais – os po-


bres e os doentes. Para os pobres, que apenas poderiam permanecer por
dois dias, os hospitais ofereciam, no mínimo, cama, roupa de cama, pa-
nelas, água, sal, iluminação durante o breve tempo da refeição e fogueira
para aquecer. Também ofereciam ao menos duas refeições, geralmente a
primeira e a última do dia. Já quanto aos doentes, a situação variava de
acordo com o regimento e estatuto.

A assistência médica e medicamentosa era bem precária. Era preciso


contar com a existência na localidade de um físico disponível – destacan-

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do-se que físicos e cirurgiões da época eram em grande maioria judeus,


o que não estimulava relações e contatos. Na realidade, à parte a sangria
e alguns procedimentos caseiros, as possibilidades de intervenção não
eram muitas e, na maioria dos casos, o hospital era menos um lugar de
cura e mais o local para a morte (MARQUES, 1989, p. 57).

Hospitais e gafarias são as principais instituições de assistência da Idade


Média, por isso é tão precioso fazer a distinção entre eles. Tanto nas
leprosarias quanto nos hospitais o peso das práticas religiosas era muito
grande. Todos que aí chegavam passavam pelo ritual da confissão. Contu-
do, quanto às gafarias são poucos os documentos que podem nos contar
pormenores dessas instituições. Sabe-se que foram surgindo com o avanço
da lepra, sobretudo a partir do período das Cruzadas do Oriente.

Os dados indicam cerca de 70 instituições destinadas ao recolhimento


de gafos em Portugal (RAMOS, 2002, p. 30), o que aponta para uma menor
incidência da doença em Portugal do que no resto da Europa. Só a França
de Luís XIII, contava com duas mil gafarias (RAMOS, 2002, p. 30). Pela ne-
cessidade de controle e vigilância de um flagelo contagioso, que carecia
da segregação social para preservar a saúde, as leprosarias deixam níti-
das as relações entre as instituições de assistência e os poderes munici-
pais e régios (MARQUES, 1989). Afinal, era preciso proteger os sãos, e a um
só tempo prestar socorro às infelizes vítimas do terrível mal incurável.
Nesse sentido, a intervenção da Coroa no que se refere às gafarias em
Portugal foi bastante intensa, adotando medidas de proteção e regimen-
tos para as instituições de fundação régia (PAIVA, 2002, p. 16).

Os testamentos régios também demonstram essa preocupação, criando


gafarias, encarregando delegados para sua vigilância e administração,
o que de fato indica uma tendência para a oficialização da atividade
assistencial (COSTA, 2008, p. 85). Nessas comunidades de gafos o que
se assiste, explica José Marques, é um drama psicológico e afetivo ine-
rente à exclusão e reclusão das vítimas. O processo de separação das
vítimas de suas famílias pode ser comparado ao de uma sepultura em
vida (MARQUES, 1989, p. 20). De fato, “A cerimônia era impressionante e
fúnebre. Os leprosos eram envolvidos em mortalhas, sendo entoadas li-
tanias dos santos, chegando a celebrar-se missas de Requiem” (CORREIA
apud COSTA, 2008, p. 80).

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Por uma história da assistência medieval: o caso de Portugal

Doença extremamente repulsiva ao homem medieval, a lepra transfor-


ma o indivíduo em um verdadeiro marginal na sociedade, um pária, con-
finado à solidão dos bosques vizinhos às áreas habitadas, onde poderia
sobreviver da caridade alheia.

O leproso era obrigado a deixar o mundo, recolhendo-se a uma casa de


onde não tornaria a sair até morrer. As cerimônias religiosas, fixadas no
fim do século XV, incluíam uma procissão, missa e transmissão solene
aos leprosos de instruções de ordem sanitária, tendentes a evitar que
contagiassem fosse quem fosse (CORREIA apud COSTA, 2008, p. 80).

A lepra, longe da banalidade, era a doença por excelência. Se, por um


lado, certas interpretações a revestem do sentido de estigma da impure-
za e marca do pecado, em outras visões ganha a conotação de uma via
de redenção e purificação por meio, principalmente, da história bíblica
de Job (BENIAC, 1985, p. 125). José Marques ainda chama atenção para a
sanctio dos documentos medievais, as fórmulas invocativas de maldição
que recorrem à gravidade dessa doença. Destaca-se a maldição de ser
roído pela lepra. Essa maldição vem de tempos imemoriais e já estava
presente nas fórmulas visigóticas.

Uma expressão de força transcrita por Marco António Costa é a “acapite-


capitususque ad planta pedis leprepercussus”, basicamente: “Sejam cober-
tos totalmente de lepra, desde a cabeça, ponto mais alto, até aos pés.”
Aterradora, a expressão está presente em muitos documentos medievais
(COSTA, 2008, p. 82).

As leprosarias são, assim, as primeiras instituições cuja função é espe-


cífica e dirigida para um grupo determinado: os gafos (ANDRADE apud
TAVARES, 1980-1983, p. 636). E com o aumento populacional, as leprosa-
rias concentram-se próximas aos centros urbanos, onde a presença dos
leprosos se torna mais visível. Sua estrutura interna variava de acordo
com o regimento ou determinações administrativas, mas os internos ti-
nham, decerto, uma vida comunitária, obedecendo a uma disciplina qua-
se monástica.

Podemos admitir como estrutura mínima um capelão e um mestre ou


procurador incumbido de executar as decisões tomadas no plenário dos
gafos. Assim, as leprosarias tinham o direito de possuir uma igreja, um
capelão e um cemitério (ANDRADE apud TAVARES, 1980-1983, p. 25). Des-

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taca-se que Portugal assiste ao progressivo desaparecimento da lepra a


partir do século XIV – o que nos revela melhorias na esfera da saúde.

Pertence, portanto, à Idade Média a criação de instituições para recepção


específica de doentes contagiosos, como os leprosos e, no século XV, os
doentes de peste (TAVARES, 1999, p. 49). O surgimento dessas institui-
ções especializadas associa-se ao medo do contágio e da morte, tornan-
do o isolamento compulsivo dos doentes uma medida de profilaxia cada
vez mais adotada. A saúde é, ela própria, uma esfera importante da ação
régia. A peste, que grassava na Europa e chegava a Portugal de tempos
em tempos, exigia do poder monárquico medidas preventivas e de pro-
filaxia. As fontes nos dão notícias de várias dessas epidemias durante os
séculos XII, XIII e XIV. A palavra “peste” ou “pestilência” quase sempre
as designava. Contudo, a verdadeira peste, a bubônica ou negra, só foi
introduzida na Europa em meados do século XIV. As anteriores foram
doenças que se desenvolveram no rastro da fome ou das guerras, como
as disenterias, as gripes pneumônicas etc. Algumas pestes, como a de
1480-97, prolongaram-se por anos a fio, alternando fases mais brandas
ou de recrudescimento (MARQUES, 1974, p. 93).

Assim, à luz dos conhecimentos médicos da época, o rei e os poderes


municipais atuavam para tentar conter sua erradicação. Trata-se de uma
esfera assistencial que nada tinha a ver com a caridade cristã – gran-
de base da assistência aos pobres até o final do século XV. Os reis ex-
pulsavam navios que vinham de lugares afetados pela peste, proibiam
moradores de lugares contagiados de se deslocarem para lugares sãos,
encerravam as portas de cidades para onde se dirigiam pessoas vindas
de locais contagiados, ordenavam o entaipamento de doentes e dos mo-
radores de sua casa ou rua – e às vezes de um bairro inteiro –, evita-
vam ajuntamentos populacionais e defumavam a cidade afetada com
ervas aromáticas e especiarias, já que se acreditava que a doença era
provocada pela corrupção dos ares.

O rei zelava também pela higiene e limpeza das cidades, legislando acer-
ca das lixeiras, dos monturos, das esterqueiras, das águas sujas, dos
canos abertos que despejavam os esgotos pelos meandros das ruas es-
treitas, do costume do “água vai”, enfim, de tudo aquilo que era conside-
rado responsável pelos “ares pestilenciais” (TAVARES, 1987, p. 28).

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Por uma história da assistência medieval: o caso de Portugal

Contudo, todas essas medidas de pouco adiantavam para deter a peste


se ela grassava com intensidade. A inexistência de uma estrutura de sa-
neamento básico, conjugada à precariedade dos hábitos de higiene, era a
porta de entrada para as epidemias nas cidades medievais. Contra a pes-
te o indivíduo era obrigado a tomar as medidas profiláticas que julgasse
convenientes. E o imaginário relativo àpeste se revela em trechos que
aliam o seu combate a medidas como esta:

[...] deve o homem se afastar do mal e inclinar-se ao bem, [...] que homem
primeiramente há de confessar seus pecados humildemente, pola qual
causa grande remédio é em tempo da pestilência a santa penitência e a
confissão, as quais precedem e são muito melhores que todas as mezi-
nhas (MARQUES, 1974, p. 94).

Depois, a medida mais eficiente estava na fuga do local empestado. Mas


não foi apenas no caso específico da peste que o poder régio na Idade
Média interveio na saúde do reino. Nos séculos XIV e XV percebe-se uma
gradativa intervenção e concentração da atividade assistencial nas mãos
do rei. Trata-se de uma transformação que afetaria de forma profunda as
instituições anteriormente descritas.

4 A reforma da assistência em Portugal

No final do século XIII assiste-se a uma proliferação desordenada de fun-


dações, o que exprime uma atenção maior com os pobres. Às autoridades
comunais não faltaram motivos para multiplicar as intervenções no do-
mínio da assistência. A distribuição aos mendicantes, a tutela dos órfãos
e a salubridade da vila, constituíam problemas de interesse comum. A
evolução desfavorável da conjuntura do século XIII convidava a novas e
renovadas soluções (MOLLAT, 2006, p. 187).

Para os pobres de Cristo, que não podem trabalhar, cria-se ao longo do


período medieval toda uma rede de assistência individual que tem como
alicerce a caridade cristã. Nas cidades, hospitais, albergarias e confrarias
situadas junto a igrejas instituíam uma assistência descentralizada que
tentava tornar menores as agruras da miséria e da doença humanas. A
pobreza involuntária, provocada por períodos de peste, guerra, doenças
ou fome, poderiam afetar não apenas indivíduos, mas comunidades in-
teiras. Nesse caso, os soberanos ou o próprio senhor das terras costuma-
vam acudir com a concessão de isenções fiscais (TAVARES, 1987, p. 44).

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Nuno Moniz Pereira (2005) divide a história da assistência em Portugal


em três períodos. O primeiro seria o da fundação da nacionalidade até
fins do século XV, quando a assistência nunca é iniciativa do Estado. Nes-
se período a assistência é feita por meio de instituições de beneficên-
cia, criadas para melhorar a sorte dos desprotegidos e para a salvação
da alma. São instituições de iniciativa de ordens militares e religiosas,
confrarias de mesteres, concelhos ou particulares abastados e não pos-
suem estatutos, sobrevivendo de esmolas e doações. São semelhantes
em todos os países cristãos. Trata-se de albergarias para a recolha dos
peregrinos, hospitais, gafarias para acolher leprosos; mercearias destina-
das a proteger pessoas pobres etc. Foram essas as instituições citadas até
agora. O ambiente medieval em Portugal durante o primeiro período da
história da assistência é marcado pela violência e brutalidade da guerra
de Reconquista ou, posteriormente, de guerras de afirmação entre Esta-
dos, além das rixas de linhagem que incitavam à vingança privada entre
casas nobres.

Segundo Nuno Moniz, nesse contexto, a Igreja cumpre um importante


papel no domínio da assistência. Importante notar que essa ação na as-
sistência, além de fundações pias, se traduz em uma função modeladora
de costumes e formuladora de princípios morais e éticos sobre a pobre-
za. A ação caritativa durante a Idade Média tem grande base, afinal, na
ação dos particulares, inspirados pelo sentido de caridade cristã, e na ação
misericordiosa da Igreja.

Conforme já demonstrava Isabel dos Guimarães Sá, no caso português


“as competências da Igreja não tinham que ver com a fundação de hos-
pitais, com a criação e fiscalização de confrarias nem com a gestão das
estruturas assistenciais e patrimoniais respectivas” (SÁ apud COSTA,
2008, p. 46). De fato, o estudo de Maria Helena da Cruz Coelho revela que
a fundação de instituições de assistência é, geralmente, de origem laica
(COELHO, 1990, p. 78-101). Iria Gonçalves concorda:

a partir do século XII, em grande parte como consequência do aumento


das peregrinações religiosas [...] notou-se uma larga proliferação daque-
las instituições, alastrando-se através de toda a Cristandade, sendo im-
portante verificar que a sua iniciativa não partiu do clero, até ao quase
seu único fundador e administrador de casas de beneficência, mas sim
dos fiéis, nunca porém, à margem da Igreja” (GONÇALVES, 1988, p. 53).

