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JACQUES VALIER

BREVE HISTÓRIA DO PENSAMENTO


ECONÔMICO: DE ARISTÓTELES AOS
NOSSOS DIAS

Éditions Flammarion, Paris, 2005.


ISBN : 978-2-0812-2900-6
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Sinopse da capa:
Os debates que movimentam a vida econômica contemporânea
não podem ser entendidos de modo independente da forma que
assumiram no passado. Por exemplo, como apreender as
controvérsias atuais sobre o liberalismo econômico se ignorarmos
que a questão do intervencionismo do Estado dividia os fisiocratas
e os mercantilistas de outrora? Que essa questão iria opor mais
tarde os socialistas utópicos e Marx contra as teses de Adam Smith
e Ricardo e que, nos anos 1930, iria se refletir na nova ordem
keynesiana? Quando evocamos o comunismo, sabemos que em
sua época Platão defendia a propriedade comum, enquanto
Aristóteles era favorável à propriedade privada?
A história do pensamento econômico é uma necessidade, salvo se
imaginarmos que a economia política possa se reduzir, como é
tendência hoje em dia, a modelos matemáticos cujos fundamentos
ideológicos e teóricos permanecem velados.
O autor faz a aposta de uma obra curta. Uma história do
pensamento econômico que não se pretende exaustiva, mas que
permite a cada um adquirir uma visão conjunta das grandes
correntes de pensamento e a compreensão das filiações, das
oposições, dos avanços e recuos que permeiam essa história.
(Flammarion)
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SUMÁRIO
Introdução
Capítulo 1
As questões morais e sociais frente ao surgimento e desenvolvimento da
economia mercantil
Da Grécia antiga à Europa da Idade média

Capítulo 2
O nascimento do capitalismo na Europa: do pragmatismo mercantil ao
surgimento do liberalismo
Do século XVI ao fim do século XVIII

Capítulo 3
A revolução industrial e o desenvolvimento da economia política clássica
Fim do século XVIII – início do século XIX

Capítulo 4
A crítica socialista do capitalismo e da economia política clássica
Século XIX

Capítulo 5
A economia política neoclássica
Fim do século XIX – início do século XX

Capítulo 6
A ruptura keynesiana e o desenvolvimento do pensamento socialista
Início do século XX – Segunda Guerra mundial

Capítulo 7
As grandes correntes do pensamento contemporâneo
Da Segunda Guerra mundial aos dias nossos dias
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INTRODUÇÃO
Estudar história do pensamento econômico, as condições de seu
nascimento e desenvolvimento esclarecem uma característica
essencial da economia política. A economia política e as questões
as quais ela se esforça em responder nasceram com a produção
mercantil. Quando surge a produção para um mercado, quando as
bruscas flutuações de preços causam a ruína de inúmeros
produtores, quando o dinheiro necessário para o desenvolvimento
da produção mercantil dissolve as antigas relações sociais, as
primeiras questões de natureza econômica aparecem. Portanto,
não é por acaso que foi na Grécia antiga e na China, onde a
produção mercantil e a economia monetária parecem ter
progredido primeiro, que surge o pensamento econômico. Da
mesma forma, constata-se que a economia política apresenta um
extraordinário desenvolvimento na Europa ocidental a partir do
século XVII, isto é, exatamente no momento em que a produção
capitalista se desenvolve fortemente e torna-se predominante.
É justamente neste sentido que existe uma relação bem particular
entre o estado atual das idéias e das análises econômicas e as
histórias delas. Uma história que nos ajuda a compreender as
controvérsias atuais e o estágio atual da economia política.
Na Grécia antiga, Platão pronuncia-se a favor da propriedade
comum e da interdição de qualquer troca mercantil, enquanto
Aristóteles declara-se favorável à propriedade privada e, dentro de
certos limites, à troca mercantil, o que o leva à análise do valor e
da moeda. No século XVI os mercantilistas vangloriam os méritos
do sistema capitalista nascente, ao passo que Thomas More o
critica de forma loquaz e apresenta um projeto de sociedade
comunista. No fim do século XVIII e início do século XIX, Adam
Smith e David Ricardo apresentam uma teoria do valor e de
distribuição de renda, prenunciando a de Karl Marx, enquanto Jean
Baptiste Say defende uma teoria completamente distinta, que
anuncia a dos autores neoclássicos de fins do século XIX. Da mesma
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forma, a lei de oferta de Say pode ser considerada como


antecessora das análises neoclássicas do fim do século sobre a
impossibilidade das crises gerais de superprodução, enquanto as
análises de Thomas Robert Malthus sobre o papel da demanda
efetiva prenunciam a de John Maynard Keynes. Finalmente no
século XIX se opõem liberalismo econômico e socialismo. Desse
modo, poderíamos multiplicar os exemplos. Será que já está claro
que seria inútil imaginar que os debates atuais possam ser
compreendidos independentemente da forma como se revestiram
no passado? A história do pensamento econômico surge como
necessária.
Aqui não se apresenta essa história de forma exaustiva. Isso
significa que não apresentaremos todos os autores, que faremos
uma seleção que permita definir em termos gerais as principais
correntes, compreendendo melhor as filiações, as oposições, seus
avanços e recuos que permearam a história do pensamento
econômico.
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CAPÍTULO 1
As interrogações morais e sociais face ao surgimento e
crescimento da economia mercantil

Da Grécia antiga à Europa da Idade Média

Inicialmente vamos nos situar na Grécia antiga, que durante os


séculos VI e V AC conhecem um crescimento importante da
economia mercantil. Esse crescimento suscita interrogações de
ordem moral e social. Dominado pelos projetos de organização
social da Cidade apresentados por Platão, e depois Aristóteles,
abre-se um grande debate em Atenas nos séculos V e IV AC.
Veremos como Aristóteles foi levado neste debate a elaborar os
primeiros e muito importantes elementos de análise econômica.
Em seguida, nos situaremos na Europa da Idade Média onde, a
partir de fins do século XI e início do século XII, se produziu um
enorme crescimento mercantil seguido de um longo período de
regressão econômica. Esse crescimento obriga a Igreja a tomar
uma posição e será a São Tomás de Aquino que caberá a tarefa de
realizá-la no século XIII.

I - A Grécia Antiga: Aristóteles

A Partir dos séculos VI e V AC a Grécia conhece um importante


crescimento da economia mercantil. Ela passa de uma economia
natural, na qual a produção, a repartição das atividades do
trabalho e a distribuição da riqueza são organizadas
conscientemente e coletivamente no seio das pequenas
comunidades, tribos ou clãs, para uma economia mercantil em que
os produtores, independentes uns dos outros, produzem para
vender no mercado. As trocas mercantis tornam-se mais
intensivas. Elas se internacionalizam, com Atenas controlando toda
uma vasta zona comercial contornando o Mediterrâneo. Atenas
torna-se, guardadas as proporções, como a Inglaterra do século
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XIX. Ela se torna a oficina do mundo, importando matérias-primas


e depois produzindo e exportando produtos finais. O mesmo
ocorre com a prática de empréstimos a juros.
Essa evolução econômica é acompanhada de uma evolução social,
em particular do crescimento de novas classes sociais que se
enriquecem: comerciantes, mercadores, financistas que acumulam
dinheiro para satisfazer suas necessidades pessoais e não mais,
como os ricos de outrora, para participar da glória da Cidade. As
desigualdades sociais aprofundam-se entre essas novas classes
sociais ricas e uma plebe de desempregados nas cidades:
camponeses expulsos de suas terras pela concentração fundiária e
que, uma vez na cidade, têm dificuldade em encontrar trabalho,
realizado essencialmente pelos escravos. A oposição permanente
entre ricos e pobres perturba então profundamente o
funcionamento da cidade ateniense. À democracia triunfante
sucede os regimes ditatoriais.
Desse modo, do fim do século V e início do século IV AC, Atenas
conhece uma crise social e política grave. Ela é acompanhada por
uma crise moral e intelectual que se manifesta através do
questionamento das leis da Cidade, até então intangíveis, até
mesmo sagradas. Rui o equilíbrio notável que se estabeleceu no
século V, e que fizera de Atenas a mais opulente e criativa das
cidades.
É sobre esse pano de fundo que se desenvolve no século IV AC um
grande debate, político e também econômico, já que é a questão
da economia mercantil que é discutida, em particular o problema
de saber se é necessário encorajar seu desenvolvimento. Neste
debate distinguem-se Platão (428-348 AC) e Aristóteles (384-322
AC).
Ao contrário de Platão, seu mestre, para quem a construção de
uma Cidade justa e harmoniosa responde à necessidade de
assegurar a saúde da alma, Aristóteles prende-se à realização da
felicidade na terra. Espírito universal e científico, ele se interessa
tanto à física e às ciências naturais, quanto à economia e à política.
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Ele trata a economia principalmente em duas obras, Política e Ética


a Nicômaco.
Platão declarava-se favorável aos bens coletivos e à interdição do
uso do dinheiro. Em sua Cidade ideal tudo pertencia a todos.
Aristóteles opõe-se à idéia de bens coletivos, difícil de realizar, que
leva a conflitos muito freqüentes entre os cidadãos e os incitaria a
diminuir seus esforços. Ele defende a propriedade privada, em
nome da eficiência. Dessa forma ele aborda a questão da economia
mercantil e a da justiça. Seu espírito científico o conduz a tentar
compreender teoricamente os mecanismos íntimos de
funcionamento da economia mercantil. Ele faz então descobertas
muito importantes.

Sim a economia mercantil,


Não à acumulação

Aristóteles aceita a troca mercantil e a utilização da moeda que ela


compreende, mas dentro de certos limites.
Ele explica que certo tipo de troca, originada do aumento das
comunidades, da diversificação das necessidades e da
especialização dos produtores, tem por finalidade a satisfação de
uma necessidade. Troca-se coisas úteis por outras, nada mais do
que isso. Sobre este ponto Aristóteles faz uma distinção muito
importante, que encontramos sempre ao longo da história do
pensamento econômico, entre valor de uso e valor de troca. Um
sapato pode ser usado como valor de uso, quer dizer que satisfaz
uma necessidade, ou como valor de troca, quer dizer que ele serve
para se obter outro bem.
A partir do momento em que as trocas se desenvolvem, a
utilização da moeda é evidentemente muito útil. Sobre esse
aspecto Aristóteles frisa duas funções da moeda: ela exprime o
valor das mercadorias e é o instrumento de circulação das
mercadorias.
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Esse primeiro aspecto da troca mercantil, onde a finalidade é


simplesmente a satisfação de uma necessidade e onde o dinheiro é
apenas o instrumento de circulação das mercadorias, pode ser
simbolizado pelo esquema: M → D → M. A finalidade da operação
é a satisfação de uma necessidade: eu vendo um bem M, que não
desejo utilizar, contra dinheiro D, a fim de poder comprar outro
bem M que eu deseje utilizar.
Enquanto a troca mercantil e a utilização da moeda limitem-se a
obtenção de um valor de uso e a satisfazer uma necessidade,
Aristóteles a aceita. É o que ele chama “a arte natural de
aquisição”. Essa prática não coloca em questão a coesão da Cidade,
mas até mesmo permite encontros que unificam a Cidade. A
moeda possibilitando então a satisfação da necessidade que cada
um tem do outro.
No entanto, se Aristóteles aceita esse primeiro aspecto da
economia mercantil, ele recusa veementemente um segundo
aspecto, que ele denomina “crematística”, ou acumulação de
riqueza sem limites. De fato, como frisa Aristóteles, a troca
mercantil, cujo primeiro aspecto nós simbolizamos pelo esquema
M → D → M, origina uma segunda lógica que podemos simbolizar
pelo esquema D → M → D. Desta vez compra-se com dinheiro D
uma mercadoria M para poder revendê-la a um preço superior D’ a
D, isto é para revendê-la com lucro. O objetivo da operação
mudou, não é mais a obtenção de um valor de uso para satisfazer
uma necessidade, é a obtenção de lucro. Aqui a moeda não é mais
apenas um instrumento de circulação das mercadorias, como no
primeiro esquema M → D → M, é também um instrumento de
acumulação de riqueza, uma acumulação sem limite, frisa
Aristóteles, já que o dinheiro obtido pode novamente ser utilizado
em uma nova operação para obtenção de lucro.
Assim, Aristóteles introduz uma distinção fundamental entre os
dois tipos de circulação mercantil (M → D → M e D → M → D),
insistindo corretamente nas diferentes finalidades das duas
dimensões da troca mercantil.
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Depois Aristóteles vai mais longe. Ele condena com rigor essa
crematística, essa acumulação de riqueza sem limites, pois vê nela
uma força destrutiva da unidade e da coesão da Cidade. Essa
condenação dá lugar a uma análise magistral sobre os efeitos do
desenvolvimento da economia mercantil sobre a crise da cidade
grega.
Portanto, essa busca ilimitada de riqueza deve ser proscrita da
Cidade, da mesma forma que o empréstimo a juros, que podemos
simbolizar pelo esquema D → D’: o dinheiro servindo a produção
de soma maior de dinheiro. No empréstimo a juros, a moeda
sequer é um instrumento de circulação de mercadorias; ela só
serve para acumular riqueza. Portanto, segundo Aristóteles, ela é a
forma mais condenável de buscar essa riqueza.
Finalmente, sob a mesma ótica de condenação da acumulação
ilimitada de lucro, Aristóteles pronuncia-se contra a compra/venda
da força de trabalho. Portanto, ele recusa a extensão da economia
mercantil à força de trabalho, recusa evidentemente facilitada
porque a seus olhos o trabalho produtivo deve ser realizado pelos
escravos.

A justiça na troca

Aristóteles, em seu desejo de construção de uma cidade


harmoniosa, dá uma importância muito grande à justiça social.
Em primeiro lugar, ele se interessa pela justiça distributiva, isto é,
pela repartição das riquezas e das rendas. Ele hostiliza uma
distribuição igualitária, pois considera que uma justiça verdadeira
consiste em dar a cada um segundo seus méritos.
Depois ele trata da justiça comutativa, isto é, a justiça na troca:
cada um deve receber o quanto dá. Portanto, ele é levado a
pesquisar um critério objetivo para julgar a equivalência, a
igualdade na troca, e desenvolve reflexões sobre o valor das
mercadorias que se tornaram célebres. Como ele explica, nem há
troca sem igualdade, nem igualdade sem comensurabilidade. Mais
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precisamente, se uma casa é trocada por cinco camas ou x pares de


sapatos é porque podemos igualar uma casa, cinco camas e x pares
de sapatos. E esta igualdade implica alguma coisa de comum que
as torna comensuráveis. Não se contentando com esta importante
descoberta, Aristóteles especifica algumas vezes que esta coisa em
comum é o trabalho. A casa, as camas e os sapatos têm em comum
o fato de serem frutos do trabalho, e a quantidade de trabalho
necessário para produzi-los é a mesma. Ele enuncia aqui um
esboço da teoria do valor-trabalho que será amplamente
desenvolvida muitos séculos depois.
Assim, vimos que Aristóteles compreendeu perfeitamente a
necessidade de proceder uma análise científica da economia
mercantil em gestação. Particularmente sensível à novidade das
condições econômicas surgidas na Grécia de seu tempo, ele
procurou desvelar suas leis. Análises sobre o valor, a moeda, a
circulação de mercadorias sob seu duplo aspecto, simbolizadas por
M → D → M e D → M → D, e o empréstimo a juros demonstram
que a fecundidade da obra de Aristóteles é excepcional.
No entanto, a ruína do mundo grego leva a um recuo da civilização,
fazendo com que se tenha de esperar séculos para ser observar
novamente o desenvolvimento do pensamento econômico.

II - A Europa da Idade Média: São Tomás de Aquino

Na Europa, o período que vai do século V DC ao século X DC é


marcado pela queda do império romano no ocidente e pelas
invasões dos godos, vândalos e visigodos. Nesse período houve um
recuo profundo da troca mercantil. À chegada desses novos povos
organizados sobre a base de pequenas comunidades e
posteriormente a constituição de regimes feudais, que não vivem
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sob um regime de autarquia e são poucos abertos ao exterior,


segue-se um declínio das cidades, uma regressão da indústria, uma
retração das trocas comerciais.
É então o triunfo no seio da Igreja cristã, que define o essencial do
espaço cultural, da doutrina da indiferença em termos de
instituições sociais. Esse triunfo é representado pelo pensamento
de um bispo, Santo Agostinho, que em sua obra A cidade de Deus
(426) considera que é preciso não se interessar pelo mundo
terrestre condenado ao pecado original e que, portanto, é preciso
submeter-se às instituições sociais existentes, inclusive a
escravatura, sem se questionar se elas são boas ou ruins. Este é o
ponto extremo da omissão da doutrina cristã oficial a respeito dos
problemas econômicos e sociais.
A partir do século XI abre-se uma era de transformações radicais,
cujas características assumirão toda sua amplitude nos séculos XII e
XIII. As transformações são políticas, definidas, principalmente na
França, por um fortalecimento do poder real. Essas transformações
são econômicas, caracterizadas por um novo crescimento da
produção mercantil, do comércio, da finança e das cidades.
Esse crescimento é estimulado pelas cruzadas e pelo apoio ativo
dos reis, desejosos em apoiar uma nova classe social emergente, a
burguesia, para reforçar sua autoridade frente aos grandes
senhores. Paralelamente desenvolvem-se a monetização da
economia, bem como a atividade dos cambistas, precursores dos
banqueiros, e a prática de empréstimos a juros, apesar de
teoricamente proibido pela Igreja. As transformações são então
intelectuais, definidas pela redescoberta na Europa, graças aos
comentaristas árabes, da obra de Aristóteles.
A partir daí a Igreja não pode manter-se omissa face às questões
econômicas e sociais. Ela tem de opinar. Esta será a tarefa no
século XIII de São Tomás de Aquino (1225-1274) que, em sua
principal obra, A Suma Teológica, procura definir quais são as
condições econômicas e sociais necessárias para que o homem
tenha uma vida virtuosa.
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No domínio econômico, São Tomás de Aquino utiliza certo número


de teses de Aristóteles para justificar uma moralização da vida
humana. Ele aceita o princípio da vida mercantil – adaptação à
realidade – porém moralizando o seu funcionamento.
Essa trajetória, que podemos qualificar de “sim, porém...” ou de
“não, porém...” com relação à economia mercantil, é a que
prevalece nas três questões tratadas por São Tomás de Aquino.
Em primeiro lugar, sim à propriedade privada, mais eficaz
economicamente que a propriedade coletiva, que supõe homens
perfeitos, porém à condição que os proprietários dêem prova de
generosidade em relação aos pobres.
Além disso, sim ao comércio e ao lucro comercial (...), porém à
condição que a intenção do comerciante seja moralmente boa, isto
é, se o ganho procurado não se destine ao enriquecimento
ilimitado, mas se justifique pela vontade de assegurar a
subsistência de sua família ou de socorrer os pobres. Ao mesmo
tempo, São Tomás de Aquino aborda o problema, já tratado por
Aristóteles, da justiça na troca. Ele afirma que a venda de
mercadorias deve se fazer a um “preço justo”. É um preço que
cubra o custo, ao qual se soma um ganho moderado de modo que
o comerciante possa subsidiar, como ele reafirma, suas
necessidades de forma modesta e fazer caridade. Como
determinar esse “preço justo”? Seguindo as indicações de sua
própria consciência. Portanto, o “preço justo” é definido
moralmente. Ao contrário de Aristóteles, São Tomás de Aquino não
procura um elemento objetivo que permita definir a equivalência
na troca.
Finalmente, sobre a questão dos empréstimos a juros, São Tomás
de Aquino começa pelo não, fiel à atitude da Igreja. No entanto, ele
adiciona um porém. Ele reconhece a legitimidade do juro se o
emprestador passa de fato por uma privação. Trata-se, então,
apenas de uma indenização. Desse modo, São Tomás de Aquino
abre uma brecha que, na verdade, é apenas uma adaptação à
importância crescente dos empréstimos à medida que a produção
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mercantil se desenvolve. Além disso, a própria Igreja lança mão


desse recurso para cobrir suas necessidades crescentes de
dinheiro.
São Tomás de Aquino, aceitando a economia mercantil, mas
preconizando o controle de sua expansão em nome da moral
cristã, colabora a seu modo para a manutenção do equilíbrio
econômico e social característico da sociedade medieval: de um
lado, o equilíbrio entre a nobreza e a sociedade feudal e, de outro
lado, a jovem burguesia decorrente do capitalismo.
Alguns séculos mais tarde, do século XVI ao XVIII, o capitalismo se
desenvolverá fortemente na Europa, e assim estarão criadas as
condições que permitirão a revolução industrial e o crescimento do
capitalismo industrial em fins do século XVIII.
A reflexão econômica alcançará então sua autonomia em relação à
moral, e os primeiros trabalhos especificamente econômicos
começam a surgir.
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Capítulo 2
O nascimento do capitalismo na Europa: do pragmatismo
mercantil ao surgimento do liberalismo

Do século XVI ao fim do século XVIII

Este período é uma fase de transição entre a economia medieval e


o nascimento do capitalismo industrial, fase durante a qual se
desenvolve o capitalismo comercial.
O novo contexto político, econômico e intelectual gera novas idéias
econômicas.
Esse novo contexto político é marcado pelo nascimento do Estado
moderno, centralizado, potente, unificando a nação sob o poder
absoluto de um soberano. A constituição desse Estado produz
novas instituições: exército permanente, administração que
alcança a totalidade do país, justiça real e instituições que
necessitam de recurso consideráveis. O rei tem o desejo de
utilizara a economia nacional para reforçar seu poder, desse modo
a economia o ajudará.
O novo contexto econômico caracteriza-se por um extraordinário
desenvolvimento do capitalismo comercial, ligado às grandes
descobertas e conquistas de fins do século XV e início do século
XVI. As trocas comerciais crescem consideravelmente,
particularmente com o continente americano, sob diversas formas:
importação de novos produtos (tabaco, milho, cana-de-açúcar,
especiarias...). Baseado no tráfico de escravos desenvolve-se um
comércio triangular Europa – África - América. Nesse processo é
necessário incluir um fluxo considerável de ouro e prata,
freqüentemente roubados, o que leva à monetização crescente das
economias européias. Em paralelo ao crescimento particularmente
sustentado do comércio e da finança, desenvolve-se uma classe de
mercantil – empresários diríamos hoje em dia - comerciantes e
financistas, desenvolvimento este encorajado pelo poder real, que
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conta com a burguesia para assegurar apoio financeiro e reduzir o


poder da nobreza. Assim, enquanto uma enorme soma de capital
dinheiro se acumula nas mãos dessa nova classe, aparece uma
outra classe, composta de proletários que só possuem sua força de
trabalho para sobreviver. Na Inglaterra o surgimento dessa classe é
fruto da política denominada cercamentos, que no século XVI
expulsa milhares de pequenos camponeses de suas terras por meio
da supressão das terras comunitárias e da concentração das
propriedades. Adiciona-se a isso a ruína dos artesãos devido à
concorrência das atividades de manufatura que estavam surgindo.
O novo contexto intelectual foi marcado pelas idéias do
Renascimento e da Reforma. Durante o período da Renascença, os
humanistas (Erasmus, Rabelais) e os homens de ciência (Copérnico,
Galileu) defendem a idéia segundo a qual o mundo está submetido
a leis que os homens podem conhecer perfeitamente graças ao uso
da razão e da experiência, e se dispuserem de liberdade
intelectual. Desse modo, eles se opõem ao dogmatismo da Igreja. A
Reforma, em sua vertente calvinista no século XVI, concebe a
riqueza como uma benção de Deus. O comerciante, até então
suspeito, pode enriquecer-se não só com o apoio real, mas
também com a benção da nova religião.
Nesse contexto político, econômico e intelectual inédito nascem
sucessivamente dois tipos de reflexão econômica.
Nos séculos XVI e XVII desenvolve-se uma literatura e um
pensamento econômico qualificados de mercantilismo. Não se
trata de uma escola de pensamento constituída, mas de autores, se
bem que diferentes uns dos outros, têm preocupações comuns. O
procedimento deles é essencialmente prático, no sentido de que
procuram principalmente dar conselhos sobre política econômica
ao soberano, propor medidas que consideram como as mais
eficazes para desenvolver o poder político do reino graças ao
desenvolvimento de seu poder econômico.
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Depois, no século XVIII, surgiu um segundo tipo de reflexão


econômica. A burguesia, mais forte, necessita menos do apoio e da
proteção do Estado. Nasce a doutrina do liberalismo econômico.

I – O pragmatismo mercantil

Os títulos das obras dos mercantilistas frequentemente revelam


seus projetos.
Na Espanha, Luis Ortiz, 1588, Memória de um Rei para impedir a
saída do ouro. Na Inglaterra, John Hales, 14549, Discurso sobre a
propriedade pública do reino da Inglaterra; Thomas Mun, 1630, O
Tesouro da Inglaterra através do comércio exterior; Josiah Child,
1690, Discursos sobre a natureza e as vantagens do comércio. Na
França, Jean Bodin, 1568, Réponse aux paradoxes de Monsieur de
Malestroit; Antoine de Montchrestien, 1616, Traité d’économie
politique, dedicado ao rei Luis XIII.
Portanto, para os mercantilistas trata-se de desenvolver a riqueza e
o poder nacional e procurar as condições de crescimento.
Para eles o objetivo perseguido é a riqueza e o poder do Estado.
Essa riqueza está ligada ao enriquecimento dos mercadores. A
procura deles pelo lucro. Afirma Montchrestien, ocasiona uma boa
parte do bem público. O desenvolvimento da indústria e do
comércio, que gera os lucros privados e permite a entrada de ouro
em decorrência do crescimento das exportações, assegura ao
mesmo tempo riqueza e poder ao Estado ao lhe possibilitar
arrecadação de recursos consideráveis através do imposto.
Recursos estes necessários ao financiamento das despesas
crescentes do estado.
Assim, os mercantilistas propõem-se a pesquisar como a riqueza
dos comerciantes – e também do Estado – pode se garantida. As
concepções aproximam-se da filosofia e da moral, a economia
política tende a tornar-se autônoma na medida em que sua
problemática é formulada unicamente a partir das exigências de
uma política de enriquecimento e de poder.
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Os fatores do crescimento

Para os mercantilistas são três os fatores do crescimento:


abundância de homens, abundância de dinheiro e intervenção do
Estado em matéria de comércio exterior.
Abundância em homens requer trabalho farto e barato. Para que
seja abundante, é preciso, por um lado, que a população aumente
– os mercantilistas são populacionistas – e, por outro lado, que
essa população tenha necessidades, No que diz respeito aos
comerciantes, é preciso atraí-los pela cobiça ao lucro, encorajar o
amor e a busca por lucro. Aqui estamos distantes de Aristóteles e
de São Tomás de Aquino! Quanto aos homens do povo, é preciso
forçá-los ao trabalho. Já invocamos o destino, na Inglaterra, de
milhares de camponeses, homens, mulheres e crianças, expulsas
de suas terras. Primeiro se transformaram em vagabundos, depois
foram pegos e presos nas casas de trabalho (work houses), onde
foram obrigados aos trabalhos forçados. Mais tarde, uma vez
“habituados” à labuta, irão vender livremente suas forças de
trabalho nas indústrias nascentes. Esse trabalho abundante tem de
ser barato. É por isso que os mercantilistas freqüentemente
propõem manter os salários a níveis baixos, para incitar os
trabalhadores a penarem cada vez mais.
A abundância de dinheiro, no século XVI com a conquista do
México e do Peru, com a pilhagem e a exploração das minas, é
possibilitada pelo um afluxo contínuo e massivo de ouro e prata
para a Espanha e depois para outros países europeus. Os
mercantilistas consideram que essa abundância monetária tem
efeitos de estímulos favoráveis à atividade econômica.
Diversos autores mercantilistas defendem a idéia de que a
abundância monetária permite baixar o preço do dinheiro, isto é, a
taxa de juros, permitindo assim financiar a custo reduzido os
investimentos dos industriais e, portanto, estimulá-los. Essa idéia
influenciará, no século XVIII, o banqueiro Law, favorável à criação
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de um sistema de crédito e de circulação de papel moeda. Ela será


retomada no século XX por Keynes, que prestou explicitamente
homenagem aos mercantilistas sobre esse ponto.
Alguns mercantilistas, como Bodin em seu livro de 1568, afirmam
que o crescimento da quantidade de moeda em circulação provoca
a alta de preços, preconizando o que se torna muito mais tarde a
teoria quantitativa da moeda. O raciocínio é bem incompleto. De
fato, não é o crescimento da quantidade de moeda em circulação
que provoca a alta de preços, mas o aumento da demanda de bens
possibilitada pela quantidade adicional de moeda em circulação.
Em outros termos, se a oferta de bens aumentasse paralelamente
ao aumento da demanda, não haveria aumento dos preços.
Permanece correta a idéia dos mercantilistas de que a alta dos
preços pode possibilitar uma alta dos lucros, o que contribui para o
desenvolvimento da atividade econômica.
Dado que a abundância monetária é uma condição par o
crescimento, coloca-se um problema para a Europa já que ela é
pobre em minas de ouro e prata, e o ouro americano é quase
monopolizado pela Espanha. Os mercantilistas observam então
que existe um outro meio para um país se prover de ouro e prata;
possuir uma balança comercial superavitária. Se as exportações são
superiores às importações, as entradas de ouro e prata nesses
países são superiores à saída e a quantidade de moeda em
circulação aumenta.
O intervencionismo estatal em matéria de comércio exterior é
desde então a terceira condição de crescimento.
De modo geral, o Estado deve intervir na vida econômica criando
indústrias estatais e concedendo ajudas e subvenções às empresas
privadas. A política de Colbert na França do século XVII é um
exemplo perfeito disso. Se o estado deve intervir mais
especificamente em termos de comércio exterior, não é apenas
porque a abundância monetária favorece a atividade econômica, é
também porque o desenvolvimento das exportações de produtos
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manufaturados é, ele próprio, favorável ao crescimento da


indústria nacional e do emprego.
Nesse sentido os mercantilistas propõem três tipos de medida:

1. Restringir, e até impedir, exportações de produtos brutos e de


matérias primas, a fim de reservá-los para as manufatureiras
nacionais.

