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I.
«Nota, meu filho, que nos movemos neste mundo através de imagens
e de enigmas porque o espirito da verdade nao é deste mundo nem pode
por ele ser captado a näo ser que, parabólicamente e por símbolos por nós
conhecidos, sejamos elevados ao desconhecido»!. Estas palavras escritas
por Nicolau de Cusa um ano antes da sua morte, na Carta a Albérgate, ao
iluminarem retrospectivamente todo o seu percurso filosófico,
caracterizam nao só a enigmática ciencia que é a sua hermenéutica dos
nomes divinos, mas também toda a sua reflexäo crítica sobre as vias e os
limites do conhecimento que. fazem da sua metafísica da mente «urna
forma prévia da metafísica modema»3. Nao é, pois, de estranhar que,
depois de ter tentado caracterizar especulativamente, em algumas das suas
principáis obras, as nossas facilidades e potencias cognoscitivas, opte
também por recorrer inovadoramente á reescrita de urna antiga e bíblica
metáfora, como a do «muro do paraíso», para exprimir näo só a distingäo,
mas também a concepto dinámica das relagoes entre a «ratio» e o
«intellectus» e entre os principios lógicos a que cada urna destas instancias
se subordina, devendo merecer-nos especial atengäo o lugar da imaginado
in: M.C. Pacheco — J.F. Meirinhos (Éds.), Intellect et imagination dans la Philosophie Médiévale /
Intellect and Imagination in Medieval Philosophy / Intelecto e imaginaçâo na Filosofía Medieval.
Actes du Xle Congrès International de Philosophie Médiévale de la Société Internationale pour ¡'Étude
de la Philosophie Médiévale (S.I.E.P.M.), Porto, du 26 au 31 août 2002, (Rencontres de philosophie
médiévale, 11 ) Brepols Publishers, Turnhout 2006; vol. 111, pp. 1639-1650.
1640 JOÂO MARIA ANDRÉ
II.
Urna análise rigorosa do De docta ignorantia permitir-nos-á concluir
que, embora a caracterizagao das faculdades mentáis nao se encontré ainda
definitivamente estabelecida, registando-se alguma flutuagáo de sentido
sobretudo na utilizagáo do conceito de «intellectus», que ora designa a
mente no seu conjunto, ora apenas urna das instancias da mente, é
possível, no entanto, perceber que estáo já delineados, com alguma
clareza, nao só o concurso das quatro instancias ou regioes no processo do
conhecimento (sentidos, imaginagáo, razao e intelecto), mas também a
distingáo que entre elas se estabelece. Com efeito, logo no capítulo 4 do
Livro I, ao falar-se do nosso conhecimento das coisas, fala—se da
possibilidade de as apreender através dos sentidos, da razao e do
intelecto^ e no Capítulo 10 do mesmo livro póe-se como condigáo para
chegar á «intelligentia» mais sim ples e abstracta do M áxim o, a
necessidade de rejeitar o que se capta pelos sentidos, pela imaginagáo ou
pela razao 45 6789. Mas, no Livro II, as diversas enumeraqóes das potencias
cognoscitivas remetem já com toda a clareza para as quatro instancias. É
assim que, no capítulo 5, o dito de Anaxágoras, segundo o qual «tudo está
em tudo», é aplicado aos sentidos, á imaginagáo, á razao e ao intelecto5 ,
permitindo a referencia aos platónicos no capítulo 97 concluir que este
escalonamento e a caracterizagáo das diferentes instancias é herdada, entre
outros, de Thierry de Chartres. Já no 3° livro é claramente assumida a
posigáo da razao entre os sentidos e o intelecto8 sendo tam bém
reconhecida, com as suas implicagóes éticas, a necessidade de subordinar
os sentidos á razao e a razao ao intelecto?.
III.
