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RESUMO. Este artigo trata da relação entre discurso e ideologia presente na teoria da
análise do discurso de linha francesa (AD), elaborada por Michel Pêcheux, que se origina na
matriz althusseriana de onde ele retira os conceitos de ideologia e assujeitamento. Por meio
de discussão cuja inflexão teórica é o marxismo estrutural, busca-se entender como o
teórico francês reinterpreta os conceitos althusserianos, movimento que o leva a abrir a
grade estrutural, reafirmar o conceito marxista de luta de classes no âmbito das formações
ideológicas e, ao mesmo tempo, a repensar a noção de discurso de Foucault.
Palavras-chave: análise do discurso, formações ideológicas, luta de classes.
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 32, n. 1 p. 1-8, 2010
Discurso e ideologia no Marxismo estrutural 3
revela dois sentidos. O primeiro diz respeito à modo de dizer não é indiferente aos sentidos. O
“autonomia relativa do sistema lingüístico” e o outro, o n. 1, que Pêcheux entende como
segundo, a “que todo processo discursivo se inscreve ideológico, é de natureza inconsciente e revela o
numa relação ideológica de classes”. Desse modo, ao modo como somos afetados pela ideologia, como os
criticar o seu companheiro de discussões acadêmicas sentidos “[...] são determinados pela maneira como
e políticas, por trazer para o debate a visão nos inscrevemos na língua e na história e é por isto
equivocada de que a língua é um “meio de que significam e não pela nossa vontade”
comunicação entre os homens” – equívoco que (ORLANDI, 1999, p. 35).
considera ter sido autorizado por Marx e Engels na Ainda no final da “segunda época”, na sua obra
Ideologia Alemã – Pêcheux segue na sua formulação, Semântica e discurso, Pêcheux (1995), retomando uma
opondo às noções de língua e unidade de língua, questão apenas enunciada, mas não desenvolvida de
presentes na assertiva de Balibar, as noções de modo suficiente por Althusser, reformula a questão do
discurso e de contradição ideológica, respectivamente. assujeitamento, mostrando o seu caráter contraditório e
Na sequência, inscreve o discurso e as desigual, o que lhe permite asseverar que os Aparelhos
contradições que lhes são inerentes nas relações Ideológicos de Estado – AIEs – não apenas reproduzem
ideológicas de classes, enunciando assim o que como transformam as relações de produção.
acredita ser fundamental para a teoria materialista do
discurso. […] os aparelhos ideológicos de Estado não são,
apesar disso, puros instrumentos da classe
Diremos que as contradições ideológicas que se
dominante, máquinas ideológicas que reproduzem
desenvolvem através da unidade da língua são pura e simplesmente as relações de produção
constituídas pelas relações contraditórias que mantém, existentes: ‘[…] este estabelecimento [dos aparelhos
necessariamente, entre si, os ‘processos discursivos’, na ideológicos de Estado] não se dá por si só, é, ao
medida em que se inscrevem em relações ideológicas contrário, o palco de uma dura e ininterrupta luta de
de classes. (PÊCHEUX, 1995, p. 93). classes […]’, (aqui Pêcheux cita Althusser) o que
Também é nessa mesma obra que formula as significa que os aparelhos ideológicos de Estado
duas formas de esquecimento com base numa constituem, simultânea e contraditoriamente, o lugar
e as condições ideológicas da transformação das
relação, segundo o autor, existente entre o “sistema relações de produção (isto é, da revolução, no
pré-consciente-consciente” e o “sistema sentido marxista-leninista). De onde, a expressão
inconsciente”. ‘reprodução/transformação’ que empregamos
Pêcheux (1995, p. 173) chama de esquecimento (PÊCHEUX, 1995, p. 145).