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Por uma história da assistência medieval: o caso de Portugal

O segundo momento da assistência em Portugal, conforme Nuno Moniz,


se inicia com D. João II e vai até o século XIX, quando o Estado assume a
iniciativa e tende a substituir ou a tomar o lugar de maior relevo em rela-
ção à assistência particular. “Os grandes hospitais criados por iniciativa
de d. João II, pela fusão de pequenos hospitais, constituem o resultado
desta política de centralização” (PEREIRA, 2005, p. 11).

A primeira ação régia nesse sentido foi a criação em 1492 do Hospital


Real de Todos-os-Santos, em Lisboa. Outro grande hospital foi o das
Caldas da Rainha, fundado em 1495 pela rainha d. Leonor e considerado
o mais antigo do gênero em todo o mundo. Também à d. Leonor se deve a
criação de outra importante instituição de assistência: as Misericórdias,
que surgiram inicialmente em 1498.

Com as invasões francesas, a assistência se desorganiza. Inaugura-se a


partir do século XIX o terceiro período em que a assistência passa a ser
considerada um dos encargos da administração do Estado (TRINDADE,
1973, p. 875). A assistência aos mais míseros da sociedade não foi duran-
te a Idade Média compreendida como função do poder régio. Contudo,
Paulo Drumond Braga (1991, p. 176) identifica no final de século XV uma
verdadeira crise nos estabelecimentos de assistência. Uma evidência da
crise apontada pelo estudioso é a má administração dessas instituições,
documentada nos traslados de abertura de tombos de bens, quase todos
emitidos à lavra régia. De fato, todas essas instituições possuem uma
característica comum: geralmente eram detentoras de muitas rendas e
propriedades. Eram mantidas por doações testamentárias, o que aumen-
tava o seu patrimônio.

Marco António Costa nota que a cobiça sobre o cargo de provedor ou


administrador nessas instituições era grande (COSTA, 2008, p. 106). Braga
lembra, ainda, dos casos em que os estabelecimentos se encontravam
simplesmente sem gestor. Isabel dos Guimarães Sá constata: “Era aqui
que geralmente intervinha a figura do administrador e os bens dos hos-
pitais parecem ter sido muito cobiçados, tanto mais que não existiam re-
gistro de propriedade nem apresentavam contas a nenhuma autoridade
superior” (SÁ apud COSTA, 2008, p. 106).

Também Sérgio Luís de Carvalho nota que as instituições de assistência


eram geridas por particulares que, na melhor das hipóteses, eram pou-

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co hábeis e, na pior, eram corruptos e abusadores (CARVALHO, 1995). Já


Manuel Sílvio Alves Conde afirma que a ruína das instituições assisten-
ciais no final da Idade Média portuguesa “é verificável pelo menos desde
a primeira metade do século XV, parecendo dever-se mais à dilapidação
dos seus recursos pelos responsáveis do que à magreza dos mesmos”
(CONDE apud COSTA, 2008, p. 107). Pimenta Ferro Tavares também nota:

[...] ao longo do século XV, os abusos cometidos são notórios. É mais que
provável que tais desmandos fossem provocados pela longa permanên-
cia dos provedores na administração destas e de seus bens, além da ocu-
pação concomitante de outros cargos concelhios ou não, o que explica
um deficiente exercício da provedoria (TAVARES, 1976, p. 384).

Anastácia Mestrinho e Abílio Salgado lembram que a centralização hos-


pitalar visava não apenas à melhoria da assistência médica, mas também
– na opinião de Mollat e de outros autores – possuíam um objetivo de
controle social (SALGADO, A. M.; SALGADO, A. J., 1992, p. 10). As primeiras
compilações legislativas de autoria de d. Duarte e d. Afonso V revelam a
existência, já no século XIV, de normas para enquadrar e proteger órfãos,
viúvas, presos e pobres, fazendo cumprir decisões testamentárias e pu-
nir ociosos e vagabundos (PAIVA, 2002, p. 16).

A ação régia também se fazia sentir pelos juízes que verificavam o cum-
primento de disposições legais e pela nomeação de funcionários para
institutos de assistência. Os reis apoiavam a intervenção no campo assis-
tencial de indivíduos ou corporações, confirmando compromissos e regi-
mentos e concedendo privilégios. Mas para além dessa atuação indireta,
os reis também fundaram seus próprios locais de auxílio para gafos e
doentes, edificando albergarias e legando esmolas a pobres (PAIVA, 2002,
p. 16). José Paiva destaca, inclusive, a criação de um sistema de angaria-
ção de recursos destinado a isso sob o nome “Arca da Piedade”, que foi
bastante ativo desde a época de d. Afonso V. Assim, a ação régia fazia-se
sentir com a fundação de diversas instituições de assistência.

O panorama das instituições privadas de assistência durante a Idade Mé-


dia revelava incapacidade e saturação, desordem na gestão dos bens e
necessidade de mudança para reforçar a ação assistencial. D. Duarte, por
exemplo, já demonstrava uma profunda percepção da decadência dos
hospitais de Lisboa e do reino e da necessidade de intervenção. Tanto
que vinha, desde 1432, tentando resolver essa situação junto a Santa Sé,

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Por uma história da assistência medieval: o caso de Portugal

como demonstram documentos que revelam um rei que pede ao papa


Eugênio IV a união dos hospitais com escassos rendimentos em todo rei-
no e em Lisboa. D. Afonso V também busca racionalizar a administração
dos hospitais e albergarias da cidade de Évora. Mas a grande reviravolta
nessa tendência aconteceria no reinado de d. João II, com a construção
do Hospital de Todos os Santos, em Lisboa, de acordo com o pedido do rei
ao papa Sisto IV (PAIVA, 2002, p. 18-19).

Desde cedo os soberanos portugueses preocuparam-se em proteger os


mais fracos. Justiça e poder régio estão entrelaçados no pensamento me-
dieval. Como nota Pimenta Ferro Tavares (1987, p. 22), desde 1211 o mo-
narca português aparece nas fontes como um defensor pauperis. Frente às
investidas dos nobres, os pobres tinham poucas opções de ação: a fuga e
o medo, a submissão e a dependência. Afonso III fala sobre a defesa dos
pobres: “Porque a nos perteeçe defender com justiça os pobres do nosso senho-
rio contra hos poderosos” (PAIVA, 2002, p. 23). Os soberanos aparecem nesse
contexto como protetores dos pobres frente aos poderosos, privilegiando,
sobretudo, os órfãos, as viúvas e os miseráveis. Assim, quer fossem autores
ou réus, os pobres poderiam escolher o juiz e optar pelo corregedor régio.

José Marques (1989) aponta para a importância da ação de d. João II para a


assistência em Portugal. A Idade Média foi marcada por uma assistência
pulverizada, centrada na iniciativa privada, consolidada na dependência
de pessoas ou grupos específicos, como as confrarias ou ordens religio-
sas, sem garantia de continuidade. A ausência do poder central levava
à não existência de controle na administração dos bens dos hospitais,
negligenciando o serviço de assistência pelo qual tinham sido criados.

Assim, muitos particulares lançavam mão dos rendimentos e utiliza-


vam-no em serviço próprio (SÁ, 1996, p. 91). Trata-se de uma situação,
segundo Isabel dos Guimarães Sá, comum ao resto a Europa que também
tinha suas instituições de assistência tomada pela degradação. A crise
social e econômica portuguesa dos séculos XIV e XV agrava a situação
das rendas dessas instituições. Mas no final do século XV, com os ventos
do fortalecimento do Estado, a intervenção das autoridades e do poder
régio nessa esfera se fez cada vez mais presente. Foi nesse momento que
a monarquia portuguesa procurou melhorar a má gestão dos hospitais,
intervindo em duas vertentes: a criação de uma fiscalização e as iniciati-
vas régias criando hospitais (SÁ, 1996, p. 91).

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Priscila Aquino Silva

O objetivo de tais intervenções parece claro: vigilância e proteção às ins-


tituições de assistência incapazes de se defenderem da ganância daque-
les que apenas utilizavam suas rendas em proveito pessoal (TRINDADE,
1973, p. 879). Laurinda Abreu também defende que a tendência dominan-
te do poder político, sustentada pelos teóricos sociais, foi no sentido de
racionalizar, modernizar e secularizar os mecanismos de apoio à pobreza
e à doença. E uma das medidas mais comuns foi a centralização hospi-
talar, criando os chamados hospitais gerais – de grandes dimensões e
rendas (ABREU, 2002). A autora nota:

Foi assim, numa linha de continuidade, que d. João II desencadeou aquele


que podemos considerar o primeiro sinal de reforma, no sentido moder-
no do termo, da assistência em Portugal: o movimento de centralização
hospitalar, que daria origem aos chamados Hospitais Gerais (ABREU,
2003, p. 467).

Em toda a Europa, o caminho era o mesmo. Os antigos estabelecimen-


tos de assistência não tinham mais como suportar a pressão da pobreza
no esteio do aumento populacional, da migração e da trilogia macabra
que marcou o século: “fome, peste e guerra”. É preciso salientar que a
centralização em Lisboa, concentrando vários hospitais em apenas um,
foi uma ação governativa de d. João II que tinha forte implicação na juris-
dição eclesiástica. Por isso, o rei suplica a autorização de Sisto IV nessa
obra e assistimos a todo um esforço diplomático de d. João II junto a
Roma. O papa a concede em 1479.

A intervenção de d. João II não foi a primeira de monarcas portugueses


no domínio da assistência, mas teve repercussões muito profundas, pro-
porcionando respostas adequadas e eficazes às necessidades dos pobres
e doentes (MARQUES, 1989, p. 78). Em 1486, o papa Inocêncio VIII outor-
gava ao rei a faculdade de proceder de forma idêntica em cada cidade
ou povoação do reino. Com a construção do Hospital das Caldas, por
d. Leonor, parecia que a Coroa iria dominar toda a esfera assistencial.

Rei e rainha se empenharam conjuntamente, portanto, na reforma da as-


sistência. Mandaram edificar os dois grandes hospitais da época – o Hos-
pital Real de Todos os Santos de Lisboa e o Hospital das Caldas da Rainha.
Esses estabelecimentos modificaram radicalmente a estrutura de recebi-
mento dos enfermos, contaram com a ampliação dos profissionais da saú-
de e direcionaram um espaço outrora inimaginável para o cuidado médico.

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Por uma história da assistência medieval: o caso de Portugal

Os hospitais passaram a contar com mais de cem leitos, quando durante


toda a Idade Média as casas hospitalares tinham entre três, cinco e dez
leitos. Os pequenos hospitais não tinham mais a estrutura necessária
para atender às demandas de um mundo que mudava. A cidade crescia
erecebia forasteiros e peregrinos, atraindo a população campesina. Fren-
te a isso, rei e rainha constroem estabelecimentos que contavam com
enfermeiros, boticários, cirurgiões, físicos, barbeiros; enfim, um amplo
leque de profissionais da saúde.

Nas ações de d. João II transparecem a preocupação do rei com a as-


sistência e a caridade e se esclarece sua plena noção da crise que as
instituições de assistência atravessavam. Suas ações se direcionam para
solucionar essa crise seguindo o sistema usado nos diversos países cris-
tãos. Como lembra muito acertadamente Veríssimo Serrão (1998, p. 22),
quem se debruça sobre as relações entre Portugal e Roma encontra vá-
rios motivos para afirmar que as questões da assistência ocuparam de
forma perene o espírito de d. João II. Várias são as solicitações que o mo-
narca faz à cúria romana no sentido de melhorar, centralizar e unificar a
assistência. É, afinal, pelas mãos desse monarca, chamado de “príncipe
perfeito”, que se assiste em Portugal ao início do processo de centraliza-
ção hospitalar.

Considerações finais

Caridade cristã e assistência, como vimos, transitavam juntas no uni-


verso medievo. E era a caridade individual que se plasmava e se concre-
tizava na edificação de instituições como hospitais, gafarias, mercearias
ou albergarias. Era do pecador arrependido em busca da salvação de sua
alma que vinham os proventos que erguiam e sustentavam tais institui-
ções – dentro da lógica da “economia da salvação”, que previa uma troca
simbólica entre doação e oração. E era porque o pobre era considerado
um intercessor privilegiado e uma réplica de Cristo, que assumia o papel
de depositário da salvação.

Durante todo o período medieval, os poderes régios e municipais


intervinham geralmente em casos epidêmicos, como a peste, ou em fla-
fla-
gelos como a lepra. Mas os ventos da mudança trouxeram consigo um pe-
ríodo de crescimento urbano, pauperização e migrações internas. A rede

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Priscila Aquino Silva

de assistência baseada em instituições fundadas pela caridade cristã já


não conseguia mais atender às vagas populacionais que chegavam às ci-
dades. Esses pequenos hospitais sofriam com uma grave crise. Por isso,
tais transformações são acompanhadas pelos ventos do fortalecimento
do poder régio que, no seio do século XV, toma contornos decisivos.

Em Portugal, pelas firmes mãos de d. João II, com a ajuda da rainha


d. Leonor, consolida-se um novo modelo assistencial, no qual o Estado
passa a centralizar as ações de amparo aos desvalidos, zelando pela
justiça e pela própria espiritualidade. Rei e rainha constroem estabele-
cimentos que contavam com enfermeiros, boticários, cirurgiões, físicos,
barbeiros. Iniciava-se, assim, um longo e novo caminho de transforma-
ção no campo da assistência: cada vez menos pulverizada e particular, a
assistência se torna oficial e centralizada.