2. Restringir as importações de produtos manufaturados, a fim de


proteger as indústrias nacionais.

3. Favorecer o desenvolvimento das exportações de produtos


manufaturados. Os mercantilistas acreditam, argumento válido até
hoje, que esse desenvolvimento, ao expandir o mercado,
estimulará a produção industrial e o emprego. É exatamente por
terem a intenção de expansão dos mercados que os mercantilistas
são partidários convictos das conquistas coloniais.
Concluindo, em primeiro lugar vamos frisar que os mercantilistas,
ao procurarem as bases da riqueza e do crescimento, orientaram a
exploração para questões especificamente econômicas. No
entanto, mesmo que tenham sido levados a realizar análises
sólidas e interessantes, eles teorizaram pouco, conceitualizaram
pouco. A preocupação deles permaneceu essencialmente prática –
dar conselhos de política econômica ao soberano – e seus
procedimentos foram pragmáticos, no sentido de manter certa
recomendação em função de sua eficácia e não enquanto aplicação
de um modelo teórico pré-estabelecido. Finalmente, é preciso
frisar que eles expressaram particularmente bem o novo estado de
espírito que se desenvolveu naquela época, aquele de um homem
que prova um grande poder criador em termos de técnica e de
economia, mas que não se preocupa em fundar uma sociedade
capaz de responder ao ideal antigo de amizade entre os cidadãos.
A luta entre os industriais pelos mercados, o agravamento das
condições da maior parte da população, o desenvolvimento das
23

conquistas coloniais, a pilhagem dos recursos e a escravidão


manifestam claramente esse desinteresse. Os mercantilistas
vangloriam e exprimem sem reservas o novo espírito de seu
tempo.

Uma crítica social: Thomas More

As idéias mercantilistas, sobretudo os fenômenos descrevem e


encorajam, o nascimento e o desenvolvimento do capitalismo
suscitam desde essa época uma crítica social pujante.
Uma delas é a obra, no século XVI, de Thomas More, que na
Inglaterra foi chanceler do rei Henrique VIII, antes de ser
decapitado sob a ordem desse rei por ter se recusado a lhe prestar
juramento por ocasião de ruptura com o papa. Em 1516, Thomas
More escreveu um livro, A Utopia, onde desenvolve uma severa
crítica à sociedade capitalista em formação na Inglaterra e propõe
um projeto de sociedade comunista.
Thomas More denuncia intensamente a política denominada de
cercamentos, que expulsa de suas terras milhares de camponeses e
substituía agricultura pela criação de ovelhas e produção de lã
bruta destinada à indústria lanífera nascente. A Inglaterra, ele diz,
é o único país onde os carneiros comem os homens. Ele denuncia
as conseqüências sociais dessa política, que transforma os
camponeses em vagabundos, em mendigos, em ladrões. Ele
descreve e denuncia com o mesmo vigor a exploração das classes
pobres pelos ricos, que extraem deles o máximo e de lucros
possíveis, para em seguida deixá-los morrer de fome quando não
estão mais em condições de trabalhar. Finalmente ele contesta a
filosofia liberal que vê no Estado o representante do interesse
geral. Na verdade, ele afirma, o Estado defende os interesses das
classes ricas.
Thomas More considera que todos os males estão ligados á
propriedade privada. Ele apresenta um projeto de sociedade
comunista no qual descreve uma ilha de felicidade denominada
24

Utopia. Ele é o inventor do termo utopia, que vem do grego e


significa “sem lugar”, isto é, que não existe em lugar algum que não
seja a imaginação.
A organização econômica e social da Ilha Utopia é uma
interessante pré-configuração de concepções que serão
desenvolvidas no século XX pelo pensamento socialista. Ela é
fundamentada sobre quatro grandes princípios:

1. A propriedade é comum, tudo pertencendo a todos. As casas


mudam de moradores através de sorteio realizado a cada dez anos,
e suas portas não têm fechaduras.

2. Todo mundo trabalha, o que permite diminuir a duração do


trabalho. A jornada de trabalho é de seis horas. Além disso,
ninguém é especializado em um trabalho em particular. Quer dizer,
diríamos hoje em dia, o fim da divisão do trabalho.

3. A grande tarefa do governo é de dirigir a produção e a repartição


dos bens. A economia planificada.

4. Os bens estão disponíveis em abundância, são distribuídos


gratuitamente; a necessidade de compra e venda no mercado e,
portanto, de dinheiro, desaparece e a distribuição se realiza
segundo o seguinte princípio: “a cada um segundo suas
necessidades”; cada um busca nos celeiros e nos entrepostos
públicos o que tem necessidade e leva sem pagamento.

II – O surgimento do liberalismo econômico

A partir do fim do século XVII, as regulamentações de estado


existentes, em particular as regras de funcionamento das
corporações, incomodam muito a iniciativa econômica da jovem
burguesia. As teses mercantilistas são cada vez mais contestadas. O
25

contexto intelectual é favorável a essa contestação. Assim, por


exemplo, o filósofo inglês John Locke defende a idéia de que
existem direitos naturais do indivíduo que a sociedade, em especial
o soberano, deve respeitar. Surge então a idéia de que a economia
é dirigida ela própria por mecanismos naturais, e que nenhum
obstáculo deve se opor ao jogo desses mecanismos se quisermos
que a economia funcione bem. Desse modo, desenvolve-se a
doutrina do liberalismo econômico, que se opõe ao
intervencionismo estatal dos mercantilistas em matéria de política
industrial ou de comércio exterior.
François Quesnay e os fisiocratas – de fisiocracia, termo cunhado
por um deles e que significa em grego “governo da natureza” -
formam uma verdadeira escola e ilustram bem essa nova doutrina
em meados do século XVIII.
Quesnay, cirurgião de Luís XV e cujo cuidado despendido com uma
terra que ele adquire em 1755 é o ponto de partida de sua obra
econômica, lidera uma verdadeira escola de pensamento, os
fisiocratas. Sua principal obra, que deve ser considerada como uma
das maiores obras do pensamento econômico, intitulada Tableau
économique, aparece em 1758.
Ele procura descobrir as leis econômicas que regem o
funcionamento da máquina econômica. Parte da idéia que existe
uma ordem natural dirigida por leis que devem ser respeitadas. É
na sua pesquisa sobre essas leis econômicas, cujo respeito
assegura a prosperidade da agricultura, base da prosperidade do
reino, que Quesnais apresenta uma análise em termos de circuito.
Análise esta que ressalta as interdependências entre o que
chamamos hoje produção nacional, renda nacional, despesa
nacional. Ele elabora uma teoria da produção e da circulação que
será elogiada tanto por Marx quanto por Keynes.
26

Uma problemática da ordem natural

A demonstração dos fisiocratas baseia-se sobre a concepção de


uma ordem natural que é a melhor possível e convém ser seguida.
No que diz respeito à organização econômica da sociedade, a
ordem natural é aquela que se estabelece espontaneamente
quando se respeita e se deixa que se manifestem as leis
econômicas. Leis que são naturais, universais e imutáveis, como as
leis da física.
Essa concepção da ordem natural conduz Quesnay e os fisiocratas
a defenderem dois grandes princípios:
- O direito de propriedade, direito natural que assegura a melhor
produção possível;
- A liberdade individual, que permitirá a cada um buscar o maior
ganho próprio, meio mais seguro de realizar o interesse geral.
Dessa forma se expressa o que será e continua sendo a base do
liberalismo econômico; a livre escolha dos interesses individuais
como meio de satisfação do interesse geral.
Agora falta apenas descobrir essas leis econômicas que devemos
respeitar.

Uma teoria da produção e da circulação de riquezas

Quesnay divide a sociedade em três setores de produção -


agricultura, indústria e comércio – e em três classes sociais – a
classe produtiva, a classe estéril e a classe dos proprietários
fundiários.
Na agricultura, a produção é garantida pela terra e pelo que
Quesnay chama de “adiantamentos”, isto é, as despesas de
investimento em capital. A terra fornece o que ele qualifica de
“dom gratuito”, a fertilidade do solo, ele diz, permite multiplicar a
riqueza. A semente presente no grão é o melhor símbolo. Para
produzir é preciso realizar adiantamentos, despesas de
investimento, sendo Quesnay o primeiro a especificar os diversos
27

tipos de despesas de capital e o papel que exercem. Ele distingue


os “adiantamentos fundiários”, despesas em capital fixo,
empregados pela classe de proprietários fundiários para arar a
terra e tornar o solo apto para o plantio; os “adiantamentos
primitivos”, também despesas em capital fixo, destinadas pela
classe produtiva, mais especificamente pelos agricultores, à
compra de equipamentos e à construção de edificações;
finalmente, os “avanços anuais”, despesas em capital circulante,
renovadas a cada ano, destinadas pelos mesmos agricultores à
compra de matérias-primas (sementes, grãos...) e ao pagamento
dos trabalhadores agrícolas. Se apurarmos agora a diferença entre
o valor anual da produção agrícola e as despesas em capital feitas
na produção, perceberemos que existe na agricultura um
excedente devido ao “dom gratuito” da terra. Trata-se do produto
líquido.
Portanto temos o seguinte:
Valor anual da produção agrícola = valor dos bens de equipamento,
na medida da parte utilizada no ano (é o que chamamos valor do
capital fixo despendido e que Quesnay chama juro dos
adiantamentos primitivos) + valor das matérias-primas + valor da
mão-de-obra + produto líquido.
Na indústria a produção é garantida apenas pelos adiantamentos,
despesas de investimento em capital fixo e em capital circulante. A
indústria não se beneficia do dom gratuito que a agricultura
aproveita. Segue-se daí, segundo Quesnay, que na indústria não há
criação de produto líquido.
Portanto temos o seguinte:
O valor da produção industrial é exatamente igual ao valor do que
a indústria despendeu. Não há criação de valor suplementar, é por
isso que Quesnay qualifica como classe estéril a classe daqueles
que trabalham na indústria.
Quanto ao comércio, também é improdutivo, isto é, não cria
nenhum produto líquido. Portanto, os que trabalham nesse setor
fazem parte da classe estéril.
28

Essa análise da produção de Quesnay é digna de nota, porém ela


contém um grande erro. São dignas de nota a tese de que a
produção depende dos investimentos efetuados e a distinção que
ele faz entre os diferentes tipos de investimento. No entanto, a
idéia de que somente a agricultura é produtiva está incorreta. De
fato, a produção de um excedente, de um produto líquido para
utilizar a expressão de Quesnay, não se explica pelo dom gratuito
da terra, mas pela produtividade do trabalho. Os produtores,
graças à utilização de bens de equipamento, aumentam a
produtividade do trabalho utilizado e desse modo podem produzir
mais do que o estritamente necessário para a reconstituição do
estoque de bens de equipamento, matérias-primas e mão-de-obra.
No entanto, se a origem do excedente está aí, ele não existe
apenas na agricultura, mas também nos outros setores de
produção. Portanto, a classe que produz na indústria não é estéril.
Depois de ter analisado o processo de produção, Quesnay
apresenta uma análise notável da re-produção, isto é, das
condições necessárias para que o processo de produção, uma fez
efetuado, prossiga de forma idêntica ou em escala ampliada.
Quesnay, tomando como exemplo a agricultura, explica que
quando os agricultores têm a sua disposição dinheiro que provém
da produção e da venda dos produtos agrícolas, eles podem utilizar
uma parte desse dinheiro para reconstituir os adiantamentos
primitivos e os adiantamentos anuais. Isto é, assegurar a si próprios
os meios de reiniciar o processo de produção com um estoque
idêntico ou acrescido de bens de equipamento, de matérias-primas
e de mão-de-obra. Uma vez que os adiantamentos tenham sido
reconstituídos, denominado por Quesnay como recuperação dos
adiantamentos, sobra o valor do produto líquido. Este valor é
ressarcido pelos agricultores aos proprietários das terras. Estes, por
sua vez, efetuam os adiantamentos fundiários que também são
necessários à reprodução.
A teoria da produção e da reprodução de Quesnay é acompanhada
de uma teoria da circulação das riquezas entre as classes sociais,
29

apresentada no Tableau économique. Uma primeira versão,


qualificada por Quesnay de zizag (zig-zag), foi apresentada em
1758. Uma outra, mais completa, foi apresentada em 1766. É esta
última que apresentamos aqui:

Essa tabela econômica, à parte os erros que contenha


essencialmente por conta da idéia de que somente a agricultura
seja produtiva, é a primeira representação do circuito econômico
na história do pensamento. E mais tarde será aclamado como tal.
Como interpretá-lo?
Em primeiro lugar, os valores que encontramos na primeira linha
representam o que as diversas classes possuem no início do
período, valores que provém da produção do período anterior.
Como já sabemos, os adiantamentos anuais, disponíveis para a
classe produtiva (2 milhões) e para a classe estéril (1 milhão),
representam o capital circulante que detinham no início do
período, proveniente da recuperação realizada a partir da
produção precedente e que lhes permitiu obter a mão-de-obra e as
matérias-primas necessárias. Há uma diferença apontada pelo
próprio Quesnay: a forma dos adiantamentos anuais da classe
30

estéril (1milhão) é de 1 milhão em dinheiro, enquanto a forma dos


adiantamentos anuais da classe produtiva (2 milhões) é expressa
em dinheiro, porém estão presentes em espécie, sob a forma de
matérias-primas (sementes, grãos ...) e de bens de subsistência
para os agricultores que trabalham e produzem. Mostraremos mais
tarde que os adiantamentos primitivos e os adiantamentos
fundiários não estão presentes no Tableau.
A renda para os proprietários de terras (2 milhões) representa o
produto líquido com que a classe produtiva ressarciu os
proprietários, a partir da produção do período precedente,
portanto estando à disposição deles no início do novo período.
As linhas oblíquas inclinadas no sentido da circulação da moeda
representam as compras realizadas pelas três classes sociais.

Como se dá a circulação?

1 – O ponto de partida é a despesa, realizada pelos proprietários


fundiários, de 2 milhões que dispõem previamente. Eles compram
1 milhão de produtos agrícolas da classe produtiva e 1 milhão de
produtos industriais e de serviços da classe estéril. Portanto, a
classe dos proprietários fundiários dá o impulso para a circulação
monetária.

2 – A classe produtiva compra 1 milhão de produtos industriais da


classe estéril. Aqui Quesnay comete um erro em seu tableau. De
fato, se seguirmos a linha que parte de 2 milhões de
adiantamentos anuais, poderíamos acreditar que é com essa soma
que os agricultores compram da classe estéril. Isso é impossível já
que, como vimos, esses 2 milhões de adiantamentos anuais não
estão presentes sob a forma dinheiro, mas em espécie. Assim, a
linha diagonal deveria partir de uma parcela de 1 milhão situada
abaixo dos 2 milhões de adiantamento anuais, o que significa que a
classe produtiva compra da classe estéril, por 1 milhão, com o
dinheiro que provém das compras dos proprietários fundiários , ou
31

proveniente das compras da classe estéril. Além disso, a classe


produtiva utiliza os 2 milhões de adiantamentos anuais que estão a
sua disposição em espécie. Esses 2 milhões não circulam entre as
classes, mas no interior da classe produtiva, os agricultores
comprando produto agrícolas entre eles. Reencontramos esses 2
milhões abaixo da coluna referente à classe produtiva.

3 - A classe estéril efetua 2 milhões de compra junto à classe


produtiva para se alimentar e dispor de matérias brutas para
transformação, por exemplo a lã. Ela gasta seu adiantamento anual
para comprar um primeiro milhão dos agricultores e utiliza o
milhão que recebe dos proprietários fundiários para comprar uma
segundo milhão dos agricultores.
Um último ponto diz respeito ao Tableau econômico. O que
significam os dois totais, de 5 e de 2 milhões? Eles representam as
fontes disponíveis para a classe produtiva e para a classe estéril.
A classe produtiva dispõe 5 milhões: 2 milhões provêm de seus
próprios adiantamentos anuais; 1 milhão que provém das compras
dos proprietários fundiários e 2 milhões de compras das compras
da classe estéril. Dado que ela efetua retiradas de 3 milhões sobre
esses 5 milhões, 2 para reconstituir os adiantamentos anuais e 1
para reconstituir os adiantamentos iniciais sob a forma de compras
junto à classe estéril, resta um excedente de 2 milhões, o produto
líquido pago aos proprietários fundiários.
A classe estéril dispõe de 2 milhões: 1 milhão das compras dos
proprietários fundiários e 1 milhão das compras da classe
produtiva. Como ela despende 2 milhões sob a forma de compras
junto à classe produtiva, não há excedente algum. Reencontramos
a idéia de que somente a agricultura seja produtiva.
A partir de sua concepção de ordem natural e da sua teoria de
produção e circulação, os fisiocratas fazem proposições de política
econômica. Trata-se, evidentemente, de favorizar o
desenvolvimento da agricultura e o crescimento do produto líquido
que somente ela produz. Dois tipos de medidas são preconizadas:
32

1 - Favorizar o desenvolvimento das grandes explorações agrícolas


utilizando as técnicas mais modernas de produção;

2 - Favorizar a liberdade de troca, suprimindo as taxas aduaneiras e


estimulando as exportações de produtos alimentares. Nesse
aspecto a argumentação dos fisiocratas é peculiar. Esperam que
essa liberdade crie crescimento das demandas interna e externa
por produtos alimentares, capazes de levar a um aumento dos
preços dos produtos alimentares. Esta alta permitirá um aumento
em termos de valor absoluto do produto líquido, apropriado pelos
proprietários fundiários, que poderão assim aumentar suas
despesas junto à classe produtiva e à classe estéril, estimulando
definitivamente o conjunto das atividades econômicas.

Se quisermos sintetizar os avanços que a economia política obteve


graças a Quesnay, podemos dizer que sua teoria da produção, da
reprodução e da circulação de riqueza coloca muito bem em
evidência o fato de que, no sistema capitalista, a atividade
econômica repousa sobre o investimento dos capitais e sua
recomposição. A teoria dele mostra que a circulação permanente
de capital é o fundamento do funcionamento desse sistema.
Devemos ainda alertar o leitor quando falamos de sistema
capitalista em ralação aos fisiocratas, e isso por duas razões.
Em primeiro lugar, embora Quesnay tenha em certa medida uma
boa visão do funcionamento da economia capitalista, trata-se de
um capitalismo bastante curioso, já que se trata de um capitalismo
sem lucro! De fato, na agricultura o valor da produção é superior
ao valor dos bens de equipamento, matérias-primas e mão-de-obra
empregada, havendo criação de um valor suplementar. No
entanto, este valor é totalmente apropriado pelos proprietários
fundiários sob forma de taxas pagas pelos agricultores. Ora, se os
agricultores pagam aos proprietários fundiários uma parte do valor
adicional criado, eles também se apropriam de uma parte sob a
33

forma de lucro, e isso não aparece na exposição. Na indústria isso


ainda é menos presente, pois sequer há criação de valor adicional.
Se Quesnay explica em diversos artigos que a existência de lucro
para os agricultores é uma condição para a prática da agricultura,
perdura o fato de que o lucro não existe no tableau econômico.
É sobretudo sobre esse ponto que reside nosso cuidado, Quesnay
não tem a noção de sistema historicamente determinado. Sua
preocupação em construir a economia política sobre o modelo das
ciências naturais o conduziu a pensar que as leis econômicas são
leis naturais, leis universais, e que enquanto tais têm de ser
respeitadas. Quesnay não percebe que as leis econômicas que
estuda são leis históricas, próprias a um sistema econômico e social
historicamente determinado - o sistema capitalista. Seus
sucessores imediatos, os economistas c1ássicos, perceberão isso
com mais clareza.
34

Capítulo 3
A revolução industrial e o desenvolvimento da economia política
clássica

Fim do século XVIII e início do século XIX.

Em fins do século XVIII e início do século XIX, inicialmente na Grã-


Bretanha, surgem profundas transformações econômicas e sociais.
Encontram-se disponíveis ao mesmo tempo uma massa importante
de capital-dinheiro concentrada nas mãos de uma burguesia até
então essencialmente comercial e financeira e uma massa de
trabalhadores prontos a vender sua força de trabalho. Nesse
contexto e comprando essa força de trabalho, o capital-dinheiro
investe massivamente na indústria. Ele revoluciona rapidamente os
meios e procedimentos da produção e leva à mecanização,
sobretudo da indústria têxtil (utilização das máquinas de costura e
de tecelagem) e da indústria metalúrgica (passagem da energia à
lenha para o coque). Tudo isso é acompanhado de uma produção
de energia revolucionária em si mesma, possibilitada pela invenção
da máquina a vapor (1774).
Paralelamente a essas profundas transformações ocorrem sérias
reviravoltas sociais, A urbanização está em pleno crescimento. A
burguesia industrial ganha importância cada vez maior.
Desenvolve-se a classe trabalhadora, trabalhando quase sempre
em terríveis condições. A mecanização faz dos trabalhadores
simples apêndices das máquinas. Recorre-se massivamente ao
trabalho das mulheres e das crianças. Na França será preciso
esperar até 1841 para que uma lei proíba o trabalho nas fábricas
de crianças com menos de oito anos. Trabalha-se todos os dias, de
doze a quinze horas diárias. Os salários são freqüentemente
próximos do mínimo de sobrevivência. Não se reconhece o direito
de greve e de organização sindical. Quanto às condições de vida
35

dos operários, a situação é particularmente difícil: má nutrição,


doenças crônicas, habitações insalubres.
Esse é o contexto econômico e social no qual se desenvolve a
economia política denominada de clássica, uma economia política
essencialmente britânica, o que não surpreende já que a Revolução
industrial começou na Grã-Bretanha.
Aqui vamos nos ater a quatro autores:
- O escocês Adam Smith, professor de filosofia e de moral, autor
em 1759 da Teoria dos sentimentos morais, e cronologicamente o
primeiro representante da economia política clássica. Sua principal
obra, “Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza
das Nações”, foi escrita após uma viagem à França, quando um
encontro com Quesnay o leva a se dedicar à economia política. O
livro aparece em 1776. Ele trata de todas as grandes questões
econômicas que hoje em dia ainda nos interessa: valor e preço das
mercadorias, distribuição de renda, crescimento e evolução do
sistema a longo prazo.
Seus principais sucessores imediatos, que influenciam ou criticam-
se uns aos outros são:
- O Inglês David Ricardo, corretor de valores na Bolsa de Londres,
cuja principal obra “Princípios da Economia e da Tributação”
aparece em 1817.
- O Inglês Thomas Robert Malthus, pastor, depois professor de
economia política, cujas duas principais obras são: “Um ensaio
sobre os Princípios da População” e “Princípios de Economia
Política.” Elas aparecem, respectivamente, em 1798 e 1820.
- O Francês Jean Baptiste Say, industrial e economista, que se
proclama como representante das idéias de Adam Smith na França,
e cuja duas principais obras são “Tratado de Economia Política” e
“Curso de Economia Política.” Elas aparecem em 1804 e 1828-1830.
Para estudarmos a economia política clássica, tal como
representada por esses quatro autores, é necessário distinguirmos
dois aspectos. Um diz respeito à atitude doutrinária: todos estão
de acordo com relação à defesa do liberalismo econômico. O outro
36

diz respeito à análise econômica: existem profundas divergências


entre eles.

I – A atitude doutrinária – o liberalismo econômico

O ponto de vista doutrinário dos clássicos, resumido em uma


palavra de ordem – o liberalismo econômico – é elaborado por
Smith, posteriormente retomado por conta própria por Ricardo,
Malthus e Say.
A problemática de Smith é a problemática da liberdade natural e
do interesse individual. É espontaneamente que o
desenvolvimento desses dois princípios tende a estabelecer a
melhor organização possível. A liberdade natural, que implica
ausência de regulamentação estatal, dá ao interesse pessoal a
possibilidade de manifestar-se, e é a procura de cada um pela
realização de seu interesse pessoal que leva a se estabelecer
espontaneamente o melhor estado social. Os indivíduos,
procurando livremente seus interesses individuais, são levados por
uma mão invisível a realização do interesse geral, como diz Smith, e
isso de forma muito mais eficaz do que se tivessem o objetivo
explícito de servir. O mercado, mais precisamente o jogo da livre
concorrência no mercado, é uma condição necessária e suficiente
para que o interesse geral seja respeitado. Não é necessário um
Estado coercitivo para impor a ordem aos indivíduos livres para
procurar a realização de seus próprios interesses particulares, o
mercado é suficiente. O Estado, nessas condições, deve se abster
de intervir na economia e se restringe às tarefas de defesa e
administração da justiça. A única intervenção econômica do Estado
considerada necessária por Smith é a construção de obras públicas.
Em outros termos, as obras de infra-estrutura, já que os
37

particulares não obtêm lucros ao realizarem eles próprios essas


obras.
De fato, Smith é bem consciente do destino geralmente terrível das
classes trabalhadoras. Ele descreve perfeitamente as relações de
força entre industriais e operários, totalmente vantajosa para os
primeiros. Nem por isso ele pensa que seja necessária intervenção
do Estado para remediar essa situação social. A sociedade funciona
como um organismo natural e, acima de tudo, não se deve intervir
para não se correr o risco de prejudicar seu funcionamento. Em
termos modernos, podemos dizer que para Smith, considerando
que o liberalismo econômico é o sistema mais apto para promover
o crescimento, os assalariados encontrarão seus interesses a longo
prazo, mesmo que sofram no momento imediato.
Apesar dos aspectos sociais da Revolução industrial, ainda mais
gritantes no início do século XIX do que no momento em que Smith
escrevia, os economistas clássicos retomaram suas teses sobre as
benesses do liberalismo econômico e a não intervenção do Estado.
Tomemos como exemplo Malthus que, no campo social, adota o
liberalismo mais extremado. Em 1978, em sua obra “Um ensaio
sobre os Princípios da População”, ele se opõe ardorosamente a
qualquer intervenção do Estado no domínio social, em particular às
leis sobre os pobres e ao sistema de assistência aos pobres que a
Inglaterra praticava na época. Seu raciocínio se apoiava sobre o
que ele pensava ser uma lei natural da população, expressada
como uma fórmula matemática elementar. A população cresce
segundo uma progressão geométrica, como a sucessão numérica
1,2,4,8,16..., enquanto os meios de subsistência crescem segundo
uma progressão geométrica, como a sucessão1,2,3,4,5,6 ... A
insuficiência de meios de subsistência acaba por diminuir o
crescimento “natural” da população através da miséria, da doença,
da fome, da morte prematura e das guerras. Malthus então se
inclina em direção a outro modo de limitar o crescimento da
população. Ele se declara favorável a um controle moral do instinto
de reprodução. Esse controle, segundo ele, só é possível numa
38

sociedade desigual, onde seria aplicado exatamente juntos aqueles


que não têm meios de alimentar uma família numerosa, isto é, aos
pobres. Eis porque ele se opõe tão vivamente às leis de assistência
aos pobres. Essas leis permitem que os deserdados, sem os meios
de se casarem, tenham filhos que, por sua vez, constituirão famílias
miseráveis, contribuindo para o aumento da pobreza ao invés de
diminuí-la. As próprias leis de assistência aos necessitados criam os
pobres que elas assistem, declara Malthus, tese célebre que ecoa
ainda hoje. Portanto, para Malthus somente o respeito da ordem
liberal e da desigualdade social, sem intervenção do Estado, é
suscetível de impedir o desenvolvimento da população.
A tese de Malthus será acolhida muito favoravelmente pelos
outros economistas clássicos, Ricardo em particular. A importância
que dão à idéia de que existe uma ordem natural os impede de ver
que não há lei natural para a população. Taxa de natalidade e taxa
de mortalidade dependem de fatores sociais: organização social,
costumes, grau de desenvolvimento econômico, religião, progresso
da medicina. De outro modo, como compreender, por exemplo, a
grande diminuição das taxas de natalidade dos países
desenvolvidos hoje em dia? Não existe lei natural, única, para o
desenvolvimento da população.
De forma mais geral, os economistas clássicos consideram as leis
econômicas como naturais, universais e eternas. Como Quesnay e
os fisiocratas, os clássicos não concebem a existência de sistemas
econômicos historicamente determinados e não percebem que as
leis econômicas que estudam são leis históricas.
Resta o fato de que o estudo dessas leis econômicas os leva a
aprofundar as análises já realizadas e apresentar novidades,
algumas das quais marcam um grande progresso para o
conhecimento econômico.
39

II – A análise econômica dos clássicos.

Neste ponto surgem importantes divergências entre os


economistas clássicos. Elas dizem respeito ao problema do valor
das mercadorias, da natureza e da distribuição de renda, e ao
problema do crescimento e das crises.

O valor das mercadorias e a distribuição da renda.

Sobre esse ponto temos, de um lado, as análises de Smith e de


Ricardo, de outro lado, a análise de Say.

