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Desmatamento e a nova pandemia

Como sabemos muito bem, patógenos para os quais humanos não têm
imunidade podem desencadear uma pandemia global. Nosso apetite por carne
aumenta esses riscos através da degradação ambiental.

Todos conhecemos a clássica cena de cinema ocidental: cowboys passam por


um rebanho de vacas, movendo-as através da pradaria aberta infindável com
montanhas cobertas de neve brilhando à distância. Mas esses dias já se foram
há muito tempo. Poucas pradarias disponíveis para pastagem restam ao redor
do mundo; assim, aqueles que querem criar vacas ou outros animais de grande
porte devem adaptar outro tipo de habitat. Como cerca de um terço da
cobertura terrestre do planeta são florestas, isso acaba sendo, frequentemente,
um empecilho na obtenção de mais áreas para pastagem. Sabemos que o
desmatamento causa graves danos ambientas, mas há outro lado sombrio: no
processo de desmatamento de florestas, humanos e animais domésticos
encontram insetos e animais selvagens que carregam patógenos até então
desconhecidos. Pense no SARS-CoV-2, a causa da pandemia atual.

COVID-19, a doença causada pelo SARS-CoV-2, foi rastreada até um


“mercado úmido” de Huanan, em Wuhan (China). O coronavírus SARS-CoV-2
provavelmente passou de animal para humano nesse contexto, e, embora não
tenhamos 100% de certeza de qual animal, ou partes de animais, faziam parte
dessa cadeia, evidências apontam para morcegos e um mamífero escamoso
chamado pangolim. Mamífero mais comercializado ilegalmente no mundo, os
pangolins são valorizados tanto por sua carne, quanto pelas supostas (e não
comprovadas) propriedades medicinais de suas escamas. O surto de
coronavírus SARS de 2002 tomou um caminho semelhante, movendo-se de
morcegos-ferradura para civetas e, em seguida, para humanos.

Uma doença que se move entre animais e humanos é chamada de “zoonose”.


No caso de novas, ou “novelas”, zoonoses, não temos imunidade prévia, então
elas podem representar uma ameaça significativa à saúde. Mercados úmidos
oferecem aos vírus zoonóticos uma oportunidade privilegiada de saltar entre
espécies por causa da proximidade de animais vivos, incluindo a vida
selvagem. Para infectar um novo hospedeiro, um vírus deve ser capaz de
invadi-lo fisicamente e encontrar uma maneira de entrar em seu maquinário
celular para se replicar. De acordo com os Centros de Controle de Doenças
(CDC) dos EUA, estima-se que 60% das doenças infecciosas, entre elas a
raiva, a doença de Lyme e a infecção pelo vírus do Nilo Ocidental, vieram
originalmente de animais; e, talvez o mais sinistro, três quartos dos novos, ou
emergentes, patógenos infecciosos são zoonóticos.
Os mosquitos são um dos culpados mais conhecidos na transmissão de
doenças. Derrubar árvores altas em uma floresta ou selva abre o chão das
matas à luz solar e interrompe os córregos. Isso permite o crescimento de
larvas nas poças de água. Pesquisadores estão usando uma variedade de
modelos e tecnologias de vigilância para determinar se, e como, o
desmatamento florestar se traduz em mudanças na incidência de malária. Um
desses estudos, em Bornéu, descobriu que novas infecções por malária
seguiram o padrão de desmatamento de árvores para plantações de óleo de
palma, quando os humanos começaram a trabalhar nas bordas das áreas
recém-desmatadas, onde os mosquitos prosperaram. Casos de malária
aumentaram em partes da África, Ásia e América do Sul, onde a floresta
tropical foi desmatada, tipicamente para uso agrícola. E, nos anos em que a
terra é mais desmatada, há picos de leptospirose e dengue também.

Então, há morcegos. Foram necessários anos de pesquisa para descobrir seu


papel no surto do vírus SARS de 2002-2003. E eles também podem estar
relacionados com o Ebola. Mas temos ainda mais a temer do vírus Nipah, uma
doença menos conhecida que também se origina em morcegos. O vírus Nipah
surgiu, pela primeira vez, no final da década de 1990 na Malásia. É uma
doença neurológica sem cura conhecida, que matou 40% de suas vítimas.
Áreas onde florestas tropicais foram desmatadas para dar lugar a fazendas de
suínos tornaram-se o marco zero para o surto: tanto os porcos quanto os
morcegos comiam mangas em pomares próximos, permitindo a transmissão de
Nipah para porcos e, depois, para humanos. Isso serve como uma boa
ilustração de como a doença zoonótica surge de atividades que colocam
humanos e animais domésticos (ou criados para servirem como comida) em
contato com a vida selvagem.

