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Ana Taís Martins, em seu artigo sobre a sacralização, dessacralização e ressacralização na mídia (2019),
também nos diz que o sagrado pode ser considerado a primeira construção do imaginário, pois a consciência
da finitude nos leva ao medo da morte e do tempo que passa, sendo ambos elementos que auxiliam na
construção das respostas imaginárias. Do mesmo modo, tais respostas imaginárias são formadas por
imagens e símbolos que, por sua vez, são organizadas pela narrativa mítica. Pensando nesses termos, os
mitos antigos estudados em aula têm, também eles, a presença do simbólico e do sagrado.
Nessa esteira, Wunenburger (1989, p. 3, tradução nossa) indica que “o sagrado
evoca uma manifestação de um invisível absoluto e supra-humano, o divino”2. Essa ideia
de manifestação e evocação são palavras-chave para se compreender os elementos da
ausência no caminho do Peabiru. Ainda hoje, é possível encontrar a evocação de um “ser-
criatura”, tornando a ausência presente, mas de outras maneiras.
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No original em francês: “Le sacré evoque une manifestation d’un absolu invisible et supra-humain, le
divin”.
sem esforço algum. Eu estava lá, no meio de montanhas centenas de vezes maiores e mais
potentes do que eu, com apenas algumas pessoas que havia conhecido durante a viagem
e que, por isso, me eram estranhas. Não tinha amigos e familiares, conexão com a internet
ou sequer um telefone celular no meu bolso. Cheguei a pensar, como uma realidade
possível, que morreria sem falar com a minha mãe uma última vez. Eu e as montanhas,
as montanhas e eu, apenas. Em outras palavras, era eu e uma imensidão tenebrosa, mas,
ao mesmo tempo, bonita.
Não estou dizendo que essa minha experiência é igual (ou sequer próxima) ao
contato com o sagrado nos tempos míticos dos indígenas que trilhavam o caminho do
Peabiru. Entretanto, experiências que nos colocam num lugar questionador e imaginativo,
num lugar que nos retira do centro da narrativa para, então, compreender a autonomia da
natureza enquanto um organismo vivo, pode ser uma via possível para acessar elementos
do Peabiru hoje. Isso não nos fará compreender a experiência indígena antiga, mas,
possivelmente, nos colocará mais próximos dos elementos que compõem a ausência. Se
consideramos as palavras de Eliade (2008, p. 36), torna-se possível encontrar a abertura
do transcendente como uma bifurcação necessária para se estudar e compreender as
facetas do Peabiru, pois “[...] uma vez perdido o contato com o transcendente, a existência
do mundo já não é possível”.
Figura 2 - A pequenez
Fonte: arquivo pessoal.
Do mesmo modo, ainda com o auxílio dos estudos de Eliade (2008) sobre o
sagrado e o profano, é também a irrupção um sentido que precisa estar presente nas
formas de relação com o mundo. Irrupção, nesse termo, pois é algo que nos toma, nos
provoca, nos propõe uma valorização do mundo diferente daquela com a qual estamos
usualmente acostumados – saímos do profano e adentramos o sagrado, nos distanciamos
do caos e acessamos um espaço-tempo miticamente organizado. A ideia do “ser-criatura”,
aqui, pode assumir a roupagem do medo da morte, pois é essa percepção do limite que
nos coloca em estado de formigamento, de abertura necessária ao sensível.
No meu caso, senti medo durante todo o trajeto que percorri no centro do Vale de
Colca. Primeiro, pelo fato de que a montanha era bastante escorregadia e, a cada passo
dado, eu percebia pequenas pedras caindo em direção ao escuro, ao limbo que era a única
imagem possível em meio a tanta neblina. Quando a pedra caía, notava meu pé deslizar
levemente. E se eu caísse, em algum momento, junto com as pedras? E se eu fosse
empurrada ao limbo, ao invisível que se mostrava tão tenebroso?
Além disso, o terceiro dia de trilha também foi marcante em termos de contato
com o medo da morte. Seria o último dia de caminhada, mas dessa vez se tratava de subir
uma montanha, ao invés de descê-la, sendo que este caminho me levaria a um pequeno
vilarejo onde seria possível encontrar um transporte de volta para a cidade principal – no
caso, o município de Arequipa. A caminhada empreendida até então havia ultrapassado
o limite que meu corpo podia aguentar, mas eu também não podia perder o ritmo do grupo
nesse terceiro dia, com o intuito de não ficar sozinha, perdida em meio ao Vale. Então,
uma alternativa bastante peculiar me foi sugerida: fazer o trajeto de mula. Sim, uma mula,
que seria guiada por um dos rapazes peruanos enquanto eu estaria em cima. E foi
exatamente o que eu fiz, isso porque não tinha ideia do quão arriscado seria. A mula, ao
fazer uma feição corporal para subir a montanha íngreme e cheia de curvas, jogava o seu
peso todo para trás – algo semelhante a um cavalo relinchando. A cada movimento, meu
corpo era jogado para trás junto ao dela, enquanto as suas patas também deslizavam no
chão escorregadio. Me vi presa no mesmo medo do primeiro dia: a montanha, insistente
que só, queria me engolir novamente. O cenário era muito semelhante e parecia de fato
se repetir, numa teimosia que me causava medo. A neblina, as pedras que caíam em uma
escuridão imperceptível, o caminho estreito, a implicação do corpo etc. O medo da morte
estava presente, durante todo o percurso, e eu contava os segundos para chegar ao topo
da montanha.
Nesse sentido, falar de uma ausência que pressupõe a vacuidade, sem considerar
os elementos responsáveis por constituir esse vazio, seria uma proximidade com uma
organização caótica, espaço em que o sagrado não é colocado como um modo de ser no
mundo, conforme nos indica Eliade. Em contraponto, se abrimos espaço ao sensível como
um uma porta ao sagrado, ao sentimento de que não somos os donos da vida, mas sim
uma breve parte dela, talvez possamos compreender, profundamente, sobre o que se trata
o caminho do Peabiru. A ausência do Peabiru é abundante, pois é uma dessas trilhas
possíveis de acesso ao conhecimento numinoso e divino, sendo o sagrado o principal
elemento desse vazio, composto por outros sentidos como o medo da morte, a noção de
finitude da vida, a percepção de imensidão da natureza e assim por diante. Tais elementos
são rastros deixados pelo Peabiru antigo, atualizando, pelo estudo teórico e pelas
experiências vividas profundamente, o Peabiru de hoje.
Referências: