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A ausência que precede presença:

Elementos do vazio no Caminho do Peabiru


Rayane Lacerda

No primeiro trabalho feito para a disciplina, escrevi que o caminho do Peabiru


seria uma ausência, pois estamos estudando-o por meio de textos e pesquisas que falam
sobre, narram os mitos, ao mesmo tempo em que não estamos trilhando-o literalmente.
Com as aulas e os debates que se sucederam, passei a questionar os elementos que formam
essa ausência, já que ausência não significa um vácuo, mas um espaço vazio que também
contém componentes que o constituem. Para seguir com a metáfora bachelardiana
mencionada no primeiro trabalho (BACHELARD, 1989), o momento após a queima da
fogueira compreende um chão telúrico que acabou de receber o calor do fogo, fuligens
que emergem após a queima e marcas escuras de um solo que incendiou por determinado
tempo. Nesse contexto, esses elementos são rastros deixados no vazio, formando-o.
Então, pergunto: quais são os rastros que concebem e organizam a ausência do caminho
do Peabiru? É possível falar de uma ausência abundante e que não pressupõe um vácuo
de sentido?

A partir de leituras sobre o sagrado e as suas reverberações atuais, com o auxílio


de autores como Mircea Eliade (2008) e Jean-Jacques Wunenburger (1981), penso sobre
as possibilidades de o sagrado ser o elemento principal que abarca e contextualiza a
ausência do Peabiru. Afinal, o Peabiru seria, concomitantemente, um caminho físico e
metafórico, pois orientava buscas míticas dos povos que por ali trilhavam. Essas buscas
de ordem mítica traziam consigo o elemento sagrado, o elemento da pequenez e do “ser
criatura”, como Ana Taís Martins sempre nos lembra ao indicar que o sagrado não se
relaciona, necessariamente, com a religião, pois ele está mais próximo do sentimento da
finitude humana1. Talvez, os elementos do vazio sejam, hoje, rastros do antigo olhar
sacralizado dos povos originários em relação ao caminho.

1
Ana Taís Martins, em seu artigo sobre a sacralização, dessacralização e ressacralização na mídia (2019),
também nos diz que o sagrado pode ser considerado a primeira construção do imaginário, pois a consciência
da finitude nos leva ao medo da morte e do tempo que passa, sendo ambos elementos que auxiliam na
construção das respostas imaginárias. Do mesmo modo, tais respostas imaginárias são formadas por
imagens e símbolos que, por sua vez, são organizadas pela narrativa mítica. Pensando nesses termos, os
mitos antigos estudados em aula têm, também eles, a presença do simbólico e do sagrado.
Nessa esteira, Wunenburger (1989, p. 3, tradução nossa) indica que “o sagrado
evoca uma manifestação de um invisível absoluto e supra-humano, o divino”2. Essa ideia
de manifestação e evocação são palavras-chave para se compreender os elementos da
ausência no caminho do Peabiru. Ainda hoje, é possível encontrar a evocação de um “ser-
criatura”, tornando a ausência presente, mas de outras maneiras.

Figura 1 - Montanhas do Vale de Colca, primeiro dia de caminhada


Fonte: arquivo pessoal.
Em 2017, quando estive no Peru, lembro de entrar em contato com esse
sentimento. Ao trilhar o Vale de Colca, um cânion composto por montanhas com altas
subidas e escorregadias descidas, recordo-me de ter essa exata sensação: algo maior do
que eu, algo que me remetia à ínfima e breve experiência humana. Assim como Ana Taís
Martins, Eliade (2008, p. 16) também fala sobre o sagrado enquanto “[...] o sentimento
de sua profunda nulidade, o sentimento de não ser mais do que criatura”. No primeiro dia,
após caminhar por dois turnos e chegar num camping para passar a noite, sentei-me na
grama e fiquei olhando a montanha a minha frente por horas, pensando sobre como eu
teria sido capaz de descê-la, pois eu me percebi tão pequena e ela, ao contrário, tão
imensa. É como se a força corporal que empreendi para conseguir finalizar o percurso
fosse insignificante diante da potência daquela matéria, daquele outro ser da natureza que
se colocava na minha frente. A minha força precisou ser encontrada e dinamizada durante
a caminhada, mas a montanha, em contrapartida, trazia uma força por si só, intrínseca,

