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ALAGADOS
UMA EXPERIÊNCIA INTERATIVA DE CONSTRUÇÃO DA REALIDADE
Prof. Dr. Eduardo Teixeira de Carvalho – Arquiteto e Urbanista - FAUFBA
(nov.2017)
A AMESA - Alagados Melhoramentos S.A., empresa de capital misto criada pelo
governo do Estado da Bahia, em 1973, tinha como único objetivo urbanizar a favela dos
Alagados, construída sobre palafitas. Seu propósito era fazer um projeto executivo de
melhoramentos urbanístico e habitacional, como resultado final de um concurso
nacional de ideias; uma metodologia participativa para implementação do mesmo e,
execução das obras necessárias, com suporte financeiro dos governos estadual e
federal, em todas as suas etapas.
Estavam previstas como premissas de trabalho, dentre outras: a permanência dos
moradores na área; a legalização da posse da terra; respeitar as características dos
esquemas de organização comunitária e social existentes; preservar, tanto quanto
possível, os investimentos habitacionais, de infraestrutura e de serviços existentes e a
construção de processos participativos envolvendo as associações criadas pelos
moradores para defender os seus interesses junto às instituições públicas.
Era uma novidade, em um momento em que o BNH – Banco Nacional de Habitação não
oferecia carteiras de financiamentos para urbanização de favelas; as políticas
habitacionais do governo federal só contemplavam a produção de novas unidades
habitacionais e, os indicadores oficiais de medição do déficit habitacional não
consideravam essa prática de urbanismo, ainda nascente naquele momento.
Apesar das suas etapas de desenvolvimento terem sido periodicamente discutidas com
as lideranças das associações, durante um ano e seis meses; dessas lideranças terem
sempre passado a impressão de que éramos bem-vindos e de que os nossos saberes
científicos eram necessários para realização dos seus desejos, quando as obras
começaram os problemas apareceram, o que redundou na necessidade de mudanças
no plano urbanístico realizado.
Por que?
Esta questão foi esclarecida no transcorrer deste processo, quando os moradores dos
Alagados nos ensinaram: a diferença entre trabalhar para o campo social e trabalhar
com o campo social; de nos posicionarmos como uns sobre todos e como uns entre
todos; entre processos participativos de construção da realidade e processos interativos
de construção da realidade e, a diferença entre redes de relacionamentos sociais cujas
formas de organização são regidas por relações hierárquicas, verticais,
descentralizadas (participativas), onde os fluxos interativos de convívio social são
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represados e restritos (fig.02)1 e, redes de relacionamentos sociais cujas formas de


organização são regidas por relações não-hierárquicas, horizontais, distribuída
(interativa), onde os fluxos interativos de convívio social são abundantes, livres e a
interatividade distribuída (fig.03).
Percebemos, deste modo que, ao iniciarmos nossos trabalhos de campo, passamos a
represar os seus fluxos de convívio social, de alta conectividade e interatividade onde
todos interagiam com todos, sem intermediações e sem centro, em uma construção
distribuída e contínua de relações mútuas e coisas (fig.03).2

SEM INTERCONEXÕES SUBSISTEMAS SUBSISTEMAS DE


INTERCONECTADOS INTERCONEXÕES DENSAS
Fig. 01
Fig. 02 Fig. 03
Fonte: Alexander DESCENTRALIZADO DISTRIBUÍDO
Fonte: Alexander Fonte: Alexander

Percebemos, também, que em processos desta natureza as pessoas conformam, em


tempo real, na interação, suas instâncias válidas criando funções coletivas da rede de
relações e não funções hierárquicas de poder regidos pela lógica do comando-
execução.

1 Que era o caso da AMESA e como é, também, de qualquer instituição pública ou privada, academias de
ensino, etc.
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Christopher Alexander se dedicou a análise de sistemas complexos, tema pelo qual nos interessamos desde
a experiência com os Alagados, quando “os problemas apareceram”, nos revelando suas complexas tramas
de relacionamentos fortuitos o que nos obrigou a rever o plano. Ele analisava relações possíveis de
causações entre variáveis arquitetônicas. Seus diagramas, entretanto, servem de exemplo para “a ficha cair”,
quando o objeto de estudo são as formas como as pessoas se organizam socialmente, associadas aos seus
modos políticos de regulação de seus conflitos. Ou seja, as formas como elas se conectam e,
consequentemente, interagem. Neste sentido podemos dizer que os traços representam as conectividades
possíveis entre pessoas, por onde circulam os seus fluxos de interatividade e os pontos representam as
pessoas interagindo. O entroncamento desses fluxos. No diagrama 03 foram representadas somente algumas
conexões, senão ele ficaria ilegível, tal a quantidade de traços possíveis já que qualquer pessoa pode
interagir com todas as outras, livremente, sem intermediações.
O diagrama 01, representa um conjunto de pessoas não interconectadas, logo, não interativas, o que,
inclusive para Alexander, não espelha o que acontece na realidade, em todas as suas instâncias. Ou seja,
embora ali exista um conjunto de pessoas não existe conectividade e consequentemente, interatividade entre
elas. No diagrama 02 as pessoas se interconectam de forma semirreticular. Ou seja, de forma
descentralizada, (ou participativa), onde as decisões são tomadas por muitos e em grupos distintos
conforme uma graduação hierárquica. No diagrama 03, as pessoas se relacionam de forma horizontal,
distribuída, com alto grau conectividade e interatividade onde todos interagem com todos, sem
intermediações e sem centro. Embora para Alexander os sistemas reais também não funcionem
assim, entretanto, a experiência dos Alagados nos mostrou que a única forma possível de
representar o seu emaranhado de relacionamentos sociais só poderia ser através deste diagrama.
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Começamos a compreender, portanto, que a ocupação dos Alagados foi conformada