n. 2 ao
Ao longo de sua produção, Pêcheux,
[...]‘esquecimento’ pelo qual todo sujeito-falante diferentemente de Foucault, jamais se afastou do
‘seleciona’ no interior da formação discursiva que o marxismo, formulando os fundamentos da AD por
domina, isto é, no sistema de enunciados, formas e meio de um trajeto teórico que resultou numa
sequências que nela se encontram em relação de
abertura, tanto da concepção foucaultiana como da
paráfrase – um enunciado, forma ou seqüência, e
não outro, que, no entanto, está no campo daquilo
althusseriana, para além das estruturas discursivas e
que poderia reformulá-lo na formação discursiva ideológicas. Ainda em relação à Foucault, Pêcheux
considerada. (1997) dele se distinguiu porque não se afastou da
noção de História assentada nas relações de
Sobre o esquecimento n. 1 Pêcheux (1995, produção, trazendo essa noção para as condições de
p. 173) afirma produção do discurso, não abrindo mão de
[...] que dá conta do fato que o sujeito-falante não relacionar ideologia e linguagem, escapando ao risco
pode, por definição, se encontrar no exterior da de transformar tudo em discurso. Num primeiro
formação discursiva que o domina, Nesse sentido, o momento, abriu o conceito de formações
esquecimento n. 1 remetia, por uma analogia com o discursivas, uma noção formulada por Foucault
recalque inconsciente, a esse exterior, na medida em (1972), indicando que elas são atravessadas por pré-
que – como vimos – esse exterior determina a
construídos e por outras formações discursivas que
formação discursiva em questão.
compõem o interdiscurso. Num segundo momento,
Orlandi (1999) comenta as duas formas de repensou as FDs a partir da noção de formações
esquecimento de Pêcheux, dizendo que o n. 2 é da ideológicas que, segundo ele, expressam, nas
ordem da enunciação, um esquecimento parcial, formações discursivas, a luta de classes.
pré-consciente, uma ilusão referencial que dá a Chamaremos, então, formações discursivas aquilo que,
impressão que há uma relação direta entre numa formação ideológica dada, isto é, a partir de
pensamento, linguagem e o mundo, atestando que o uma posição dada numa conjuntura dada,
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4 Cesário e Almeida
determinada pelo estado da luta de classes, instalada definitivamente no PC, recrudesce também
determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a a sua autocrítica.
forma de uma arenga, de um sermão, de um Num de seus últimos trabalhos, em relação à
panfleto, de uma exposição, de um programa etc.)
concepção althusseriana, Pêcheux propõe uma
(PÊCHEUX, 1995, p. 160).
revisão crítica do “estruturalismo político” em que
Formações discursivas e formações ideológicas, haviam se transformado as propostas althusserianas,
assim definidas por Pêcheux, assumem papel alertando para a necessidade de se abrir a “Teoria”,
relevante na sua teoria materialista do discurso e de ou seja, o marxismo estruturalista de Althusser, que,
suas relações com os sujeitos falantes. segundo ele, havia intimidado os intelectuais,
[…] retomando os termos que introduzimos acima e colocando-os numa posição de proximidade com o
aplicando-os ao ponto específico da materialidade do Estado.
discurso e do sentido, diremos que os indivíduos são A grande força dessa revisão crítica é colocar
‘interpelados’ em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu impiedosamente em causa as alturas teóricas no nível
discurso) pelas formações discursivas que representam das quais o estruturalismo político tinha pretendido
‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são construir sua relação com o Estado (eventualmente
correspondentes (PÊCHEUX, 1995, p. 161). sua identificação ao Estado – e especialmente com o
O que pode parecer para alguns, segundo Partido-Estado da revolução). Este choque em
retorno obriga os olhares a se voltarem para o que se
Pêcheux, como “leis psicológicas do pensamento”,
passa realmente ‘em baixo’, nos espaços infra-estatais
estão, para ele, determinadas materialmente na que constituem o ordinário das massas,
própria estrutura do interdiscurso. especialmente em período de crise (PÊCHEUX,
[…] propomos chamar de interdiscurso a esse ‘todo 2002, p. 48).