2
No original em francês: “Le sacré evoque une manifestation d’un absolu invisible et supra-humain, le
divin”.
sem esforço algum. Eu estava lá, no meio de montanhas centenas de vezes maiores e mais
potentes do que eu, com apenas algumas pessoas que havia conhecido durante a viagem
e que, por isso, me eram estranhas. Não tinha amigos e familiares, conexão com a internet
ou sequer um telefone celular no meu bolso. Cheguei a pensar, como uma realidade
possível, que morreria sem falar com a minha mãe uma última vez. Eu e as montanhas,
as montanhas e eu, apenas. Em outras palavras, era eu e uma imensidão tenebrosa, mas,
ao mesmo tempo, bonita.

Não estou dizendo que essa minha experiência é igual (ou sequer próxima) ao
contato com o sagrado nos tempos míticos dos indígenas que trilhavam o caminho do
Peabiru. Entretanto, experiências que nos colocam num lugar questionador e imaginativo,
num lugar que nos retira do centro da narrativa para, então, compreender a autonomia da
natureza enquanto um organismo vivo, pode ser uma via possível para acessar elementos
do Peabiru hoje. Isso não nos fará compreender a experiência indígena antiga, mas,
possivelmente, nos colocará mais próximos dos elementos que compõem a ausência. Se
consideramos as palavras de Eliade (2008, p. 36), torna-se possível encontrar a abertura
do transcendente como uma bifurcação necessária para se estudar e compreender as
facetas do Peabiru, pois “[...] uma vez perdido o contato com o transcendente, a existência
do mundo já não é possível”.

Figura 2 - A pequenez
Fonte: arquivo pessoal.
Do mesmo modo, ainda com o auxílio dos estudos de Eliade (2008) sobre o
sagrado e o profano, é também a irrupção um sentido que precisa estar presente nas
formas de relação com o mundo. Irrupção, nesse termo, pois é algo que nos toma, nos
provoca, nos propõe uma valorização do mundo diferente daquela com a qual estamos
usualmente acostumados – saímos do profano e adentramos o sagrado, nos distanciamos
do caos e acessamos um espaço-tempo miticamente organizado. A ideia do “ser-criatura”,
aqui, pode assumir a roupagem do medo da morte, pois é essa percepção do limite que
nos coloca em estado de formigamento, de abertura necessária ao sensível.

No meu caso, senti medo durante todo o trajeto que percorri no centro do Vale de
Colca. Primeiro, pelo fato de que a montanha era bastante escorregadia e, a cada passo
dado, eu percebia pequenas pedras caindo em direção ao escuro, ao limbo que era a única
imagem possível em meio a tanta neblina. Quando a pedra caía, notava meu pé deslizar
levemente. E se eu caísse, em algum momento, junto com as pedras? E se eu fosse
empurrada ao limbo, ao invisível que se mostrava tão tenebroso?

Figura 3 - Tudo o que se via era a neblina


Fonte: arquivo pessoal.

Além disso, o terceiro dia de trilha também foi marcante em termos de contato
com o medo da morte. Seria o último dia de caminhada, mas dessa vez se tratava de subir
uma montanha, ao invés de descê-la, sendo que este caminho me levaria a um pequeno
vilarejo onde seria possível encontrar um transporte de volta para a cidade principal – no
caso, o município de Arequipa. A caminhada empreendida até então havia ultrapassado
o limite que meu corpo podia aguentar, mas eu também não podia perder o ritmo do grupo
nesse terceiro dia, com o intuito de não ficar sozinha, perdida em meio ao Vale. Então,
uma alternativa bastante peculiar me foi sugerida: fazer o trajeto de mula. Sim, uma mula,
que seria guiada por um dos rapazes peruanos enquanto eu estaria em cima. E foi
exatamente o que eu fiz, isso porque não tinha ideia do quão arriscado seria. A mula, ao
fazer uma feição corporal para subir a montanha íngreme e cheia de curvas, jogava o seu
peso todo para trás – algo semelhante a um cavalo relinchando. A cada movimento, meu
corpo era jogado para trás junto ao dela, enquanto as suas patas também deslizavam no
chão escorregadio. Me vi presa no mesmo medo do primeiro dia: a montanha, insistente
que só, queria me engolir novamente. O cenário era muito semelhante e parecia de fato
se repetir, numa teimosia que me causava medo. A neblina, as pedras que caíam em uma
escuridão imperceptível, o caminho estreito, a implicação do corpo etc. O medo da morte
estava presente, durante todo o percurso, e eu contava os segundos para chegar ao topo
da montanha.