desta forma (fig.03), e que esses processos são distintos e irredutíveis dos processos
de construção da realidade, conformados em estruturas descentralizadas (fig.02), tal
como havíamos planejado, onde as instâncias válidas são criadas por colégios
decisórios, antes da interação, em estruturas hierárquicas, verticais, como
conhecimento produzido para atender aos problemas enfrentados pelas demandas,
posteriormente convocadas para participar das suas implementações.
Como escreveu John Turner:
“O “alagado” brasileiro [...] ilustra o que quero dizer. É um
sistema em evolução no qual a vida das pessoas que
constroem e moram nele, suas técnicas construtivas, e a
forma e usos do que eles constroem, mudam todos juntos
em formas de apoio mútuo” (1974).

É este o processo que constrói uma tecnologia social, cujo entendimento (significado)
surge na interação entre os vivenciadores do campo social, por ser um atributo da forma
como eles se organizam e nada mais. Foi isso que a experiência dos Alagados nos
ensinou e que desconhecíamos: trata-se de um processo de formas de organização e
modos de regulação de conflitos intrínseco à fenomenologia das redes horizontais de
relacionamentos sociais, fenomenologia esta, que ainda não entendemos seus
mecanismos de funcionamento. No caso dos Alagados foram os processos produzidos
nos seus singulares emaranhados de relacionamentos fortuitos fortemente tramados e
as complexas e únicas configurações sociais e espaciais daí resultantes (sua escala
urbana e arquitetônica, seus sistemas de mobilidade e espaços comuns, suas técnicas
construtivas, suas tipologias habitacionais, seus espaços de memorias e história
resultantes, seus ambientes comportamentais, suas apropriações espaciais, seus laços
de relações de vizinhança, suas tramas de compartilhamento de ideias e desejos, seus
modos cooperativos e não regulamentados de negociações, etc.), funções das suas
condições sociais/culturais/econômicas e da forma como se relacionam, operadas por
um corpo diversificado de vivenciadores daquela realidade.
Não se trata, como imaginávamos, de procedimentos metodológicos e tecnológicos que
possam ser oferecidos para atender demandas sociais, campo de produção de
conhecimentos capazes de abrir caminhos para as pessoas trilharem na busca de
alcançar os fins idealizados.
Também, não se trata de instrumentos (ferramentas), que são criados para as pessoas
interagirem, inclusive em redes horizontais de relacionamentos sociais, se não forem
utilizados como instrumentos de interação para construção dessas redes.
A mudança do plano executivo de melhoramentos urbano e habitacional dos Alagados
significou uma mudança de paradigma e de prática que procurou potencializar, com o
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nosso conhecimento científico, os processos coletivos conformados de-baixo-para-


cima, em rede horizontal, responsáveis pelas suas configurações urbanas e
habitacionais. Significou, assim, contribuir para potencializar sua tecnologia social.
Acreditando, também, que a crença dos processos interativos de construção da
realidade é: na opinião de todos (doxa); de que todas opiniões são válidas; de que todos
têm o direito de proferi-las, e de que todos têm capacidade de gerir suas próprias vidas.

REFERÊNCIAS

ALEXANDER, Christopher, De la Syntèse de la Forme, essai. Paris: Dunod,


1976.
ALEXANDER, Christopher “A City is Not a Tree”, in Architecture Fórum, abril de
1965.
CARVALHO, Eduardo Teixeira de. Os Alagados da Bahia. Intervenções públicas
e apropriação informal do espaço urbano. 2002. 307 f. Dissertação (Mestrado
em arquitetura e urbanismo) – Universidade Federal da Bahia, Salvador.
TURNER, John. “The fits and misfitsof people´s housing – The alagado in Brasil:
an ecosystem. The John Turner Archive: Freedom to Build, RIBA, Journal, n0.2,
February 1974. (Artigo gentilmente cedido pela Professora Dra.
Márcia Sant´Anna).

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