Nota

1 Como esta, nas citações em itálico, foi respeitado o texto original em


português arcaico.

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A forma e as formas de
“Alumbramento”

André Vinícius Pessôa

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A forma e as formas de “Alumbramento”

André Vinícius Pessôa


Professor de Literatura, poeta, músico e jornalista. Bacharel
em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica
(PUC-Rio), mestre e doutor em Letras pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desenvolve o projeto de
Pesquisa de Pós-Doutorado, “Machado de Assis: edições
originais dos livros de contos e fortuna crítica recente”, pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), na qual
realiza atividade docente no Instituto de Letras. Artigos
recentemente publicados: “A alquimia do silêncio”, “Uma
ética da composição em Trovar Claro, de Paulo Henriques
Britto” e “A arte de escrever ou a metafísica do estilo:
Machado de Assis e Arthur Schopenhauer”.

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André Vinícius Pessôa

Resumo
Diante de sua leitura e das possíveis considerações sobre sua forma,
nota-se que, para além de uma poética das escolas literárias, o poema
“Alumbramento”, de Manuel Bandeira, surge justamente em uma
encruzilhada de intenções e estilos. Por isso mesmo, sem se vincular
diretamente a nenhum dos “ismos” generalizantes, “Alumbramen-
to” encontra-se indeterminado e fronteiriço. A disposição formal dos
elementos do poema ultrapassa os cânones estabelecidos de sua época
e aponta para linhas de ação que figurariam entre os poetas brasileiros
subsequentes. O artigo presente trata da antecipação de Bandeira a
alguns desses procedimentos, como a orquestração imagética da
linguagem, o método ideogrâmico e a desautomatização. A partir do
poema em questão, afirma também o princípio de ironia em sua com-
posição como o condutor do jogo reflexivo que se dá entre o visível e o
invisível, partícipe metafórico de toda experiência poética.

Palavras-chave: Alumbramento. Manuel Bandeira. Poesia. Musicalidade.


Ideograma. Ironia.

Abstract
Through its reading and the possible considerations on its form, it is observed
that, surpassing the poetics of literary schools, the poem “Alumbramento”, by
Manuel Bandeira, arises specifically at an intersection of styles and intentions.
That is why this poem is undefined and on a borderline, without being
directly associated to any of the generalizing “isms”. The formal disposition
of elements of the poem goes beyond the established canons of its time and
points to lines of action that would later appear in the works of the subsequent
Brazilian poets. This article addresses Bandeira’s anticipation in some of
these procedures, such as the imagery orchestration of the language, the
ideogrammic method and de-automation. Additionally, taking into account
the concerned poem, this article also asserts that the principle of irony in its
composition triggers the reflexive game that occurs between the visible and the
invisible, metaphorical participant of all poetic experience.

Keywords: Dazzle. Manuel Bandeira. Poetry. Musicality. Ideogram. Irony.

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A forma e as formas de “Alumbramento”

A gênese do instante poético toma a forma de uma visão extática em


“Alumbramento”:

Eu vi os céus! Eu vi os céus!
Oh, essa angélica brancura
Sem tristes pejos e sem véus!

Nem uma nuvem de amargura


Vem a alma desassossegar.
E sinto-a bela... e sinto-a pura.

Eu vi nevar! Eu vi nevar!
Oh, cristalizações da bruma
A amortalhar, a cintilar!

Eu vi o mar! Lírios de espuma


Vinham desabrochar à flor
Da água que o vento desapruma...

Eu vi a estrela do pastor...
Vi a licorne alvinitente!...
Vi... vi o rastro do senhor!...

E vi a Via-Láctea ardente...
Vi comunhões... capelas... véus...
Súbito... alucinadamente...

Vi carros triunfais... troféus...


Pérolas grandes como a lua...
Eu vi os céus! Eu vi os céus!

— Eu vi-a nua... toda nua!

(BANDEIRA, 1983, p. 69).

O poema foi escrito em Clavadel, na Suíça, no ano de 1913, quando


Manuel Bandeira encontrava-se internado em um sanatório. Oposta ao
tom geral de seu primeiro livro, A cinza das horas (1917), sua felicidade
visionária permaneceu guardada até que Bandeira finalmente resolvesse
inserir o poema em Carnaval (1919). Há em seus versos o relato do real
que presenteia o poeta com o brilho do inesperado. Intensidade que es-
plende de tal forma que toma o sentido de uma visão determinante. O
alumbramento surge ao poeta como um clarão no qual Bandeira conden-
sa toda uma história de revelações, iluminações e cosmovisões. A chama
originária do conhecimento é a luz guia que se funde com o fenômeno
poético imediato.

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André Vinícius Pessôa

O crítico Davi Arrigucci Junior (2003), em Humildade, paixão e morte, comen-


ta que “Alumbramento”, por sua forma e pelo uso de palavras retomadas
da tradição, não apenas faz transparecer ecos do Simbolismo e do Parna-
sianismo,1 como sugere também, a partir da reflexão sobre a sua fatura,
uma predisposição antecipada ao Modernismo. O crítico demonstra que
as imagens usadas por Bandeira, na intenção de transmitir a enunciação
da visão arrebatadora do objeto numinoso, são reaproveitadas dos câ-
nones tradicionais e misturadas de um modo peculiar. Expressões como
“angélica brancura”, “amortalhar”, “cristalizações da bruma”, “lírios de
espuma”, “alucinadamente” e “pérolas grandes como a lua”, são reconhe-
cidas por Arrigucci pela filiação ao universo simbolista, provavelmente
herdadas da obra de Cruz e Souza, poeta bastante lido por Bandeira.
Assim, do mesmo modo, termos como “brancura”, “névoa”, “luar”,
“estrelas” e “lírios”, são imagens que figuram na poesia de Alphonsus de
Guimaraens, outro poeta simbolista digno de sua admiração. Na leitura
do crítico, as influências do Parnasianismo encontram-se principalmente
reconhecíveis no uso da forma tradicional. O Modernismo, por sua vez,
revela-se por antecipação no processo de elaboração do poema, cuja
linha de montagem inovadora se compraz da disposição arbitrária dos
diversos elementos de composição.

Na sua estrutura formal, “Alumbramento” segue um modelo fixador2


consagrado pela tradição parnasiana que dominava o contexto poético-
literário de sua época. Arrigucci aponta que, aos versos octossílabos de
“Alumbramento”, com o acento predominante na quarta sílaba, dispos-
tos em estrofes regulares e com tercetos perfeitamente uniformes de
base chã, pedestre, soma-se a altiva presença da terça-rima, pela qual
“o verso do meio de cada estrofe rima com o primeiro e o terceiro da se-
guinte, até o fim, quando então um verso isolado rima com o do meio da
estrofe precedente” (ARRIGUCCI, 2003, p. 147). A terça-rima, comumente
usada em versos decassílabos ou alexandrinos, fora praticada por Dante,
Petrarca e Boccaccio, pelos poetas românticos ingleses e, mais tarde,
também pelos parnasianos franceses. Trata-se de uma forma nobre, dig-
na de um vocabulário culto e por vezes raro. Na língua portuguesa, antes
de Bandeira, Luís de Camões e Machado de Assis a utilizaram. Com a
mescla estilística, excêntrica aos parâmetros da versificação tradicional,
“Alumbramento” estabelece um contraste entre a nobreza da terça-rima

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A forma e as formas de “Alumbramento”

e a forma prosaica dos versos octossílabos. Para Arrigucci, a integração


desses componentes contraditórios indica uma organização nova dos
materiais aproveitados da tradição.

A surpresa utilizada por Bandeira no último verso é comum nos poemas


que se utilizam da terça-rima. O arremate final de “Alumbramento”, que
surpreende o leitor, exclama uma emoção derradeira que reorganiza to-
das as imagens evocadas anteriormente3. Como atestam as considera-
ções contidas em L’art des vers, de Auguste Dorchain, poeta e especialista
nas técnicas tradicionais de versificação, estudado por Bandeira na sua
formação:

É, enfim, absolutamente necessário que o verso final apresente um traço


surpreendente de algum modo, seja pelo choque imprevisto do pensa-
mento, seja pelo brilho da forma, e em todo o caso pela sua profunda
relação lógica com todo o poema. Se não, em lugar da alegria de um arre-
mate, é a decepção de um abortamento que experimentamos (DORCHAIN
apud ARRIGUCCI, 2003, p. 158).

Antes da surpresa final do poema, em uma efusão de significados múlti-


plos, diversas imagens iluminadas sobressaltam aos olhos do leitor. Na
tarefa de descrever ou mesmo referenciar sua visão, o poeta as dispõe
espacialmente para formar uma espécie de jogo caleidoscópico. A partir
dos céus, que conduzem a uma percepção da espacialidade geral do po-
ema, segue um conjunto imagético que, em sua intensa luminosidade,
corresponde à evocação de uma peculiar harmonia cósmica. Ao reunir
várias referências, Bandeira se utiliza do léxico tradicional e o recombina
livremente. Associadas ao mesmo traço branqueador, as imagens evoca-
das em “Alumbramento” encontram-se vinculadas ao forte facho de cla-
ridade que se irradia por todo o poema, ostentando em cada uma delas
a sugestão luminosa de seu título. Desde a imagem dos “céus”, espaço
abrangente da visão do poeta, palavras como “véus”, “nuvem”, “alma”,
“pura”, “nevar”, “cristalizações da bruma”, “amortalhar”, “cintilar”, “lírios
de espuma”, “estrela”, “licorne alvinitente”, “Via-Láctea”, “comunhões”,
“capelas”, “pérolas”, “lua” e “nua” possuem a mesma marca cromática,
evidenciada e amplificada pelo poder clarificador e evocativo do canto.
Outras expressões que figuram no poema, como o “mar”, o “rastro do se-
nhor” e o advérbio “alucinadamente”, também passam a ser lidas como
portadoras desse sugestivo aspecto do branco.

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André Vinícius Pessôa

“Alumbramento” contraria a tessitura do discurso linear ao figurar-se em


um todo instantâneo, sustentado por um conjunto complexo de com-
ponentes que vão se somando gradativamente durante a sua leitura. A
apreciação do sentido não depende propriamente da sequência discur-
siva para que a imagem alumbrada seja compreendida em sua totalida-
de. A fusão de elementos díspares em um instante determinado é uma
característica marcante do poema. O discurso, entrecortado por diversos
pontos enfáticos, sustenta sua unidade rítmica pelo entrelaçamento de
rimas4 a atuarem como elos sonoros que mantêm a ligadura entre as
estrofes. A sonoridade de “Alumbramento” se harmoniza com o conjunto
de imagens análogas entre si. Seu tom, desde o início, é assaz emotivo,
pontuado por reticências insistentes e uma ênfase exclamativa reitera-
da. O ritmo entrecortado e a melodia interrompida atendem a uma de-
terminada cadência musical que serve à configuração fixadora de suas
imagens. Há um forte poder sugestivo nas palavras que vão surgindo ora
isoladas ora dispostas em frases breves, acentuadas no final ou entre-
meadas por intervalos silenciosos reticentes. As alusões se apoiam na
musicalidade que conduz os versos e nas imagens que, ao remeterem-se
umas às outras, dão forma à visão alumbrada.

Mário de Andrade, poeta e musicólogo, no “Prefácio interessantíssimo”,


que abre o livro de poemas Pauliceia desvairada, definiu o verso melódico
na poesia como o “arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivas, con-
tendo pensamento inteligível” (ANDRADE, 1976, p. 29). Lembrou o poeta
que os gênios do passado sempre se importaram mais com a melodia,
realizando-a em versos cada vez mais variados, imprevistos e emotivos.
Para romper com esse paradigma, Andrade vislumbrou na poesia moder-
na o uso de palavras diversas, evocadas verticalmente, sem haver neces-
sidade de uma ligação imediata entre elas. Disse ainda o poeta que as
palavras, nessa disposição vertical, pelo fato mesmo de não perfazerem
uma sequência intelectual nem gramatical, “se sobrepõem umas às ou-
tras, para a nossa sensação, formando, não mais melodias, mas harmo-
nias” (ANDRADE, 1976, p. 29). A harmonia articulada das palavras, como
predisse Mário de Andrade, assim como a harmonia musical, é uma com-
binação simultânea de elementos. Palavras a princípio díspares, como
“Arroubos...”, “Lutas...”, “Setas...”, “Cantigas...” e “Povoar!...”, não formam
uma enumeração plausível. “Cada uma é frase, período elíptico, reduzido

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A forma e as formas de “Alumbramento”

ao mínimo telegráfico” (ANDRADE, 1976, p. 28), escreveu o poeta. Cada


unidade isolada permanece vibrando na vã espera de uma frase que lhe
forneça sentido. Não há necessidade de um elo sintático. Palavras apa-
rentemente desconexas formam em um poema o verso harmônico. O
mesmo se dá em relação às frases soltas, cuja sensação de superposição
de seus significados produz o efeito de uma polifonia poética.