Smith e Ricardo: teoria do valor trabalho e distribuição de renda

Smith começa explicando que a riqueza, composta por tudo que é


necessário e cômodo à vida, é obtida pelo trabalho. Isso o leva a
rejeitar a tese errônea dos fisiocratas, segundo a qual somente a
agricultura é produtiva. Depois mostra que o crescimento dessa
riqueza se deve ao poder produtivo do trabalho humano, ele
próprio função do progresso da divisão do trabalho. Ele cita o
célebre exemplo da fabricação de alfinetes. Se um operário tem de
fabricar um alfinete totalmente sozinho, no máximo produzirá um
alfinete por dia. Se imaginarmos agora uma manufatura com dez
operários em que o trabalho é dividido em dezoito tarefas
distintas, a produção será de cinco mil alfinetes por trabalhador a
cada dia. De fato, a divisão do trabalho é acompanhada por três
efeitos favoráveis: o aumento da habilidade dos trabalhadores
devido à especialização; a economia de tempo, pois não passam de
um trabalho para outro; e a utilização mais freqüente das
máquinas.
Posteriormente, desenvolvendo a idéia de que a divisão do
trabalho é ela própria fonte da propensão dos indivíduos para a
troca, Smith coloca o problema do valor de troca dos bens.
40

Neste ponto, Smith e depois Ricardo especificam e desenvolvem


uma teoria do valor das mercadorias, já apresentada alguns anos
antes por um economista inglês, William Petty, a teoria
denominada teoria do valor trabalho, segundo a qual o valor das
mercadorias depende da quantidade de trabalho necessária para
produzi-las.
Eles começam por estabelecer uma distinção, já feita por
Aristóteles, entre valor de uso das mercadorias, a utilidade delas, e
valor de troca, relação de troca que se estabelece entre duas
mercadorias. O valor de uso é uma condição necessária para que
exista o valor de troca, pois se um bem não tem qualquer utilidade,
não encontrará compradores e não terá valor de troca. Porém,
esse valor de troca não é determinado pelo valor de uso, que é
específico de cada mercadoria e, portanto, não é um elemento
comum. Ele é determinado pelo trabalho efetuado para produzir
cada uma das mercadorias. Ricardo frisa que é necessário distinguir
o trabalho efetuado diretamente, por exemplo, o trabalho
daqueles que produzem as roupas, do trabalho efetuado
indiretamente, isto é, nas tarefas daqueles que produzem as
máquinas utilizada para a produção de roupas. Observação
importante já que ela significa que não há um único fator de
produção, o trabalho, e que os bens de equipamentos não são um
fator de produção adicional, que se adicionaria ao trabalho, sendo
colocado no mesmo plano deste último. Ricardo observa também
que a teoria do valor trabalho é aplicável somente aos bens
reprodutíveis pelo trabalho, que ela não se aplica, por exemplo, às
obras de arte, que são únicas.
Essa teoria do valor-trabalho leva Smith e Ricardo a uma nova
forma de apresentar a determinação dos preços. Esses dependem
essencialmente do custo do trabalho, que na esfera da produção
determina o valor que Smith e Ricardo denominam preço natural.
Depois, na esfera da troca, é fixado um preço de mercado que
flutua em função da oferta e demanda em torno desse eixo
constituído pelo preço natural. Smith e Ricardo acrescentam que as
41

forças de mercado, se a deixarmos vigorar livremente, tendem a


eliminar automaticamente as diferenças entre a oferta e a
demanda, portanto entre o preço natural e o preço de mercado.
Por exemplo, como explica Ricardo, se em dado momento a
demanda é superior à oferta em um setor de produção, o preço de
mercado será superior ao preço natural. A taxa de lucro, então,
aumentará nesse setor, atraindo novos capitais que farão com que
a oferta cresça. Portanto, que desapareça a diferença inicial.
Resta ainda o fato que Smith e Ricardo se defrontam com uma
dificuldade na elaboração de suas teorias do valor trabalho. No
valor das mercadorias, no preço natural, não há somente os
salários proporcionais ao trabalho realizado, há também os lucros,
que na visão deles não remuneram qualquer trabalho e são
proporcionais ao capital despendido. Eis que parece contraditório
com a idéia de que o trabalho, e somente o trabalho, é a única
fonte do valor, o que compromete a teoria do valor-trabalho.
Embora conscientes do problema, nem Smith, nem Ricardo
conseguem resolver o problema. Smith se contentará em dizer que
a teoria do valor-trabalho só é validade para o estágio primitivo da
sociedade, quando a produção só dependia do trabalho. Por sua
vez, Ricardo dirá que a teoria do valor-trabalho é válida apenas
aproximadamente.
Essa dificuldade não impede que Smith e Ricardo utilizem a teoria
do valor-trabalho para tirar conclusões muito importantes sobre a
natureza e a distribuição da renda.
Eles distinguem três rendas: salário, lucro e renda fundiária.
A análise de salário realizada por Smith e Ricardo parte da idéia de
que o trabalho é uma mercadoria e que, como qualquer
mercadoria, tem um valor ou preço natural, denominado salário
natural, e um preço de mercado, denominado salário de mercado.
O salário natural é determinado pelo custo medido em trabalho na
produção de bens necessários à manutenção dos trabalhadores e
de suas famílias. Ele tende, afirma Ricardo, a aumentar na medida
em que se incorpora novas necessidades consideradas importantes
42

pelos trabalhadores. O salário de mercado é aquele fixado de fato


no mercado e que flutua em função da demanda e da oferta de
trabalho, em torno do eixo constituído pelo salário natural. Na
realidade, Ricardo, que é um adepto da lei populacional de
Malthus, pensa que a oferta de trabalho tem a tendência de
aumentar mais rápido do que a demanda, o que terá como efeito
promover a diminuição dos salários.
Um último ponto diz respeito aos salários: a distinção realizada por
Smith entre os trabalhadores produtivos e improdutivos. Para
distingui-los Smith hesita entre dois critérios. O mais freqüente é o
que estima que são produtivos apenas os trabalhadores que
produzem bens materiais, em contraposição aos que produzem os
serviços. No entanto, às vezes ele adota outro critério, aquele da
produção destinada a ser vendida com lucro. Portanto, são
produtivos os trabalhadores que participam dessa produção, quer
se trate da venda de bens materiais, quer se trate de serviços. Em
contraposição, aqueles que produzem serviços não vendidos no
mercado, como os que hoje chamamos de funcionários, não são
trabalhadores produtivos. Considerando o que seja a produção
capitalista, isto é, precisamente a produção destinada à venda com
lucro, o segundo critério de Smith nos parece muito mais
satisfatório.
Dado que todo valor é criado pelo trabalho, segue-se logicamente
que o lucro é uma retirada desse valor efetuada pelos proprietários
de capitais. Uma parte do que é criado pelos trabalhadores não
lhes retorna. Diríamos que eles são explorados. Smith observa bem
que o lucro não remunera de nenhuma forma um trabalho de
inspeção e direção. Isso, ele explica, aprece claramente nas
“grandes fábricas”, onde esse trabalho é realizado pelo que Smith
chama “primeiro empregado” e que nós chamamos engenheiro,
técnico e administrador. Esse “primeiro empregado” é remunerado
por um salário e não pelo lucro.
Quanto ao juro do capital, para Smith é apenas uma parte do lucro
paga pelos proprietários das empresas àqueles que lhes
43

emprestam capital. Por conseguinte, a taxa de juro normalmente


deve ser inferior à taxa de lucro.
A renda fundiária auferida pelos proprietários fundiários é uma
parte do lucro pago pelos proprietários dos capitais, aqui os
fazendeiros, aos proprietários das terras. Tal como o lucro da qual
ela surge, deve ser considerada como uma retirada sobre o valor
criado pelos trabalhadores agrícolas. Se os proprietários fundiários
podem obter essa renda é porque eles encontram, nos explica
Smith, em uma situação de monopólio dada a quantidade limitada
de terras. Estamos longe do “dom gratuito” de Quesnay! Ricardo,
seguindo os trabalhos de Malthus, especificará notavelmente essa
análise apresentando sua teoria da “renda diferencial”. À medida
que a cresce a população, cultiva-se terras cada vez menos férteis,
sobre as quais o custo de produção é cada vez mais elevado. Como
é necessário que essas terras menos férteis sejam cultivadas, o
preço do trigo, tomando-o como exemplo, será determinado pela
terra menos fértil, o que permitirá os proprietários de terras mais
férteis obter uma renda fundiária mais elevada, renda diferencial
que provém das diferenças entre os custos de produção das terras.
As análises de Smith e Ricardo sobre o valor, sobre a natureza e
sobre a distribuição de renda, particularmente a análise do lucro e
da renda fundiária como retirada sobre o valor criado pelo
trabalho, explicam duas das atitudes de seus sucessores para com
eles.
Primeiro, elas explicam a avaliação de Marx. De fato, para Marx,
Smith e Ricardo defendem e glorificam o sistema econômico
existente. Porém, essa atitude não é apenas pura apologia, pois
suas análises definitivamente lançam luz definitivamente sobre a
existência de exploração do trabalho pelo capital.
As análises de Smith e Ricardo explicam também por que a
economia política dominante abandonou, a partir do fim do século
XIX, suas teorias do valor e da distribuição: Marx as transformara
em instrumentos de combate contra o sistema capitalista. A
economia política dominante irá alinhar-se com a linha de Say que,
44

embora se defina como representante de Smith no continente,


apresenta uma teoria do valor e da distribuição totalmente
diferente.

Say: teoria do valor-utilidade e distribuição de renda

Say rejeita a teoria do valor trabalho e acha sua inspiração na obra


de um contemporâneo francês de Smith, o abade Condillac. Ele
afirma que o valor dos bens é determinado pela utilidade deles. Ao
contrário de Smith e Ricardo, ele não faz distinção entre valor (ou
preço natural) e preço de mercado. Para ele a determinação dos
preços depende somente do jogo de oferta e demanda na esfera
das trocas, no mercado. A esfera da produção não intervém. Se um
copo d’água no deserto tem um preço elevado, diz Say, é porque
ele é muito útil. Say aparentemente não percebe que se o preço do
copo d’água é muito alto é porque o excesso de demanda tem o
efeito de provocar o aumento do preço de mercado acima do
preço natural, o que não significa de forma alguma que o preço
natural seja determinado pela utilidade.
A rejeição da teoria do valor trabalho tem a seguinte conseqüência:
para Say, não existe um fator de produção único como criador do
valor, mas sim três fatores, o trabalho, o capital e a terra. Desse
modo, Say é conduzido a uma análise da natureza e da distribuição
da renda também muito diferente daquela feita por Smith e
Ricardo.
Há no centro de sua análise uma personagem que não existe em
Smith e Ricardo, o empresário. As funções geralmente atribuídas
ao empresário, o trabalho de direção da empresa, existem para
Smith e Ricardo, porém são exercidas pelo capitalista ou por um
assalariado (que Smith denomina como o primeiro empregado).
Para eles não existe o empresário, que não é nem capitalista, nem
assalariado. Para Say, ao contrário, essa personagem existe. Ela
expressa uma demanda por “serviços produtivos”, comprando dos
trabalhadores os serviços produtivos do trabalho e dos
45

proprietários do capital os serviços produtivos do capital, aos


proprietários fundiários compram os serviços produtivos da terra.
Face a este empresário há aqueles que possuem os serviços
produtivos: os trabalhadores, os proprietários de capitais e os
proprietários fundiários. Dessa confrontação entre oferta e
demanda de serviços produtivos surgem as três rendas; salário,
juro do capital e renda fundiária, que, portanto, representam os
preços dos serviços produtivos.
Essas análises são bastante passíveis de crítica.
No que diz respeito aos salários, podemos apenas lamentar o
desaparecimento da distinção fértil realizada por Smith e Ricardo
entre salário natural e salário de mercado.
Com relação ao lucro, constata-se que ele desapareceu! A renda do
capital é o juro. Isso é coerente dado que para Say a renda do
capital é determinada no mercado a partir da confrontação entre a
oferta e a demanda dos serviços produtivos do capital. Isso deixa
de lado a maior parte do capital, proveniente de fundo próprio e
não tomados de fundos disponíveis no mercado: capital inicial,
aumentos de capital e auto-financiamento.
Uma teoria da distribuição sem lucro é a responsável por um sério
problema. O mesmo ocorre por aquela misteriosa personagem, o
empresário de Say, que não possui capital, que toma emprestado a
totalidade dos fundos e também não é um trabalhador assalariado.
Misteriosa porque na realidade essa personagem não existe. Na
realidade, como Smith demonstrou bem, há proprietários de
capitais que empregam trabalhadores, quer se trate de operários,
quer se trate de administradores que fazem o trabalho de direção
(o primeiro empregado). Para Say não são os proprietários de
capitais que empregam os trabalhadores: é o empresário que
compra os serviços produtivos do trabalho, da mesma forma que
compra os serviços do capital. Percebemos que essa personagem
tem uma grande vantagem, que explica o brilhante futuro que lhe
espera: fazer crer que a situação social dos capitalistas e dos
trabalhadores é essencialmente a mesma, dado que todos eles são
46

levados a vender seus serviços produtivos ao empresário, e


portanto são dependentes dele.

O crescimento e as crises.

A teoria de crescimento é uma questão essencial para os


economistas clássicos já que, não podemos esquecer, a tarefa de
promover o crescimento é que, aos olhos deles, justifica o
liberalismo econômico.
O ponto de partida das posições pró e contra nesse tema é a
posição de Smith, que adota dois pontos de vista contraditórios
segundo o tipo de apresentação que realiza sobre o crescimento,
teórica ou histórica. Say e Ricardo situam-se na lógica da teoria de
Smith, enquanto Malthus situa-se na perspectiva histórica.

Smith: teoria e história do crescimento

Smith elabora uma teoria que tem na poupança a condição


necessária e suficiente para o crescimento. Este não pode se
deparar com problemas de mercados insuficientes. Mais
precisamente, o raciocínio de Smith desenvolve-se em três etapas:
1 – O crescimento depende da acumulação de capital.
2 – A acumulação de capital só pode se dar se uma parte da renda
for poupada. A poupança, que depende essencialmente da classe
capitalista dado que o salário recebido pelos trabalhadores
geralmente é muito baixo para que possam poupar, é uma
condição necessária ao financiamento e à acumulação de capital.
3 – Não apenas a poupança é uma condição necessária para o
crescimento, mas também é uma condição suficiente, pois ela é
gasta automaticamente. Esta última afirmativa, ao contrário das
duas primeiras, é falsa. Ela omite a possibilidade que a parcela
poupada da renda seja muito elevada em relação à parcela
destinada à demanda de bens de consumo. Nesse caso, a
insuficiência de demanda de bens de consumo tem o efeito de
47

frear o investimento da poupança. As empresas não comprarão


bens de equipamento novos para aumentar a produção de bens de
consumo se a demanda por esses bens for muito pequena. A
poupança não é automaticamente investida. Portanto, ela não é
condição suficiente para o crescimento.
Essa concepção errônea de Smith é provocada por dois erros, que
podem parecer curiosos hoje em dia. Primeiro erro: a idéia de que
a poupança se transforme totalmente em uma demanda de bens
de consumo, na medida em que ela seja utilizada para empregar
trabalhadores cujos pagamentos de salários irão originar essa
demanda. Smith, curiosamente, não percebe que a parte poupada
e investida serve não apenas para pagar os salários, mas também
origina uma demanda por bens de equipamento. Smith, com a
poupança sendo inteiramente consumida, não percebe que a
demanda por bens de equipamento corre o risco de ser muito
pequena em dado momento, em razão da própria insuficiência da
demanda por bens de consumo. O segundo erro diz respeito à
concepção de moeda. Para Smith, a moeda é unidade de conta e
instrumento de circulação das mercadorias. Ele não percebe que
ela também pode ser reserva de valor e, portanto, demandada por
suas próprias características. Consequentemente, ele desconhece
que uma parte da poupança é suscetível de ser entesourada e criar
assim um déficit de demanda. Esses dois erros de Smith podem ser
resumidos em uma frase: a poupança é necessariamente
despendida, e sob a forma de demanda por bens de consumo.
Ao adotar esse ponto de vista, Smith impede a si mesmo de
perceber que o crescimento pode, em dado momento, ser
impedido por insuficiência de demanda. Segundo seu ponto de
vista, não há qualquer problema de desemprego. Segue-se daí, por
exemplo, que o comércio internacional, se é considerado por Smith
lucrativo para todas as nações como fonte de especialização e,
portanto, de eficiência, não tem qualquer significância em termos
de mercado externo porque, por definição, não pode haver
problemas com a venda das mercadorias.
48

No entanto, quando Smith nos apresenta uma história do


crescimento dos países europeus, atribui então um papel
importante demais aos mercados externos, reconhecendo
implicitamente que a poupança não é uma condição suficiente
para o crescimento. Ele insiste, em particular, no papel essencial
dos mercados coloniais, principalmente americanos, para estimular
o desenvolvimento da indústria inglesa. Esses mercados, como
explica Smith, fornecem uma demanda adicional para o excedente
de produtos não vendidos no mercado interno, até mesmo
estimulam a produção desse excedente, permitindo então um
desenvolvimento da atividade econômica. Ainda melhor: os
mercados coloniais externos não apenas estimulam diretamente a
indústria, mas também provocam um aumento do mercado
interno proveniente das despesas dos operários que trabalham
para a exportação. Assim, o desenvolvimento da atividade interna
é mais que proporcional ao crescimento inicial provocado pelos
mercados externos. Nesse ponto Smith apresenta um primeiro
esboço do que chamaremos mais tarde de multiplicador do
comércio externo.

Say e Ricardo: a lei dos mercados.

Say e Ricardo situam-se, a respeito da questão do crescimento, na


linha teórica de Smith.
Portanto, para eles a poupança é a condição necessária e suficiente
para o crescimento. E assim cometem os mesmos dois erros. A
poupança é necessariamente gasta, a moeda sendo apenas um véu
que esconde a realidade da troca de produtos por outros produtos,
e esta poupança origina uma demanda por bens de consumo.
Say completa esta análise com a célebre lei de mercado, segundo a
qual a oferta cria sua própria demanda. A idéia é que a produção
do conjunto dos setores cria as rendas, que por si só criam os
mercados para essa produção.
49

Essa lei de mercado tem como conseqüência o fato de que as crises


gerais de super-produção são impossíveis. Pode apenas haver
desajustes setoriais em sentidos inversos, que tenderão a
desaparecer automaticamente se deixarmos as forças de mercado
atuarem livremente.
Essa lei de mercado com seu corolário, a impossibilidade de crises
gerais de superprodução, assumem um futuro glorioso. Ela será
dominante, tirando-se as correntes socialistas, até a crise de 1929
e suas conseqüências explicitadas por Keynes. De imediato essa lei
é aprovada por Ricardo. Nota-se certo paradoxo em suas análises
sobre o comércio internacional. De fato, por um lado, Ricardo
retoma e especifica a idéia presente nas teorias de Smith e de Say,
segundo a qual o comércio internacional é útil, já que a divisão
internacional do trabalho possibilita o crescimento da
produtividade, porém os mercados externos não constituem uma
condição necessária para esse crescimento. Por outro lado, Ricardo
defendeu vigorosamente o livre comércio na Inglaterra, guiado
pela idéia de tornar mais baratos os bens de consumo e as
matérias-primas importadas. Porém, ao mesmo tempo, esse livre
comércio constituía-se como o melhor meio de crescimento dos
mercados externos para a indústria inglesa, sem receio de perda de
mercado em benefício dos concorrentes, dado o avanço da
Inglaterra em relação aos outros países em termos de
industrialização.
Concomitante a esse processo, num país como a Alemanha, então
com atraso econômico em comparação com a Inglaterra, o
economista Friedrich List explica em sua principal obra publicada
em 1840, Sistema nacional de economia política, que o livre
comércio preconizado por Ricardo é uma máquina de guerra a
serviço da indústria inglesa e que um país como a Alemanha, se
quiser desenvolver sua indústria, deve adotar uma política
protecionista, pelo menos nos momentos iniciais.

Malthus: o papel da demanda efetiva


50

Sobre essa questão do crescimento, Malthus se opõe frontalmente


às teses de Say e Ricardo e se situa na linha de história do
crescimento de Smith. Desde os anos 1814-1817, em suas cartas
endereçadas a Ricardo, Malthus tinha questionado a lei de
mercado e insistido sobre o papel central da demanda para o
crescimento. A crise econômica que atinge a Inglaterra em 1817-
1818 reforça essa crítica. Da mesma forma, a obra de um
economista suíço, Sismondi, publicada em 1819, Novos princípios
de economia política, onde o autor afirma que a insuficiência da
demanda por bens de consumo devido aos baixos salários provoca
crises de super-produção periódicas, e que irão se agravando.
Portanto, Malthus recusa a idéia que a oferta crie sua própria
demanda e afirma que a poupança, condição necessária para o
crescimento, não é uma condição suficiente. O crescimento tem,
como primeira exigência, a existência de uma demanda
concretizável e suficiente para uma demanda efetiva, como ele diz,
expressão que será retomada por Keynes um século mais tarde. Se
a demanda solvável é suficiente, a poupança gasta levará a um
aumento da produção, que por si mesma possibilitará a venda. No
entanto, se a demanda concretizável é insuficiente, o excedente
restará não vendido. A poupança, porque excessiva, se revelará
nefasta. A análise leva ao reconhecimento da possibilidade de
crises gerais de super produção devido à insuficiência da demanda
global. Para que a demanda seja suficiente e para evitar as crises,
Malthus preconiza dois tipos de medidas. É preciso favorecer o
crescimento do número de consumidores improdutivos –
domésticos, militares, padres, professores...- isto é, que não
produzem bens, mas que consomem. Além disso, é preciso
favorecer o desenvolvimento dos mercados externos.
A obra de Malthus a respeito do crescimento dos mercados é
muito mais fecunda do que a de Say e de Ricardo. Infelizmente, ele
enfraqueceu sua posição ao cometer um erro quando quis explicar
teoricamente por que a demanda efetiva tem a tendência de ficar
51

abaixo da produção. Os salários, ele explica, são inteiramente


direcionados à demanda de bens de consumo, mas os lucros são
poupados em parte. Decorre daí o sub-consumo. Malthus comete
o erro de não perceber que a parte poupada dos lucros, se for
gasta, provoca uma demanda por bens de equipamento que se
junta à demanda de bens de consumo, permitindo que a demanda
global se mantenha ao nível da oferta global. Por conta desse erro,
Malthus facilitou a tarefa de seus adversários e, como já
remarcamos, a ortodoxia da lei de mercado será dominante até
Keynes.
Resta ainda um último ponto a respeito da análise do crescimento
pelos economistas clássicos. Smith, depois Ricardo adiantam a
idéia de que o crescimento é um fenômeno transitório, que a
longo-prazo acabará por perder o fôlego, levando ao que ele
chama de “estágio estacionário”. Para explicar isso, Ricardo se
baseia na lei da população de Malthus e sobre a teoria da renda
diferencial. O raciocínio é o seguinte:
Crescimento da população→utilização na agricultura de terras cada
vez menos férteis→alta dos preços dos alimentos de
subsistência→alta do salário nominal, a fim de que o salário real, já
no patamar mínimo, permaneça estável→baixa dos
lucros→interrupção do crescimento.
Ricardo adiciona que existem três meios de lutar contra essa baixa
do lucro e a chegada do estágio estacionário: progresso técnico na
agricultura, freando a alta dos preços dos alimentos de
subsistência; a existência de colônias cujas terras férteis também
podem diminuir essa alta; a abolição dos direitos alfandegários
sobre as importações de trigo. Mas esses três meios apenas
frearam a evolução. A baixa do lucro se efetivará e, com ela, a
chegada do estado estacionário.
A economia política clássica, cujo fundamento comum, à parte as
divergências analíticas, é a assimilação das leis econômicas às leis
naturais, vai sofrer dois grandes tipos de crítica.
52

Um primeiro tipo advém, na segunda metade do século XIX, do que


será denominado como Escola histórica alemã. Os membros dessa
escola consideram que o estudo da economia não consiste em
descobrir e analisar as leis econômicas, mas simplesmente em se
interessar pela história dos fatos econômicos e sociais. Assim, em
reação aos clássicos que pretendem de forma abusiva que as leis
econômicas sejam leis naturais, válidas a qualquer tempo e lugar,
os membros da Escola histórica alemã rejeitam a própria idéia de
leis econômicas, negando a existência de uma economia política
existente de outra forma que não seja a de simples história dos
fatos.
Um segundo tipo de crítica, bem diferente, surge então da corrente
socialista.
53

Capítulo 4
A crítica socialista ao capitalismo e à economia política clássica

Século XIX

A Europa na qual se desenvolve a economia política clássica é


aquela, como sabemos, da Revolução Industrial. As condições de
trabalho e de vida impostas aos operários provocam não somente
inúmeros movimentos sociais, protestos, greves, revoltas, mas
também uma reação no nível das idéias. Trata-se de uma reação
contra o desenvolvimento do capitalismo e suas conseqüências
sociais. Surge também uma reação contra a economia política
clássica, contra a defesa que faz do liberalismo econômico e a sua
caracterização das leis de desenvolvimento do sistema capitalista,
visto como leis naturais que é preciso respeitar.
Uma primeira corrente agrupa, durante a primeira metade do
século XIX, os representantes de um socialismo pré-marxista, que
Marx e Engels qualificaram de socialismo utópico. Uma segunda
corrente é representada pelo socialismo de Marx.

I – O socialismo utópico

O socialismo utópico, retomando a tradição de Thomas More,


propõe projetos de organização comunitária da sociedade. Isso é
realizado de forma extremamente diversificada, que podemos
reagrupar em três grupos:
Um socialismo associacionista, ignorando totalmente o Estado e
desenvolvendo a visão de uma sociedade baseada na justaposição
de associações livremente constituídas entre pequenos grupos de
indivíduos. Os dois principais representantes dessa corrente são
Robert Owen, na Inglaterra, e Charles Fourier, na França.
Um socialismo que preconiza também a associação, porém a
associação por intermédio do Estado, que exercerá aí o papel
54

motriz. Essa corrente é representada na França por Louis Blanc e


Constantin Pecqueur.
Um socialismo reformador que propõe resolver a questão social
através do desenvolvimento do mutualismo, defendido por Pierre
Joseph Proudhon.
O socialismo utópico apresenta certo número de características
gerais. A crítica à sociedade capitalista é freqüentemente de ordem
moral. Acredita-se que seja possível construir no próprio interior
da sociedade capitalista ilhas de novas sociedades comunitárias.
Finalmente, essa sociedade que os socialistas utópicos chamam de
seus anseios é descrita em suas obras com enorme luxo de
detalhes.

Um exemplo: o socialismo utópico de Charles Fourier

A obra de Fourier (suas principais obras são Teoria dos quatro


movimentos – 1808, O Novo Mundo Industrial – 1827, A falsa
Indústria – 1835-1836) ilustra perfeitamente o socialismo utópico.
O pensamento de Fourier dá a impressão de uma imaginação
abundante, poética, na qual é importante reconhecer idéias novas
e muito interessantes.
Primeiro ele se dedica a uma crítica do regime social existente, no
qual o reino do livre mercado conduz à produção sem preocupação
co o crescimento do nível de vida dos assalariados, o que suscita
miséria, injustiça e crises de superprodução. Jogam-se fora
colheitas inteiras enquanto o povo morre de fome. Ele defende a
idéia, inovadora em relação à crença dos economistas clássicos nas
leis naturais, válidas a qualquer tempo e lugar, que a história da
humanidade é a de uma sucessão de fases distintas. Portanto, está
implícita a idéia que os sistemas econômicos e sociais podem ser
bem diferentes e que as leis econômicas são leis historicamente
determinadas. Quando ele especifica quais são essas fases
distintas, deixa-se levar por sua imaginação e pelas teorias
cósmicas que são moeda corrente em fins do século XIX. De fato,
55

ele explica que a humanidade passou por cinco fases: a etapa


primitiva, a selvageria, o patriarcado, a barbárie e enfim a
civilização, que é uma ramificação passageira caracterizada pela
ausência de acordo na produção. Para além da civilização atual
Fourier prevê um período feliz de trinta e cinco mil anos, depois
um período de cinco mil anos de infelicidade que conhecerá a
destruição da terra. A alma humana, imortal, emigrará para outro
mundo.
Se quisermos mudar os homens e seu comportamento, é preciso
em primeiro lugar mudar o meio no qual eles vivem. A idéia,
também nova e interessante, é expressa com toda a imaginação de
Fourier. Ele explica que a lei essencial que rege as relações entre os
homens é a lei de atração, a mesma que rege o universo. Portanto,
não é preciso reprimir as paixões, ao contrário, é preciso permitir
que se extravasem e, desse modo, mudar o meio no qual o homem
vive.
Finalmente Fourier propõe uma solução ao problema social: a
formação de pequenas comunidades que ele denomina de
Falanstérios. As características desses falanstérios se aproximam,
em certos aspectos, da ilha Utopia de Thomas More. Nos
falanstérios, pequenas comunidades com 1600 pessoas, 800
homens e 800 mulheres, a produção é abundante, quer se trate de
produção agrícola ou de produção industrial. Essa produção é
distribuída nos diversos falanstérios, ao invés de ficarem
concentradas nas cidades onde se amontoam formigueiros de
miseráveis. A divisão do trabalho não existe mais, cada um troca de
ocupação freqüentemente ao longo do dia, o que satisfaz a
perambulação por diversas atividades. A educação é assegurada
para todos. Graças à abundância que permite cada um receber
tudo o que precisa, profundas mudanças se produzem na mente e
na psicologia dos homens, destituídos do medo da “falta”. O ser
humano não é mais maduro devido ao interesse pessoal, mas pelo
serviço da sociedade. Ele não tem mais necessidade do exército e
da polícia. A mudança do meio no qual o homem vive terá como
56

efeito a transformação não só de sua mentalidade, mas também


de seu físico. Seu tamanho alcançará 2,22 metros, ocorrerá uma
modificação dos ventrículos, de modo a que o homem tanto
poderá viver na água quanto fora dela. Enfim, os habitantes da
terra entraram em comunicação com os de outros planetas, e
assim se passará da harmonia terrestre para a harmonia universal.
Se numerosas idéias de Fourier são ao mesmo tempo novas e
dignas de interesse, elas permanecem sendo fundamentalmente
um socialismo utópico, no sentido que ele acreditou ser possível
transformar profundamente a sociedade construindo ilhas
comunitárias radicalmente diferentes no próprio interior da
sociedade capitalista. E, também, que o único meio que ele
concebeu para passar da sociedade existente para a sociedade dos
falanstérios era o financiamento de um mecenas.
Os discípulos de Fourier foram pouco numerosos. No entanto,
existiram os que tentaram criar comunidades do tipo pregado por
ele. Victor Considérant, por exemplo, criou em 1855, no Texas, um
falanstério que fracassou subitamente.

II – O socialismo de Karl Marx

A obra de Marx é multiforme. É uma obra de filósofo, sociólogo,


historiador, economista e também de militante, já que Le consagra
uma grande parte de sua energia à organização do movimento
operário.
Suas principais obras são: Manuscritos econômico-filosóficos, de
1844; A ideologia alemã, publicado em 1846; Manifesto do partido
comunista, escrito com Engels e publicado em 1847; Fundamentos
da crítica da economia política, escrito em 1857-1858 e não
publicado com Marx ainda em vida; e finalmente O Capital, em que
somente o livro primeiro foi publicado ainda em vida, em 1867, os
livros II e II foram publicados por Engels após sua morte.
Desde 1844, o Manuscritos econômicos-filosóficos, numa época
em que Marx ainda não descobrira verdadeiramente a economia
57

política clássica, já apresenta uma crítica vivaz da sociedade


capitalista, caracterizada pela existência do trabalho alienado, e
isso sob três formas: O produto do trabalho do trabalhador não lhe
pertence, portanto lhe é estranho. A organização do seu trabalho
também lhe é estranha, pois não é ele que a define. Enfim, o
trabalho não é satisfação de uma necessidade, mas somente um
meio de satisfazer certo número de necessidades essenciais fora
do trabalho. Marx explica que a condição para acabar com esse
trabalho alienado é a abolição da propriedade privada dos meios
de produção, o fim da produção mercantil e da moeda, e a
construção de uma sociedade de “livres produtores associados”.
A descoberta da economia política clássica, e em particular a teoria
do valor-trabalho de Smith e Ricardo, permite que Marx
compreenda toda a importância da economia política. Esta, ele
explica, permite descobrir “a anatomia da sociedade burguesa”,
conhecimento que permite lutar melhor contra o sistema
capitalista e acelerar seu desaparecimento.
Marx, embora considere a economia política muito importante e se
inspire nas teorias do valor e da distribuição de Smith e Ricardo,
distingue-se profundamente deles ao afirmar que as categorias
econômicas – valor, preço, salário, lucro, capital – e as leis
econômicas que comandam o valor, a distribuição das rendas, o
crescimento ou as crises têm um caráter histórico. Essas leis
econômicas, longe de serem leis naturais, são leis históricas
próprias à forma específica de organização social da produção
capitalista. A produção mercantil e a fortiori a produção capitalista,
que estende à força de trabalho o status de mercadoria, são
formas históricas de produção. Conforme pensa Marx, houve na
história outras formas sociais de organização da produção, e
haverá outras, já que para ele a sociedade socialista deve
caracterizar-se pelo desaparecimento da produção capitalista e até
pelo desaparecimento progressivo da produção mercantil. A
economia política, que estuda as leis econômicas do sistema
capitalista, é ela própria uma ciência histórica nascida com a
58

produção mercantil e que desaparecerá com ela, este é o sentido


que é preciso dar ao sub-título d’O Capital; “ Crítica da economia
política”. A economia política é importante, mas, tal como a
produção mercantil cujas leis ela estuda. não será eterna.
A economia política de Marx assume a tarefa de compreender a
natureza e o funcionamento contraditório do sistema capitalista.
Marx define também alguns grandes princípios que permitem
caracterizar sua concepção sobre a construção de uma sociedade
capitalista.

A natureza do sistema capitalista

Quando uma parte do que é produzido por aqueles que trabalham


não lhes retorna, mas retorna à outra parte da sociedade, pode-se
falar de exploração. Assim definida, a exploração existe em outras
sociedades que não a capitalista. O escravo e o camponês, na
sociedade feudal, são explorados. A natureza do sistema capitalista
define-se então, aos olhos de Marx, pela forma particular em que a
exploração está revestida. Para desvelá-la, Marx duas etapas em
seu procedimento. Primeiro ele expõe, a partir da teoria do valor-
trabalho de Smith e Ricardo, sua própria teoria do valor. Depois ele
apresenta sua teoria de mais-valia, que para ele é exatamente a
forma específica de exploração a qual o trabalhador está
submetido na sociedade capitalista.

A teoria do valor trabalho

Se no ativermos ao que se observa no mercado, a mercadoria tem


um duplo caráter: ela é valor de uso e valor de troca, distinção feita
por Smith e Ricardo, e até por Aristóteles.
A mercadoria tem um valor de uso, ela é útil, permitindo a
satisfação de certo número de necessidades. Ela é, sob esse ponto
de vista, o fruto do que Marx chama trabalho concreto, quer dizer,
trabalhos específicos à produção de cada valor de uso, diferentes
59

uns dos outros. O trabalho concreto para produzir uma cadeira não
é o mesmo que aquele necessário para produzir roupas. O produto,
na produção mercantil, é destinado à venda. A mercadoria define-
se como a forma social que esse produto assume na economia
mercantil. O valor de uso é aquele que, no interior da mercadoria,
é produzido, matéria que permite satisfazer uma necessidade,
qualquer que seja a forma social desse produto. Uma cadeira serve
para sentar-se, seja ela dada ou vendida.
Esse valor de uso, como diz Marx, é o apoio material do valor de
troca. Isto é, como Ricardo já notara, é uma condição necessária
para a existência do valor de troca. Se um produto não tem
qualquer utilidade para alguém, não será vendido e, portanto, não
terá valor de troca.
Finalmente, dizer que o valor de uso é o aspecto material da
mercadoria não significa, como específica Marx, que ela se reduza
a esse aspecto material. De fato, ela também tem um aspecto
social, no sentido que traz consigo o traço da produção mercantil.
O valor de uso de um produto é um valor de uso para si (auto-
consumo) ou para outro (doação ou entrega obrigatória). O valor
de uso de uma mercadoria, ao contrário, é unicamente um valor de
uso para o outro, já que uma mercadoria por definição é um
produto destinado a ser vendido. O valor de uso das mercadorias,
além de seu aspecto material, tem especificidades sociais em razão
das características da economia mercantil.
A mercadoria tem um valor de troca. Ela se define pela relação
quantitativa, a proporção pela qual ela é trocada por outra. Para
que essa relação de troca manifestada no mercado exista, é preciso
uma qualidade comum às duas mercadorias, como já havia
revelado Aristóteles. Essa qualidade comum não pode ser o valor
de uso, pois enquanto tais as mercadorias são diferentes uma das
outras. Essa qualidade comum é o valor, e o valor em si tem por
fundamento o trabalho. Mas isso não é tudo.
Esse trabalho, que cria o valor, deve ser o mesmo trabalho
quaisquer que sejam as mercadorias produzidas. As mercadorias
60

que se trocam são frutos de um trabalho idêntico e igual. Não pode


se tratar de trabalhos concretos, que por definição são diferentes
uns dos outros. Poderia então tratar-se de um trabalho
fisiologicamente falando, a produção de qualquer mercadoria
exigindo um dispêndio fisiológico. No entanto, essa hipótese, que
às vezes parece que Marx adota, compreende um problema.
Realmente, sabemos que para Marx o valor e o valor de troca são
formas sociais que só existem na economia mercantil. Dito isto, é
impossível imaginar que o valor, forma particular da economia
mercantil, seja criado pelo trabalho fisiológico, trabalho este que
existe em todas as formas de produção. Portanto, é preciso supor
que o trabalho fisiológico seja apenas a base material do trabalho
que cria o valor. E, a partir daí, Marx se coloca a questão de saber
quais são as características sociais do trabalho que fazem com que
ele se expresse inevitavelmente sob a forma de valor. Colocando-
se essa questão, Marx rompe com a idéia que seja o trabalho
fisiológico que crie valor. Ele explica então que o trabalho social,
substância do valor, tem na economia mercantil uma forma e uma
função particular, uma forma particular no sentido em que a
equalização dos trabalhos não se faz diretamente, mas no mercado
assume inevitavelmente a forma de uma equalização das próprias
mercadorias. Um papel particular na medida em que essa
equalização dos trabalhos, que se produz por intermédio da
equalização das mercadorias no mercado, transforma os trabalhos
privados dos produtores mercantis em trabalhos sociais. É o
mercado que, ao aceitar a produção de tal ou qual bem,
transforma os trabalhos privados dos produtores mercantis em
trabalho social: trabalho tendo produzido valor de uso e sendo
parte integrante da massa de trabalho que a sociedade dispõe.
Resumindo, se Marx se contentasse em dizer que o trabalho é a
substância do valor, sua teoria teria sido semelhante à de Ricardo.
Porém, ele vai mais longe. Pesquisando qual o tipo de trabalho
específico da economia mercantil pode ser a substância do valor,
ele nos mostrou que se trata de um trabalho social, que possui
61

uma forma e um papel particular a esta economia. O conceito que


engloba as especificidades do trabalho, substância do valor, é o de
trabalho abstrato, pois abstrai as formas concretas de trabalho que
dão origem aos valores de uso. No entanto, a teoria do valor de
Marx, inspirada na de Ricardo, é diferente. A substância do valor
não é o trabalho, mas sim o trabalho abstrato.
Enfim, depois de ter definido a substância do valor, Marx define
sua grandeza. É a quantidade de trabalho abstrato empregado na
produção e, ele ainda especifica, a quantidade de trabalho
socialmente necessário. Sob seu ponto de vista o que determina a
grandeza do valor de uma mercadoria num setor de produção, não
é a quantidade de trabalho efetivamente fornecida em cada
empresa, mas uma determinada quantidade necessária
socialmente. Isto é, uma média neste setor para um dado nível de
desenvolvimento do progresso técnico. Essa quantidade
determina, ela própria, o valor médio.
Após ter desvelado assim o valor sob o valor de troca, e em
seqüência o trabalho abstrato, Marx retoma uma análise mais
precisa do valor de troca e nos apresenta a concepção teórica que
ele tem sobre a moeda. Quando duas mercadorias se trocam, uma
tem a forma relativa, isto é, exprime seu valor relativamente ao
valor de outra, e essa outra mercadoria tem a forma de
equivalente, isto é, está lá para exprimir o valor da primeira. Para
que a economia mercantil possa ser generalizada, com o conjunto
de produtos sendo trocados, é necessário que uma mercadoria seja
colocada de lado em relação às outras, para que sirva como
equivalente geral. Essa mercadoria escolhida para assumir o papel
de equivalente geral, na qual todas as outras mercadorias
exprimem a grandeza de seus valores, Marx denomina justamente
de moeda. É o ouro e a prata que, historicamente, assumem esse
papel. Portanto, para Marx a moeda é uma forma de valor, uma
forma tal que ela própria assumirá outras formas além da
mercadoria-metal, relacionadas com as diversas funções da
62

moeda: medida de valores, meio de circulação, reserva de valores,


meio de pagamento.
Definido a forma moeda, Marx é levado a apresentar a forma
preço, definido com a expressão do valor relativo de uma
mercadoria em moeda. Ele especifica que a existência dessa forma
preço implica diferenças entre preço e valor de troca. Essas
diferenças são conseqüências do jogo de oferta e demanda no
mercado. O preço, que Marx chama de preço de mercado, flutua
em função das diferenças entre a oferta e a demanda em torno de
um eixo constituído pelo valor, ele próprio determinado na esfera
da produção. Reencontramos assim uma análise já apresentada em
Smith e Ricardo

A teoria da mais-valia

O que Marx denomina a circulação do capital apresenta-se abaixo


sob a forma de um esquema:

Suponhamos um capitalista industrial que possua dinheiro. Ele


compra mercadorias M, mais precisamente meios de produção MP
63

e a força de trabalho. Ele as compra pelo seu valor. As utiliza no


processo de produção, onde se cria as mercadorias M’ que tem um
valor superior à M, a diferença (M’-M) sendo a mais valia. Essas
mercadorias são vendidas pelo seu valor A’, superior a A, a
diferença (A’-A) sendo a mesma que existe entre M’ e M.
Assim, vemos que a mais-valia nasce fora do processo de circulação
das mercadorias, já que ela é criada no processo de produção, mas
graças ao processo de circulação das mercadorias que permite ao
industrial comprar e vender.
O problema que devemos resolver consiste em saber como esta
mais-valia nasce no processo de produção. O segredo do negócio,
diz Marx, é que existe no mercado uma mercadoria que é a única
capaz de criar mais valor do que tem: a força de trabalho.

A força de trabalho

A força de trabalho dos trabalhadores é definida como o conjunto


de faculdades psíquicas e intelectuais que os trabalhadores
dispõem e tem de colocar em ação para produzir.
Na produção capitalista, essa força de trabalho é uma mercadoria
vendida pelo trabalhador e comprada pelo capitalista. Como todas
as mercadorias, ela tem um valor e um preço.
Seu valor é determinado pela quantidade de trabalho abstrato
necessário para produzir os próprios bens necessários à
manutenção e reprodução da força de trabalho. Esse valor é
composto de dois elementos, e aqui encontramos uma análise já
desenvolvida por Ricardo. O primeiro é o elemento fisiológico, isto
é, o mínimo de alimento, vestimentas, abrigo indispensáveis para
viver. O segundo é um elemento social ou histórico, composto de
novos bens que os trabalhadores consideram que devem
incorporar ao valor de sua força de trabalho na medida em que as
necessidades se desenvolvem.
O salário é a expressão monetária do valor da força de trabalho, é
o seu preço. Tal como os preços de qualquer mercadoria, ele pode
64

ser superior ou inferior em função das lutas sociais, da relação de


forças, elas próprias determinadas em parte por fatores objetivos
como a situação do mercado de trabalho.
Sabemos agora como se determina, para Marx, o valor da força de
trabalho. Suponhamos que o capitalista industrial compre a força
de trabalho pelo seu valor. Uma vez comprada, ela é utilizada no
processo de produção. É aí que ela cria a mais-valia.

A criação de mais-valia

Marx retoma o exemplo do capitalista industrial que compra pelo


seu valor os meios de produção, bens de equipamento, matérias-
primas e força de trabalho. Para simplificar o raciocínio, ele
considera apenas o trabalho cotidiano de apenas um trabalhador.
Portanto, suponhamos que a grandeza do valor da força de
trabalho desse operário seja igual a quatro horas. Suponhamos
também que esse operário só efetue quatro horas de trabalho em
sua jornada. Finalmente, a grandeza do valor dos bens de
equipamento e das matérias-primas que ele utiliza enquanto
trabalha quatro horas é igual a uma hora de trabalho. Portanto, o
capitalista industrial comprou pelos seus valores os meios de
produção e a força de trabalho, perfazendo um custo de cinco
horas de trabalho, uma hora representando o valor dos meios de
produção e quatro horas o valor da força de trabalho. O valor das
mercadorias produzidas é também igual a cinco horas de trabalho,
uma hora representando o valor dos meios de produção e quatro
horas o dispêndio da força de trabalho. Nenhuma mais-valia é
criada. Porém, se basta ao capitalista pagar ao operário o
equivalente a quatro horas de trabalho, comprando sua força de
trabalho pelo seu valor, ele pode fazê-lo trabalhar mais. Ele pode,
por exemplo, fazer com que o operário despenda oito horas de
trabalho ao invés de quatro. O valor das mercadorias será então
igual à:
65

DUAS HORAS (valor dos meios de produção que o trabalhador


utiliza enquanto efetua oito horas de trabalho) + OITO HORAS
(tempo de trabalho do operário).
Essas oito horas se decompõem em quatro horas, que
correspondem ao valor da força de trabalho, e quatro horas
suplementares, que são exatamente a mais-valia criada pela força
de trabalho no processo de produção. Portanto, a mais-valia é a
diferença entre o valor criado pela força de trabalho, oito horas, e
o valor da força de trabalho, quatro horas.
Vemos que nesse processo de criação de mais-valia, os meios de
produção e a força de trabalho comportam-se diferentemente.
Marx denomina capital constante o dinheiro gasto com os meios
de produção, constante porque ele apenas transfere seu valor,
duas horas, ao valor das mercadorias produzidas. Ao contrário, o
dinheiro que compra a força de trabalho é denominado capital
variável, porque a força de trabalho não somente transfere seu
próprio valor para as mercadorias produzidas, quatro horas, mas
também acrescenta um valor adicional, quatro horas.
Vamos frisar que, para Marx, capital constante e capital variável
não podem ser identificados com os estoques de meios de
produção e de força de trabalho. Da mesma forma que a
mercadoria é a forma social que o produto assume na economia
mercantil, o capital é a forma social que os meios de produção e a
força de trabalho assumem a economia capitalista. Por exemplo,
identificar o capital constante a um estoque material de meios de
produção, e não a uma forma social, induzirá a considerar
capitalista um macaco que utilize um bastão para fazer os frutos
caírem!
Nesse processo de compra e utilização da força de trabalho, os
trabalhadores não são roubados, mas sim explorados. Eles não são
roubados porque sua força de trabalho é comprada pelo seu valor.
Certo, pode acontecer que a força de trabalho seja paga por um
salário inferior ao seu valor e, nesse caso, o operário é roubado. No
entanto, como Marx explica, para compreender bem a essência
66

específica da produção capitalista, é melhor adotar a hipótese de


que a força de trabalho seja comprada pelo seu valor. Nesse caso,
então, não há roubo. Ma não vamos parar por aí. Após ter
comprado a força de trabalho por seu valor na esfera da circulação,
o capitalista a utiliza na esfera da produção. Nesta esfera, a força
de trabalho cria um valor adicional que o capitalista se apropria
gratuitamente. O operário é explorado; essa exploração é
mensurada pela taxa de mais-valia, relação entre a mais-valia e o
capital variável: MV/V. Marx então chama atenção para o papel
mistificador do salário. De fato, o camponês que na sociedade
feudal trabalha uma parte de sua jornada para o senhor, sabe
perfeitamente que é explorado, que uma parte de seu trabalho é
apropriada por outro. Ao contrário, o assalariado pode ter a ilusão
que sua remuneração paga todo o seu trabalho, quando não é esse
o caso. Confirma-se a idéia que a exploração pode tomar diferentes
formas e que a extorsão de mais-valia é a forma específica que a
exploração assume na economia capitalista. Para Marx, os escravos
ou os camponeses da sociedade feudal evidentemente são
explorados, mas não criam mais-valia, isto é, o tempo de trabalho
gratuito deles é apropriado de forma diferente do tempo de
trabalho gratuito dos assalariados.
Como os trabalhadores não são roubados quando vendem sua
força de trabalho na esfera do mercado, evidentemente à condição
ela seja comprada pelo seu valor, mas são explorados na esfera da
produção, podemos compreender por que hoje em dia a expressão
economia de “mercado” tende a substituir a expressão economia
“capitalista”. Trata-se simplesmente de mascarar a existência da
exploração.
Resta determinar quais são os meios à disposição do capitalista
para aumentar a taxa de mais-valia, isto é, a exploração. Supondo
sempre que a força de trabalho seja paga pelo seu valor, existe
para Marx dois grandes meios para isso. Retomemos o caso em
que a mercadoria vale C+V+MV, ou seja, duas horas + quatro horas
67

+quatro horas, com o operário assegurando oito horas de trabalho


por dia.
Um primeiro meio de aumentar a taxa de mais-valia, MV/V, é fazer
com que o operário trabalhe mais, por exemplo, dez horas. Em
lugar de termos V+MV═ quatro horas + seis horas. A taxa de mais-
valia passou de 100% para 150%. Para que o operário trabalhe
mais, o capitalista pode tanto aumentar a duração do trabalho,
quanto pode aumentar a intensidade através da aceleração do
ritmo de trabalho. Marx denomina como mais-valia absoluta esse
primeiro meio de aumentar a exploração. O capitalista esbarra ao
mesmo tempo com limites fisiológicos (impossibilidade de
aumentar indefinidamente a duração e a intensidade do trabalho)
e com limites sociais (lutados operários para diminuir a duração e a
intensidade do trabalho).
Um segundo meio de aumentar a taxa de mais-valia é o que Marx
denomina mecanismo da mais-valia relativa. Suponhamos agora
que o tempo de trabalho do operário permaneça o mesmo, ou
seja, oito horas. Nem a duração do trabalho nem a intensidade
podem aumentar. Entretanto, existe um meio de obter uma taxa
de mais-valia mais alta. Ele advém do progresso técnico. Se, graças
ao progresso técnico e ao crescimento da produtividade, são
necessárias somente duas horas de trabalho em lugar de quatro
para produzir os bens de consumo indispensáveis à manutenção e
reprodução da força de trabalho, o valor desta força passa de
quatro para duas horas. Essa diminuição não significa uma
diminuição do nível de vida do operário. Ele consome tanto quanto
antes. Porém, agora a mesma quantidade de bens de consumo é
produzida com uma duração do trabalho duas vezes menor.
Portanto, temos: V+MV=duas horas +seis horas. A divisão relativa
entre o valor da força de trabalho e a mais-valia mudou. A alta da
produtividade do trabalho suplementar permitiu com que a taxa de
mais-valia passasse de 100% para 300%, sem dispêndio de trabalho
adicional por parte do operário. Esse segundo meio de aumentar a
taxa de mais-valia pode ele próprio esbarrar com um limite social.
68

De fato, a alta da produtividade do trabalho pode, no caso de lutas


sociais, não ir totalmente para o capitalista, com havíamos
suposto, mas uma parte ir par o operário, nesse caso a mais-valia
relativa também reduzida.
Armado com sua teoria do valor e sua teoria de mais-valia, Marx
agora pode resolver um problema deixado sem solução por Smith e
Ricardo quando elaboraram suas teorias do valor. Isso vai permitir
a Marx de aportar uma maior especificação do processo de
exploração.

A teoria dos preços de produção

Lembremos que Smith e Ricardo esbarraram numa dificuldade


particular. No preço natural, há não apenas os salários,
proporcionais ao trabalho efetuado, mas há também os lucros, que
não remuneram nenhum trabalho e são proporcionais ao capital,
situação que parece contraditória com a teoria do valor-trabalho.
Marx, para tentar ultrapassar essa dificuldade, elaborou sua teoria
dos preços de produção, Aqui a apresentaremos apenas em linhas
gerais, sem entrar em detalhes das explicações. A idéia é que as
mercadorias de um setor de produção na são vendidas por seu
valor médio: C+V+MV, mas por seu preço de produção:
C+V+LUCRO MÉDIO. O lucro médio é igual ao produto da
totalidade do capital avançado no setor
pela totalidade de lucro médio do conjunto dos setores, ele
próprio igual à relação da soma total das mais-valias com a soma
do capital avançado pelo conjunto dos setores.
Resulta disso que os capitalistas dos setores de produção mais
modernos, que utilizam mais meios de produção do que força de
trabalho em relação aos capitalistas de outros setores, irão obter
um lucro médio superior à mais-valia extraída de seus próprios
trabalhadores. Contrariamente, os capitalistas dos setores mais
arcaicos, que utilizam relativamente menos meios de produção do
que força de trabalho, irão obter um lucro médio inferior á mais-
69

valia extraída de seus próprios trabalhadores. Esse processo pode


ser ilustrado por um exemplo numérico, partindo das seguintes
hipóteses:
1 – Na economia só existem dois setores de produção.
2 – O setor I dispõe de 90 em capital constante avançado, isto é,
comprou 90 de meios de produção, despende a cada ano um
décimo desse capital constante, portanto 9, e utiliza 10 em capital
variável, isto é, comprou 10 de força de trabalho
3- O setor II dispõe de 80 em capital constante avançado, despende
2 a cada ano e utiliza 20 em capital variável.
4 – A relação capital constante avançado / capital variável, que
Marx denomina composição orgânica do capital, reflete a
importância relativa dos meios de produção utilizados em relação à
força de trabalho. Essa composição do capital é mais elevada no
setor I, 90/10, do que no setor II, 80/20. O setor I é mais
mecanizado.
5 – A taxa de mais-valia, MV/V, é a mesma nos dois setores, 100%.
Portanto, a mais-valia é igual a 10 no setor I e a 20 no setor II.
6 – A taxa de lucro médio para o conjunto da economia é igual à
relação “somatório das mais-valias/somatório dos capitais
constantes avançados e variáveis, 30/200, isto é, 15%.
Portanto, agora podemos construir a seguinte tabela ilustrativa:
70

Setor I Setor II Soma


Capital 90 80
constante
adiantado
(1)
Capital 9 2
constante gasto
(2)
Capital variável 10 20
(3)
Mais-valia (4) 10 20 30
Composição do 9 4
capital
(5)=(1)/(3)
Valor médio 29 42 71
(6)=(2)+(3)+(4)
Lucro médio 15 15 30
(7)=(15% de
[(1)+(3)])
Preço de 34 37 71
Produção
(8)=(2)+(3)+(7)
Transferência de +5 -5 0
Mais-valia
(9)=(7)-(4)

Constata-se que o somatório dos lucros médios do conjunto dos


setores é igual ao somatório das mais-valias, e que o somatório dos
71

preços de produção é igual o somatório dos valores. Portanto, a lei


do valor não é posta em questão. O conjunto dos lucros obtidos
pelos capitalistas de todos os setores só tem uma única origem, a
mais-valia produzida em cada um dos setores, que Marx denomina
mais-valia social. Há simplesmente uma sanção social em benefício
dos capitalistas dos setores mais modernos e em detrimento dos
capitalistas dos setores arcaicos, sanção que se manifesta pela
transferência de mais-valia em favor dos primeiros e contra os
segundos.
Os lucros realizados pelo capitalista provêm da mais-valia social,
Marx conclui que a exploração tem um caráter social. É ao capital
em conjunto que os trabalhadores devem enfrentar. A exploração
não é um fato individual, é um fato de classe.

O funcionamento contraditório do sistema capitalista

Existe no capitalismo, segundo Marx, uma tendência à acumulação


de capital, isto é, ao investimento de uma parte da mais-valia em
novas compras de meios de produção e força de trabalho. Essa
tendência está ligada à luta entre capital e trabalho, tal como se
manifesta no mecanismo da mais-valia relativa originada pela alta
da produtividade. Segue-se daí que essa alta da produtividade do
trabalho e o aumento do progresso técnico são características
essenciais do sistema capitalista. Esse sistema, Marx explica,
desenvolveu as forças produtivas e o progresso técnico a uma
escala jamais esperada antes por qualquer outro sistema. Contudo,
ao mesmo tempo, no sistema capitalista, dada sua lógica de
funcionamento, que é de vender com lucro, os meios de
desenvolver a produtividade e o progresso técnico se transformam
em meios de aumentar a exploração e a domínio sobre os
trabalhadores. Por exemplo, Marx frisa como, no século XIX, a
existência de máquinas mais aperfeiçoadas permitiu ao capital
aumentar a duração e a intensidade do trabalho, e de desenvolver
em condições espantosas o trabalho de mulheres e crianças. Marx
72

frisa também que até os mecanismos de organização do trabalho


na empresa capitalista terão o efeito de acentuar a dominação dos
trabalhadores, transformando-os em simples apêndices da
máquina segmentada em tarefas elementares.
O funcionamento contraditório do sistema capitalista se manifesta
na existência do desemprego e das crises, que elas próprias têm
por fundamento uma lei que Marx denomina lei da baixa
tendencial da taxa de lucro.

A lei do decréscimo tendencial da taxa de lucro

Sabemos que a taxa de lucro é a relação entre a massa de mais-


valia criada pelos trabalhadores e a massa de capital adiantado,
constante e variável. Portanto, expressa-se como:
MV/V
Essa relação ainda pode ser escrita dividindo-se CAD um de seus
membros por V:
(MV/V)/(1+C/C)
Essa segunda forma de expor a taxa de lucro tem o mérito de
mostrar claramente que sua evolução depende conjuntamente da
taxa de mais valia, MV/V, e da relação C/V, composição-valor do
capital, que reflete a importância relativa do valor dos meios de
produção utilizados em relação ao valor da força de trabalho.
A idéia de Marx é que existe uma tendência a alta da composição
do capital, que, a taxas de mais-valia constantes, acarreta uma
baixa da taxa de lucro. Essa alta da composição do capital provém
ela própria do crescimento da produtividade do trabalho, fruto da
luta capital-trabalho.
Ela implica um aumento da massa dos meios de produção
utilizados e uma tendência a substituir os trabalhadores por
máquinas.
No entanto, para Marx essa lei do decréscimo da taxa de lucro é
apenas uma tendência, isto é, uma lei cuja realização integral é
interrompida, diminuída, enfraquecida. Ele explica que ao mesmo
73

tempo em que forças no sentido de aumentar a composição em


valor são exercidas e, portanto, implicando decréscimo da taxa de
lucro, outras forças, que ele denomina causas contra-arrestantes,
exercem um papel no sentido contrário. Marx distingue dois tipos
de causas contra-arrestantes. Primeiro há causas contra-arrestante
internas à lei: procedem da alta da produtividade do trabalho, isto
é, da própria força que atua no sentido de decréscimo da taxa de
lucro. De fato, essa alta da produtividade, que age no sentido de
aumentar da composição em valor e, portanto, da baixa da taxa de
lucro, permite ao mesmo tempo produzir os meios de produção e
os bens de consumo necessário à subsistência dos trabalhadores
com menor custo. Em outras palavras, ela atua no sentido de uma
diminuição do valor do capital constante, C, e do capital variável, V,
e assim com aumento da taxa de lucro. As causa contra-arrestantes
externas são todas aquelas que não derivam da alta da
produtividade, isto é, da causa que provoca o decréscimo da taxa
de lucro.
Podem ocorrer forças que levam a uma diminuição do valor do
capital constante ou do capital variável, a compra de matérias-
primas ou de produtos baratos das colônias por exemplo. Também
podem ocorrer forças que provocam uma alta da taxa de mais-
valia.
Marx estima que essas causas contra-arrestantes esbarram com
determinados limites, ao acelerar a acumulação do capital que
provoca uma nova alta da composição do capital há em
decorrência uma diminuição da taxa de lucro. É por isso que Marx
estima que a lei do decréscimo da taxa de lucro não é suprimida,
mas apenas transformada em tendência. Nesse ponto, é preciso
frisar que Marx não explica realmente por que a existência das
causas contra-arrestantes não impede que se fale de uma lei de
decréscimo da taxa de lucro. Se há forças que se manifestam no
interior do funcionamento do sistema capitalista que contribuem
para uma diminuição da taxa de lucro, consideremos que isso não
nos permite falar de uma lei de decréscimo da taxa de lucro,
74

mesmo se a qualificarmos como tendência. O que quer que seja, o


decréscimo da taxa de lucro sendo fruto de uma lei ou não,
admitiremos com Marx que ela está no centro da explicação do
desemprego e das crises.