Podemos encontrar outro exemplo na varíola. Esse patógeno causou algumas


das primeiras pragas. Provavelmente surgiu do desmatamento florestal na Ásia
tropical, quando a criação de animais estava começando. A mudança no uso
da terra leva os humanos para áreas onde os animais selvagens vivem. O
desmatamento fragmenta os habitats para que a floresta se intercale com
terras agrícolas e assentamentos humanos. Esse “efeito de borda” promove
interações entre patógenos e vetores, como insetos e hospedeiros. As áreas
desmatadas, portanto, podem se tornar o lar de espécies domésticas, como
porcos selvagens, cabras, ratazanas, camundongos, cães e gatos, que se
tornam potenciais reservatórios de patógenos, fazendo com que vetores de
doenças se espalhem. Criar animais de fazenda nesses habitats fragmentados,
onde eles se misturam com animais selvagens, e, sem seguida, trazê-los para
mercados, cria um ambiente ideal para zoonoses.

De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a


Agricultura (FAO), 26% da superfície terrestre do planeta é usada como pasto
de animais criados para a alimentação. Um terço da terra arável do planeta
cultiva grãos para alimentar animais. Todos os anos, perdemos de 2 a 3% das
florestas da Terra, a maioria em países tropicais. A destruição de uma floresta
geralmente começa com a construção de estradas. Essas novas estradas
permitem a exploração madeireira e a mineração no interior da floresta. Em
seguida, os agricultores comerciais ou de subsistência usam as novas estradas
como pontos de acesso a novas terras, que eles derrubam para cultivar
plantações. Então, os agricultores seguem em frente e os fazendeiros se
mudam, pelo menos por mais alguns anos até que a terra não tenha mais a
oferecer. Nos últimos 25 anos, árvores foram retiradas de uma área do
tamanho da Índia. Como o risco de investimento é baixo, mesmo terras de má
qualidade, que não são muito produtivas, produzem vacas que podem ser
muito rentáveis.

De fato, na América do Sul, pesquisadores estimam que 71% da derrubada de


florestas tropicais foi feita para criar fazendas de gado. Enquanto a maior parte
da floresta recém-desmatada se torna pasto, há um outro resultado muitas
vezes negligenciado do desmatamento florestal da região. Parte da terra
desmatada se tornou cultivo de soja para alimentar os animais. A soja é, hoje,
a maior monocultura da América do Sul. Nas últimas duas décadas, o comércio
de soja tornou-se um dos maiores fluxos internacionais de commodities do
mundo. A China está usando a soja para expandir drasticamente as operações
intensivas de alimentação animal. Outros países asiáticos seguiram o exemplo,
aproveitando a vantagem sobre a disponibilidade de terras da América do Sul.

A pandemia de COVID-19 destaca os perigos de misturar humanos, animais


domésticos e animais selvagens. Dada a forma como os patógenos podem
sofrer mutações, florestas e selvas podem dar origem a um número
potencialmente ilimitado de doenças para as quais não temos imunidade.
Nosso melhor curso de ação é ficar longe dessas áreas. Mas, dado que o
consumo de carne está em uma trajetória ascendente e mais terra é necessária
para atender a essa demanda, o curso de ação mais prudente não é o mais
provável.

O aumento populacional, juntamente com o aumento da renda, aumentará o


consumo global de carne per capita de 43 quilos para cerca de 76 quilos, até o
meio do século. Isso representa um aumento de 76% em relação aos níveis
atuais. Cerca de um terço do consumo atual de carne é de carne suína, outro
terço é frango, 20% é bovina e o restante são ovinos, caprinos e outros
animais. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que vamos dobrar a
quantidade de frango que comemos e aumentar nosso consumo de carne
bovina e suína em 69% e 42%, respectivamente. E, para grande parte das
populações mundiais, a carne é mais barata hoje do que jamais foi – em
relação às suas rendas. De fato, o crescimento da demanda é maior nas
nações de renda média, enquanto estável ou em declínio em países de renda
alta. A China, em particular, com sua classe média em rápida expansão e 1,4
bilhão de cidadãos, é o principal motor dessas tendências.

No entanto, há uma boa notícia aqui. Uma vez que é o comportamento humano
que impulsiona o surgimento e a propagação de zoonoses, está ao nosso
alcance mudar isso. Se reduzirmos a demanda por carne, diminuímos a
pressão para trazer mais terra para a produção de pastagens e cultivos para
ração. Isso pode ajudar a reduzir os riscos de transmissão de doenças
zoonóticas. É aqui que os defensores dos animais podem desempenhar um
importante papel. Há estudos mostrando que a saúde é uma forte motivação
para aumentar a adoção de uma dieta mais baseada em plantas.
Tradicionalmente, isso significa coisas como controle de peso, colesterol no
sangue, hipertensão e assim por diante. Ter a saúde como motivação pode,
agora, abranger a redução dos riscos de pandemias de doenças zoonóticas.
Precisamos passar a mensagem sobre a ligação entre o risco pandêmico e o
consumo de carne. Seja com campanhas como Segunda Sem Carne ou de
conscientização vegana, como o Desafio dos Leites Vegetais, nossa
mensagem agora é mais importante do que nunca.

Originalmente publicado em Faunalytics.

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