Para Mário de Andrade, a harmonia oral não se realiza nos sentidos como
a harmonia musical. As palavras isoladas não se fundem como os sons
harmônicos. Antes se embaralham, tornando-se incompreensíveis. A rea-
lização da harmonia poética efetiva-se de modo relacional. Sua gênese se
dá a partir de um acontecimento. Relatou o poeta:

Se você já teve por acaso na vida um acontecimento forte, imprevisto


(já teve, naturalmente), recorda-se do tumulto desordenado das muitas
ideias que nesse momento lhe tumultuaram o cérebro. Essas ideias, redu-
zidas ao mínimo telegráfico, não se continuavam, porque não faziam par-
te de frase alguma, não tinham resposta, solução, continuidade. Vibravam,
ressoavam, amontoavam-se, sobrepunham-se. Sem ligação, sem concor-
dância aparente – embora nascidas do mesmo acontecimento – forma-
vam pela sucessão rapidíssima, verdadeira simultaneidade, verdadeiras
harmonias acompanhando a melodia enérgica e larga do acontecimento
(ANDRADE, 1976, p. 32).

Mário de Andrade afirmou que Olavo Bilac, em “Tarde”, inaugurou para


a “língua brasileira” a harmonia poética, lembrando, porém, que Bilac a
realizou sem muito brilho, pois não a metodizou e sequer dela retirou
todas as consequências possíveis.

Ele fez como os criadores do organum medieval: aceitou harmonias de


quartas e de quintas desprezando terceiras, sextas, todos os demais in-
tervalos. O número de suas harmonias é muito restrito. Assim “... o ar e o
chão, a fauna e a flora, a erva e o pássaro, a pedra e o tronco, os ninhos e
a hera, a água e o réptil, a folha e o inseto, a flor e a fera” dá impressão de
uma longa, monótona série de quintas medievais, fastidiosa, excessiva,
inútil, incapaz de sugestionar o ouvinte e dar-lhe a sensação do crepús-
culo na mata (ANDRADE, 1976, p. 33).

José Miguel Wisnik, em O coro dos contrários: a música em torno da semana de


22, diz que Mário de Andrade, no “Prefácio interessantíssimo”, promoveu
a ideia do “simultaneísmo” na poesia. A simultaneidade, que há sécu-
los tinha sido incorporada no discurso musical, reclamou pela voz de

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Andrade sua vez na poesia moderna brasileira. Sua percepção nos versos, que
“supõe a capacitação de acontecimentos interferentes em vários níveis linea-
res” (WISNIK, 1978, p. 115), vigora como condição da própria leitura, atuando em
relação direta com o receptor do texto poético. O verso harmônico proposto por
Andrade é “obtido pela ruptura da sequência gramatical do discurso, fazendo
com que as ‘palavras em liberdade’, não sujeitas à conexão linear, ressoem entre
si, produzindo um efeito de superposição” (WISNIK, 1978, p. 116).

Se na música a simultaneidade é uma ocorrência física, na poesia ela se dará


pela recomposição mental de uma sequência. Contrapõem-se (ou complemen-
tam-se) nessa perspectiva o eixo sintagmático – horizontal – dos elementos do
discurso e o paradigmático – vertical – ausente da sequência discursiva. A mú-
sica trabalha indiscriminadamente os dois eixos. O acorde musical, como diz
Wisnik, é um sintagma simultâneo. A característica da onda sonora faz com
que apenas duas notas musicais possam ter relações harmônicas entre si. Des-
se modo, com poucas notas disponíveis o músico pode estabelecer uma linha
harmônica constelar. Já a complexidade harmônica da poesia, em sua especi-
ficidade, trabalha no campo semântico e deriva do alcance de cada palavra en-
volvida. O texto pode se investir tanto da melodia linear quanto da harmonia
das palavras, em que “a chave mais adequada está num elemento musical que
consiste exatamente na projeção da simultaneidade harmônica sobre a suces-
são melódica: o acorde arpejado” (WISNIK, 1978, p. 117). “Cada palavra carrearia
consigo a cauda espectral de ressonâncias significativas, produzindo-se com
sua aproximação no poema efeitos de harmonia: atrações, polarizações, atritos”
(WISNIK, 1978, p. 118), escreveu Wisnik.

Entusiasmado pela música, Bandeira não apenas estudou o Tratado de compo-


sição de Vincent Indy, como aprendeu a tocar violão, exercitando-se em temas
como o Rondó, de Dioniso Aguado, e uma bourrée de J. S. Bach, e ainda dedilhou o
piano, instrumento que lhe permitiu decorar algumas peças, como prelúdios de
Chopin, e um trecho do Carnaval de Schumann. O violão foi bastante útil para
que o poeta pudesse tocar as melodias que os compositores lhe deram para co-
locar texto. Foi assim, por exemplo, que concebeu o “Azulão” a partir da música
de Jaime Ovalle. Bandeira certa vez confessou que não havia nada no mundo
que ele gostasse tanto como a música, pois sentia que nela poderia se exprimir
completamente. Escreveu o poeta:

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A forma e as formas de “Alumbramento”

Tomar um tema e trabalhá-lo em variações ou, como na forma sonata,


tomar dois temas e opô-los, fazê-los lutarem, embolarem, ferirem-se e
estraçalharem-se e dar a vitória a um ou, ao contrário, apaziguá-los num
entendimento de todo repouso... creio que não pode haver maior delícia
em matéria de arte (BANDEIRA, 1984, p. 49-50).

Bandeira considerava que conseguir algo semelhante à música na arte


da palavra se constitui em uma grande dificuldade e o resultado é ape-
nas um efeito simplório que não passa de um arremedo. Conta o poeta,
no Itinerário de Pasárgada, que sugestionado pelo livro La sonate, etude de
son évolution historique et expressive en vue de l’interprétation et de l’audition,
da pianista, compositora e pedagoga Blanche Selva, tentou reproduzir a
estrutura da sonata em um longo poema. O exercício de composição, que
Bandeira lamentou ter destruído em seguida, surgiu como resultado de
uma profunda crise. Como corretivo ao sentimentalismo que o tomava
na ocasião, o poeta buscou espelhar-se na arquitetura musical. Assim
também o fizera no “Poema de uma quarta-feira de cinzas”, do livro
Carnaval, no qual obedeceu à estrutura da forma lied, e em tantos outros,
dignos de estudos e menções. Afirmou Bandeira que a repetição de um
ou dois versos, e às vezes de uma estrofe inteira, nos poemas de seus
primeiros livros A cinza das horas e Carnaval, se devia à música e não à
imitação de modelos literários.

O crítico musical Aires de Andrade notou na poesia de Bandeira um sen-


timento e uma expressão muito ligados aos costumes populares, mas os
versos do poeta foram musicados, em sua maioria, por compositores de
registro erudito, como Heitor Villa-Lobos, Francisco Mignone, Camargo
Guarnieri, Lorenzo Fernandez, Jaime Ovalle, Radamés Gnatalli, entre ou-
tros. Relatou Bandeira no Itinerário de Pasárgada que a preferência des-
ses destacados compositores pelos seus textos foi atribuída por Lorenzo
Fernandez à própria musicalidade de seus versos. Andrade Muricy, en-
dossando o que afirmara o compositor, disse haver uma “musicalidade
subentendida” nos versos do poeta. Escreveu Muricy:

Os músicos sentem que poderão inserir a sua musicalidade – de música


propriamente dita – naquela musicalidade subentendida, por vezes inex-
pressa, ou simplesmente indicada. Percebem que a sua colaboração não
irá constituir uma superestrutura, mas que se fundirá com a obra poética,
intimamente (MURICY apud BANDEIRA, 1984, p. 78).

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André Vinícius Pessôa

Para Muricy, a poesia de Bandeira não se impunha aos compositores


por não embutir em seus versos grandes sinfonias, como fizeram poe-
tas como Castro Alves, Luis Delfino, Cruz e Souza e Hermes Fontes.
Segundo o crítico, por estarem mais para um “tecido” do que uma
“dança”, a poesia de Bandeira oferece uma plasticidade maior para a
interpretação musical. O poeta concordou com as palavras de Muricy,
pois chegara às mesmas conclusões ao estudar as músicas as quais
seus versos serviram de texto. “Foi vendo a ‘musicalidade subentendi-
da’ dos meus poemas desentranhada em ‘música propriamente dita’
que compreendi não haver verdadeiramente música num poema, e
que dizer que um verso canta é falar por imagem” (BANDEIRA, 1984,
p. 79), escreveu Bandeira. Para o poeta, a autêntica melodia está sem-
pre ausente. O texto poético funciona como um “baixo-numerado” que
contêm várias melodias em potência de realização. Por isso mesmo a
adequação à música em um mesmo poema se faz possível a diversas
construções melódicas. “Assim como certos poemas admitem plurali-
dade de sentidos ou interpretações, como que em qualquer texto lite-
rário há infinito número de melodias implícitas” (BANDEIRA, 1984, p.
81), sentenciou o poeta.

Bandeira considerava que, por mais afinidades que existam entre música
e poesia, há sempre um abismo entre ambas: “Nunca a palavra cantou
por si, e só com a música pode ela cantar verdadeiramente” (BANDEIRA,
1984, p. 80). Por isso, para o poeta foi descabida a afirmação de Stéphane
Mallarmé a Claude Debussy, que musicara o poema “L’après-midi d’un
faune”. “Je croyais y en avoir mis déjà assez”5 (MALLARMÉ apud BANDEIRA,
1984, p. 80), dissera Mallarmé ao compositor. Musicalidade no poema?
Escreveu Bandeira:

Tinha posto muita, com efeito, mas só e a bastante que um poeta pode
pôr nos seus poemas: ritmo, literalmente, e figuradamente aqueles efei-
tos que correspondem de certo modo à orquestração na música – os tim-
bres, por exemplo, e outros expedientes que Mallarmé definiu na prosa
de Divagations: “As palavras iluminam-se de reflexos recíprocos como um
virtual rastilho de luzes sobre pedrarias... Esse caráter aproxima-se da
espontaneidade da orquestra: buscar diante de uma ruptura dos grandes
ritmos literários e sua dispersão em frêmitos articulados, próximos da
instrumentação, uma arte de rematar a transposição para o livro da sin-
fonia [...]”6 (BANDEIRA, 1984, p. 80).

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A forma e as formas de “Alumbramento”

Na comemoração do centenário de Mallarmé, Bandeira realizou uma


conferência na Academia Brasileira de Letras, na qual enumerou al-
guns procedimentos formais do poeta francês. O conceito orquestral de
Mallarmé, contido na obra em prosa Divagações, tal como fora apresenta-
do por Bandeira na conferência, consiste em

[...] começar por uma afirmação como um pórtico de acordes triunfais


convidando a que se componha em retardos liberados pelo eco a surpre-
sa; ou o inverso: atestar um estado de espírito em certo ponto por um
sussurro de dúvidas para que delas saia um esplendor definitivo simples
(BANDEIRA, 2009, p. 1.137).

O procedimento mencionado por Bandeira, utilizado por Mallarmé em


vários sonetos, nos quais o verso final organiza o todo do poema, “numa
constelação de que ele fica sendo a estrela alfa” (BANDEIRA, 2009, p.
1.137), remete ao “esplendor definitivo simples” de “Alumbramento”. Ao
dizer que Mallarmé principia em “traduzir o fugaz e o súbito em ideia, de
isolar para os olhos um sinal de esparsa beleza geral” (BANDEIRA, 2009, p.
1.147), Bandeira reporta ao seu próprio proceder. A carga reiterada de luz
branca que salta aos olhos em “Alumbramento” remete à ideia orques-
tral de Mallarmé. A sintaxe de “Alumbramento”, assim como a proposta
pelo poeta francês, se afigura essencialmente musical, não no sentido
puramente sonoro ou melódico, mas pela musicalidade que se define na
“imanência de forma e conteúdo”, como teorizara o crítico russo Boris de
Schloezer, mencionado por Bandeira na sua conferência. Há em ambos,
Mallarmé e Bandeira, o que pode ser chamado de uma orquestração ima-
gética da linguagem. Afirmou Bandeira:

Mallarmé jogava com as analogias numa espécie de contraponto, insti-


tuía entre as imagens (e raramente exprimia o primeiro termo delas) uma
certa relação donde se destacava um terceiro aspecto visível e encantató-
rio apresentado à adivinhação. Nomear o objeto seria a seu ver suprimir
três quartas partes do gozo do poema, gozo que nasce da felicidade de
adivinhar. A poesia é um sortilégio, uma força de sugestão (BANDEIRA,
2009, p. 1.140).