O desemprego

A acumulação de capital, Marx explica, é acompanhada de dois


efeitos contraditórios sobre o emprego. Ela é derivada de uma alta
da produtividade do trabalho ligado à alta da composição em valor
do capital, C/V: utilizamos mais e mais máquinas em relação à
força de trabalho. Nesse sentido, a acumulação de capital destrói
empregos. No entanto, ela significa ao mesmo tempo crescimento
da massa de capital investida, isto é, uma alta de C+V, ela própria
criadora de empregos. O número de empregos oferecidos aos
trabalhadores pelos capitalistas resulta desses dois efeitos
contraditórios.
Para que o progresso técnico não leve a uma diminuição da
demanda por força de trabalho, é necessário que a massa de
capital investido aumente. Em que condições este aumento se
produzirá? Os capitalistas só desenvolverão o investimento e só
aumentarão a produção se duas condições próprias do sistema
capitalista estiverem reunidas ao mesmo tempo: a taxa de lucro e
mercados suficientes.
Marx conclui que o desemprego não é conseqüência natural do
progresso técnico. Ele se torna conseqüência sob condições
específicas do sistema capitalista quando, ao mesmo tempo que o
progresso técnico se desenvolva, a taxa de lucro e/ou os mercados
sejam insuficientes para que os capitalistas decidam aumentar os
investimentos e a produção.
Além disso, Marx explica que o desemprego pode assumir um
papel positivo para os capitalistas. Ele coloca permanentemente
uma massa de mão-de-obra à disposição deles, denominado
exército industrial de reserva, que os capitalistas podem necessitar
75

de repente. Esse desemprego influencia na relação de forças do


mercado de trabalho em detrimento dos trabalhadores.

As crises

Marx inicia lembrando que na economia mercantil há um


desdobramento do valor em mercadoria e em dinheiro. Esse
desdobramento cria as possibilidades de crises. O valor deve ser
não somente produzido, mas também convertido em dinheiro para
a venda. Essa unidade da produção e da venda tem de realizar-se,
mas não se produz automaticamente. Assim, enquanto as crises
pré-capitalistas eram crises de penúria, crises de sub-produção de
valores de uso, a produção mercantil introduz a possibilidade de
crises de super produção de valores.
A explicação da causa das crises só foi esboçada por Marx.
Encontramos em sua obra duas explicações que são de fato
complementares.
A primeira caracteriza as crises como crises de sobre acumulação
de capital relacionado com a diminuição da taxa de lucro.
Periodicamente a alta da composição em valor do capital exerce
efeitos, ao mesmo tempo que a alta da taxa de mais-valia esbarra
com limitações. A taxa de lucro diminui. Há sobre acumulação de
capital, isto é, ocorrência de uma plêiade de capital que não
encontra oportunidades de investimentos rentáveis. Assim, as
crises aparecem como o momento em que as causas contra
arrestantes do decréscimo da taxa de lucro não são mais
suficientes. A taxa de lucro diminui concretamente.
A segunda explicação caracteriza as crises como crises de super
produção de mercadorias. Periodicamente, manifesta-se uma
contradição. Por um lado, existe uma tendência à acumulação de
capital e ao desenvolvimento da produção. Por outro lado, os
capitalistas se esforçam em limitar os salários pagos aos
trabalhadores influenciando negativamente a demanda por bens
de consumo, de fato, a demanda por bens de equipamento soma-
76

se à demanda por bens de consumo, podendo compensar sua


insuficiência. No entanto, isso só pode ocorrer por pouco tempo,
pois a demanda por bens de equipamento é, em última análise, de
pendente da demanda por bens de consumo e limitada por ela.
Periodicamente, portanto, uma super produção de mercadorias
ocorrerá, isto é, uma plêiade de mercadorias invendáveis pelo seu
valor de mercado.
Esses dois grandes tipos de explicação para as crises devem ser
considerados como complementares. Em seu desenvolvimento, as
crises se manifestam sempre através de uma baixa das taxas de
lucro e por uma insuficiência de mercados, mesmo se a causa que
esteja na origem da crise seja uma ou outra dessas contradições.
Elas são ao mesmo tempo crises de sobre acumulação de capital e
crise de super produção de mercadorias.
Além disso, as crises têm, para Marx, uma função para o sistema
capitalista. Elas fazem com que surjam forças favoráveis a uma
nova expansão do capital. Em especial, ao mesmo tempo que se
manifestam por uma diminuição da taxa de lucro, as crises criam as
condições favoráveis para re-estabelecimento dessa taxa.
Diminuição ou aumentos menores do salário, diminuição do
número de trabalhadores em atividade, fechamento de fábricas,
liquidação ou diminuição dos preços dos bens de equipamento e
das matérias-primas são forças que provocam uma alta da taxa de
mais-valia ou uma baixa do valor do capital, portanto uma alta da
taxa de lucro.
Esclarecer as contradições que caracterizam o funcionamento do
sistema capitalista não significa, segundo Marx, que o capitalismo
afundará sozinho. O conhecimento dessas contradições deve
simplesmente permitir lutar melhor contra o sistema, na
perspectiva de derrubá-lo por uma revolução social. Somente após
essa derrubada que se poderá construir a sociedade socialista,
depois comunista.
77

O socialismo

Marx, diferentemente dos socialistas utópicos, recusou-se a entrar


em detalhes sobre o que deveria ser uma sociedade socialista. No
entanto, ele elaborou certo número de princípios básicos que
vamos apresentar, reagrupando e procurando interpretar as
diversas passagens que tratam dessa questão em suas obras.
Em seguida a tomada do poder pelos trabalhadores, que implica a
destruição do Estado burguês e a construção de um Estado
operário sob o modelo da Comuna de Paris, abre-se um período de
transição entre o capitalismo e o socialismo.
A sociedade de transição do capitalismo para o socialismo tem
duas grandes características.
Primeira característica: não há mais relações de produção
capitalistas. Estas são suprimidas na medida em que, sob a égide
do poder político exercido pelos trabalhadores, a propriedade dos
meios de produção é coletiva e a produção é organizada pelos
produtores associados. Mais precisamente, os meios de produção
e a força de trabalho não são mais comprados/vendidos, mas
repartidos entre os setores de produção pelos produtores
associados. A força de trabalho não é mais uma mercadoria. A
exploração capitalista desaparece. As leis de funcionamento do
sistema capitalista, em particular a lei da tendência de decréscimo
da taxa de lucro, não desempenham qualquer papel.
Para tanto, segunda característica da sociedade em transição, as
relações de produção não são socialistas, e isso por duas razões. A
primeira é que o desenvolvimento das forças produtivas
permanece insuficiente, quantitativamente e qualitativamente. É
insuficiente quantitativamente porque reina a abundância. Por isso
permanecem a produção mercantil e a lei do valor para os bens de
consumo, ainda sendo comprados/vendidos no mercado. É
insuficiente qualitativamente na medida em que é impossível
reverter da noite para o dia uma organização do trabalho que traz
a marca das relações de produção capitalistas, e que por essa razão
78

se caracteriza, para os trabalhadores, pelo caráter mutilador que o


trabalho possui. Também há uma segunda razão para que as
relações de produção não sejam socialistas: a impossibilidade de
que da noite para o dia o poder político seja exercido pelo conjunto
dos produtores associados. Supor isto seria utópico.
As relações de produção não são nem capitalistas, nem socialistas.
Elas são híbridas, características de uma fase de transição.
A sociedade socialista, possível após essa fase de transição,
caracteriza-se por dois aspectos. Dessa vez o desenvolvimento das
forças produtivas é suficiente quantitativamente e
qualitativamente. Suficiente quantitativamente porque reina a
abundância, para que desapareça completamente a produção
mercantil e a lei do valor. O conjunto de bens é distribuído
gratuitamente. Suficiente qualitativamente no sentido em que é
possível estabelecer uma nova organização do trabalho,
permitindo ao mesmo tempo a elevação da produtividade do
trabalho e a eliminação do caráter mutilador do trabalho. A
sociedade socialista se caracteriza também pelo fato que o poder
pode então ser exercido em todos os níveis da sociedade pelo
conjunto dos trabalhadores associados., o que significa uma
deterioração, e em seguida o desaparecimento do próprio Estado
operário. Dito isto, para Marx, na sociedade socialista assim
caracterizada, o tempo de trabalho ainda permanece como critério
de riqueza e os bens são distribuídos segundo a norma “a cada um
segundo seu trabalho”.
Enfim, a sociedade comunista define-se pelo desenvolvimento das
características da sociedade socialista a tal ponto que a norma de
distribuição das riquezas é agora “a cada um segundo suas
necessidades”. O critério da riqueza não é mais o tempo de
trabalho, que parece um meio irracional de aumentar as riquezas.
Aqui encontramos algumas páginas admiráveis de Marx, que
constituem uma verdadeira antecipação do que mais tarde será a
automação. O novo critério de riqueza se torna o emprego do
79

tempo livre dedicado ao emprego da totalidade das faculdades do


homem. É o fim da divisão do trabalho.
Para concluir esse ponto, diremos que é possível apresentar a visão
de Marx como totalmente utópica e até mesmo perigosa se
considerarmos que toda utopia, quando queremos realizá-la, é
portadora de enormes perigos. Contudo, qualquer que seja o caso,
não podemos de forma alguma identificar a visão de Marx sobre a
sociedade comunista ao que foi a realidade da URSS e das
democracias populares, marcadas por uma feroz ditadura política e
social exercida contra os próprios trabalhadores e por milhões de
mortos. Além disso, houve uma conjunção curiosa de interesses
para proceder essa identificação. As classes dominantes dos países
capitalistas, que combatiam o marxismo, tinham interesses nesta
identificação e se serviam da URSS como sendo seu reverso.
Aqueles que na URSS e nas democracias populares exerciam suas
ditaduras contra os trabalhadores, em nome do marxismo e como
seus defensores, também tinham interesse nesta identificação.
Essa conjunção de interesses para identificar a visão de Marx com a
realidade da URSS é que explica por que o debate científico sobre o
marxismo tenha sido tão pobre e freqüentemente substituído pela
bajulação ou pela excomunhão. Nem para rir, nem para chorar,
mas para compreender.
80

Capítulo 5
A economia política neoclássica

Fim do século XIX – início do século XX

Alguns anos após a publicação do primeiro livro d’ O Capital (1867)


produziu-se um evento muito importante na história do
pensamento econômico. Nascia uma nova escola de pensamento,
que seria qualificada de neoclássica, termo que se presta à
confusão e veremos o porquê. Escrevendo independentemente
uns dos outros, seus fundadores eram três:
- O inglês Stanley Jevons, professor de economia política em
Manchester, que publicou em 1871 Teoria da economia política;
- O austríaco Carl Menger, professor de economia política em
Viena, que publicou em 1871 Fundamentos da economia política;
- O francês Léon Walras, professor de economia política em
Lausanne, que publicou em 1873 Elementos de economia política
pura, que foi seguido em 1896 por Estudos de economia social e,
em 1898, por Estudos de economia aplicada.
Os três fundadores tiveram imediatamente sucessores,
reagrupados em três escolas. A escola de Lausanne, cujo principal
representante foi o italiano Vilfredo Pareto, que sucede Walras na
Universidade de Lausanne e publica, em 1896, Curso de economia
política e, em 1906, Manual de economia política; a escola de
Cambridge, dominada por Alfred Marshall, professor da
universidade e cuja principal obra é publicada em 1890, Princípios
de economia política; e a escola de Viena, cujos principais
representantes são Friedrich Von Wieser, professor da
universidade, que publica em 1884 Origens e lei do valor, e Böhm-
Bawerk, professor e durante um tempo ministro das finanças, cuja
principal obra Teoria positiva do capital é publicada em 1889.
Na expressão “neoclássica”, o qualificativo clássico se justifica na
medida em que, como os clássicos, esses autores acreditavam na
81

superioridade do liberalismo econômico. Uma economia de


mercado, submetida à livre concorrência, permite a situação ótima
no melhor dos mundos possível para todos. Se a realidade não
corresponde a essa situação ótima, é por conta de imperfeições
que precisam ser suprimidas. Walras distingue bem o que ele
chama de economia pura, que tal como na física permite descobrir
leis naturais na economia, e nos mostra que a concorrência é a
melhor forma de assegurar o desenvolvimento da riqueza. A
Economia social e aplicada deve guiar a intervenção do estado para
que as leis naturais da economia possam se expressar.
Se bem justificado quando se trata de defender a superioridade do
liberalismo econômico, o qualificativo clássico não se sustenta de
forma alguma em termos de análise econômica. Em poucos anos
os fundadores da nova escola reviram os fundamentos analíticos
da economia política clássica, pelo menos aqueles de Smith e
Ricardo, cujas teorias do valor e da distribuição são rejeitadas.
Situando-se na linha de Say, eles criam as bases de uma nova
economia política que será dominante até Keynes e ainda em boa
parte de nossos dias.
Face à abundância e à diversidade da literatura econômica dos
fundadores da teoria neoclássica e de seus sucessores imediatos,
nos contentaremos em apresentar aqui seus principais traços que
mais os distinguem em termos gerais.

I – A concepção e o método da economia política

Com Smith, Ricardo e Marx, a economia política tem um objeto


próprio de estudo; as leis econômicas que comandam a produção e
a distribuição das mercadorias. Os neoclássicos colocam a
economia política sobre outro caminho, aquele que a faz
desaparecer enquanto ciência com um objetivo próprio de estudo.
De fato, a economia política é freqüentemente considerada, para
retomarmos uma expressão de 1932, cunhada por um economista
neoclássico, Lionel Robbins, como uma ciência que estuda o
82

comportamento humano em termos das relações entre objetivos


procurados e os meios para realizá-los, meios que são em
quantidade limitada e dentre os quais é preciso escolher. No
espírito dessa definição, a economia política não se interessa mais
num certo domínio da atividade humana, o da produção e
distribuição das mercadorias, mas torna-se uma simples lógica de
escolha racional, aplicável não somente ao domínio da produção e
da distribuição das mercadorias, mas também a todas as atividades
humanas nas quais há um problema de cálculo racional, por
exemplo a estratégia militar, a estratégia esportiva ou a estratégia
de um jogo de xadrez. A economia política não é mais uma ciência
com um objetivo próprio. Mesmo se Jevons, Menger e Walras não
foram até essa destruição da economia política, eles se colocaram
nessa via, transformando as leis econômicas em simples princípios
indicativos do comportamento que, independente da área de
estudo, garanta a utilidade ou a preferência maximizadora.
Relacionado com essa concepção bem particular da economia
política, os neo-clássicos utilizam um método específico de análise.
Smith, Ricardo, Marx e antes deles Quesnay e os fisiocratas,
compreendiam que a sociedade se compõe de classes sociais e que
a economia deve explicar as leis que regem os fenômenos
econômicos no nível macroeconômico do conjunto da sociedade.
Esses fenômenos não são simples soma dos fenômenos individuais.
Por exemplo, uma diminuição dos salários numa empresa pode
provocar uma diminuição dos custos e favorecer o mercado, ao
passo que generalizado ao conjunto da sociedade essa diminuição
pode ter como efeito uma diminuição da demanda global de bens,
o que provocará queda da produção e demissões. Para os
neoclássicos não existem classes sociais ou grupos sociais. A
sociedade é composta apenas por indivíduos. Os fenômenos
econômicos e sociais, por conseguinte, só podem ser analisados a
partir dos comportamentos desses indivíduos, livres e iguais, que
decidem ou não trabalhar, consumir, produzir. E isso sempre com
cada um tendo a intenção de maximizar sua satisfação, dado os
83

recursos que dispõe. Essa concepção abrirá a via a uma utilização


de técnicas matemáticas que se desenvolveram cada vez mais, às
vezes servindo para dar aparência científica ao que não
necessariamente o é.

II – As teorias do valor e da distribuição

Valor e utilidade marginal

Após ter rejeitado a teoria do valor trabalho, os neoclássicos


adotam o ponto de vista de Say: o valor é determinado pela
utilidade. Acrescentam uma idéia complementar, que será a marca
deles: é a utilidade da última unidade consumida de cada bem,
denominada utilidade marginal, que determinará o valor. De fato,
não é possível afirmar que é a utilidade total das mercadorias que
determina o valor delas, pois assim não se compreenderia por que
bens extremamente úteis não têm qualquer valor. O valor provém
somente da utilidade marginal, uma utilidade decrescente à
medida que o consumo do bem aumenta. Mais precisamente, os
neoclássicos apresentam o que chamam a lei de equalização das
utilidades marginais ponderadas pelos preços, que determina o
comportamento do consumidor na ocasião da compra. Estes
normalmente tendem a se abastecerem com quantidades de
determinados bens de tal forma que a relação das utilidades
marginais dos bens seja igual à relação entre seus preços, o que
pode ser descrito se supusermos dois bens por UA/PA=UB/PB,
equalização das utilidades marginais ponderadas pelos preços.
Enquanto essa igualdade não for alcançada, o consumidor modifica
sua demanda por bens, o que provoca mudança nos preços.
Conseqüentemente, a explicação do valor dos bens não tem de ser
pesquisada pelo lado do custo de produção em trabalho, e sim pelo
lado da lei de equalização das utilidades marginais ponderadas.
Qualquer que seja o julgamento que imputemos ao suposto
comportamento do consumidor, e ao tomar a esfera da troca para
84

compreender a determinação do valor, consideramos que a


explicação neoclássica fornece apenas uma explicação do
movimento dos preços de mercado em torno de seu valor. Ela não
explica o valor em si. Além disso, frisemos que em dado momento
a utilidade de um bem aumente, provocando o crescimento da
demanda e posteriormente o da oferta, a evolução do valor será de
fato dependente da evolução dos custos de produção; ela
aumentará ou diminuirá na medida em que sejam crescentes ou
decrescentes. Talvez Walras tenha percebido a importância da
esfera da produção: rejeitara a teoria do valor trabalho
especificando o valor como determinado pela raridade, que
infelizmente identifica com a utilidade marginal, como se a
raridade não fosse ela própria ligada a uma quantidade de trabalho
mais importante para a escolha e produção de bens considerados
raros.
Há um último ponto relativo à teoria do valor. Um autor
neoclássico, Alfred Marshall, tentou realizar uma síntese entre as
teorias do valor trabalho e a teoria do valor utilidade. Ele distingue
dois períodos, o curto prazo no qual a capacidade produtiva não
pode aumentar, e o longo prazo no qual é possível esse aumento.
No curto prazo, as mercadorias já estão produzidas e presentes no
mercado. Os ofertantes são obrigados a responder às exigências
dos demandantes. O preço se forma no mercado, submetido a
essas exigências, sendo então determinado pela demanda, ela
própria função da utilidade. No longo prazo,ao contrário, o custo
de produção representa o limite abaixo do qual o preço natural,
para retomar a expressão de Smith e Ricardo, não pode
ultrapassar. No longo prazo, o preço natural é determinado pelo
custo. Apesar do raciocínio de Marshall ser interessante, não
representa de fato uma síntese das duas teorias do valor. O que é
descrito no longo prazo é mais claramente uma análise do valor
determinado pelo custo de produção. No entanto, o que é descrito
no curto prazo não é uma análise do valor, é uma explicação da
85

evolução dos preços de mercado em função da demanda, em torno


do eixo, poderíamos dizer, constituído pelo valor.

A distribuição

Assim como para a teoria do valor, os neoclássicos retomam as


análises de Say.
Existem três fatores de produção: o trabalho, o capital e a terra.
Esses fatores de produção criam serviços produtivos, os serviços do
trabalho, os serviços do capital e os serviços da terra, que são
vendidos pelos indivíduos que os possuem e comprados pelos
empresários.
No momento dessas operações de compras/vendas de serviços
produtivos nascem as rendas, os salários, os juros e a renda
fundiária, que, portanto, são determinadas pela oferta e demanda
de serviços produtivos.
Os neoclássicos acrescentam nesse ponto um elemento que
também é marca deles: o princípio marginal. Este é utilizado para
explicar a determinação da oferta e da demanda por serviços
produtivos e para mostrar que os preços desses serviços são
proporcionais às produtividades marginais dos fatores de
produção.
No centro desse mecanismo está o empresário, uma personagem
que Say já nos apresentou, misteriosa personagem que não possui
capitas, mas também não é um trabalhador assalariado.
Relembremos ao leitor o que já falamos sobre o caráter mítico e
também mitificador dessa personagem. Frente a esse empresário,
existem indivíduos desconectados de qualquer realidade social e
que se encontram todos na mesma situação: a de serem obrigados
a vender seus serviços produtivos, quer se trate do trabalho ou do
capital, para esse empresário do qual todos dependem.
Como são fixados os salários nesse contexto geral? Eles são
determinados pela confrontação no mercado da oferta e da
demanda por serviços do trabalho. A oferta de serviços do trabalho
86

depende do preço dos bens e do preço dos serviços do trabalho.


Quando um indivíduo é o possuidor dos serviços produtivos do
trabalho e os vende, cada hora de trabalho contém utilidade, sob a
forma de salário/hora recebido, e de desutilidade, sob a forma de
fadiga física, de tensão nervosa. Enquanto a desutilidade for menor
que a utilidade, o indivíduo aumenta sua oferta de trabalho. No
final, ele ofertará uma quantidade de horas de trabalho de tal
modo que a desutilidade da última hora de trabalho será igual à
utilidade do último salário/hora recebido.
Quanto à demanda por serviços do trabalho, ela depende da
demanda por bens e do preço dos serviços produtivos do trabalho.
Mais exatamente, é determinada de tal modo que a produtividade
marginal do último trabalhador empregado seja igual ao preço do
serviço, isto é, do salário recebido por esse trabalhador.
Notaremos assim que, se o produto marginal é decrescente,
somente uma diminuição do salário real pode levar a um aumento
da demanda por serviços produtivos do trabalho.
Essa concepção da natureza e da determinação do salário merece
ser criticada. Consideramos que o salário não pode ser considerado
como um preço fixado mecanicamente pelo livre jogo da
concorrência de mercado. A oferta e a demanda de trabalho
exercem um papel, mas não da forma vislumbrada pelos
neoclássicos. Elas exercem um papel ao influir sobre a relação de
forças entre as classes sociais, que se encontram no centro da
determinação dos salários. A teoria de distribuição dos
neoclássicos é completamente incapaz de absorver esse ponto de
vista, já que ignora as classes sociais e só conhece os indivíduos.
Ainda mais, esses indivíduos míticos possuem todos os serviços de
trabalho e do capital, e são livres para vendê-los ou não. Assim, a
teoria neoclássica ignora não somente as classes sociais, mas
também a necessidade que os trabalhadores têm de vender sua
força de trabalho para sobreviver. Essa restrição torna
insignificante a idéia de que os trabalhadores, antes de oferecer
seus serviços, comparam as utilidades e desutilidades marginais do
87

trabalho. Além disso, mesmo se situando no terreno dos


neoclássicos, poderíamos dizer que uma diminuição dos
salário/hora pode não conduzir a uma baixa da oferta de trabalho,
mas, ao contrário, a uma alta para compensar essa diminuição do
salário.
Como para Say, a renda do trabalho é o juro e não o lucro. O
próprio Walras explica que o lucro nada mais é que uma renda
ligada ao caráter monopolista dos mercados, e que em uma
situação de concorrência pura e perfeita o que ele chama de lucro
puro desapareceria.
A determinação do juro advém do mesmo processo que o da
determinação dos salários. O juro é função da oferta e da demanda
de serviços produtivos do capital. A oferta se determina de tal
forma que há igualdade entre desutilidade marginal da última
porção de capital ofertado, mensurada pela privação imposta ao
ofertante, e sua utilidade marginal, mensurada pelo juro recebido.
A demanda, por sua vez, se determina de tal forma que a
produtividade marginal do capital é igual ao seu preço.
A concepção de renda do capital dos neoclássicos, com o juro em
lugar do lucro, merece as mesmas críticas que já fizemos para Say.
O juro não é “a” renda do capital, o que retornaria à hipótese
absurda que todas as poupanças são ofertadas no mercado de
capital, deixando de lado a poupança que provém do capital inicial,
dos aumentos do capital e do auto-financiamento. O juro, com já
bem havia visto Smith, é simplesmente a renda do capital
emprestado, pago pelos capitalistas industriais aos capitalistas
financeiros que lhes emprestaram o dinheiro. O desaparecimento
do lucro é inaceitável, mesmo se em nome da teoria pura, pois é a
concorrência perfeita, tanto na realidade quanto no plano teórico,
que deve servir de referência e não a concorrência pura e perfeita.
O desaparecimento do lucro nos impede a compreensão da
distribuição de rendas e também do funcionamento do sistema
capitalista, cuja característica é exatamente a venda com lucro.
88

Esse desaparecimento do lucro revelou-se bem incômodo a certos


neoclássicos, a ponto de um dentre eles, Alfred Marshall,
reintroduzi-lo. Não existem, explica Marshall, apenas três fatores
de produção e três rendas: trabalho/salário, capital/juro,
terra/renda fundiária. Existem quatro fatores e esse quarto fator é
a função empresarial, a saber: a capacidade de organizar, de gerir,
de administrar as compras e vendas no mercado, e é remunerada
precisamente pelo lucro. Essa tese conheceu um grande sucesso e
ainda é amplamente defendida atualmente. No entanto, Smith já
tinha demonstrado que essa função era exercida por um “primeiro
empregado”, isto é, pelos administradores, técnicos e engenheiros
que trabalham e cuja remuneração não o lucro, mas sim o salário.
O lucro não remunera um quarto fator de produção, ele é a renda
do capital.
Adicionaremos que, para além das críticas externas à lógica da
concepção neoclássica das rendas e de sua distribuição, essa
concepção é passível de crítica mesmo se nos colocarmos sob o
ponto de vista interno de sua própria lógica. A afirmativa segundo
a qual cada serviço produtivo tem de ser pago pelo preço
correspondente a seu produto marginal não pode servir de
fundamento a uma teoria de distribuição. O conhecimento do
produto marginal dos fatores, expresso em valor, implica o
conhecimento do valor das rendas desses fatores, quando o que se
explica de fato é como se determina o valor dessas mesmas rendas
partindo-se do valor de seus próprios produtos marginais. Eis a
negação para a teoria neoclássica de qualquer possibilidade de
explicação da distribuição.

Equilíbrio geral e ótimo

Sabemos que os neoclássicos postulam que os consumidores e


produtores são guiados pelo que denominam racionalidade, isto é,
89

eles procuram, dado os recursos limitados que dispõem, o máximo


de satisfação. Já vimos, por meio de suas análises do valor e da
distribuição, que são definidos dois equilíbrios. Há o equilíbrio do
consumidor, definido a partir da lei de equalização das utilidades
marginais ponderadas, a utilidade primeiramente sendo tratada
como mensurável (utilidades cardinais de Walras), posteriormente
sendo simplesmente classificáveis por ordem de preferência
(utilidades ordinais de Pareto). Essa definição implica, por um lado,
que o princípio da racionalidade guia o comportamento do
consumidor e, por outro lado, que este é soberano, livre para
escolher. Além disso, há o equilíbrio do produtor: a determinação
da alocação ótima de recursos é obtida quando há equalização das
produtividades marginais dos fatores ponderados pelos preços dos
serviços produtivos.
Resta aos neoclássicos construir modelos de equilíbrio geral, isto é,
de equilíbrio simultâneo e interdependente para o conjunto dos
mercados. Walras se encarregou disso, definindo este equilíbrio
como aquela situação em que nenhum consumidor ou produtor
tem interesse em modificar as quantidades de bens e de serviços
produtivos demandados e ofertados nos mercados. Walras foi
seguido por Pareto que, sobre a base de sua concepção de
utilidades ordinais, definiu uma situação ótima como o ponto a
partir do qual não se pode melhorar a satisfação de um indivíduo
sem piorar a satisfação de pelo menos um outro indivíduo.
Não apresentaremos aqui os modelos. Sabemos simplesmente que
para além das diferenças entre eles há um ponto que os unifica - o
individualismo - mesmo quando os modelos assumem diferentes
formas entre si. Para Walras, a livre concorrência possibilita a
obtenção da melhor situação social possível. Se cada indivíduo está
na melhor situação possível, o mesmo ocorrerá para a sociedade.
Pareto, por sua vez, não afirma isso. Dado que não existe uma
forma qualquer para mensurar os ganhos de uns e as perdas de
outros, é impossível afirmar, segundo Pareto, que a situação
alcançada pela livre concorrência dê ao conjunto dos indivíduos
90

uma quantidade global de satisfações superior àquela que


resultasse de uma intervenção do Estado. No entanto, o
individualismo de Pareto manifesta-se de outra forma. Ele afirma
que, apesar do caráter relativo do ponto ótimo alcançado através
da livre concorrência, não se deve descartá-la, pois prejudicar um
único indivíduo seria socialmente desvantajoso.