Figura 4 - Vista do Vale após a finalização do percurso


Fonte: arquivo pessoal.

Sinto-me insegura em afirmar, por diferentes argumentos, que essa experiência no


Peru tem relação direta com o sagrado, ou que tampouco tem relação com o sagrado das
sociedades arcaicas. Minha intenção é tão e somente narrar aspectos de uma vivência que
me ajudam a compreender o sagrado teoricamente, casando teoria e experiência. Isso,
consequentemente, me permite conhecer e traçar compreensões sobre o caminho do
Peabiru, já que ele mantinha o sagrado atualizado e sempre em contato com as sociedades
ameríndias e pré-incaicas. Barros (2019, p. 149) nos diz, então, que

Aceitando-se a premissa eliadiana do sagrado como intrínseco à condição


antropológica, geradora dos valores organizadores da existência, é de se
perguntar que formas toma esse sagrado à altura do processo civilizatório em
que a liberdade é associada ao esclarecimento intelectual capaz de tudo
explicar, negando, portanto, o mistério que o sagrado implica.

É possível questionar se a relação com a experiência da finitude, conforme


descrevi acima, pode ser uma via de acesso ao sagrado na atualidade ou se se mantém,
ainda, num espaço inacessível nos tempos atuais. Penso que prestar atenção nesse tipo de
experiência, valorizá-la enquanto forma também inteligível de acesso ao conhecimento,
afastando-se da razão exacerbada e do pensamento clarividente como únicas maneiras
validadas culturalmente, pode ser uma saída, uma bifurcação para retomarmos um contato
mais profundo e mítico com a própria natureza. Parece simples indicar a necessidade de
se prestar atenção aos sentimentos irruptivos, mas, justamente por isso, se trata de uma
escolha bastante complexa: retirar a primazia dos conhecimentos exclusivamente
racionais e ditos científicos para, assim, dar espaço ao mito, ao sagrado e ao simbólico
que guiam o trajeto humano.

Nesse sentido, falar de uma ausência que pressupõe a vacuidade, sem considerar
os elementos responsáveis por constituir esse vazio, seria uma proximidade com uma
organização caótica, espaço em que o sagrado não é colocado como um modo de ser no
mundo, conforme nos indica Eliade. Em contraponto, se abrimos espaço ao sensível como
um uma porta ao sagrado, ao sentimento de que não somos os donos da vida, mas sim
uma breve parte dela, talvez possamos compreender, profundamente, sobre o que se trata
o caminho do Peabiru. A ausência do Peabiru é abundante, pois é uma dessas trilhas
possíveis de acesso ao conhecimento numinoso e divino, sendo o sagrado o principal
elemento desse vazio, composto por outros sentidos como o medo da morte, a noção de
finitude da vida, a percepção de imensidão da natureza e assim por diante. Tais elementos
são rastros deixados pelo Peabiru antigo, atualizando, pelo estudo teórico e pelas
experiências vividas profundamente, o Peabiru de hoje.

Referências:

BACHELARD, Gaston. Lautrémont. Lisboa: Litoral Edições, 1989.


BARROS, Ana Taís Martins Portanova. O que é o sagrado no Instagram? Sacralização,
dessacralização e ressacralização na cultura midiática. Intercom, São Paulo, v. 42, n. 1, jan./abr.
2019, p. 131-151.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes,
2008.
WUNENBUERGER, Jean-Jacques. Le sacré. Paris: Presses Universitaires de France, 1981.

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