O jogo de analogias em “Alumbramento”, como o que fora praticado por


Mallarmé, culmina na adivinhação da imagem. No poema de Bandeira,
assim como em Mallarmé, há o artifício de retardar a adivinhação até
que se deixe soar o acorde derradeiro, revelando um processo de com-
posição que consiste na “organização de um sistema de incidentes em

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torno de uma ideia e tendendo não à cadência redonda, mas a um rema-


te agudo como o bico da pena pingando o ponto final” (BANDEIRA, 2009,
p. 1.144). A orquestração imagética de “Alumbramento”, subordinada à
elaboração de sua organização estrutural, espelha-se com o que o poe-
ta, tradutor e crítico literário Augusto de Campos chamou de um “novo
conceito de composição” que prefigurou a obra de Mallarmé, especial-
mente no poema “Um lance de dados”. Em “Poesia, Estrutura”,7 Augusto
de Campos escreveu que o poème plante, ou o grand poème typographique
e cosmogonique de Mallarmé, foi o primeiro poema-estrutura de que se tem
conhecimento, o primeiro poema funcionalmente moderno. A ideia de
estrutura é concebida por Campos como “uma entidade medularmen-
te definida pelo princípio gestaltiano de que o todo é mais que a soma
das partes, ou de que o todo é algo qualitativamente diverso de cada
componente” (CAMPOS, A., 2006a, p. 177). O sentido próprio da estrutu-
ra difere da organização meramente linear do discurso poético, no qual
o entendimento do poema é movido pela compreensão aditiva de suas
partes. Repelida a monotonia do silogismo, a nova organização do poema
proposta por Mallarmé consagrou o dinamismo do processo de associa-
ção de imagens. Tradutor do poeta francês, Campos afirmou no ensaio
“Mallarmé, o Poeta em Greve” que os aspectos construtivos de sua obra
se constituem uma “ciência de arquétipos e estruturas” renovadora do
conceito da forma poética, a qual o crítico denominou de “ORGANOFOR-
MA”,8 “onde noções tradicionais, como início, meio, fim, silogismo, ten-
dem a desaparecer diante da ideia poético-gestaltiana, poético-musical,
poético-ideogrâmica de ESTRUTURA” (CAMPOS, A., 2006b, p. 23).

O poeta, músico e crítico literário Ezra Pound também partilhou na po-


esia as noções de estrutura e orquestração da linguagem ao realizar
analogias esquemáticas e polifônicas em sua obra. A novidade de Pound
foi acrescentar a seu método os princípios básicos do ideograma chinês
trazidos ao ocidente pelo filósofo e orientalista Ernest Fenollosa. Disse
Haroldo de Campos, na entrevista “Aspectos da Poesia Concreta”,9 que na
obra de Pound, Os Cantos, “o ideograma é o princípio de estrutura presi-
dindo a interação de blocos de ideias, que se criticam, reiteram e ilumi-
nam mutuamente” (CAMPOS, H., 2006a, p. 137). Augusto de Campos, no
ensaio “Poema, Ideograma”, escreveu que Pound atende na sua obra ao
princípio do ideograma por se utilizar de fragmentos que se justapõem a

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A forma e as formas de “Alumbramento”

fragmentos – ou cantos que se justapõem a cantos – “sem nenhuma es-


pécie de ordenação silogística” (CAMPOS, A., 2006c, p. 183). Pound trouxe
da poesia chinesa o método ideogrâmico de compor – ou a “constelação”,
termo que para o poeta e crítico literário Eugen Gomringer é a “justapo-
sição direta de elementos em conjuntos geradores de relações novas”
(GOMRINGER apud CAMPOS, H., 2006a, p. 141).

No “Ensaio sobre os caracteres gráficos chineses”, texto que influenciou


Pound, Fenollosa intencionou explicar aos leitores ocidentais o uso do
ideograma chinês como meio e registro de pensamento. O filósofo discor-
reu sobre o método tradicional pelo qual os chineses se utilizam de uma
grafia baseada em figuras condensadas para o entendimento das coisas.
A indiferenciação entre substantivo e verbo nessas formas pictóricas for-
nece em cada palavra a impressão de um movimento incessante que
perpassa todas as coisas existentes. Por isso mesmo é que grande parte
dos caracteres chineses se constitui de pinturas abreviadas de processos
naturais. “Como a Natureza, as palavras chinesas têm vida e plasticidade,
porque coisa e ação não ficam facilmente separadas” 10 (FENOLLOSA, 2000,
p. 122), escreveu o filósofo. A notação ideogrâmica, mais do que a repre-
sentação das coisas a partir de símbolos arbitrários, consiste em pinturas
vívidas. Afirmou Fenollosa que na leitura dos ideogramas os chineses são
capazes de “observar as coisas enquanto elas vão tecendo o seu próprio
destino” (FENOLLOSA, 2000, p. 115).

Pound diferencia o ideograma chinês da escrita ocidental a partir das raí-


zes iconográficas que ele conserva. Se as palavras na escrita ocidental são
formadas por letras e sílabas que têm a função de representar os sons
que nomeiam as coisas, o ideograma, por sua vez, não almeja ser nem o
som da coisa nem tampouco o signo escrito desse som. Por ser criado a
partir dos traços essenciais da coisa a que se refere, o ideograma preserva
uma maior correspondência com a imagem tal qual ela é. Há o anedótico
exemplo do amigo de Pound, o escultor Gaudier-Brzeska, que, acostuma-
do a ter um olhar aguçado para as coisas em sua forma real, conseguia ler
inúmeros ideogramas chineses sem ter tido nenhum estudo prévio.

Por valer-se de analogias, a linguagem por meio de ideogramas é poética.


Fenollosa afirma que a qualidade concreta do verbo nos signos chineses
poetiza-se quando passa das imagens simples para as imagens compos-
tas. No ideograma observa-se um desenho vinculado diretamente à coisa

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André Vinícius Pessôa

designada, disposto em uma determinada posição ou em relação a ou-


tros ideogramas. “Nesse processo de compor, duas coisas que se somam
não produzem uma terceira, mas sugerem uma relação fundamental
entre ambas” (FENOLLOSA, 2000, p. 116), escreveu o filósofo. Pound espe-
cifica que para comunicar uma ideia geral, uma abstração, ou algo mais
complicado de se dizer, um chinês reúne vários ideogramas para poder
atingir o seu fim. Por exemplo, para definir o “vermelho” sem que seja
necessário fazer um desenho com tinta vermelha, são reunidas e dis-
postas diversas imagens “vermelhas”, como “rosa”, “ferrugem”, “cereja”
e “flamingo”. A partir da compreensão do que é comum a essas imagens
chega-se à ideia do “vermelho” que se quer transmitir. Assim, o “verme-
lho” é reconhecido por meio de coisas que todos conhecem.

Haroldo de Campos, em “Aspectos da poesia concreta”, chamou a atenção


para a importância do ideograma não para substituir um sistema linguís-
tico por outro, mas por corresponder à urgência ocidental de uma comu-
nicação mais direta e econômica das formas verbais. Afirmou o crítico:

Uma das preocupações fundamentais de E. P. & Fenollosa no ensaio “So-


bre o ideograma chinês como instrumento para poesia” é, justamente,
demonstrar o fracasso da lógica tradicional, do silogismo, como princípio
ordenador da poesia: em seu lugar, é proposto o método ideogrâmico,
com uma espécie de “lógica poética” (CAMPOS, H., 2006a, p. 142).

Guillaume Apollinaire, antes mesmo da experiência de Pound, não ape-


nas já havia exercitado em seus poemas uma “nova ordem poética” a
partir de ideogramas como também atuara decisivamente na sua teo-
rização. Na visão de Haroldo de Campos, os Calligrames de Apollinaire
se perdem na pictografia exterior ao se definirem como mera forma de
objetos, em uma figuração artificial à sua composição. Por outro lado, a
contribuição teórica do poeta teria sido mais eficaz do que suas experi-
mentações poéticas. Foi sob o pseudônimo de Gabriel Arboin, no ensaio
“Diante do ideograma de Apollinaire”, que o poeta escreveu o consagrado
dito: “Revolução: porque é preciso que nossa inteligência se habitue a
compreender sintético-ideograficamente, em lugar de analítico-discursi-
vamente” (APOLLINAIRE apud CAMPOS, H., 2006a, p. 138).

O poeta e. e. cummings, por sua vez, realizou em sua obra estruturas


bastante semelhantes ao método ideogrâmico. Ao contrário da extensão
da obra de Pound, com seus grandes acontecimentos histórico-culturais,

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A forma e as formas de “Alumbramento”

cummings optou por levar o ideograma à miniatura. Augusto de Campos,


em “Poema, Ideograma”,11 destaca o poema 256 de No thanks, no qual
cummings estabelece um sentido ideogrâmico sutil, uma “tecedura con-
trapontual”, ao repetir ou inverter em sua ordem as palavras bright, star,
big, soft, near, calm, holy, deep, alone, yes, who para compor “com a simples
justaposição dessas palavras o ideograma do impacto de uma noite es-
trelada” (CAMPOS, A., 2006c, p. 184).

Outro exemplo de escrita ideogrâmica está em Finnegans Wake, roman-


ce do escritor irlandês James Joyce, que articula, nessa ordem, unidade,
dualidade e multiplicidade, e novamente unidade, orientado por um es-
quema circular. No artigo “A obra de arte aberta”,12 escreveu Haroldo de
Campos que Finnegans Wake “retém a propriedade do círculo, da equi-
distância de todos os pontos em relação ao centro: a obra é porosa à
leitura, por qualquer das partes através das quais se procura assediá-la”
(CAMPOS, H., 2006b, p. 51). Campos afirmou que Joyce designa em seu ro-
mance um cosmos metafórico em uma só palavra. Ou seja, cada unidade
detalhada é ao mesmo tempo o “continente-conteúdo” da obra inteira.

O método ideogrâmico, como uma sintaxe espacial ou visual, com base


na justaposição analógica de elementos que substitui o uso de uma lógi-
ca discursiva, serviu de parâmetro exemplar para os poetas concretistas.
“TENSÃO DE PALAVRAS-COISAS NO ESPAÇO-TEMPO” foi o que prescre-
veu Augusto de Campos no manifesto “Poesia concreta” (CAMPOS, A.,
2006d, p. 72).13 As propostas dos concretistas visavam proporcionar ao
receptor das obras um efeito comunicativo direto e ágil. O poeta, antes
visto como mágico, ou místico, maudit, agora se autorrefere na sua uti-
lidade. Produz o poema concreto que, contrário à organização sintática
perspectivista, não requer para si um desenvolvimento temporístico-li-
near ao surgir no espaço gráfico como agente estruturalizante. A palavra
nesse contexto se vê em três dimensões: gráfico-espacial, acústico-oral
e conteudística. Campo relacional de funções, o poema concreto almeja
ser uma arte que presentifica o seu objeto. Na poesia concreta, o conteú-
do toma o mesmo sentido do material utilizado. Em “Evolução de formas:
poesia concreta”,14 Haroldo de Campos diz que “os formalistas rejeitam
o conceito idealista de imagem como conteúdo da obra de arte, substi-
tuindo-o radicalmente pela palavra como único e exclusivo material da
poesia” (CAMPOS, H., 2006c, p. 77).

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André Vinícius Pessôa

Apoiada nas teorias dos formalistas russos,15 que substituíram o binômio


“forma e conteúdo” por “material e procedimento”, a poesia concreta re-
clamou para si a ponta de lança de um processo evolucionista. No “Plano
piloto para a poesia concreta”,16 texto escrito pelos irmãos Campos e por
Décio Pignatari, a poesia concreta é “o produto de uma evolução crítica
das formas, dando por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rít-
mico-formal)” (CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, 2006, p. 215). Ao referir-se
à ideia de evolução do verso, propalada pela poesia concreta, escreveu
Augusto de Campos no manifesto “Poesia concreta” que Mallarmé (Un
coup de dés), Joyce (Finnegans Wake), Pound (The Cantos), cummings e, em
um segundo plano, Apollinaire (Calligrames) e as tentativas experimen-
tais futuristas-dadaístas “estão na raiz do novo procedimento poético,
que tende a impor-se à organização convencional do verso” (CAMPOS, A.,
2006d, p. 72). Bandeira, em “Alumbramento”, compartilha sua noção de
estrutura com a desses grandes experimentadores, cujas obras, práticas
e teóricas, compuseram o paideuma17 concretista. Algumas das ideias que
fomentaram a experiência radical dos poetas e críticos da poesia concreta,
relatadas pela presença marcante de sua voz teórica, contida principal-
mente nos escritos dos irmãos Campos e de Décio Pignatari, apresen-
tam determinados processos de realização formal que sugerem vínculos
com a obra de Bandeira. Em “Alumbramento”, a estrutura ideogrâmica,
na disposição constelar de suas imagens, remete às mesmas origens teó-
ricas dos poetas concretistas. Contudo, apesar desse parentesco com a
poesia concreta a partir de suas raízes ideogrâmicas, o poema de Bandeira
não significa de modo algum uma etapa de um suposto processo evolu-
tivo que vise substituir o verso por uma nova ordem poética. O que une
Bandeira aos concretistas é o campo mesmo da experimentação poética a
partir do uso diferenciado de materiais e a concepção da arte poética
como procedimento.