complexo com dominante’ das formações
E, por último, já sob a influência de Mikhail
discursivas, esclarecendo que também ele é
submetido à lei de desigualdade-contradição- Bachktin e Michael De Certeau – este último,
subordinação que, como dissemos, caracteriza o representante da Nova História – mostrou a
complexo das formações ideológicas (PÊCHEUX, importância do acontecimento, opondo-o à
1995, p. 162). estrutura, como possibilidade de transformação,
Como intelectual influenciado que foi por desde que a AD atentasse para o dialogismo3 e para
Althusser, Pêcheux (1995), de modo semelhante à os sentidos ordinários produzidos pelas vozes que
Poulantzas, assimilou do mestre a noção da com “representam um contragolpe ideológico que força a
dominância, isto é, um todo complexo de refletir” (PÊCHEUX, 2002, p. 48).
sobredeterminações dos vários níveis que compõem a Dentre os discípulos de Althusser, Pêcheux, por ter
estrutura social, com determinação em última se ocupado dos estudos linguísticos e da formulação
instância do econômico. Enquanto o último aplicou dos paradigmas da AD, talvez tenha sido quem
essa ideia para a compreensão das relações do Estado construiu, no início da proposição do seu método, uma
com a sociedade, indicando autonomia relativa da das mais rígidas grades estruturais. Todavia, pelo seu
instância do político, Pêcheux aplicou-a para engajamento político e sua adesão à ideia de que não
desfazer qualquer noção simplificadora de que há existe discurso ingênuo do ponto de vista ideológico,
relação de determinação direta de uma formação mesmo quando se trata do discurso científico, manteve
discursiva sobre a outra. Trata-se também de uma sempre uma rígida “vigilância epistemológica”
posição contrária, assumida por Pêcheux em relação (BOURDIEU, 2004) sobre seus trabalhos, o que lhe
ao método proposto por Foucault, em Arqueologia do possibilitou vigoroso movimento teórico-crítico sobre
saber, que, segundo ele, não atribui importância sua própria produção. Quando a grade estrutural lhe
suficiente à ideologia e às lutas de classe. “[…] é pareceu estreita demais, forçou seu rompimento para
preciso, ainda, poder explicar o conjunto complexo, escapar ao risco de um “gradeamento” imobilizador a
desigual e contraditório das formações discursivas que se viu exposto.
em jogo numa situação dada, sob a dominação do Todavia, essa posição de Pêcheux, no conjunto
conjunto das formações ideológicas, tal como a luta do movimento estruturalista, somente pode ser
de classes determina” (PÊCHEUX, 1995, p. 254). compreendida, à medida que nos acercamos de suas
Na última e “terceira época” (1980 a 1983) que ideias e passamos a tomá-las como orientadoras das
Maldidier denomina de “desconstrução dirigida”
(GREGOLIN, 2006, p. 64), Pêcheux que vive o 3
Por dialogismo se entende aqui um conceito da AD “emprestado ao Círculo de
recrudescimento da crise que afeta a esquerda Bakhtin e que se refere às relações que todo o enunciado mantém com os
enunciados produzidos anteriormente, bem como com os enunciados futuros que
francesa, anunciada em maio de 1968 e agora poderão os destinatários produzirem” (MOIRAND apud CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, 2004, p. 160).
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análises dos textos nas pesquisas que possamos vir a próprio “corpus” de análise. É desse modo que se
desenvolver. percebe a indissociabilidade entre teoria e método na
AD.
A AD como metodologia que também é teoria Embora não se deva pensar a AD como um
A maior dificuldade para o pesquisador da área de processo estabilizado, pois isso a transformaria numa
Ciências Sociais que se ocupa do discurso político máquina, alguns procedimentos se apresentam como
surge já no início da análise empírica, quando se depara caminhos seguros ao analista: a formulação da
com a tarefa de (des)superficialização do texto. O questão ou questões; a construção do dispositivo
analista se vê diante do desafio de passar da superfície analítico referido ao dispositivo teórico; a
linguística (o material bruto coletado) para o objeto (des)superficialização do texto que, pela sua
discursivo, passagem que requer o entendimento do discursividade, dá acesso ao discurso, este de caráter
processo de enunciação, bem como da materialidade teórico – pois se trata de objeto teoricamente
linguística. Problemas de sintaxe devem ser construído –, diferente do texto, que é de natureza
solucionados e o concurso de um linguista, nesse empírica.