III - O desemprego e as crises

Entre 1870 e 1930, a imensa maioria de autores neoclássicos se


interessou muito pouco sobre o problema do crescimento, tratado
essencialmente como um problema técnico de combinação ótima
dos fatores de produção e de evolução dos rendimentos. No
entanto, sabemos que o investimento na economia capitalista,
fonte do crescimento, não é unicamente ligada a questões
técnicas, mas também à existência de taxas de lucro de mercados
suficientes. Eles também pouco se interessaram pelo problema do
desemprego, na medida em que estimavam que a situação normal
da economia era a de pleno emprego. O mesmo em relação ao
problema das crises, pois eram partidários da lei dos mercados de
Say. Vamos especificar mais suas análises sobre as duas grandes
questões, do desemprego e das crises, amplamente dominantes no
pensamento não socialista até a grande crise dos anos trinta.

O desemprego

A análise dos neoclássicos tem uma proposição. Em uma sociedade


em que o Estado se abstém de qualquer intervenção, as forças de
mercado têm por efeito estabelecer automaticamente a produção
nacional em um nível tal que os trabalhadores e todos os capitais
91

disponíveis são utilizados. Se o Estado e os grupos sociais deixarem


as livres forças de mercado atuarem, o desemprego permanente e
a sub utilização permanente dos capitais são impossíveis. O pleno
emprego é automaticamente assegurado.
Primeiro vamos nos situar em termos de mercado de trabalho.
Suponhamos que em um momento dado a oferta de trabalho dos
trabalhadores seja superior à demanda dos empregadores. Haverá
desemprego. Pelo viés das variações de salário, entrarão em vigor
forças que tenderão a fazê-lo desaparecer. Os trabalhadores
concorrem entre si, com os salários diminuindo. Essa diminuição,
por sua vez, provocará uma diminuição da oferta de trabalho, pois
em relação à situação inicial de equilíbrio a utilidade marginal do
trabalho torna-se inferior à sua desutilidade marginal. Ao mesmo
tempo, a baixa dos salários provoca um crescimento da demanda
por trabalho dado o baixo custo da mão-de-obra. Com a
diminuição da oferta de trabalho e crescimento da demanda, a
defasagem inicial entre oferta e demanda desaparece, e com ela
desaparece o desemprego. Se o desemprego persistir, é apenas
devido à intervenção dos sindicatos ou do Estado, que prejudicam
o caráter concorrencial do mercado de trabalho, impedindo,
portanto, a diminuição dos salários. O desemprego é então
voluntário. Claramente pensa-se em Mathus: as leis de assistência
aos pobres criam mais pobres.
A concepção neoclássica está duplamente errada. Primeiro por
afirmarem o caráter automático da ligação salário/diminuição da
oferta de trabalho. A esse respeito, relembremos ao leitor a crítica
que fizemos à concepção neoclássica do salário e de sua
determinação. Ela também serve para a ligação automática
diminuição do salário/crescimento da demanda por trabalho. O
salário não é somente um custo, é também uma renda. Desse
modo, é bem provável que a diminuição dos salários, sobretudo se
for generalizada, tenha por efeito uma diminuição da demanda
global de bens de consumo, ela própria passível de conduzir a uma
92

baixa da produção e a uma redução concomitante da demanda por


trabalho.
Voltemo-nos agora ao mercado de capital. Nesse mercado
encontram-se uma oferta e uma demanda por capital, toda as duas
funções do preço do capital, isto é , do juro. A oferta de capital é a
poupança, que é, como explicam os neoclássicos, uma função
crescente da taxa de juros, qualificada como recompensa pela
renúncia ao consumo. Quanto mais elevada for a taxa de juros,
maior o crescimento da oferta de capital, de poupança. A demanda
por capital, ou demanda por investimento, é uma função
decrescente da taxa de juros. Suponhamos agora que em um dado
momento a oferta de capital seja superior á demanda. Há uma sub-
utilização de capitais. Esta defasagem entre a oferta e a demanda
acarreta uma diminuição da taxa de juros. Essa diminuição leva a
uma diminuição da poupança, dado a recompensa ser menos
atrativa, e a um aumento do investimento, dado o custo ser
menor. A defasagem inicial entre poupança e investimento
desaparece, e com ele a sub-utilização dos capitais.
Essa concepção merece ser criticada. Primeiro, como mostrará
Keynes, é falso nos limitarmos a afirmar que a poupança depende
da taxa de juros, e, portanto, que a diminuição dessa taxa leva
automaticamente uma diminuição da poupança. A variável
determinante para explicar o montante da poupança não é o juros,
mas a renda. Além disso, já explicamos que, contrariamente aos
neoclássicos, uma grande parte da poupança que as empresas
dispõem provém do autofinanciamento, e não dos capitais
ofertados no mercado, e esta fonte não depende da taxa de juros.
Finalmente, é errôneo afirmar que o investimento só depende da
taxa de juros. É preciso considerar uma outra variável, a taxa de
lucro, e compreender que o investimento não depende da taxa de
juros, e sim da defasagem entre a taxa de lucro e a taxa de juros.
Assim, a diminuição da taxa de juros pode muito bem não levar a
um desenvolvimento do investimento se ao mesmo tempo as
perspectivas de lucro são ruins.
93

Depreende-se de nossa análise que o livre jogo de mercado não


garante de forma alguma o pleno emprego de todos os
trabalhadores e de todos os capitais disponíveis.

As crises

A análise dos neoclássicos tem uma proposição. A produção global


ofertada no mercado corresponde necessariamente a uma
demanda global exatamente igual, à condição que o Estado não
perturbe o livre jogo das forças de mercado. Não haveria uma
dificuldade de escoamento geral da produção. Em outras palavras,
as crises gerais de super-produção são impossíveis. Para
desenvolver essa proposição, os neoclássicos baseiam-se nas leis
de mercado de Say, com as quais eles estão de acordo. A renda,
originada na produção, é automaticamente e continuamente
despendida. Seja em bens de consumo, seja em poupança, porém
neste último caso despendida em compra de bens de
equipamento. Reencontramos aqui a tese errônea segundo a qual
a poupança é necessariamente despendida, tese que se apóia
sobre uma concepção falsa da moeda, considerada como simples
instrumento de transação, não podendo ser demandada por
características que lhes são próprias. Nessa tese a moeda é apenas
um véu mascarando os fenômenos reais e não exercendo qualquer
influência sobre eles, em particular sobre o nível de atividade
econômica.
Concluído essa escola neoclássica que dominou o pensamento
econômico não socialista de 1870 a 1930, podemos dizer que ela
teve uma atitude extremamente apologista do sistema capitalista,
apresentado como um sistema composto de indivíduos livres e
iguais, onde a exploração não existe e que não conhece
desemprego nem crises de superprodução, à condição que se deixe
exercer o livre jogo de mercado. Na medida em que o crescimento
94

pujante nos países capitalistas em fins do século XIX e inícios do


século XX constituía em si um forte “argumento” em favor do
capitalismo, muito mais importante do que qualquer construção
teórica, não houve necessidade de uma nova corrente econômica.
A grande crise de 1929, em termos de profundidade e de duração,
com um desemprego permanente e generalizado, mudaria
profundamente essa situação. São sob essas novas condições que
nasceu a teoria de Keynes.
95

Capítulo 6
A ruptura keynesiana e o desenvolvimento do pensamento
socialista

Início do século XX – Segunda Guerra Mundial

O período do início do século XX até a Segunda guerra Mundial é


rico em eventos históricos importantes:
- Profundas transformações na estrutura das economias
capitalistas, que se manifestaram por amplo processo de
concentração e centralização do capital;
- Crescimento vigoroso das economias capitalistas desenvolvidas
nos vinte anos que precederam a primeira Guerra Mundial,
acompanhado de uma alta sensível do nível de vida dos
assalariados nesses países;
- Importante desenvolvimento de expansão colonial na África e na
Ásia;
- Crise dos anos trinta, a mais profunda e a mais longa, jamais
conhecida pelos países capitalistas até então e que provoca um
desemprego profundo e durável, que tem como conseqüência a
instauração da ditadura nazista na Alemanha;
- Eclosão de duas guerras mundiais, uma dando fim ao longo
período de crescimento do início do século e a outra à crise dos
anos trinta;
- Surgimento de um novo Estado, em seguida à Revolução Russa,
caracterizado pela vontade de construir uma sociedade socialista à
escala mundial, mas que rapidamente degenera e toma a forma da
ditadura stalinista.
Todos esses eventos evidentemente marcaram profundamente a
evolução do pensamento econômico. Eles farão surgir a economia
política de Keynes e comandar a evolução do pensamento
socialista.
96

I – A ruptura keynesiana.

O projeto de John Maynard Keynes (1833-1946), alto funcionário,


professor de economia política e diversas vezes designado como
conselheiro do governo britânico, era o de salvar o capitalismo.
Para esse fim é necessário organizar a intervenção do Estado na
vida econômica, a fim de atenuar de forma durável a amplitude das
crises e do desemprego. É por isso que o keynesianismo é ao
mesmo tempo uma teoria e uma política, explicitada em duas
obras essenciais: Tratado da moeda, publicado em 1930, e Teoria
geral do emprego, do juro e da moeda, publicado e 1936.

A teoria econômica keynesiana

Ela baseia-se em um princípio que em si só tem uma importante


implicação.

O princípio keynesiano:
o papel motor exercido pela demanda global

Keynes se opõe à tese segundo a qual a oferta cria sua própria


demanda e defende a idéia que o nível de produção e o nível de
emprego dependem da demanda efetiva, dos mercados
antecipados pelos empresários. No curto período, contexto da
análise de Keynes, isto é, supondo dada a quantidade de força de
trabalho e de bens de equipamento, a demanda efetiva exerce um
papel fundamental.
Desse modo, Keynes retoma Malthus, que atribuía um papel
fundamental à demanda efetiva. Ele retoma também os escritos do
economista sueco Kunetz Wicksell que, em sua obra publicada em
1898, As Causas e determinantes do juro e dos preços, acentuava o
97

papel da demanda global para o crescimento e, mais


particularmente, sobre os seus componentes, o próprio
investimento dependendo da existência de lucro superior à taxa de
juros.

Considerando que a demanda global possui tamanha importância,


é necessário especificar seus componentes e seus determinantes.
Keynes, nesse ponto, apresenta análises novas que se opõem à
essência da teoria neoclássica. Sua tese pode ser esquematizada
pelas formulações abaixo, que dizem respeito apenas às despesas
internas dos agentes privados, excluindo o Estado:
1 – O volume da produção e o nível de emprego dependem da
demanda global, que ela própria, se decompõe em demanda por
bens de consumo e demanda por investimento.
98

2 – A demanda de bens de consumo é determinada pela propensão


a consumir, conceito cunhado por Keynes. Ela é mensurada pela
relação entre o consumo e a renda, C/R, e depende
fundamentalmente do nível de renda, ao qual se soma certo
número de fatores subjetivos. O aspecto fundamental dessa
relação é que quando a renda aumenta o consumo também cresce,
porém em proporção menor que a renda em valor absoluto. Isso é
o que Keynes chama de “lei psicológica fundamental”.
3 – A demanda por investimentos depende da existência de uma
defasagem positiva entre a eficiência marginal do capital e a taxa
de lucro
A eficiência marginal do capital é a combinação do que Keynes
chama rendimento de capital descontado e o custo de reposição
do capital. Sem entrar em detalhes dessa combinação, vamos nos
ater apenas ao fato que esse conceito de eficiência marginal do
capital compreende, essencialmente, o conceito de taxa de lucro
que podemos esperar ao colocar em processo uma unidade
suplementar de capital, antecipação profundamente marcada pela
incerteza. No que diz respeito à taxa de juros, Keynes apresenta
análises extremamente inovadoras e diferentes das neoclássicas.
Essa novidade tem três aspectos.
O primeiro aspecto diz respeito à análise da demanda por moeda,
determinada pelo que Keynes chama preferência pela liquidez.
Keynes rompe com os clássicos e neoclássicos, para quem a moeda
é demandada unicamente para servir de instrumento de circulação
das mercadorias. De fato, diz Keynes, essa primeira razão para a
demanda por moeda existe e é determinada pelos motivos
transação e precaução, função crescente da renda. Essa demanda
varia no mesmo sentido que a renda. No entanto, a moeda
também pode ser demandada por ela mesma, para ser
entesourada, e isso em razão da qualidade que ela tem de ser
líquida. Essa demanda por moeda, que obedece ao motivo
especulação, é uma função decrescente da taxa de juros. Ela varia
no sentido inverso da taxa de juros. Por exemplo, quando esta
99

última aumenta, os agentes preferem aplicar seu dinheiro ao invés


de guardá-lo sob a forma líquida. A preferência pela liquidez
diminui. Portanto, Keynes faz uma caracterização dos juros bem
distinta daquela realizada pelos neoclássicos. Para esses últimos,
como vimos, o juros é definido como o preço da poupança, como
recompensa concedida pela renúncia ao consumo. Para Keynes, a
poupança não é uma abstinência voluntária recompensada pelos
juros, ela é um simples resíduo. Primeiro a comunidade consume, e
isto em função da renda, e uma vez que tenha consumido ela deixa
um resíduo, que é a poupança. Em seguida, prossegue Keynes, essa
poupança pode ser investida, aplicada ou conservada sob sua
forma líquida. O juro então pode ser definido como a recompensa
dada pela renúncia de entesourar.
O segundo aspecto novo da análise de Keynes sobre os juros é que
ele não iguala, como na economia política clássica, a poupança e o
investimento, mas a sim a oferta e a demanda por moeda. Os juros
se formam no mercado monetário, onde iguala uma demanda por
moeda, que no curto prazo varia essencialmente em função do
motivo especulação, sendo, portanto, função decrescente da taxa
de juros, com uma oferta de moeda determinada pelo Banco
Central.
O terceiro e último aspecto relativo à taxa de juros pode ser lido
pelo esquema geral que apresentamos. Nele vemos que, ao
contrário da tese neoclássica, a moeda não é neutra em relação à
determinação dos níveis de produção e emprego. Os fenômenos
monetários, oferta e demanda, agem sobre a taxa de juros e,
portanto, sobre a demanda por investimento, que por sua vez
influencia o volume de produção e o nível de emprego. Não há
dicotomia entre o setor monetário e o setor real.
100

A implicação do princípio keynesiano.

Essa implicação é muito importante. O princípio keynesiano


significa que pode existir o que Keynes denominou de equilíbrio
com desemprego, isto é, situações em que a demanda global e a
oferta global são iguais, porém com um nível baixo demais para
evitar o desemprego permanente. Mais precisamente, explica
Keynes, existe um nível de produção que assegura o equilíbrio
entre a oferta global e a demanda global, mas nada garante que
esse nível de produção possibilite o pleno emprego dos
trabalhadores disponíveis. Se, a esse nível de produção, não há pó
pleno emprego, teremos um equilíbrio como desemprego. A
responsabilidade recai, segundo Keynes, na insuficiência da
demanda global, que sabemos ter um papel fundamental na
determinação do nível de emprego. Um desemprego permanente é
possível se a demanda global for insuficiente. Ora, Keynes estima,
utilizando seu aparato de análise, que a economia capitalista
deixada sozinha, sem a intervenção do Estado, está condenada a
um equilíbrio com desemprego crônico em razão da insuficiência
da demanda global. Temos uma insuficiência de demanda por bens
de consumo devido à desigualdade na distribuição das rendas,
resultando em maior poupança que é amplamente entesourada.
Temos também insuficiência da demanda por investimento em
razão da insuficiência da demanda por bens de consumo e da
tendência de diminuição da eficiência marginal do capital em razão
da dificuldade crescente de se encontrar boas oportunidades de
investimento.
Decorre daí um certo tipo de recomendações de política
econômica.
101

A política econômica keynesiana

Keynes deseja salvar o capitalismo. Ora, quando deixado só, o


capitalismo conduz a um sub-emprego crônico perigoso para sua
própria sobrevivência. Portanto, o Estado deve intervir para
aumentar a demanda global, quer se trate da demanda por bens
de consumo, quer se trate da demanda por bens de investimento.
Essa intervenção, longe de ser uma ameaça ao sistema, o salvará.
Mais exatamente, o Estado deve intervir de três formas:
1 - Distante de uma política de diminuição dos salários, como
preconizam os neoclássicos, para Keynes essa política diminuiria
ainda mais a demanda global, portanto assumindo um papel de
agravante. Para combater o desemprego, o Estado deve elaborar
uma política de redistribuição de rendas em favor das camadas
mais pobres, que têm uma propensão marginal a consumir mais
alta, para proporcionar o crescimento da demanda por bens de
consumo. Com essa finalidade Keynes preconiza uma política fiscal
redistributiva e o desenvolvimento dos sistemas de seguridade
social.
2 – O Estado deve adotar uma política de expansão monetária. Essa
política de expansão monetária terá por efeito baixar a taxa de
juros, que é uma das duas variáveis determinante do investimento
privado. No entanto, essa política tem limites, como ressalta
Keynes. De fato, a partir de certo patamar correspondente a uma
taxa de 2%, esta taxa é tão baixa que à luz das experiências
passadas os agentes estimam que ela não pode diminuir mais.
Nessas condições, eles se preocupam em conservar o máximo de
recursos em moeda, já que de um lado eles somente abrem mão
de uma taxa de juros muito baixa, de outro lado garantem a
possibilidade de recomprar títulos no futuro, quando as taxas
tiverem subido. Portanto, a partir desse patamar, qualquer que
seja o volume em moeda injetado na economia, a taxa de juros não
diminui. Toda a moeda adicional desaparece, diz Keynes, pela
102

armadilha da liquidez: ela é inteiramente absorvida para formar


encaixes monetários. Portanto, há um limite para a utilização da
política monetária a fim de estimular o investimento privado,
sobretudo quando a eficiência marginal do capital apresenta
tendência a baixar.
3 – Portanto, o Estado deve implementar uma política de
investimentos públicos, em particular uma política de grandes
obras. O investimento público deve ser essencialmente
considerado como a peça estratégica essencial de toda política de
emprego. Ele não deve ser considerado como um procedimento
temporário de luta contra o desemprego, mas como um elemento
permanente de política econômica. A ele compete cobrir
permanentemente a defasagem entre o investimento global
necessário para a realização do pleno emprego e o investimento
privado. O papel do investimento público é tão mais importante
quanto for o papel exercido pelo mecanismo do multiplicador,
mecanismo já explicado em 1931 pelo economista inglês R.F. Kahn.
Podemos ilustrar esse mecanismo da seguinte forma: os primeiros
empregados, em seguida a uma despesa de investimento, obras
públicas por exemplo, gastam uma parte de sua renas comprando
bens de consumo, o que provoca um crescimento na produção
desses bens, portanto novos empregos são gerados, novas rendas
e o processo continua. Em outras palavras, em seguida a uma
despesa inicial em investimento, o crescimento final do emprego
será um múltiplo do aumento inicial.
A política keynesiana conheceu pleno sucesso nos países
capitalistas desenvolvidos durante o período de forte crescimento
e baixo desemprego, indo da Segunda Guerra Mundial até o início
dos anos setenta. A economia capitalista, para funcionar bem,
como sabemos, precisa da existência concomitante de taxa de
lucro e empregos elevados. Ora, durante esse período as fortes
altas das produtividades do capital e do trabalho permitiram a taxa
de lucro manter-se em um nível elevado. Era preciso que os
mercados fossem também orientados nesse sentido, e foi
103

exatamente a política keynesiana de estímulo à demanda privada e


pública que garantiu o crescimento. O início dos anos setenta
inaugura um novo período marcado pela baixa das taxas de lucro.
As políticas keynesianas de estímulo à demanda são colocadas em
questão e políticas de austeridade as substituem. Ao mesmo
tempo certos aspectos da teoria neoclássica voltam à tona, em
especial a idéia que deixar as forças de mercado atuarem
livremente, principalmente não impedindo da baixa de salários, é o
melhor meio de evitar um desemprego permanente. Contudo,
pensava-se que essa idéia tinha definitivamente desaparecido após
a crise dos anos trinta e da crítica de Keynes.

II – O pensamento do pensamento socialista

O conjunto de circunstâncias econômicas e políticas que evocamos,


que caracterizam o período do início do século XX até a Segunda
Guerra Mundial, influenciaram amplamente o desenvolvimento
das idéias no seio do movimento socialista.

O pensamento não marxista

O desenvolvimento dessas idéias manifestou-se de forma


anárquica, segundo as quais é possível construir, a partir da queda
do capitalismo, uma sociedade sem Estado, constituída por uma
Federação de pequenas comunidades.
Elas se caracterizam também pelo surgimento de um pensamento
reformista que se opõe à idéia de que somente a revolução pode
suscitar uma transformação real da condição operária, que por sua
vez assume duas formas.
104

Para a primeira corrente, continua necessário passar da sociedade


capitalista par uma sociedade socialista, porém essa passagem
pode se realizar progressivamente, por meio de uma sucessão de
reformas.Por exemplo, ela é representada na Inglaterra pela
Sociedade Fabiana, denominação que se inspira no nome de Fabius
Cunctator, o contemporizador. A sociedade é criada em 1884, seus
principais representantes são Sidney Webb, Beatrice Webb e
George Bernard Shaw, o dramaturgo. Eles foram influenciados pela
economia política neoclássica, mas são hostis ao liberalismo
econômico. Nos Ensaios fabianos sobre o socialismo (1889), Shaw
identifica os lucros a uma renda que é possível confiscar pouco a
pouco. Ele é levado assim a pensar que a economia capitalista
pode funcionar progressivamente sem lucro! Paralelamente a isso
devem ser criadas empresas estatais e comunitárias. A propriedade
dos meios de produção pouco a pouco torna-se comunitária, e
desse modo passamos progressivamente ao socialismo.
Para a segunda corrente do socialismo reformista, não é mais
necessário passar de uma sociedade capitalista para uma
sociedade socialista. No contexto da própria sociedade capitalista,
é possível obter melhorias suficientes para a condição operária.
Essa corrente é representada na Alemanha por Edouard Bernstein,
cuja principal obra, O socialismo teórico e a prática do socialismo,
publicada em 1899, baseia-se na realidade econômica e social
desse fim de século nos países da Europa ocidental: alta do nível de
vida dos operários, diminuição do desemprego e melhoria das
condições de trabalho deles. Ele considera então que em países
como a Alemanha as classes proprietárias não representam mais
um obstáculo par o progresso social. É preciso se situar no próprio
contexto do sistema capitalista e obter novas reformas sociais. Essa
é a tarefa a cumprir. Observemos que ao mesmo tempo Bernstein,
e também Shaw, aprova em nome da civilização a política de
expansão colonial em curso, que tem um papel não desprezível
para o crescimento que a economia capitalista observada nos
países da Europa ocidental.
105

O desenvolvimento do pensamento marxista

No início do século XX, frente às transformações que caracterizam


o sistema capitalista, em particular o processo de concentração e
centralização do capital e a política de expansão colonial, e frente
aos problemas postos pela Revolução russa, o pensamento
marxista depara-se tanto com atualizações, quanto com novas
análises. Elas dizem respeito essencialmente a três áreas.

Um novo estágio do capitalismo

Rudolf Hilferding, dirigente socialista austríaco, publica em 1910 o


Capital financeiro, onde mostra que há uma inter-penetração
crescente entre o capital industrial e o capital bancário e que,
desse modo, forma-se o capital financeiro que os bancos dispõem
e que é investido na indústria. Lênin, em Imperialismo, fase
superior do capitalismo, obra publicada em 1916, integra essa
análise e de forma mais ampla define o que ele considera ser as
cinco características de um estágio novo do capitalismo nascido no
início do século XX – o estágio imperialista: concentração e
centralização do capital na indústria e constituição dos monopólios
; concentração e centralização no setor bancário e constituição do
capital financeiro; crescimento das exportações de capitais, que
adquirem uma importância relativa crescente em relação às
exportações de mercadorias; partilha do mundo entre grupos
capitalistas e grandes potências; parasitismo e tendência à
estagnação. A seus olhos, o estágio imperialista do capitalismo não
é um tumor que se possa evitar, mas sim um estágio inevitável do
desenvolvimento do capitalismo.
106

A economia mundial

Surgem novas análises, que dizem respeito à caracterização da


economia capitalista como economia mundial. Relembremos as
análises de Rosa de Luxemburg e de Léon Trotski.
Rosa Luxemburg, em sua principal obra, A acumulação de capital,
publicada em 1913, defende a tese segundo a qual a economia
capitalista, para se desenvolver, não pode contar somente com a
demanda concretizável do mercado interno capitalista. Ela tem
necessidade de mercados externos, no sentido de exterior e não de
além fronteiras, porém ainda na esfera capitalista. Essa tese a leva
a se interessar na forma como o capital penetra as formações
sociais não capitalistas. Ela distingue três grandes etapas: luta
contra a economia natural, que assume a forma de apropriação
dos recursos, de “liberação” da força de trabalho e introdução de
uma economia mercantil; posteriormente, luta para substituir esta
economia mercantil por uma produção capitalista; enfim,
concorrência do capital no mercado internacional na luta para
controlar o que resta de formas sociais não capitalistas em alguns
territórios. Rosa Luxemburg apresenta assim o que podemos
considerar como a primeira e magistral análise da gênese do sub-
desenvolvimento.
Trotski inicia lembrando que, sobre a pressão da tendência para
acumular capital, inerente ao capitalismo, constituiu-se uma
economia mundial e hierarquizada. Posteriormente, em sua obra A
Revolução permanente, escrita nos anos de 1928-1931, ele traz
uma especificação em dois sentidos. Essa economia capitalista
mundial não pode ser considerada como uma simples soma de
economias nacionais, mas como uma realidade que domina os
mercados nacionais. Assim, os traços específicos das economias
nacionais, por mais importantes que sejam, constituem elementos
de uma enorme unidade, que é precisamente a economia mundial.
Além disso, Trotski explicita que a hierarquização dessa economia
107

capitalista mundial é o resultado de condições históricas do


desenvolvimento da produção capitalista, condições que dizem
respeito ao que ele denomina como lei do desenvolvimento
desigual e combinado. O desenvolvimento é desigual entre setores,
entre regiões, entre economias nacionais. Ele também é
combinado no sentido que a pressão econômica e política exercida
pelos países capitalistas desenvolvidos obrigam os países sub-
desenvolvidos a proceder por reflexo, a adotar de imediato as
técnicas mais avançadas, Desse modo, surge um tipo combinado
de desenvolvimento aliando traços de atraso à presença das
técnicas de produção mais modernas.

A construção do socialismo

Os debates sobre a construção da sociedade socialista se dão logo


em seguida à Revolução russa. O debate mais célebre ocorreu no
início dos anos vinte. Teve como protagonistas dois dirigentes
bolcheviques, Preobrajenski e Boukharine. O primeiro, em sua obra
publicada em 1926, A nova economia, mostra-se favorável a uma
industrialização imediata e acelerada. Esta deve ser financiada
através de retiradas de recursos extraídos da agricultura por
intermédio da política de preços. Os produtos agrícolas serão
vendidos a um preço inferior ao valor deles, e os produtos
industriais terão um preço superior. É o que Preobrajenski
denominou acumulação socialista primitiva. Boukharine, ao
contrário, era partidário de favorecer a prosperidade dos
camponeses para que a produção deles se desenvolvesse e
fornecesse após certo tempo os recursos para a industrialização.
Produtos agrícolas e industriais deviam ser vendidos pelos seus
valores.
Essa discussão encontra-se no seio de um debate mais amplo sobre
a questão de se saber se é possível ou não construir o socialismo
108

em um só país. O debate opõe Stalin e Boukharine de um lado e


Trotski de outro. Os primeiros acreditam ser possível instaurar uma
sociedade socialista com base em um Estado nacional, a condição
que não haja intervenção militar contra esse Estado. Trotski pensa
que a idéia de podermos construir uma sociedade socialista em um
só país, no sentido de Marx, isto é, uma sociedade de abundância,
onde a produção mercantil não exista mais e cada um esteja apto a
dirigir a sociedade, não somente é uma utopia, mas uma utopia
retrógrada. A importância da URSS, aos olhos de Trotski, decorre
dela dever ser a base de apoio de uma revolução mundial, e não de
sua capacidade de construir o socialismo independente desta
revolução.
Depois de ter passado por um desenvolvimento multiforme, o
pensamento marxista conheceu um verdadeiro bloqueio, desde os
anos trinta, devido à instauração na URSS da ditadura de uma
classe burocrática, que se apropriou de todo o poder político e de
imensos privilégios sociais. A economia política marxista, sob a
égide dessa classe que defende seus próprios interesses políticos e
sociais, em todas as áreas que lhe são submetidas, sofre uma
profunda degeneração. Essa economia política torna-se um simples
instrumento de legitimação do poder dessa classe, poder que ela
usurpou em nome da defesa dos trabalhadores, e um simples
instrumento de justificativa das políticas que adotadas. Será
preciso esperar um longo tempo para ver renascer um marxismo
vívido em sua crítica à economia política.
109

Capítulo 7
As grandes correntes do pensamento contemporâneo.