Haroldo de Campos, no artigo “Bandeira, o Desconstelizador”,18 referiu-se


à proximidade de determinados procedimentos formais que relaciona o
poeta aos concretistas. Fato é que quando a poesia concreta se lançou com
estardalhaço no Rio de Janeiro, a voz de Bandeira se levantou em meio
ao “barulho das manchetes e o fogo cruzado das diatribes” (CAMPOS, H.,
1976, p. 99) para alertar que os concretistas estariam realmente trazendo
algo novo e mereciam a atenção do público. Bandeira chegou a escrever

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A forma e as formas de “Alumbramento”

três artigos sobre a poesia concreta e a compor alguns poemas concretos,


um deles publicado na revista O Cruzeiro. O interesse de Bandeira pelo
concretismo, embora não significasse uma adesão ao movimento, resul-
tou em uma reunião de poemas concretos sob o título “Composições e
Ponteios”, incluídos em Estrela da tarde. Campos afirmou que a esponta-
neidade generosa de Bandeira com os concretistas e o caráter circuns-
tancial de suas produções no campo da poesia concreta não traduzia na
época apenas uma demonstração de versatilidade ou juventude artesanal
do poeta. Havia algo mais profundo no movimento realizado por Bandeira.
O crítico sinalizou que os motivos que inspiraram sua atitude vinham de
longe e se radicavam em uma constante. Escreveu Haroldo de Campos:

Bandeira é um desconstelizador. Sua poesia – certa parte dela – inscreve-se


nessa linha sutil que separa o lugar-comum (a redundância, a frase feita,
o clichê da sensibilidade) da informação original, e que a faz muitas vezes
que, por uma simples mudança de ângulo de enfoque e/ou de âmbito
contextual, o que é redundante passe a produzir essa informação nova
(CAMPOS, H., 1976, p. 100).

Ao aludir ao deslocamento repentino de imagens como um procedimen-


to regular na obra de Bandeira, Haroldo de Campos vislumbrou no poeta
a intenção de promover em seus versos “a passagem de um lugar comum
para um lugar incomum”, expressão criada por Décio Pignatari. Comen-
tou o crítico:

Diante das palavras consteladas pelo uso num “planetarium” fixo de sig-
nificados e associações, Bandeira se comporta como um operador rebel-
de, que se insubordina contra as figuras sempre repetidas ao estelário
dado (frases feitas do domínio comum) e, subitamente (luciferinamente),
procura recompor a seu arbítrio poético os desenhos semânticos articu-
lados pelo uso, resgatar as estrelas-palavras de suas referências e das
imagens estáticas que projetam (CAMPOS, H., 1976, p. 100-101).

No poema concreto “O Nome em si”,19 mencionado no artigo de Harol-


do de Campos, Bandeira se propôs fazer uma “projetada dissociação” do
nome de Gonçalves Dias. Nos esclarecimentos que precederam sua pu-
blicação, o poeta escreveu:

Quando os concretos surgiram, julguei que eles queriam sobretudo res-


tituir à palavra a sua virgindade [...]. Mando-lhe aqui o poema que não
passa de um exercício de desconstelização do nome de Gonçalves Dias
(BANDEIRA apud CAMPOS, H., 1976, p. 101-102).

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No exercício de desconstelização, fundamentado na operação recombi-


natória de imagens, Bandeira desconstruiu o nome do poeta maranhen-
se no intuito de dessacralizar a sua emblemática nomenclatura. Escreveu
Haroldo de Campos que o poema de Bandeira

[...] pulveriza a “aura” do nome célebre, restitui-o a um estágio de dis-


ponibilidade anterior à conceituação, e arrasta no seu curso toda uma
situação linguístico-literária reificada (seja denotativa, a imagem do poe-
ta; seja conotativa, a imagem do Romantismo tal como configurada pela
imagem de seu poeta-símbolo através de um longo processo de mitifica-
ção respeitável das Histórias Literárias e das antologias para leitura adul-
ta) (CAMPOS, H., 1976, p. 102).

O humor de Bandeira no “simples jogo de sintagmas desmembrados e re-


montados” (CAMPOS, H., 1976, p. 102) não contradisse sua adesão admi-
rativa a Gonçalves Dias, mas se interpôs com uma inesperada distância
crítica pela interação de inocência e ironia alcançada no resultado. Para
Haroldo de Campos, a arte operatória de desconstelização realizada por
Bandeira consistiu na

[...] manifestação daquilo que o crítico formalista russo Victor Schklóvski


chamava de “desautomatização” ou “efeito de estranhamento” (ostrane-
nie), princípio que consiste em libertar o objeto que nos é familiar do au-
tomatismo perceptivo e vê-lo como se pela primeira vez (CAMPOS, H.,
1976, p. 102).

O crítico vai mais além ao acenar para a função desconstelizadora que se


revela ao longo da poesia de Bandeira, operando sob dois modos:

1) como geradora do particular “mockey” do poeta, em poemas de linha


coloquial-irônica (exemplo: o poema “Pneumotórax”).

2) como suporte de certa poesia de simplicidade emocional quase tocada


pela trivialidade, que no entanto se sustenta admiravelmente em tênues
linhas de força graças ao efeito de singularização obtido pelo poeta com
o arranjo novo dessas aparentes banalidades sentimentais [...] (CAMPOS,
H., 1976, p. 104).

O primeiro modo apresentado por Haroldo de Campos corresponde a um


escárnio, a uma zombaria, a um arremedo, o humor que se vê presente
em vários poemas de Bandeira, pela licenciosidade que sua poesia tem
para em certos momentos “fazer graça”. O próprio Bandeira, no Itinerário
de Pasárgada, ao referir-se à piada como um modo peculiar da expressão
poética de Oswald de Andrade, questionou: “Mas quem negará a carga

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de poesia que há nas piadas de Pau-Brasil? E por que essa condenação da


piada, como se a vida só fosse feita de momentos graves ou se só nestes
houvesse teor poético?” (BANDEIRA, 1984, p. 95).

O segundo modo corresponde mais especificamente ao modo de ser do


poema “Alumbramento”, cujo foco de emoção singulariza-se pelo arranjo
peculiar de suas partes. Um exemplo dado por Haroldo de Campos em
um mesmo sentido é o poema “Preparação para a morte”, publicado em
Estrela da tarde:

A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu voo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
— Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.

(BANDEIRA, 1983, p. 257).

Para Haroldo de Campos, o verso derradeiro de “Preparação para a morte”


“‘desconsteliza’ todos que o precedem e os reconstela a seguir em um
significado uno, pleno e cintilante” (CAMPOS, H., 1976, p. 105). O crítico
destaca no poema o seu impacto final; a técnica de cortes utilizada; a
andadura anafórica com suspensões e ralentos semânticos e o retardo
do desfecho com o aumento da imprevisibilidade. Haroldo de Campos
viu na conclusão de “Preparação para a morte” uma mobilização reversi-
va de sentido, que faz “toda a prévia escala quase tautológica reverberar,
magnetizada de originalidade, tensa e densa a um só tempo, como num
círculo sensível movido a feedback” (CAMPOS, H., 1976, p. 104).

A mesma imprevisibilidade desconstelizadora do verso final de “Prepa-


ração para a morte”, que surpreende o leitor, encontra-se na imagem da
nudez em “Alumbramento”. A nudez é o exercício de surpresa proposto
por Bandeira no poema, a derradeira visão que reorganiza as imagens

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anteriormente dispostas. As diversas imagens relacionadas que reme-


tem à tradição poética são desnudadas em face do corpo vivo que se
revela. O verso final de “Alumbramento”, que desestabiliza (ou descons-
teliza) as imagens antecedentes, faz com que essas imagens passem a fi-
gurar na consciência apenas como véus simbólicos (ou metafóricos) que
cobrem a nua visão. O jogo que sustenta os símbolos e as metáforas rui
e ao mesmo tempo redimensiona-se diante da visão concreta da nudez.

No desfecho de “Alumbramento”, a nudez se mostra ao poeta em toda a


sua intensidade, mas não revela a visão ao leitor. “— Eu vi-a nua...toda
nua! – também soa como uma referência. O poeta, ao narrar o aconte-
cimento, aponta para a visão alumbrada. Uma mulher nua se configura
como uma das possibilidades de ser, a saber, a principal.20 No entanto, a
imagem do último verso também pode ser lida como uma metáfora que
indica de maneira mais ampla a visão poética do feminino, inculcando
no desfecho do poema a relação íntima entre o feminino, a poesia e a
metáfora. A imagem da nudez, como alusão ao feminino, se revela na
vida e na morte, e na poesia, entre outras prováveis sugestões. As ima-
gens evocadas pelo poeta são possíveis metáforas da imagem vista em
seu despojamento final. Essa, que se revela em sua concretude, também
não deixa de ser uma metáfora, ao oferecer uma abertura para que o
leitor imagine alguém ou alguma coisa a surgir em sua nudez diante
do espanto do poeta. Há em “Alumbramento” a condensação de várias
metáforas, próprias das imagens pronunciadas, na surpresa conclusiva
e aberta de uma única metáfora. “Alumbramento”, desse modo, se apre-
senta desdobrando-se como um poema eminentemente metafórico.

Metáfora é comumente entendida como uma imagem que visa substituir


outra que, por nela estar oculta, se revela. Aristóteles, na Poética, assim a
definiu: “A metáfora consiste no transportar para uma coisa o nome de ou-
tra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espé-
cie de uma para a espécie de outra, ou por analogia” (ARISTÓTELES, 2003,
p. 134). Após formular tal delimitação de metáfora que se tornou clássica,
Aristóteles, ao comentar as imagens próprias da poesia de Homero, diz
que “bem saber descobrir as metáforas significa bem se aperceber das se-
melhanças” (ARISTÓTELES, 2003, p. 138).

Jorge Luis Borges, em uma palestra publicada em Esse ofício do verso, na


seção destinada à metáfora, afirmou que se as metáforas são feitas pelo

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entrelaçamento de duas coisas diversas, os poetas têm ao seu dispor uma


soma incalculável de possibilidades. Pergunta Borges: se há tantas com-
binações possíveis, por que a maioria dos poetas tende a usar sempre
as mesmas metáforas? O mais importante é algo simples para Borges,
pois basta que a metáfora seja sentida pelo leitor ou pelo ouvinte como
metáfora. Borges lembra um verso de Byron que diz: “She walks in beauty,
like the night” (BYRON apud BORGES, 2001, p. 48). O escritor ressalta que
inicialmente lemos o verso a partir do sujeito da oração. Diante de nós
surge uma mulher que anda em beleza, como a noite. No entanto, diz
Borges, ao compreendermos melhor o verso de Byron passamos a ver
também a noite como uma mulher. A metáfora de que o poeta se serviu
fornece o seu duplo sentido. Mostra a mulher em ligação com a noite e a
presença da própria noite, ao revelar-se feminina.

A metáfora derradeira de “Alumbramento” libera um prolongamento de


sentido.21 Realiza-se na abertura de sua constituição ontológica. Polissê-
mica é a nudez no poema de Bandeira. A evanescência de seu significa-
do conduz a uma múltipla face. Celebra-se não a representação de uma
imagem cristalizada pelo pensamento, mas a própria imagem em seu
despojamento real. A nudez concreta que se desoculta também se oculta
como a possível metáfora de uma outra nudez. Assim, o jogo projetivo
que perfaz o poema, ao exacerbar a visão alumbrada, ironicamente se
rende pelo invisível.

No ensaio “Introdução à poética da ironia”, Ronaldes de Melo e Souza


mostra a ironia como princípio de construção de uma obra de arte e não
um tropo retórico que atende a uma determinação meramente verbal,
como é frequentemente reconhecida pela tradição exegética. Escreveu
Souza:

Na obra de arte regida pelo princípio da ironia, toda e qualquer parte se


torna radicalmente irônica. Poeticamente concebida como princípio que
articula a estrutura da obra de arte, a ironia preside à gênese e ao desen-
volvimento de cada uma de suas partes (SOUZA, 2000, p. 27).

Mencionado por Ronaldes de Melo e Souza (2000), Friedrich Schlegel, no


fragmento 668 de Anos de aprendizagem filosófica, apresenta a tese de que
a ironia é uma parábase permanente. A parábase possui uma função es-
sencial na estrutura das comédias de Aristófanes, cuja ocorrência se dá
quando o coro por um instante se desliga da ação para transmitir ao

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público o apelo do autor. Seu desígnio serve para expor as reflexões e polêmicas
que o próprio texto cômico aborda. A parábase situa-se desse modo como um
contraponto suspensivo da representação cênica. Ao mesmo tempo em que ar-
ticula a bipartição estrutural do texto teatral, questionando o desenvolvimento
de suas ações, nele veicula o estatuto de uma metalinguagem crítica.

Parábase, parakbase, derivado de ekbasis, que é o movimento do coro, designa


justamente a noção paralela e contrapontística do coro que se desvia do curso
normal dos eventos representados a fim de refletir sobre o sentido do que se re-
presenta (SOUZA, 2000, p. 30).