momento, torna-se praticamente indispensável. Há, ainda, a possibilidade de se relacionar
Em que pese essa dificuldade – que no grupo que devidamente o discurso com a sua exterioridade,
coordenamos temos como resolvê-la, pois contamos superando-se a já repisada fórmula de
com a participação de uma linguista –, há, contudo, “contextualização histórica do texto”.
princípios e procedimentos na AD que se mostram Para a AD a História não é mera exterioridade,
extraordinariamente adequados ao métier dos mas envolve o discurso e se manifesta no texto,
sociólogos e cientistas políticos. impondo-se, desse modo, a compreensão das
O modo como se constrói o “corpus” de análise é condições de produção do discurso – quem e como
bastante pertinente ao processo de investigação da o produziu, de que lugar e para quem o produziu.
política, pois, invariavelmente, quando se faz história Importância especial deve ser dada ao sujeito
ou memória política, o pesquisador acaba levantando falante e à língua. O primeiro porque, ao falar, na
um volume de material empírico extenso e diverso. verdade enuncia, tendo como referência o outro,
Partir de uma questão, como recomenda a AD, produzindo e administrando, assim, os sentidos. A
relacioná-la ao dispositivo teórico e à construção do segunda, a língua, não apenas como sistema e no seu
dispositivo analítico são procedimentos que facilitam funcionamento, mas também naquilo que ela tem de
a escolha dos materiais discursivos no conjunto dos singular: o equívoco, o implícito, a falta, a falha, o
textos coletados. silêncio. Essas buscas do sintoma, como sugerem
No entanto, há que se ter em mente que o Althusser e Pêcheux, propicia ao analista entender
dispositivo teórico é sempre o mesmo - pois se refere ao que essas singularidades dependem de como se dá a
Materialismo Histórico, à Psicanálise e à Linguística. relação língua, ideologia e inconsciente, relação que
O dispositivo analítico, ao contrário, é flexível e dá acesso aos processos discursivos.
exige criatividade do pesquisador na sua construção, Para a AD tanto a palavra como o silêncio
pois a questão que se formula em relação ao produzem sentido, portanto, o silêncio também
objeto/tema invariavelmente leva o pesquisador a significa. Ele pode ser entendido como silêncio
convocar conceitos de sua própria área de formação, fundador e respiração de sentidos e como censura. O
desde que compatíveis com a AD, para dar conta do que pode ser e o que não pode ser dito é
processo de compreensão. fundamental para a análise do discurso político
Assim, o conceito de ideologia, que é próprio do (ORLANDI, 1997).
dispositivo teórico da AD, pode ser articulado a É pertinente, ainda, pensar que todo discurso se
outros, como classes, Estado, opressão, dominação, inscreve numa formação discursiva (FD), noção
partidos, emancipação etc. O mesmo pode acontecer formulada por Michel Foucault “para designar
com a ideia de imaginário – elemento constituinte da conjuntos de enunciados relacionados a um mesmo
noção althusseriana de ideologia – podendo ser sistema de regras, historicamente determinadas”
relacionada à sujeição, aparelhos ideológicos, produção e (MAINGUENEAU, 1998, p. 67-68). Entretanto,
reprodução tanto das condições de produção capitalista assim procedendo, não significa reduzir a FD à
como da ideologia dominante. ideologia, como alerta Pêcheux, pois ambas são
Um aspecto fascinante da AD é que à medida componentes das formações ideológicas.
que a análise se instala, por meio da descrição e da Ainda que polêmico, o conceito de FD é básico
interpretação, desencadeia-se um movimento de porque permite compreender o processo de
constante retorno à teoria, possibilitando, inclusive, produção dos sentidos, a sua relação com a ideologia
quando necessária, uma revisão dos conceitos e do e também dá ao analista a possibilidade de encontrar
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