Da Segunda Guerra mundial aos nossos dias

A base histórica do período é composta por três elementos


essenciais.
O primeiro é a sucessão, em um país capitalista desenvolvido, de
duas grandes fases. A primeira nos leva da Segunda Guerra
mundial até o início dos anos setenta. Ela é marcada por um forte
crescimento, de 5% a 6% ao ano, com crises conjunturais cuja
amplitude e duração são pequenas e se caracterizam pela simples
diminuição do crescimento e nunca de forma generalizada para o
conjunto dos países, com um desemprego de pouca magnitude –
cem milhões de desempregados na França dos anos sessenta. A
segunda fase ocorre no início dos anos setenta e, ao contrário da
primeira fase, distingue-se por um crescimento bem mais fraco,
por crises conjunturais, como as de 1974-1975 ou de 1979-1982,
bem mais graves e marcadas por diminuição do valor absoluto da
produção e de forma generalizada para o conjunto de países, e
também por um desemprego que se torna bem mais grave.
O segundo grande elemento histórico do período é a manutenção
da ditadura stalinista na URSS, depois sua crise, sua queda e o
desenvolvimento nesse país de um capitalismo selvagem.
Enfim, o terceiro elemento é a amplitude do processo de
descolonização e, ligado a ele, o interesse que doravante diversos
economistas terão pelas economias dos países sub-desenvolvidos.
Sobre essa base histórica, as correntes de pensamento econômico
terão um desenvolvimento e uma diversificação consideráveis. Não
seremos exaustivos. Tentaremos apenas compreender as filiações
e as condições para surgirem as principais correntes de
pensamento econômico. A maior parte, além dos múltiplos
aspectos que elas possuem, encontra suas fontes nas correntes de
110

pensamento que apresentamos. Assim, pode-se distinguir os


“descendentes” dos primeiros neoclássicos, de Keynes e de Marx
na essência dessas correntes.
No entanto, há contribuições que escapam da classificação das três
filiações neoclássica, de Keynes e de Marx. Dentre elas vamos dar
atenção a do economista americano W. Leontief. Depois de ter
contribuído com os primeiros planos da economia soviética e
trabalhado com Preobrajenski no início dos anos vinte, ele deixa a
URSS em 1925. Professor em Harvard, publica em 1941 uma obra
intitulada A estrutura da economia americana 1919-1939. Leontief
apresenta nela um modelo qualificado de input-output, que
permite a análise detalhada do sistema produtivo de um país. Ele
constrói um quadro que representa o sistema produtivo como um
conjunto interdependente de setores, que fornecem produtos uns
aos outros, cujo consumo, dito “intermediário” (input) permite
obter outros produtos (output). Defini coeficientes técnicos que
representam a quantidade de um input necessário para se obter
uma unidade de um output. O instrumento criado por Leontief se
mostrará de grande utilidade na elaboração de políticas
econômicas, em particular para a simulação dos efeitos que as
medidas tomadas terão para o sistema produtivo.

I – A filiação neoclássica

A rejeição a Keynes disfarçada

Entre 1945 e o início dos anos setenta, enquanto as taxas de lucro


eram altas, como já frisamos, a política econômica keynesiana de
estímulo da demanda privada e pública garante a existência de
mercados suficientes. Portanto, esse período conhece o triunfo do
pensamento keynesiano. Nesse contexto, os autores que
111

reivindicam a escola neoclássica, seu liberalismo, seu método, sua


análise do valor e das rendas se mostrarão prudentes. Ao invés de
rejeitar pura e simplesmente o keynesianismo, muitos deles se
juntam na tentativa de reduzi-lo, integrando-o no que apresentam
como uma síntese das análises neoclássica e keynesiana. Na
origem dessa tentativa de síntese encontra-se o inglês John Richard
Hicks, que trata dessa questão em 1937 em seu artigo “M. Keynes
e os clássicos; uma proposição de interpretação” e em sua obra
Valor e Capital, de 1939. Há também o economista americano Alvin
Hansen com seu livro publicado em 1953, Introdução ao
pensamento keynesiano. Essa síntese, cujos autores serão
qualificados como neo-keynesianos, se tornará o fundamento
essencial da economia dominante e a base dos trabalhos de
modelização. É ela que estará representada e defendida no manual
de economia que foi o mais difundido em todo o mundo, A
Economia, de autoria do economista americano Paul Samuelson.
Trata-se de fato de um modelo qualificado como IS-LM: I =
investimento, S = poupança, L = demanda por moeda, M = oferta
de moeda. Esse modelo se apresenta sob a forma de equilíbrio
simultâneo do mercado de bens e de moeda. Essa representação
permite prever medidas orçamentárias e monetárias que possam
conduzir a economia para uma situação próxima a de pleno
emprego, situação em que, segundo Samuelson, a teoria neo-
clássica volta a ser válida. Nesse modelo, o caso keynesiano típico,
que é o equilíbrio durável de sub-emprego com desemprego
involuntário,torna-se um simples caso particular do universo neo-
clássico considerado como o quadro geral para a análise
econômica. O circuito keynesiano indo da despesa ao emprego,
baseado na causalidade, é substituído pela teoria de equilíbrio
geral macroeconômico, completando, com o mesmo espírito, o
equilíbrio geral microeconômico de Walras e Pareto. Os elos de
causalidade, características e traços originais do circuito
keynesiano desaparecem, assim como as análises de Keynes a
112

respeito dos efeitos do ambiente de negócios e da incerteza sobre


a eficiência marginal do capital ou sobre a demanda por moeda.
A mensagem de Keynes é adocicada e também traída quando o
economista americano Don Patinkin, em sua obra publicada em
1956, A Moeda, O Juro e os Preços, introduz no modelo, ao lado
dos mercados de bens e de moeda, um mercado de trabalho
funcionando segundo a lógica neoclássica pura. Nesse mercado o
salário é fixado como qualquer outro preço, em função da oferta e
da demanda determinadas segundo os critérios neoclássicos, e a
recusa em diminuir os salários é denunciada como a responsável
pelo desemprego. Isso, com já vimos, vai totalmente contra a
teoria de Keynes, que ressaltava que o salário não é um preço
como os outros e que a diminuição dos salários pode provocar
insuficiência da demanda global, ela própria fonte de agravamento
do sub-emprego,
Na mesma linha dessas análises e da lógica dela, outro estudo
tornou-se uma das bases da economia dominante, a do
economista americano Alban Phillips que, em um artigo de 1958
intitulado “A relação entre desemprego e taxa de variação dos
salários nominais no Reino Unido entre 1861 e 1957”, estabeleceu
uma relação entre o desemprego e a variação dos salários, a qual
se junta uma relação entre a variação dos salários e dos preços.
Esse mecanicismo diz respeito ao estudo da relação
desemprego/salários. Phillips ignora o fato de que uma diminuição
ou aumento do desemprego não atua mecanicamente sobre os
salários, mas apenas influencia a relação de forças entre os grupos
sociais, que determina a divisão salário/lucro. Esse mecanismo
também aparece na relação salários/preços, que ignora que um
crescimento dos salários superior ao da produtividade não se
traduz automaticamente em uma alta dos preços, mas apenas no
caso em que os proprietários do lucro reagem para manter a parte
deles na divisão salário/lucro.
113

A rejeição aberta a Keynes: a volta poderosa do liberalismo


neoclássico

O surgimento de um novo período no início dos anos setenta é


marcado por uma diminuição da taxa de lucro. As políticas
keynesianas de estímulo à demanda são então abertamente
denunciadas como nefastas. Ao mesmo tempo as políticas de
austeridade postas em prática para restaurar essas taxas de lucro
têm uma grande responsabilidade pela diminuição do
crescimento, pelo estouro de crises conjunturais relevantes e pela
existência de uma taxa de desemprego elevada, as políticas
keynesianas e a teoria keynesiana são consideradas culpadas.
Nesse contexto desenvolvem-se duas correntes.
Em primeiro lugar, surge uma nova e última tentativa de síntese
das análises neoclássica e keynesiana sob uma forma diferente da
que apresentamos. Ela é resultado dos economistas denominados
teóricos do desequilíbrio. Cujo principal representante é o francês
Edmond Malinvaud. Esses economistas admitem a idéia que
desequilíbrios e um desemprego permanente são possíveis em um
mundo em que os preços e salários não são flexíveis, porém eles
vêem duas causas distintas, que não podem ser tratadas da mesma
forma: uma insuficiência da demanda global, que cria um
desemprego qualificado como keynesiano, ou uma insuficiência da
oferta, devido à uma rentabilidade ou uma poupança pequena,
que cria o desemprego clássico. No primeiro caso, é preciso colocar
em prática uma política para manter a demanda, principalmente
através do aumento das despesas públicas. No segundo caso, é
preciso uma política de diminuição dos salários reais e de estímulo
à competitividade da oferta.
O contexto do novo período produz sobretudo uma rejeição muito
mais clara da teoria e da política keynesiana pelas correntes que já
existiam e reaparecem com força ou pó novas correntes. Elas têm
em comum a inspiração liberal fortemente anti keynesiana, assim
114

como uma recusa da síntese clássica-keynesiana. Tomaremos aqui


três exemplos, o ultra-liberalismo, o monetarismo e a economia da
oferta, deixando claro que não seremos exaustivos e
principalmente não trataremos dos teóricos do equilíbrio geral,
Maurice Allais, Kenneth Arrow e Gerárd Debreu.

O ultra-liberalismo

O ultra-liberalismo tem como principal representante o economista


austríaco Friedrich Hayek, autor de inúmeras obras, das quais
destacamos: O caminho da servidão, publicado em 1944,
Individualismo e Ordem Econômica, publicado em 1948, e Direito,
legislação e liberdade, , publicado em 1973-1979.
Para Hayek, tudo que se opõe à regulação da vida social por meio
da livre troca no mercado é considerado nocivo e denunciado
como conseqüência de um funesto racionalismo construtivista que
dá a ilusão de ser possível construir coletivamente e
deliberadamente as relações sociais. Portanto trata-se de um
liberalismo que recusa a idéia de um contrato social e onde o papel
do Estado é afastar tudo que pode perturbar a ordem espontânea
do mercado.
Mais exatamente, esse ultra-liberalismo é constituído por dois
grandes temas principais.
Primeiro tema; o mercado exerce um papel determinante na
formação da sociedade. É ele que assegura a existência e
manutenção do laço social. Ele é a manifestação de uma ordem
espontânea, fruto natural dos comportamentos diferentes dos
diversos indivíduos e que tem propriedades auto-reguladoras. A
sociedade sendo uma ordem espontânea e regulada, o Estado não
deve intervir na vida econômica, salvo para velar pelo respeito à
liberdade econômica. Uma recusa de intervenção que vai muito
longe, já que Hayek se declara favorável à desnacionalização da
115

moeda, quer dizer, pela supressão dos bancos centrais e pela


criação monetária deixada aos bons cuidados dos bancos e ao jogo
da concorrência entre as diversas moedas privadas.
O respeito essencial aos princípios do liberalismo econômico pode
ser prejudicado pela democracia política, potencialmente perigosa,
pois ela é acompanhada, sob a pressão de interesses particulares,
por uma demanda crescente de intervenções do Estado. Da mesma
forma, os sindicatos introduzem rigidez no mercado de trabalho
que impedem o jogo da concorrência necessário para a alocação
ótima dos recursos. Frente a esses perigos, é dada prioridade
absoluta aos princípios do liberalismo econômico. Hayek,
interrogado por um jornalista chileno na época da ditadura do
general Pinochet, declara preferir uma ditadura política que coloca
em prática uma política de liberalismo econômico a uma
democracia que aplique uma política de intervencionismo
econômico do Estado.
A concepção de Hayek, que faz do Estado e do mercado duas
entidades independentes, atribuindo ao segundo, que se
organizaria à parte da política, um papel determinante na
constituição e evolução das relações sociais independente do
primeiro, nos parece como sendo uma fábula: uma fábula histórica
se lembrarmos do papel do Estado na introdução e no
desenvolvimento das relações mercantis e capitalistas, de modo
que ele é parte ativa na constituição do mercado, de sua regras e
códigos; uma fábula teórica na medida em que é o Estado quem
assegura a manutenção da relação de produção capitalista e que
não pode ser colocado de lado, o mercado sendo então concebido
falsamente como uma instância única e auto regulada.
O segundo grande tema constitutivo do ultra-liberalismo de Hayek
é o das desigualdades criadoras. O livre mercado naturalmente
leva a uma distribuição de riquezas que todos aproveitam. O
mercado cria desigualdades, mas estas desigualdades são
necessárias para a capacidade de adaptação da ordem mercantil.
As rendas obtidas no mercado são mecanismos indispensáveis que
116

incitam à eficácia, e os perdedores serão incitados a se esforçarem


para melhorar sua situação e atingir o campo dos ganhadores.
Assim, as desigualdades sociais permitem melhorar a longo-prazo o
destino de todos, inclusive os mais desprovidos. Uma política
deliberada de justiça social pela prática, sob a égide do Estado, de
uma redistribuição das rendas só pode ter como conseqüência o
entrave, até mesmo a quebra, da eficácia econômica e do
dinamismo do mercado. O resultado será então um agravamento
da sorte dos mais desfavorecidos. Evidentemente sonha-se com
Malthus.
Essa tese das desigualdades criadoras é totalmente contestável.
Apoiando-se em uma concepção discutível de racionalidade
individual e do bem estar coletivo, ela negligencia em primeiro
lugar as insuficiências de demanda global que a desigualdade da
distribuição de renda pode provocar. Além disso, as desigualdades
nem são garantia de lucros altos, pois a insuficiência dos salários
reais pode levar a criação de capacidade ociosa, ela própria fonte
de aumento dos custos, nem garantem o investimento produtivo
desses lucros, com os capitais podendo muito provavelmente ser
utilizado em aplicações financeiras mais rentáveis.

Os monetaristas

Os monetaristas formam uma outra corrente de inspiração liberal,


que adotam as hipóteses da análise neoclássica: concorrência
perfeita; pleno emprego dos fatores e alocação ótima dos recursos;
produção sempre puxada pela oferta e não pela demanda;
característica de desemprego voluntário dos assalariados, que se
recusam ser empregados com salário mais baixo. Essa corrente
teve crescimento considerável de sua importância nos anos
setenta.
117

Um primeiro monetarismo se desenvolve sob a égide do


economista Milton Friedman, autor de Inflação e Sistemas
monetários, publicada em 1968, e da escola de Chicago. Ele se
caracteriza por três grandes proposições:
1 – A oferta de moeda é exógena, isto é, resulta de uma ação
deliberada das autoridades monetárias. Ela é independente da
demanda por moeda dos agentes econômicos.
2 - A criação monetária além do necessário para o crescimento da
renda real não tem o efeito estímulo do crescimento e do emprego
a longo prazo. Mais exatamente, para Friedman, se em um dado
momento a criação monetária aumenta, ela pode de imediato
induzir ao fenômeno de ilusão monetária – os agentes têm a ilusão
que suas rendas reais aumentaram – e levar a uma alta da
demanda por bens criadora de emprego. No entanto,
paralelamente a isso, a criação monetária provoca aumento de
preços. Nesse momento os trabalhadores, ao verificar essa
elevação de preços, corrigem seus erros e a integram em suas
previsões, fenômeno de antecipação adaptativa. Eles exigem
salários mais elevados, o que aumenta os custos e tem o efeito de
diminuir o emprego. No final, o desemprego, qualificado de
natural, não terá diminuído. A longo prazo, a produção e o
emprego só dependem da quantidade e da combinação dos fatores
de produção. A criação monetária não surtindo efeitos sobre eles.
Reencontramos aqui a tese já defendida por Say e Walras, segundo
a qual a moeda não atua sobre os fenômenos reais, sendo apenas
um véu. A criação monetária tem como conseqüência a inflação,
considerada pelos monetaristas como um fenômeno puramente
monetário.
3 - Portanto, o objetivo da política monetária não deve ser a
realização do pleno emprego, o que seria ilusório, mas sim o
objetivo de estabilidade de preços a longo-prazo. Com essa
finalidade a política monetária deve ser “automática”, isto é, a
massa monetária deve crescer a uma taxa fixa, escolhida de modo
a corresponder à taxa de crescimento da economia e a um nível de
118

preços relativamente estável a longo-prazo. Quanto ao orçamento,


deve ser equilibrado, pois qualquer déficit ameaça ou a
estabilidade de preços, se for financiado pela criação monetária, ou
os investimentos privados, se for financiado por empréstimos.
Ao monetarismo de Friedman seguiu-se uma nova versão, que o
radicalizou. Ela é resultado de uma nova escola denominada Nova
economia clássica, cujos principais representantes a partir dos anos
setenta são os economistas americanos Robert Lucas, Thomas
Sargent e Neil Wallace. Eles abandonaram a hipótese de
expectativas adaptativas de Friedman para adotar a hipótese de
expectativas racionais.
Friedman, como vimos, admite que no curto prazo, e somente no
curto prazo, a criação de moeda pode estimular o emprego. Isso
não acontece para os novos clássicos. Segundo eles, as
antecipações dos agentes econômicos não se contentam em se
basear no passado e serem adaptativas, elas podem prever
perfeitamente o futuro sobre a base do modelo monetarista e de
informações que se encontram à disposição. Trata-se das
antecipações racionais. No caso de criação de moeda, os agentes
sabem que ela terá conseqüências inflacionárias e a adaptação
deles impede a realização dos efeitos favoráveis a curto prazo
sobre o emprego previsto por Friedman. De forma mais geral, as
políticas econômicas são geralmente ineficazes.
Nos contentaremos em ficar extremamente perplexo com a
radicalização das hipóteses de racionalidade dos agentes. Estes
estão aptos a prever racionalmente e corretamente os efeitos
inflacionistas da criação monetária, formando suas antecipações a
partir de um modelo construído ele próprio sobre a base da teoria
monetarista. Onipresentes e monetaristas, os agentes antecipam
corretamente as altas de preços, adotam um comportamento em
função dessas antecipações, com a inflação sendo a conseqüência
imediata. Eis, para dizer o mínimo, hipóteses um tanto exageradas
para serem aceitas.
119

A economia da oferta

A economia da oferta é a terceira corrente que escolhemos para


ilustrar o caráter dominante que o liberalismo assume nos anos
1970-1980. Seu principal representante é o economista americano
Arthur Laffer, que publica em 1978 A Economia da revolta fiscal.
Ele tenta demonstrar, na linha das leis de mercado de Say, que as
dificuldades econômicas do período, fraco crescimento e
desemprego elevado, dizem respeito a uma insuficiência da oferta
de fatores de produção, que por sua vez resultam das intervenções
nefastas do Estado. Mais exatamente, são os impostos e as
despesas públicas, principalmente as contribuições sociais, que são
as culpadas. Os impostos reduziriam a atração pelo trabalho,
portanto diminuindo a oferta de trabalho. Da mesma forma que
reduzem a poupança privada, portanto diminuindo a oferta de
capital. Quanto às prestações sociais, felás favorecem o lazer em
detrimento do trabalho e desse modo incitam também a
diminuição da oferta de trabalho. No final, a criação de riqueza é
impedida. Além do mais isso acaba por reduzir a própria base
fiscal. Reencontramos aqui as velhas idéias, defendidas desde 1925
pelo economista francês Jacques Rueff, para as quais o seguro
desemprego cria desemprego. Reencontramos mais uma vez
Malthus: a assistência aos pobres cria os pobres. Portanto,
segundo os economistas da oferta, é preciso diminuir os impostos
e as despesas públicas, se opor às políticas de redistribuição, que
têm efeitos perversos, e suprimir todas as regulamentações
estatais que entravam o desenvolvimento da oferta, em particular
para as pequenas e médias empresas.
Essa economia da oferta obteve certa repercussão, em grande
parte devido à forma com Ronald Reagan nos Estados Unidos e
Margaret Thatcher na Grã-Bretanha pretenderam fazê-las a base
120

de suas políticas econômicas. Na França ela tronou-se o discurso


dominante dos partidários do liberalismo econômico.
Contudo, essa teoria parece apoiada, em particular os efeitos
fiscais de desestímulo, em uma visão simplista da racionalidade
individual, que negligencia a extrema complexidade dos
determinantes que induzem ou não a se trabalhar. Sobretudo, essa
teoria reduz o desenvolvimento macroeconômico a uma dimensão
microeconômica. Ela se abstém de considerar a eficácia das
despesas e dos serviços públicos, bem como os efeitos benéficos
que elas têm para os agentes econômicos.

II – A filiação keynesiana

Se é legítimo recusar-se a considerar os economistas da síntese


neoclássica como os “filhos” de Keynes, o mesmo não ocorre com
uma outra corrente qualificada de pós-keynesianos. Os
economistas pós-keynesianos são verdadeiros descendentes de
Keynes, fiéis às suas principais contribuições e a sua metodologia.
Dentre eles encontramos membros da nova escola de Cambridge,
na Inglaterra, tais como Nicolas Kaldor, Joan Robinson, Roy Harrod,
Piero Sraffa, aos quais é necessário juntar o americano Sidney
Weintraub e acima de tudo o polonês Michael Kalecki que, desde
1933 em seus trabalhos sobre o ciclo de negócios, insistia sobre o
papel fundamental para a determinação do emprego das decisões
de investimento dos empresários relacionadas com as taxas de
lucro esperadas. Kalecki, por conta disso, antecipou as análises de
Keynes. Mais tarde exerceu uma forte influência sobre os membros
da escola de Cambridge.
Entre os pós-keynesianos mais recentes, encontramos Joseph
Stiglitz, prêmio Nobel de economia em 2001, pelos seus trabalhos
sobre economia da informação. Stiglitz foi nomeado economista
vice presidente em chefe do Banco Mundial em 1997, tendo
121

demitido-se em 2000, pois discordava das políticas do liberalismo


econômico e dedicado uma severa crítica a essa política em seus
dois livros; A Grande Desilusão, publicado em 2001, e Um outro
mundo, publicado em 2006.
Além de sua diversidade, os pós-keynesianos têm importantes
pontos em comum: a rejeição da síntese neoclássica, o destaque
dado à importância da demanda efetiva; a recusa em considerar
que o salário seja um peço como os outros; e a convicção que a
instabilidade principal da economia de mercado só pode ser
regulada por instituições, em especial o Estado.
A diversidade deles manifesta-se pelas contribuições distintas de
cada um. Vamos reter quatro aspectos.

O modelo pós-keynesiano de curto prazo

Uma primeira contribuição refere-se ao aprimoramento do modelo


keynesiano no contexto que lhe é próprio, isto é, no curto prazo.
Essa melhoria foi tarefa de Weintraub, Classical Keynesianism,
Monetary Theory and the Price Level, 1961. Ele apresenta um
modelo que descreve uma situação de equilíbrio com subemprego
e que explica, na tradição de Keynes, o desemprego permanente
não pela rigidez dos salários à baixa, mas pela insuficiência da
demanda efetiva devido à falta de coordenação macroeconômica.
Nesse modelo Weintraub introduz um novo elemento em relação a
Keynes: o mercado de trabalho, no qual os salários não são preços
como os outros, nem se determinam segundo critérios
neoclássicos, mas são resultados de convenções sociais entre
grupos sociais, mais exatamente, convenções coletivas entre
sindicatos e patronato, manifestações da procura por um
compromisso social para a divisão das rendas. Weintraub retomou
então, após tê-las enriquecido, as conclusões de Keynes. O
122

remédio para o desemprego não é a diminuição dos salários, que


enfraquece a demanda, mas um apoio a essa demanda.
Portanto, é essencial para os pós-keynesianos que os empresários
antecipem uma demanda global sustentada. No entanto, a
dificuldade está no fato, como bem demonstrou o inglês George
Schackle, em Incerteza e Economia, publicado em 1955, que as
antecipações são subjetivas e incertas. Ao contrário dos partidários
das antecipações racionais, é a incerteza e a miopia dos agentes
que reinam. Confirma-se então a idéia de que somente as
instituições podem regular as economias de mercado, marcadas
pela instabilidade e pela incerteza.

A teoria monetária

Uma segunda contribuição pós-keynesiana diz respeito à teoria


monetária. Kaldor, em seu livro publicado em 1985, O Fléau du
monétarisme, sintetizou a teoria monetária pós-keynesiana
caracterizando-a em três traços principais, que são exatamente o
contraponto das proposições monetaristas:
1 – A oferta da moeda é endógena, no sentido que a quantidade de
moeda existente não é fruto de uma ação deliberada das
autoridades monetárias, mas é fundamentalmente determinada
pela demanda por moeda dos agentes econômicos. O banco
central não tem, de fato, a possibilidade enquanto emprestador de
última instância de recusar ao sistema bancário a moeda que lhe é
necessária para responder as necessidades da economia.
2 – Se renunciarmos às hipóteses do modelo neoclássico
poderemos compreender que a criação monetária pode ter efeitos
estimulantes sobre a economia real, principalmente pelo viés do
crescimento da demanda global. Também podemos compreender
que essa criação monetária, longe de estar na origem da inflação, é
apenas uma condição permissiva. Se de fato ela é necessária para
123

financiar a alta dos preços, ela está apenas respondendo à


demanda dos agentes por moeda. Ela não é o primum movens da
inflação, o qual devemos procurar no comportamento adotado nas
despesas pelos agentes e nas lutas de diversos grupos sociais para
dividir as rendas.
3 – O controle da criação monetária através de uma supervisão
direta da quantidade fornecida é impossível. Essa impossibilidade,
explica Kaldor, manifesta-se tanto na Grã-Bretanha de Margaret
Thatcher, quantos nos Estados Unidos de Ronald Reagan, onde
essa política foi posta em prática e se deparou com dificuldades
imprevistas (definição de oferta de moeda e aparição de novos
instrumentos financeiros, para contrabalançar a restrição
monetária), tendo então fracassado. Friedman viu nisso uma
incompetência dos bancos centrais, Kaldor viu uma impossibilidade
ligada ao caráter endógeno da oferta de moeda.

Distribuição das rendas e teoria do crescimento

O terceiro aspecto da amplitude pós-keynesiana, visto pela lógica


keynesiana mas em um contexto de longo-prazo, refere-se à
elaboração de teorias de crescimento.
Os economistas pós-keynesianos, em particular Kaldor e Robinson,
discípulos de Keynes, porém também influenciados por Marx e
suas considerações sobre a taxa de lucro como variável
determinante da taxa de investimento, distinguem-se nos anos
1955-1957 pela integração que fazem da análise da distribuição de
rendas com as análises de crescimento após Kalecki. Eles
demonstram, mais exatamente, que a divisão salário/lucro tem um
efeito sobre o crescimento, pelo viés dos comportamentos
diferentes da poupança e do consumo dos diversos grupos sociais.
Kalecki abrira a via antes da guerra. Ele reafirma seu ponto de vista
em sua obra intitulada Teoria da dinâmica econômica, de 1954. O
124

pano de fundo de suas análises é a tomada de consciência da


concorrência monopolista e da capacidade dos empresários, grupo
social dominante, para determinar seus preços adicionando uma
margem ao custo de produção. Nessas condições, a parte do lucro
na renda nacional é tão maior quanto for alto o grau o grau de
monopólio. Além disso, Kalecki faz uma distinção entre a taxa de
poupança dos assalariados e a taxa de poupança dos capitalistas,
considerando a segunda como bem mais alta que a primeira de
modo a relacionar a taxa de poupança total com a divisão entre
salários e lucros. Para uma dada taxa de investimento existe uma
distribuição das rendas que permite que se obtenha a taxa de
poupança necessária.
Para Kaldor, em Um modelo de crescimento econômico, de 1967, o
ponto de partida é duplo. Por um lado, a taxa de investimento e a
taxa de poupança são função da participação dos lucros na renda
nacional. Por outro lado, os detentores do lucro poupam mais que
os assalariados. Disso resulta um nível ótimo na divisão
salários/lucros que assegura a igualdade das taxas de poupança e
de investimento, conseqüentemente do crescimento.
Finalmente, para Robinson, em A Acumulação de capital, de 1956,
e nos Ensaios sobre a Teoria do crescimento econômico, de 1962,
existe uma ligação recíproca entre a taxa de lucro e a taxa de
investimento. A taxa de lucro atua sobre a taxa de investimento.
Esta última é tão maior quanto maior for a taxa de lucro, dado que
boa rentabilidade facilita o financiamento dos investimentos e é
passível de ser considerada como índice de boa rentabilidade
futura. No entanto, a taxa de investimento atua também sobre a
taxa de lucro. Quanto maior for a primeira, mais seu financiamento
implica elevação dos preços, corroendo os salários e exercendo
pressão de aumento dos lucros. Dessa relação recíproca deriva a
idéia de uma trajetória de crescimento equilibrado em que, para
uma dada distribuição salários/lucros, a taxa de investimento e a
taxa de lucro são compatíveis e constantes, o mesmo em relação à
distribuição da renda nacional. Nessas condições, se a taxa de
125

crescimento da economia for suficientemente elevada para que a


taxa de emprego seja igual à oferta de trabalho, trata-se da “idade
de ouro”. Contudo, isso é apenas uma situação hipotética cuja
realização, aos olhos de Robinson, não pode ser assegurada por
ninguém. Não se alcança a confiança dos investidores, nem a
convergência do comportamento dos investidores e dos
poupadores, nem a implementação de políticas governamentais
em prol de uma distribuição ótima dos recursos, nem a existência
de uma demanda suficiente por bens ou o desenvolvimento do
emprego a ponto de absorver a totalidade da oferta de trabalho.
No final, nada garante uma taxa de crescimento equilibrado, que
permita empregar todos os trabalhadores. Em vez da idade de
ouro, poderíamos muito bem ter situações dolorosas que assumem
formas bem diversas, em particular a estagnação fruto da
insuficiência de demanda efetiva ou do desenvolvimento de
processos inflacionários.