O distanciamento da consciência crítica exercido pelo coro se contrapõe ao en-


volvimento emocional da trama. Desse modo, com a suspensão da ação dramá-
tica, a comédia pode acrescentar um rol reflexivo às suas ações. Diz Ronaldes
de Melo e Souza que em Aristófanes, devido ao movimento parabático, o teatro
é um metateatro. Schlegel, em sua formulação teórica, coloca a parábase como
um princípio supremo na composição da obra de arte. A grandeza da poesia e da
prosa encontrar-se-á de acordo com a intensidade de sua ocorrência. A obra se
valorizará na medida em que apresentar um movimento parabático contínuo.
A arte literária nesse sentido é exemplar. Pois, além de revelar os acontecimen-
tos ao leitor, é célebre por transmitir uma intensa gama de conhecimentos. A
reflexão sobre o ato de narrar eleva o evento literário a um dimensionamento
superior. A narração se legitima em sua grandeza por inserir a metalinguagem
crítica no processo narrativo. A ficção se torna, desse modo, metaficção.

A ironia, do grego eironeia, que significa “questionamento”, “subordina o aconte-


cimento representado ao processo crítico da reflexão” (SOUZA, 2000, p. 30). Na
obra de arte regida pelo princípio da ironia há a recusa sistemática da ilusão
dramática. Diz Souza que na visão das comédias gregas e romanas não se admi-
te a criação de um universo diferente do mundo real. Em Plauto, por exemplo,
um personagem se destaca e dirige-se à plateia para assinalar que o evento
teatral é apenas ficcional e que ele, enquanto personagem, nada mais é do que
um ator que representa. A ilusão de que compartilham atores e espectadores é
ironicamente contestada “com o argumento de que a função crítica da arte con-
siste em converter a ilusão da consciência em consciência da ilusão” (SOUZA,
2000, p. 31). Escreveu o ensaísta:

Ao constante envolvimento das emoções afetivas e volitivas na experiência ime-


diatamente vivida de todo e qualquer ser humano, necessário se torna contrapor
continuamente o distanciamento racional (SOUZA, 2000, p. 31).

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Para Souza, entretanto, a ironia suprema que faz a parábase ser perma-
nente é que a consciência da ilusão não elimina a ilusão da consciência.
A ironia, desse modo, vem a ser a expressão mais adequada à interação
dialética da experiência emocional com a consciência racional. Afirmou
o ensaísta:

Nas narrativas irônicas, a função crítica da parábase é assumida pelo nar-


rador autoconsciente que não se limita a narrar eventos, mas se compraz
em sustar o enunciado propriamente narrativo com o deliberado propósi-
to de assinalar criticamente que o narrado não é dado na realidade, mas
construído pela instância da enunciação (SOUZA, 2000, p. 31).

Na ficção narrativa regida pelo princípio da ironia, o narrador se desvia


do fluxo da ação dramática para instaurar uma interação polêmica com
a obra. O autor, no papel de crítico de sua própria criação, requer um
receptor criticamente atento. A interação dialógica com um intérprete
participante é uma exigência do narrador irônico.

Souza (2000) cita o fragmento 42 dos Fragmentos críticos de Schlegel, pu-


blicados em 1797 pela revista Lyceum der schönen Kiisten, no qual a ironia
aparece como o sopro divino de uma bufoneria transcendental que per-
passa o todo e cada parte de uma obra poética. Na obra de arte regida
pelo princípio da ironia, a contradição é consentida e, por conseguinte,
as oposições são passíveis de coexistência. A dialética irônica formulada
pelo filósofo não admite a síntese. Foi como a análise da tese e da antíte-
se que Schlegel concebeu a ironia. Nesse jogo de relações, a análise não
confere valor absoluto nem a uma nem a outra, pois “não admite que
nenhuma posição se hipertrofie numa proposição pretensamente única
e verdadeira” (SOUZA, 2000, p. 32). Analítica, a ironia submete o dogma-
tismo ao criticismo na obra de arte.

Na separação metafísica da finitude sensível e da infinitude inteligível


brotam os antagonismos consagrados pelo pensamento ocidental, du-
alismos que se sustentam em constantes ritos de exclusão, tais como:
corpo e alma; matéria e espírito; e realidade e idealidade. Na recu-
sa a admitir como ideal o que pertence ao real, o materialista recusa
o idealismo. O espiritualista, por sua vez, observa a realidade como a
corrupção do seu ideal preconcebido. Para Souza, a poética da ironia
substitui na obra de arte essa oposição antagônica, dualista, por ou-
tra, complementar. O finito sensível e o infinito inteligível são um e o

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mesmo no pensamento criticamente irônico de Schlegel. “A consciência nos-


tálgica do infinito é metacriticamente balanceada pela experiência concreta
do finito” (SOUZA, 2000, p. 33) escreveu Souza. É nesse duplo jogo de finito e
infinito, sensível e inteligível, que o conhecimento encarna-se no tempo. Na
exposição contínua da contradição como estrutura que condiciona o Ser do
homem no mundo encontra-se a abertura de sua inesgotável indetermina-
ção. Afirmou Souza: “O horizonte organiza uma cena vista e transvista, pro-
piciando uma infinidade de outras organizações possíveis” (SOUZA, 2000,
p. 33). Desse modo é que todo visível repousa sob um fundo invisível.

A narrativa irônica acontece em uma mobilidade que assume vários caracteres.


Ao articular perspectivas diferentes e modular diversas doutrinas, a voz narrada
não se fixa em um só papel que se queira normativo. Escreveu Souza:

Na obra de arte regida pelo princípio da ironia, o que fundamentalmente importa


é a capacidade de um eu se desdobrar em eu-sujeito e eu-objeto, de tal modo, e
com tamanha intensidade dramática, que o eu-sujeito assiste criticamente como
espectador às experiências passionais do seu outro eu, que é o eu-objeto. O eu
verdadeiramente irônico é o que ri de si mesmo, e não simplesmente dos outros
eus (SOUZA, 2000, p. 35).

A ironia formulada por Schlegel se traduz, na obra de arte, na dialética constan-


te de subjetividade e objetividade. Ao mesmo tempo em que se assume como
a transcendental condição subjetiva da experiência em geral, a ironia também
condiciona a possibilidade objetiva da experiência real. Diz Souza que “a ironia
submete ao efeito catártico do riso toda e qualquer proposição supostamente
absoluta” (SOUZA, 2000, p. 34). Real e ideal ironicamente não possuem valores
acabados. Pensar ou produzir uma obra de arte significa intercambiar incessan-
temente os extremos complementares de realidade e idealidade. Schlegel, em
seus escritos, sustentou que a ironia sem entusiasmo é insípida. Afirma Souza
que é nesse sentido que a ironia se denomina romântica,22 expressão paradoxal
da síntese antitética de subjetividade e objetividade, e princípio geral da arte
que congrega em si mesma a linguagem do entusiasmo e a metalinguagem da
reflexão crítica.

A ironia romântica fundamenta-se na autorreflexão e no duplo domínio de vida


e morte da natureza que ao mesmo tempo cria e nadifica, dinamizando-se na
articulação dialética de poesia e reflexão. A parábase permanente da ironia ro-
mântica produz uma poesia sui generis: o metapoema, a poesia da poesia, ou a
poesia transcendental, que irá refletir criticamente sobre si mesma, questio-

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nando seus próprios fundamentos. Alternância contínua de um “eu” ingenu-


amente entusiasmado e outro criticamente reflexivo, o metapoema revelará a
contradição artística na qual o poeta se investe igualmente de uma ebriedade
vital e de uma sobriedade racional.

Em “Alumbramento”, regido pelo princípio da ironia, o poeta entusiasmado e


autoconsciente instaura um processo aberto de metapoesia. Coexistem no po-
ema as verdades concretas do acontecimento ocorrido e o abstrato metafórico
que intenciona um dizer ideal. Ao aderir à ontologia que conduz ao invisível de
toda visão, o que ora se revela na fala do poeta indica algo que ora se oculta.
Conjugam-se, desse modo, em uma interação dialética, polos aparentemente
antagônicos, de realidade e idealidade – ou de materialidade e espiritualidade. A
resolução final, ao mostrar-se paradoxal, remete a um oximoro. Visível e invisí-
vel – tese e antítese que perfazem uma “genuína dissonância”23 – são oposições
que ritualizam no poema o trânsito do não-ser para o ser. A gênese do poético se
desdobra aos olhos do leitor no jogo de metáforas que sugere um duplo comple-
mentar. Desse modo, a forma e as formas de “Alumbramento”, ao mesmo tempo
em que desnudam os trâmites analíticos de sua construção, retornam sempre
e a cada vez ao princípio arquetípico de espanto e admiração que rege toda a
poesia e todo fazer poético.

Notas

1 Manuel Bandeira, na sua Apresentação da poesia brasileira, toma como


características marcantes do Parnasianismo “a arte pela arte e a necessidade
de seguir as regras técnicas mais exigentes na elaboração do poema”
(BANDEIRA, 2009, p. 127).

2 Bandeira, em entrevista concedida a Paulo Mendes Campos, afirmou: “Gosto


das formas fixas porque elas são padrões estróficos de raro equilíbrio, vivazes,
mnemônicos; porque satisfazem o meu gosto de ordem, de disciplina. Ligou-
se a elas, injustamente, a meu ver, um certo part-pris antiparnasiano. Ora, nas
mãos de um grande poeta elas nunca foram exibição de virtuosismo. Basta
dizer que toda obra de Villon é de baladas” (BANDEIRA apud CAMPOS, 1980,
p. 97).

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3 O procedimento de Bandeira, no arremate do poema, assemelha-se à


utilização da “chave de ouro” parnasiana, que “concentra em si a ideia principal
do poema ou deve encerrá-lo de maneira a encantar ou surpreender o leitor”
(HOUAISS, 2001).

4 “Rima é igualdade de som” (BANDEIRA, 1984, p. 24), escreveu Bandeira no


Itinerário de Pasárgada. Afirmação aparentemente simples, na qual o poeta
referiu-se a uma sensível e profunda “razão do ouvido” que tanto determinou a
construção musical de seus versos.

5 “Creio que já coloquei o suficiente.” Tradução minha.

6 A citação de Bandeira foi extraída do texto “A crise do verso”, de Stèphane


Mallarmé.

7 Destaca-se também em “Um lance de dados” o uso renovado dos recursos


tipográficos, que Augusto de Campos define como uma “tipografia funcional”
a espelhar “as metamorfoses, os fluxos e refluxos das imagens” (CAMPOS,
A., 2006a, p. 178). O poema, ao se servir da “tipografia funcional”, conjuga:
o emprego de tipos diversos de letras; a posição das linhas tipográficas; os
“brancos” da página como elementos estruturais; e a noção de tema como
motivo musical, com progressões preponderantes, secundárias ou adjacentes,
definidas pelo tamanho maior ou menor das letras.

8 Na citação foi respeitada a grafia em caixa alta para as palavras


“ORGANOFORMA” e “ESTRUTURA”, tal como foi utilizada por Augusto de
Campos em seu ensaio.

9 Entrevista publicada originalmente na revista Diálogo, São Paulo, n. 7,


jul. 1957, sobre um questionário proposto pelo poeta Alexandre Gravinas;
republicada no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20
out.1957.

10 Quando a natureza é mencionada por Ernest Fenollosa, ou referenciada no


contexto de seus escritos, seguindo o modo superlativo pelo qual o filósofo a
registra, o ensaísta opta pela grafia iniciada por letra maiúscula.

11 Publicado originalmente no Diário de São Paulo, São Paulo, 23 mar. 1955.

12 Publicado originalmente no Diário de São Paulo, São Paulo, 3 jul. 1955;


republicado no Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28 abr. 1956.

13 Publicado originalmente na revista Ad: arquitetura e decoração, São Paulo, n.


20, nov./dez. 1956; republicado no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro, 12 maio 1957. Na citação foi respeitada a grafia em caixa-alta, tal
como fora utilizada no manifesto.

14 Publicado originalmente no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, Rio


de Janeiro, 13 jan. 1957.

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15 “A obra literária é forma pura; não é simplesmente uma coisa, um


material, mas uma relação de materiais”, escreveu o crítico Victor Schklóvski
(SCHKLÓVSKI apud CAMPOS, H., 2006a, p. 77).

16 Publicado originalmente em Noigandres 4. São Paulo: Edição dos Autores,


1958.

17 Paideuma, no dizer de Pound, significa “a ordenação de um conhecimento


de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente
possível, a parte viça dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos”
(POUND, 2007, p. 161). No manifesto “Olho por olho a olho nu”, Haroldo
de Campos assim descreveu o paideuma concretista: “Elenco de autores
culturmorfologicamente atuantes no momento histórico = evolução qualitativa
de expressão poética e suas táticas” (CAMPOS, H., 2006d, p. 74).

18 Publicado no “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Paulo, São


Paulo, 14 abr. 1966.

19 Poema requisitado para a revista Invenção n. 3 por Edgard Braga, publicada


em junho de 1963.

20 Com seis desenhos de mulheres do artista plástico francês Marcel


Gromaire, foi publicado em 1960 pela Edição Dinamene, de Salvador, o livro
Alumbramentos, uma antologia de poemas de amor de Manuel Bandeira em
200 exemplares numerados e volume de folhas soltas. A pequena tiragem e o
primor gráfico da edição a tornaram uma raridade bibliográfica.

21 Escreveu Ezra Pound, no seu ABC da Literatura: “Ao lidar com seu próprio
tempo, o poeta deve cuidar de evitar que a linguagem se petrifique em suas
mãos. Deve se preparar para novas investidas no campo da verdadeira
metáfora, que é a metáfora interpretativa, ou imagem, diametralmente oposta à
metáfora falsa, ornamental” (POUND, 2007, p. 128).

22 As imperfeições da natureza e da natureza humana agem em consonância


com a unidade das produções irônico-românticas, correspondendo assim
às indeterminações e aos inacabamentos das respectivas obras de arte e
pensamento. Como as postulações de Schlegel, dispostas numa coleção de
fragmentos, a forma poética irônico-romântica também é fragmentária. Diz
Souza que o caráter contraditório do homem e da natureza nada tem a ver com
a perfeição radiosa da beleza de um romantismo tradicionalmente postulado
pela teoria da arte. “À nostalgia romântica do infinito ou absoluto se contrapõe
a relação irônica do finito e do relativo” (SOUZA, 2000, p. 35), escreveu o
ensaísta.

23 Referência ao “Prefácio interessantíssimo” de Mário de Andrade.

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André Vinícius Pessôa

Referências

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ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. Lisboa: Imprensa Nacional:


Casa da Moeda, 2003.

ARRIGUCCI JUNIOR, Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira.


São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira: poesias reunidas. Rio de Janeiro: J.


Olympio, 1983.

BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro: Record: Altaya, 1984.

BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009.

BORGES, Jorge Luis. Esse ofício do verso. Tradução de José Marcos Macedo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.

CAMPOS, Augusto de. Mallarmé, o poeta em greve. In: CAMPOS, Augusto de;
PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2006b.

CAMPOS, Augusto de. Poesia concreta (manifesto). In: CAMPOS, Augusto de;
PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta: textos críticos e
manifestos 1950-1960. 4. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2006d. p. 71-72.

CAMPOS, Augusto de. Poesia, estrutura. In: CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI,
Décio; CAMPOS, Haroldo de. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2006a.

CAMPOS, Augusto de. Poesia, ideograma. In: CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI,
Décio; CAMPOS, Haroldo de. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2006c.

CAMPOS, Augusto de: PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Plano piloto para a
poesia concreta. In: CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de.
Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. 4. ed. Cotia: Ateliê
Editorial, 2006. p. 215-217.

CAMPOS, Haroldo de. Aspectos da poesia concreta. In: CAMPOS, Augusto de;
PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta: textos críticos e
manifestos 1950-1960. 4. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2006a. p.137-152.

CAMPOS, Haroldo de. Bandeira, o desconstelizador. In: CAMPOS, Haroldo de.


Metalinguagem. São Paulo: Cultrix, 1976.

CAMPOS, Haroldo de. Evolução de formas: poesia concreta. In: CAMPOS, Augusto
de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta: textos críticos
e manifestos 1950-1960. 4. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2006c. p. 77-88.

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A forma e as formas de “Alumbramento”

CAMPOS, Haroldo de. A obra de arte aberta. In: CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI,
Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos
1950-1960. 4. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2006b. p. 49-57.

CAMPOS, Haroldo de. Olho por olho a olho nu (manifesto). In: CAMPOS, Augusto
de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta: textos críticos
e manifestos 1950-1960. 4. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2006d. p. 73-76.

CAMPOS, Paulo Mendes. Reportagem literária. In: BRAYNER, Sônia (Org.). Manuel
Bandeira. Brasília: Civilização Brasileira: Instituto Nacional do Livro, 1980. (Coleção
Fortuna Crítica).

FENOLLOSA, Ernest. Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para


a poesia. In: CAMPOS, Haroldo de. (Org.). Ideograma: lógica, poesia, linguagem.
Tradução de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2000.

HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0. Rio
de Janeiro: Objetiva: Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia, 2001.

MALLARMÉ. Stéphane. Divagações. Tradução e apresentação de Fernando Scheibe.


Florianópolis: UFSC, 2010.

POUND, Ezra. ABC da literatura. Tradução de Augusto de Campos e José Paulo Paes.
São Paulo: Cultrix, 2007.

SOUZA, Ronaldes de Melo e. Introdução à poética da ironia. Revista Linha de


Pesquisa, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 27-48, out. 2000.

WISNIK, José Miguel. O coro dos contrários: a música em torno da Semana de 22. São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1978.

150 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n.23 | p. 121-150 | set-dez 2013

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NÚMEROS ANTERIORES
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EDIÇÃO 18
O debate parlamentar sobre o Programa Bolsa Família no governo Lula
Anete B. L. Ivo
José Carlos Exaltação

Educação para a sustentabilidade: estratégia para empresas do


século XXI
Deborah Munhoz

Fagulhas do autoritarismo no futebol: embates sobre o estilo de jogo


brasileiro em tempos de ditadura militar (1966-1970)
Euclides de Freitas Couto

Juventudes, violência e políticas públicas no Brasil: tensões entre o


instituído e o instituinte
Glória Diógenes

A máquina moderna de Joaquim Cardozo


Manoel Ricardo de Lima

EDIÇÃO 19

Um convite à leitura
Gabriel Cohn

Caio Prado Jr. como intérprete do Brasil


Bernardo Ricupero

As raízes do Brasil e a democracia


Brasilio Sallum Jr.

Gilberto Freyre e seu tempo: contexto intelectual e questões de época


Elide Rugai Bastos

Entre a economia e a política – os conceitos de periferia e democracia no


desenvolvimento de Celso Furtado
Vera Alves Cepêda

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EDIÇÃO 20
Interpretações do Brasil e Ciências Sociais, um fio de Ariadne
André Botelho

Cotas aumentam a diversidade dos estudantes sem comprometer o


desempenho?
Fábio D. Waltenberg
Márcia de Carvalho

Três críticos: Antonio Candido, Paulo Emílio e Mário Pedrosa


Francisco Alambert

Gonçalo M. Tavares: o ensaio, a dança, o espírito livre


Júlia Studart

Caio Prado Jr. e o intelectual marxista hoje


Marco Aurélio Nogueira

EDIÇÃO 21

Faces do trágico e do cômico na moderna prosa rodriguiana


Agnes Rissardo

Saber escolar em perspectiva histórica. O ensino religioso: debates de ontem e


hoje na História da Educação
Aline de Morais Limeira

A inocência dos muçulmanos, blasfêmia e liberdade de expressão: problemas de


tradução intercultural
Daniel Silva

O confronto entre a jurisdição penal global e a soberania estatal: tribunal penal


internacional versus razão de estado
Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco

Castro Alves: dramaturgo bissexto


Walnice Nogueira Galvão

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EDIÇÃO 22

Dossiê Velhice, família, Estado e propostas políticas


Organização e apresentação: Myriam Moraes Lins de Barros

Feminismo e velhice
Guita Grin Debert

Entre o Estado, as famílias e o mercado


Carlos Eugênio Soares de Lemos

Violências específicas aos idosos


Alda Britto da Motta

Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias da poesia


de Cacaso
Carlos Augusto Lima

Violência e maus-tratos contra as pessoas idosas


Lucia Helena de Freitas Pinho França e Edson Alexandre da Silva

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Sinais Sociais, entre em contato conosco:
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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

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Política editorial

A revista Sinais Sociais é editada pelo Departamento Nacional do Serviço


Social do Comércio (Sesc) e tem por objetivo contribuir para a difusão
e o desenvolvimento da produção acadêmica e científica nas áreas das
ciências humanas e sociais. A publicação oferece a pesquisadores, uni-
versidades, instituições de ensino e pesquisa e organizações sociais um
canal plural para a disseminação do conhecimento e o debate sobre gran-
des questões da realidade social, proporcionando diálogo amplo sobre a
agenda pública brasileira. Tem periodicidade quadrimestral e distribuição
de 5.000 exemplares entre universidades, institutos de pesquisa, órgãos
públicos, principais bibliotecas no Brasil e bibliotecas do Sesc e Senac.

A publicação dos artigos, ensaios, entrevistas e dossiês inéditos está con-


dicionada à avaliação do Conselho Editorial, no que diz respeito à ade-
quação à linha editorial da revista, e por pareceristas ad hoc, no que diz
respeito à qualidade das contribuições, garantido o duplo anonimato no
processo de avaliação. Eventuais sugestões de modificação na estrutura
ou conteúdo por parte da Editoria são previamente acordadas com os
autores. São vedados acréscimos ou modificações após a entrega dos tra-
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fica. A mensagem deve informar ainda endereço, telefone, e-mail e, em
caso de mais de um autor, indicar o responsável pelos contatos.

Incluir também o currículo (com até cinco páginas) com a formação aca-
dêmica e a atuação profissional, além dos dados pessoais (nome com-
pleto, endereço, telefone para contato) e um minicurrículo (entre 5 e 10
linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10), que deverá constar no
mesmo documento do artigo, com os principais dados sobre o autor:
nome, formação, instituição atual e cargo, áreas de interesse de trabalho,
pesquisa, ensino e últimas publicações.

Os textos devem ser encaminhados para publicação ao e-mail:


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O corpo do texto deverá ter no mínimo 35.000 e no máximo 60.000 ca-


racteres, digitado em editor de texto Word for Windows, margens 2,5 cm,
fonte Times New Roman, tamanho 12, espaçamento entrelinhas 1,5. As
páginas devem ser numeradas no canto direito superior da folha.

A estrutura do artigo deve obedecer à seguinte ordem:

a) Título (e subtítulo se houver).


b) Nome(s) do(s) autor(es).
c) Resumo em português (de 100 a 250 palavras, fonte Times New Roman,
tamanho 10, não repetido no corpo do texto).
d) Palavras-chave (no máximo de cinco e separadas por ponto).
e) Resumo em inglês (de 100 a 250 palavras, fonte Times New Roman, ta-
manho 10).
f) Palavras-chave em inglês (no máximo de cinco e separadas por ponto).
g) Corpo do texto.
h) Nota(s) explicativa(s).
i) Referências (elaboração segundo NBR 6023 da ABNT e reunidas em
uma única ordem alfabética).
j) Glossário (opcional).
l) Apêndice(s) (opcional).
m) Anexo(s) (opcional).

Anexos, tabelas, gráficos, fotos e desenhos, com suas respectivas legen-


das, devem indicar as unidades em que se expressam seus valores, assim
como suas fontes. Gráficos e tabelas devem vir acompanhados das pla-
nilhas de origem. Todos esses elementos devem ser apresentados no in-
terior do texto, no local adequado ou em anexos separados do texto com
indicação dos locais nos quais devem ser inseridos. Sempre que possível,
deverão ser confeccionados para sua reprodução direta. As imagens de-
vem ser enviadas em alta definição (300 dpi, formato TIF ou JPEG).

Recomenda-se que se observem ainda as normas da ABNT referentes


à apresentação de artigos em publicações periódicas (NBR 6022), apre-
sentação de citações em documentos utilizando sistema autor-data
(NBR 10520) e numeração progressiva das seções de um documento (NBR
6024).

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Referências (exemplos):

Artigos de periódicos

DEMO, Pedro. Aprendizagem por problematização. Sinais Sociais, Rio de


Janeiro, v. 5, n. 15, p.112-137, jan. 2011.

DIAS, Marco Antonio R. Comercialização no ensino superior: é possível


manter a ideia de bem público? Educação & Sociedade, Campinas, v. 24,
n. 84, p. 817-838, set. 2003.

Capítulos de livros

CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sergio


Buarque de. Raízes do Brasil. 25. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1993. p. 39-49.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Tratado de nomadologia: a máquina


de guerra. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e
esquizofrenia. Trad. Aurélia Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo:
Ed. 34, 1980. v. 5, p. 14-110.

Documentos eletrônicos

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: síntese de indicadores:


2002. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: < http://www.ibge.gov.
br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2002/
sintesepnad2002.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013.

SANTOS, José Alcides Figueiredo. Desigualdade racial de saúde e contexto


de classe no Brasil. Dados, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, 2011. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-
52582011000100001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 jul. 2013.

SANTOS, Nara Rejane Zamberlan; SENNA, Ana Julia Teixeira. Análise


da percepção da sociedade frente à gestão e ao gestor ambiental. IN:
CONGRESSO BRASILEIRO DE GESTÃO AMBIENTAL, 2., 2011, Londrina.
Anais eletrônicos... Bauru: IBEAS, 2012. Disponível em: < http://www.ibeas.
org.br/congresso/Trabalhos2011/I-002.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013.

158 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n.23 | p. 1-160 | set-dez 2013

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Livro

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio,


1936.

Trabalho acadêmico

VILLAS BÔAS, G. A vocação das ciências sociais: (1945/1964): um estudo


da sua produção em livro. 1992. Tese (Doutorado em Sociologia) –
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992.

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Esta revista foi composta na tipologia Caecilia LT Std
e impressa em papel pólen 90g, na Setprint Gráfica e Editora.

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