Antes de passarmos ao De visione Dei, texto em que toda esta teoria
aparece traduzida plasticamente na metáfora do «muro do paraíso, convirá
determo-nos, aínda que brevem ente, no De coniecturis, obra que
estabelece com contomos mais precisos a progressáo sentidos, razáo e
intelecto no quadro das quatto unidades mentáis, que incluem Deus como
IV.
O discurso de Nicolau de Cusa sobre as instâncias do conhecimento
em que se explica o poder da nossa mente é, quase em sentido moderno e
kantiano28, um discurso crítico, mas é também, talvez por esse mesmo
45 Idem, ibidem, Cap. 13, H. VI, n° 51, linhas 8-9 e 11-12, p. 44.
46 Cfr. D. D uclow, «Anselm’s Proslogion and Nicholas of Cusa’s Wall of
Paradise», Downside Review, 100 (1982) 22-30.
47 Cfr. J.M. A ndrÉ, Sentido, simbolismo e interpretagao no discurso filosófico de
Nicolau de Cusa, Lisboa, Fundagao Calouste Gulbenkian/JNICT, 1997, pp. 209, 210, n.
202.
48 Nicolau de Cusa, De visione Dei, Cap. 17, H. VI, n° 75, linhas 9-14, p. 61.
A METÁFORA DO «MURO DO PARAÍSO» 1649
diversas vezes, tanto para ser enumerada ao lado das outras instancias do
conhecimento49, como para sublinhar os seus limites50; os quais dizem
fundamentalmente respeito á sua incapacidade para captar qualquer
coincidencia de opostos a partir da figuragáo plástica do olhar
omnividente. Mas é precisamente aqui que se revela o carácter paradoxal,
mas ao mesmo tempo rico e fecundo da estratégia cusana. É que, por um
lado, todo o livro assenta no movimento que a imaginagáo permite
imprimir quer á nossa razáo, quer ao nosso intelecto e, se tivermos em
conta que é a razáo a instancia operadora das comparagóes, porque é nela
que radica a nossa capacidade de figurar, entáo temos de concluir que a
metáfora do muro, aquela que nos permite desenhar o mapa cartográfico
do conhecimento, é urna sublime expressáo da nossa potencia imaginativa.
Mas, por outro lado, desenhar esse mapa é entrar no inacessível e
descrever o que nao pode ser descrito, porque nem a imaginagáo tem
acesso ao muro que é o intelecto, nem pode vislumbrar o que para lá do
muro se oculta. Assim, a metáfora que a imaginagáo desenha é urna
m etáfora que se curto-cicuita a si própria nesse mesmo desenho,
traduzindo o paradoxo de toda a mística do logos'. dizer o indizível.
Desenhando-a, a imaginagáo quase náo tem lugar nela (ou, quando muito,
ocupa um dos muitos lugares para cá do muro), mas sem ela é a própria
metáfora que náo tem lugar, perdendo, assim, a possibilidade de aceder
(sempre simbólicamente) ao mundo do conhecimento.
V.
Entretanto, e com esta nota concluiría as presentes reflexóes em tomo
da metáfora do muro do paraíso e da cartografía do conhecimento em
Nicolau de Cusa, náo deixa de ser interessante verificar que, fazendo tal
metáfora apenas a sua aparigáo neste texto que acaba por revelar, ñas suas
linhas, os limites profundos da imaginagáo, há, no entanto, um conjunto de
categorías, fundamentáis no pensamento do autor, cujo radical nela
encontra a sua origem e que déla passam para todos os outros textos: as
categorías de transiado, transcensus, transsumptio, com os verbos que
lhes andam associados como transcenderé, transferre, trasnssilire ou
transsumere. M arcadas pelo prefixo «trans», mesmo sem se referirem
49 Cfr. Idem, ibidem, Cap. 24, H. VI, n° 109, linhas 10-15 e n° 111, linhas 10-13.
50 Cfr. Idem, ibidem, «Praefatio», H. VI, n° 3, linhas 8-10 e linhas 16-18; Cap. 9,
n° 32, linhas 6-10.
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Universidade de Coimbra