Mercado e Estado

Stiglitz surge como o principal autor pós-keynesiano que se volta


vigorosamente contra o que ele denomina como fanatismo do
mercado. A esse respeito é preciso entender dois pontos.
Primeiro, a idéia que os mercados, ao contrário do que os
partidários do liberalismo econômico afirmam, não levam
automaticamente à eficiência econômica. Por exemplo, segundo
Stiglitz eles produzem poluição demais ou baixa quantidade de
pesquisas fundamentais. A intervenção do Estado e sua ação
reguladora são absolutamente necessárias, sem as quais os
mercados não levam à eficiência econômica. A idéia de que o
funcionamento de mercado pode prescindir da ação do Estado é
uma fábula ao mesmo tempo histórica – recordemos o papel que o
Estado teve na própria conformação dos mercados – e teórica, com
126

os produtores mercantis tendo necessidade de um regulador


externo a eles. Stiglitz explica que o livre comércio não leva
necessariamente ao crescimento e ao desenvolvimento do bem
estar. Neste ponto, se ele preconiza uma abertura externa das
economias, o faz à condição que essa abertura não seja
“selvagem”, mas controlada pelo Estado e não excluindo, por
exemplo, medidas de proteção parciais e temporárias.
Stiglitz também critica o papel reservado pelo liberalismo
econômico para o social. Esse papel pode ser resumido em duas
proposições “sejamos pacientes” e “aguardemos o amanhã”.
“Sejamos pacientes”, no sentido da interpretação do liberalismo
econômico equivale ao seguinte: depois de ter restabelecido os
grandes equilíbrios externos e internos através de políticas de
austeridade, vamos promover reformas liberais internas
(privatizações, liberalização dos mercados de trabalho, monetário e
financeiro) e externas (abertura comercial e financeira). Essas
reformas, ao deixar os mercados entregues a si sós, sem
intervenção do Estado, levarão a um crescimento forte e durável,
que por sua vez permitirá a redução da pobreza, até mesmo das
desigualdades.
“Aguardando o amanhã”, já que os “extremamente pobres”, grupo
que é diferente do grupo de “pobres”, não possuem meios de
superar os efeitos benéficos das reformas liberais, é necessário
colocar imediatamente em ação políticas de assistência social
focalizadas neles, que é acompanhada por políticas de privatização
parcial dos serviços sociais para as classes mais ricas.
Em oposição a essa análise, Stiglitz insiste no fato de que a luta
contra a pobreza e as desigualdades dizem respeito em primeiro
lugar a uma necessidade ética, absolutamente prioritária. Além
disso, ele mostra que essa luta prioritária contra a pobreza e as
desigualdades, que deve ser efetuada em termos de garantias
sociais, de crescimento do Estado providência, pode em si produzir
efeitos econômicos positivos em termos de desenvolvimento da
produtividade ou dos mercados internos.
127

Nesse sentido, para Stiglitz, o social não deve ser considerado


como independente, separado do econômico. No mesmo sentido,
para ele a mundialização não deve ser criticada enquanto tal, pois
ela é portadora de imensos benefícios. São suas modalidades,
amplamente determinadas em benefício próprio pelos grandes
grupos dos países capitalistas desenvolvidos, que devem ser
criticadas e revistas; em particular o papel marginal reservado ao
social, ao mesmo tempo que a luta contra a pobreza e as
desigualdades tem de ser considerada como a porta de entrada
para o desenvolvimento.

III - A filiação marxista

Já vimos como, nos anos trinta, a economia política marxista foi


submetida, sob a égide da classe burocrática no poder na URSS, a
uma profunda degeneração que a transformou em simples
instrumento de legitimação do poder e das políticas dessa classe.
Em seguida à guerra, a situação permaneceu a mesma. Mais
precisamente, as análises feitas na URSS sobre a sociedade
socialista, em nome do marxismo, são duplamente falsas.
Em primeiro lugar elas são falsas porque, mesmo se o poder
político tivesse sido exercido pelos trabalhadores e não por essa
nova classe burocrática, a URSS não teria sido uma sociedade
socialista, mas uma sociedade em transição do capitalismo para o
socialismo. Marx sublinhara que era impossível instaurar uma
sociedade socialista caracterizada por um desenvolvimento
suficiente sem uma fase de transição precedente.
Desenvolvimento das forças produtivas, quantitativo e qualitativo,
a ponto de exaurir a produção mercantil e a lei do valor, como
também pelo desenvolvimento do exercício do poder político pelo
conjunto dos membros da sociedade. Conseqüentemente,
128

apresentar a URSS como uma sociedade socialista, à luz das


análises de Marx, já é um engodo.
Além disso, as análises sobre a URSS são falsas, sobretudo porque
na realidade não foi o socialismo que foi construído, sequer uma
sociedade de transição do capitalismo para o socialismo, mas uma
nova sociedade de exploração. Os mecanismos dessa exploração
não foram os mesmos que os da sociedade capitalista, mas não
deixaram de ser característica essencial da sociedade soviética.
Conseqüentemente, seria uma aberração total discutir as análises
realizadas na URSS sobre a sociedade socialista quando na
realidade não se tratava de forma alguma de socialismo. Por isso as
teses apresentadas no ultra oficial Manual de economia política,
preparado durante os anos sob a direção de Stalin e publicado em
1954, um ano após sua morte, que apresenta as características da
sociedade socialista soviética (propriedade social dos meios de
produção, perpetuação da produção mercantil, vontade de garantir
ao máximo a satisfação das necessidades) não merecem serem de
fato discutidas. Devem ser consideradas como o comando de uma
classe burocrática preocupada em sua legitimação.
Dito isto, nos interstícios, em particular nos períodos de relativa
abertura, em meados dos anos sessenta e dos anos oitenta, os
debates ocorreram, por vezes confusos, mas interessantes. Eles
tratavam certo número de questões:
- Persistência ou não da lei do valor na sociedade socialista;
- Remuneração de fundos confiados pelo Estado às empresas, a fim
de limitar os desperdícios. A esse respeito os trabalhos de um
engenheiro soviético, Kantorovitch, são notáveis. Ele havia sido,
em 1939, um dos iniciadores da programação linear e, em 1960, se
coloca a questão do emprego ótimo dos meios de produção e
apresenta um modelo de equilíbrio geral no qual o mercado é
substituído pelo planejamento.
- Utilização do lucro, e não do volume produzido, como índice
principal para avaliar os resultados das empresas e a autonomia
concedida às empresas com essa finalidade.
129

- Meios para se obter crescimento ótimo atuando sobre a


importância e a orientação dos investimentos. A contribuição mais
interessante sobre essa questão foi a de Kalecki, que se dedicou a
estudá-la no final de sua vida, na Polônia. Em Teoria do
crescimento em economia socialista, publicado em 1970, Kalecki
procurou especialmente analisar a natureza da distribuição ótima
entre consumo e investimento para proporcionar crescimento. A
esse respeito, ele criticou a prioridade absoluta dada na URSS e nas
democracias populares à produção de bens de equipamento,
tornando-a responsável por um crescimento desequilibrado e de
escassez. Ele também estudou e comparou diversas formas de
aumentar a produtividade do trabalho, criticando também a esse
respeito a prioridade sistemática dada à intensidade capitalista,
qualquer que fosse a reserva de mão-de-obra da economia.
Apesar do peso da URSS e dos ambientes que ela influenciava no
mundo, um marxismo vivo e crítico da economia política ressurgiu.
Daremos quatro exemplos.

O capitalismo monopolista

Uma primeira manifestação de renovação é representada pela


obra de dois economistas americanos, Paul Baran e Paul Sweezy,
cuja principal obra foi escrita em comum, O capitalismo
monopolista, publicado em 1966.
O objeto do trabalho deles é estudar o desenvolvimento de um
capitalismo monopolista que requer, em comparação com o
capitalismo concorrencial, um novo modo de explicação fundado
no conceito de excedente econômico. Esse conceito, definido pelos
autores como o excedente da produção sobre o custo, portanto
semelhante ao de mais-valia, é utilizado pelos autores para
ressaltarem o fato de que uma parte importante da mais-valia é
então apropriada pelo Estado.
130

Em seguida Baran e Sweezy destacam quatro grandes


características desse capitalismo monopolista:
- Tendência para o aumento do excedente, relacionada aos rápidos
progressos da produtividade do trabalho;
- Desenvolvimento das despesas improdutivas que são resultados
do tipo de concorrência que as empresas monopolísticas adotam e
destinadas a estimulara a demanda dos consumidores para
aumentar as vendas: despesas de publicidade, de marketing,
manifestação de desperdício do excedente;
- Tendência à estagnação econômica devido à insuficiência do
consumo e do investimento, que tornam indispensável a
intervenção do Estado para absorver o excedente, intervenção que
privilegia as despesas militares em relação as despesas civis;
- Um modo específico de utilização do excedente nos países sub-
desenvolvidos, em parte dilapidado com despesas suntuárias pelas
classes no poder, e em parte transferidas para os países os países
capitalistas desenvolvidos. Baran e Sweezy preconizam para esses
países, reformas agrárias, medidas protecionistas e
desenvolvimentos das empresas públicas.

As “ondas longas” do capitalismo

A segunda corrente da renovação marxista é representada pelo


economista belga Ernest Mandel, cujas duas principais obras são
Teorias de economia marxista, publicada em 1962, e O capitalismo
tardio, publicada em 1972.
Um dos objetivos essenciais do trabalho de Mandel é explicar, a
partir da teoria marxista, o longo período de crescimento da
economia capitalista que ocorre em seguida à Segunda Guerra
mundial e seu caráter limitado no tempo, conforme demonstra a
reversão observada no início dos anos setenta. Com esse objetivo,
ele elabora uma teoria das “ondas longas” do capitalismo. Essa
131

teoria sem dúvida tem influência do economista austríaco J.


Schumpeter, que em seu livro publicado em 1932, Teoria do
desenvolvimento econômico, considerou o surgimento
descontínuo, “em safras”, como ondas de inovações no processo
de produção, que são ao mesmo tempo essenciais à dinâmica do
capitalismo e base da explicação dos movimentos cíclicos.
Mandel se interessa pelos movimentos longos que demarcaram a
história do capitalismo: fases longas de forte acumulação de capital
e crescimento elevado nos anos 1848-1873; acumulação lenta em
1874-1893; acumulação acelerada em 1894-1913; acumulação
lenta em 1918-1939; acumulação acelerada de 1945 ao final dos
anos sessenta; acumulação pequena a partir dos anos setenta. Para
Mandel, o exame dessas fases longas não estabelece de forma
alguma uma identidade entre as fases de acumulação acelerada ou
entre as fases lentas, pois elas são marcadas por lutas políticas e
sociais, por estruturas econômicas e relações sociais
extremamente diferentes entre si. Também não se trata de adotar
o mecanicismo e imaginar que a passagem de um período para
outro se produz automaticamente.
Como, então, Mandel explica essas ondas longas? Ele observa que
as retomadas do crescimento correspondem a revoluções
tecnológicas e a “safras de inovações”, para retomar a expressão
de Schumpeter, enquanto a reversão desse movimento
corresponde ao esgotamento das ondas de inovação. Ele adiciona
um aspecto importante. Os períodos longos de acumulação
acelerada ou lenta são caracterizados por um conjunto de fatores
econômicos, políticos e sociais que afetam as taxas de lucro e os
mercados para cima ou para baixo, e de forma durável. Assim, não
é a revolução tecnológica em si que explica a passagem de uma
onda longa de acumulação lenta para uma onda longa de
acumulação acelerada. São as revoluções tecnológicas, em
condições que favorecem a elevação das taxas de lucro e das
atividades, que explicam essa passagem. Esse foi o caso, explica
Mandel, do período de acumulação acelerada dos anos de 1945 até
132

fins da década de sessenta, caracterizados como já vimos por altas


taxas de lucro e uma demanda total mantida em nível elevado
pelas políticas keynesianas. Da mesma forma, ele acrescenta, o
período de crescimento lento a partir dos anos setenta é marcado
por taxas de lucro decrescentes, as quais se juntam a diminuição
dos empregos em razão de políticas de austeridade implementadas
para elevar essas taxas de lucro. Permanece em suspenso, na lógica
de Mandel, a questão de saber se a retomada do crescimento a
partir de meados dos anos oitenta, frágil e bem desigual, muito
mais perceptível nos EUA do que na Europa, determina ou não
uma entrada em nova onda de acumulação acelerada.

A regulação

A terceira corrente de renovação marxista é representada pelo que


chamamos Escola da regulação, que começou a se desenvolver em
meados dos anos setenta e cujos principais representantes são os
economistas franceses Michel Aglietta, com Regulação e Crises do
capitalismo: a experiência dos Estados Unidos (1976); Robert
Boyer, com A Teoria da Regulação: uma análise crítica (1986);
Jacques Mistral, em colaboração com Robert Boyer, com
Acumulação, inflação crises (1978); e Alain Lipietz, com Crise e
Inflação, por quê ? (1979). A inspiração teórica dessa escola é
essencialmente marxista, em particular a ênfase colocada nas
relações sociais, mas também se inspiram em Keynes e nos pós-
keynesianos. Também se inspiram nos institucionalistas, cujo
primeiro grande representante, o americano Veblen, contrapunha-
se no início do século XX aos neoclássicos e seu indivíduo racional
ao insistir na importância do papel das configurações institucionais
para se compreender o desenvolvimento da atividade econômica.
133

A idéia de base dos regulacionistas é que a história do capitalismo


é marcada pela sucessão de regimes distintos de acumulação e de
modos de regulação.
Um regime de acumulação se define por certa quantidade de
traços duráveis que dizem respeito à produção, à realização e à
articulação entre eles. Os traços relativos à produção são o grau de
concentração, a importância relativa dos setores, o nível de
progresso técnico, a taxa de investimento, a situação no seio da
divisão internacional do trabalho, a relação salarial, isto é, o modo
de formação do salário, a magnitude dos benefícios pagos pela
seguridade social e a utilização da renda salarial. Já a realização da
produção caracteriza-se pela importância relativa dos mercados
externo e interno.
Um modo de regulação se define por um conjunto de mecanismos,
de procedimentos, de comportamentos individuais e coletivos que
asseguram a reprodução do regime de acumulação no qual está
ligado.
Utilizaremos, com os regulacionistas, esta grade teórica para
analisar o período de acelerada acumulação do período de 1945 no
fim dos anos sessenta. O período, segundo eles, caracteriza-se pela
existência de um regime de acumulação intensiva, isto é, baseado
em ganhos de produtividade bastante elevados e relacionados com
a generalização da organização taylorista do trabalho. Ele se define
também pelo modo de regulação monopolista completamente
diferente da regulação concorrencial em vigor antes da guerra, e
fruto de profundas transformações sociais: concentração das
empresas, intervenções massivas do Estado, convenções coletivas,
contratos de trabalho por prazo indeterminado, importância das
contribuições sociais. Assim, esse modo de regulação permitiu que
uma forte alta da produtividade do trabalho se traduzisse não
somente em uma elevação dos lucros, mas também em elevação
dos salários reais e dos benefícios sociais. Desse modo, estimulava-
se um consumo de massa, ao qual se juntavam despesas públicas
de monta que asseguravam o crescimento dos mercados exigido
134

pela acumulação intensiva. Portanto, a nova configuração


institucional permitia uma alta taxa de lucro e nível de emprego
elevado, conseqüentemente um crescimento crescente e durável.
A análise regulacionista também foi aplicada à crise que surgiu no
início dos anos sessenta. O questionamento do taylorismo pelas
lutas sociais, o crescimento muito mais fraco da produtividade do
trabalho, a diminuição da taxa de lucro provocaram uma crise da
relação salarial. A prioridade era de fato a restauração dos lucros e
as políticas de austeridade frente aos salários, de garantia de
emprego e de benefícios sociais passam a estar na ordem do dia e
são postas em prática. A relação salarial do período anterior de
acumulação acelerada é, para retomar uma expressão de Boyer,
esfacelada. Por sua vez, o papel do Estado na economia é
questionado. O regime de acumulação entra em crise.

Sub-desenvolvimento e dependência

A quarta corrente de renovação marxista manifesta-se pelas


análises do subdesenvolvimento, cujo crescimento foi
impulsionado pelo processo de descolonização, em seguida à
Segunda Guerra mundial.
Duas idéias de base constituem mais ou menos unanimidade nos
autores que se interessam pelo subdesenvolvimento: existem
especificidades comuns a todos os países subdesenvolvidos, à
parte as profundas diferenças que os separam; e as relações
econômicas entre países capitalistas desenvolvidos e
subdesenvolvidos foram mais favoráveis para os primeiros.
As análises do subdesenvolvimento estão longe de em sua
totalidade se situarem na filiação marxista, o mesmo em relação às
políticas de desenvolvimento. Acima de tudo, Friedman foi um dos
conselheiros econômicos do general Pinochet no Chile! No
entanto, no conjunto, o peso das análises críticas, dentre elas
135

aquelas de inspiração marxista, é claramente mais importante do


que em outros domínios de estudo econômico.
Vamos ilustrar essa importância mostrando como evoluíram as
análises do que foi chamado Escola da dependência. Ela foi muito
desenvolvida na América Latina e bastante influenciada, no plano
teórico, por Kalecki e pelos pós-keynesianos de Cambridge, indo
até a análise do economista francês Pierre Salama, que se foi
influenciado pela Escola da dependência, e também pelos
economistas pós-keynesianos, situa-se essencialmente na filiação
de Rosa Luxemburg.
A escola da dependência tem um pai, o economista argentino Raul
Prebisch, que foi nomeado em 1948 primeiro secretário da CEPAL,
Comissão das Nações Unidas para a América Latina, e de 1964 até
1969 foi secretário geral da CNUCED (Comissão das Nações Unidas
para o Comércio e Desenvolvimento), onde se destacou pelo apelo
por uma “nova ordem internacional”. Dentre suas obras
destacamos, Para uma nova estratégia global de desenvolvimento,
publicado em 1958, e Capitalismo periférico: crises e
transformação, publicado em 1981.
A contribuição de Prebish é múltipla. Ele denunciou a
especialização imposta à maioria dos países subdesenvolvidos na
produção de produtos primários, produtos agrícolas, matérias-
primas, recursos energéticos, em um sistema econômico
internacional que ele chama centro-periferia. Essa especialização,
que penalizava os países subdesenvolvidos, tinha como
conseqüência uma deterioração secular dos termos de troca, isto
é, da relação entre o índice de preços dos produtos primários
exportados e o índice dos produtos manufaturados importados.
Isso agravava o grau de dependência tecnológica em relação ao
“centro”. Finalmente, essa deterioração fazia com que prosperasse
uma burguesia comercial exportadora avessa à industrialização,
com origem na importação de bens de consumo de luxo,
dispendiosos e inúteis para o desenvolvimento. Prebish se
pronuncia favorável a uma industrialização voluntária,
136

impulsionada pelo Estado e baseada numa estratégia denominada


de substituição de importação, isto é, que substitua as importações
pela produção local de bens de consumo não duráveis,
posteriormente duráveis e, enfim, pela produção de bens de
equipamento. Essa estratégia deveria ser acompanhada, segundo
Prebish, por uma política protecionista branda, seletiva e por uma
intervenção estatal visando à diminuição da forte desigualdade na
distribuição das rendas para desenvolver o mercado interno.
Nessa linha de Prebish, nos anos setenta, veremos a evolução da
escola da dependência, cuja tese essencial é que o
desenvolvimento e subdesenvolvimento são dois aspectos de um
mesmo fenômeno, a participação em uma economia capitalista
mundial e hierarquizada. O subdesenvolvimento de uns não é
apenas um simples atraso no tempo, independente do
desenvolvimento dos outros.
Duas correntes principais apareceram no contexto da Escola da
dependência. Uma primeira é conduzida por sociólogos, dentre
eles o brasileiro Fernando Henrique Cardoso. Este, que mais tarde
se tornará presidente da República brasileira, descreve em seu livro
escrito com Enzo Faletto, Dependência e Desenvolvimento na
América Latina, publicado em 1978, os efeitos que a dependência
tem nas classes sociais, na estratificação delas, em suas alianças e
sobre o Estado. Ele chama atenção para os laços que existem entre
os fatores externos e internos que comandam a evolução
econômica, social e política dos países subdesenvolvidos. Em
outras palavras, ele tem o grande mérito de não fazer do
subdesenvolvimento um produto puro da dependência externa,
nem um produto do simples jogo de forças internas, tentando uma
análise que integre os dois aspectos. Outra corrente,
denominando-se mais diretamente marxista, é representada pelo
economista Gunder Frank, que se dedicou ao estudo do que ele
chamou desenvolvimento do subdesenvolvimento, e pelo
economista egípcio Samir Amin, corrente que infelizmente insiste
137

sobre a responsabilidade da dependência externa de forma quase


unilateral.
Influenciado pela escola da dependência, mas situando-se
principalmente na linha de análise de Rosa Luxemburg, Pierre
Salama publica O Processo do subdesenvolvimento, 1972, Pobreza
e desigualdade no Terceiro Mundo em 1994, em colaboração com
Jacques Valier, O tamanho da pobreza em 2002, em colaboração
com Blandine Destremau, e Défi dês inégalités, publicado em 2006
(“Desafio das Desigualdades” – tradução livre). Três contribuições
principais são trazidas por ele para a análise do
subdesenvolvimento.
Em primeiro lugar, retoma a idéia de que a economia capitalista é
mundial e hierarquizada, com a hierarquia sendo resultado do
desenvolvimento desigual. Mostra em seguida que a inserção dos
países sub-desenvolvidos no seio dessa economia mundial é um
aspecto muito específico desse desenvolvimento desigual. Ele
chama a atenção para a forma específica de como as relações de
produção capitalistas penetraram nesses países: em um espaço de
tempo muito curto e de fora para dentro, desenvolvendo-se em
seguida como extensão das necessidades da acumulação capitalista
nos países desenvolvidos, configurando-se sempre como formas
históricas que evoluem ao longo do tempo e deixam suas marcas
nas economias dos países subdesenvolvidos. Ele considera essa
especificidade da penetração e da extensão das relações de
produção capitalistas como sendo a própria característica do
subdesenvolvimento. Finalmente chama a atenção para o fato de
que a dominação dos países subdesenvolvidos pelos países
desenvolvidos não é exercida diretamente, mas pela mediação da
economia mundial e, conseqüentemente, com seus Estados
podendo dispor de certo grau de autonomia.
Além disso, Salama dedicou-se à análise dos diversos regimes de
acumulação que caracterizaram os países semi-industrializados da
América Latina após o fim da Segunda guerra mundial – Argentina,
Brasil e México:
138

1 – Regime de industrialização substitutiva de importações. Salama


nos mostra como esse regime se desenvolveu nos anos trinta junto
com a crise, que diminuía consideravelmente as receitas de
exportação e, portanto, a capacidade de importação. O mesmo em
relação aos anos cinqüenta, quando o regime esbarrou com a
contradição entre a capacidade de produção elevada, em razão do
crescimento da indústria de bens de equipamento, e um mercado
interno pequeno, em razão da elevada desigualdade na
distribuição de renda.
2 – Regime dos anos 1960-1970, caracterizado por grandes
investimentos das empresas multinacionais nos setores de
consumo durável e de equipamento. Esses investimentos formam
beneficiados por uma forte repressão do Estado contra os
trabalhadores (diminuição dos salários reais e proibição de greves).
Essa repressão possibilitou ao mesmo tempo crescimento dos
lucros dessas empresas e liberação de recursos para
enriquecimento da nova classe média, que representaram 20% a
30% da população, assegurando um mercado interno para a
produção delas. Esse regime leva, por algum tempo, a altas taxas
de crescimento ao mesmo tempo em que agrava as desigualdades
na distribuição de rendas, já bastante grandes e em detrimento da
imensa maioria da população. Por isso é denominado por Salama
como regime de acumulação de excludente.
3- Regime de liberalização econômica a partir dos anos 1980, posto
em prática sob a égide do Fundo Monetário Internacional e do
Banco Mundial, caracterizado pelo desenvolvimento do liberalismo
econômico interno (privatizações, liberalização do mercado de
trabalho e dos mercados financeiros) e externo (abertura comercial
e financeira). Esse regime é acompanhado nos anos 1980 pela
hiper-inflação e pela dolarização da economia, assim como pelo
recuo da produção. A CEPAL denominará esse período de “década
perdida”. Nos anos 1990, esse regime se caracteriza por fortes
flutuações da atividade econômica à mercê das entradas ou saídas
139

de capital, necessários para cobrir os grandes déficits da balança


comercial devido à brutal abertura externa.
Finalmente, Salama apresentou uma análise da pobreza e das
desigualdades nos países subdesenvolvidos: mensurando-as e
explicando a importância delas e da evolução dos fatores que as
provocam segundo cada período. Por exemplo, ele demonstra
como o empobrecimento na América Latina durante os anos 1990,
devido principalmente ao desemprego, sucedeu o
empobrecimento dos anos 1980, devido principalmente à
hiperinflação.
No que diz respeito às políticas de luta contra a pobreza e contra as
desigualdades, Salama primeiro chama atenção para que não
sejam concebidas em termos de beneficência/assistência, mas em
termos de proteção social e de direitos sociais universais.
Além disso, adotando o mesmo ponto de vista do apresentado por
Amartya Sen em Sobre ética e economia, publicado em 1991, e em
L’économie est une science morale, publicado em 1999, Salama
insiste na idéia de que a luta contra a pobreza e as desigualdades
deve ser considerada antes de tudo como uma necessidade ética
prioritária. É preciso não se esquecer que essa luta pode ter efeitos
econômicos benéficos para o desenvolvimento do mercado interno
e incentivar o aumento da produtividade. Portanto ela pode ser,
em dado momento, uma necessidade econômica. Porém, também
pode ser que o crescimento da pobreza e das desigualdades sejam
favoráveis para a acumulação e crescimento do capital, dado que a
lógica de funcionamento do sistema baseia-se no lucro. O exemplo
do Brasil durante os anos que se seguiram à instauração da
ditadura militar em 1964 é excelente. Portanto, a luta contra a
pobreza e as desigualdades nem sempre é uma necessidade
econômica. É justamente por isso que é preciso dar prioridade à
ética e trabalhar qualquer que seja a circunstância em nome dessa
ética, priorizando políticas de luta contra a pobreza e as
desigualdades.
140

Retração da produção ou diminuição do crescimento,


hiperinflação, desemprego, pobreza, agravamento das
desigualdades e precariedade das condições de sobrevivência,
financeirização, isto é, como mostra Salama para o caso da América
Latina, desenvolvimento da esfera financeira em detrimento da
esfera produtiva: as políticas econômicas de inspiração liberal
aplicadas ferozmente tendo efeitos desastrosos. Essa
financeirização conheceu nos últimos anos um crescimento
estrondoso, em particular nos países desenvolvidos. Assim, em
2005, segundo os trabalhos do economista francês especialista em
questões financeiras, François Morin, o total das transações
interbancárias do planeta era de 2.069 trilhões de dólares
enquanto a economia real era de 44 bilhões de dólares: a esfera
financeira representando 2.023 trilhões de dólares, sendo 51 nos
mercados versáteis, 1406 no mercado de derivativos, e 556 no
mercado de câmbio. Desse modo, a economia real só representava
2% do conjunto das transações entre os bancos, a esfera financeira
sendo quase cinqüenta vezes maior que a esfera real. Um enorme
desequilíbrio que fez sua entrada em cena em grande estilo, com
toda a amplitude e conseqüências nefastas, por ocasião da grande
crise de 2008. Crise que teve, num contexto geral de
questionamento dos dogmas do liberalismo econômico, inúmeros
economistas partidários desse liberalismo falando, sem qualquer
vergonha, sobre a necessidade de intervenção do Estado.
Homenagem do vício prestada à virtude?
141

Uma breve conclusão.

Apostamos em uma apresentação breve de um longo percurso.


Essa aposta só estará ganha se permitir ao leitor não se enredar
nos detalhes. Portanto, compreendendo melhor ou apreciando,
positiva ou negativamente, as características essenciais de cada
corrente. Da nossa parte, não apenas expusemos, mas tivemos
uma avaliação pessoal. Aposta também ganha se o leitor tomou
consciência que em economia os resultados que aparecem
merecidamente como os mais sólidos nunca são definitivos. O
questionamento da teoria e das políticas keynesianas, a partir dos
anos sessenta, e o declínio do pensamento marxista, nos anos
trinta, são dois bons exemplos disso. Em geral, podemos lamentar
o que se tornou predominantemente a economia política atual. A
construção de modelos pelos economistas não é criticável em si,
porém é criticável o caráter inequívoco das doutrinas e teorias que
sustentam esses modelos; verdades veladas não questionáveis, e
que são freqüentemente uma mistura claramente insuficiente das
teorias neoclássicas e keynesianas. Para aqueles que hoje em dia
têm a pretensão de construir modelos econômicos depurados de
qualquer ideologia, temos vontade de lembrar, parafraseando
Keynes, que os economistas que se consideram livres de
influências ideológicas são geralmente escravos de uma ideologia
implícita. O progresso nunca é garantido.
142

Cet ouvrage a été composé par


IGS-CP à L’Isle-d’Espagnac (16)
N o d’édition : L.01EHQN000399.N001
Dépôt légal : octobre 2009 N.01EHQN000180.N0

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