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ALMEIDA, A. C. L. de. O aqueduto da Carioca: paisagem de urbanidade. In: TERRA, Carlos,


ANDRADE, Rubens de. (Orgs.) Coleção Paisagens Culturais: interfaces entre tempo e espaço na
construção da paisagem sul-americana. Rio de Janeiro : Universidade Federal do Rio de
Janeiro/Escola de Belas Artes, 2008. v. 2. p. 249-255.

O aqueduto da Carioca: paisagem de urbanidade1

Anita Correia Lima de Almeida


Doutora em História Social (UFRJ).
Professora do Departamento de História da UNIRIO.
anita.correialima@gmail.com

Imagens que passais pela retina


Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...

No claustro de Celas. In: Clepsidra (1920), de Camilo Pessanha

Em 1721, um personagem de Montesquieu nas Cartas Persas


escrevia:

Estou agora em Veneza [...]. Ainda quem tenha visto


todas as cidades do mundo se surpreenderá ao chegar a
Veneza: sempre nos causará espanto ver surgirem da água
uma cidade, suas torres e suas mesquitas, e encontrar um povo
numeroso num lugar onde só deveria haver peixes.
Mas falta a essa cidade profana o tesouro mais precioso
que existe no mundo, ou seja, a água corrente; aqui é
impossível cumprir uma única ablução conforme a Lei. Por isso
ela é abominada por nosso santo Profeta que, do alto do Céu,
só a contempla com a máxima ira.2

As ligações entre o tema da “cidade” e o da “’água” são bastante


complexas e muitos caminhos podem ser seguidos. Aqui nos interessa tratar
de alguns aspectos da história do Aqueduto da Carioca e, mais
particularmente, da maneira como ele foi visto. Interessa, na verdade, discutir
as possibilidades que o Aqueduto ofereceu, e continua a oferecer, como
paisagem urbana e os vários significados que lhe foram atribuídos ao longo
do tempo.
Em Viagem pelo Brasil (1817-1820), Spix e Martius consideraram o
aqueduto “o mais belo e o mais útil monumento de arquitetura” existente no
Rio de Janeiro.3 Hoje, o trecho com os Arcos, sua parcela mais visível, foi
praticamente tudo o que restou do Aqueduto que, com mais ou menos 8 km,
transportava a água do Rio Carioca desde a encosta do Corcovado,
passando pelos Arcos, até as portas do Convento de Santo Antônio. Toda a
estrutura dos canos ao longo da antiga Rua do Aqueduto, atual Rua
Almirante Alexandrino (em Santa Teresa), foi destruída há muito tempo,
assim como o trecho dos Arcos até o Largo da Carioca, restando apenas a
chamada Mãe D’Água, onde o aqueduto começava, e alguns outros
pequenos vestígios, no Silvestre.
Para Argan, como escreveu Bruno Contardi, é possível falar de uma
“crise da cidade”, em que aquilo que resta é incompatível com a vida da
metrópole: “os objetos, as obras de arte [...] são fragmentos de um passado
não mais relacionado ao presente, são quase ilhas, resíduos de um
continente submerso” 4. Na metrópole, “aquilo que resta” corre perigo. Mas os
Arcos sobreviveram, e foram mesmo objeto de novos nexos, quando
passaram de aqueduto a viaduto.
O seu primeiro nexo, no entanto, aquele que os ligava à água, ou
melhor, à luta pelo abastecimento de água potável para a cidade, foi quase
perdido. A criança que passa hoje pela Lapa, e que ainda conhece pouco da
história da cidade, dificilmente identifica a primitiva função dos Arcos.
Embora ainda seja possível encontrar um cartão postal com os Arcos e
o monumento tenha sido relativamente bem votado (15º lugar) numa eleição
recente das “Sete maravilhas” do Estado do Rio de Janeiro, a forma como a
cidade se faz retratar mais frequentemente é a das panorâmicas amplas de
360º. A maneira como uma cidade se vê muda ao longo do tempo e, se no
século XIX a cidade foi pintada a partir das vistas das ruas, as imagens
modernas estão marcadas por uma perspectiva de vista aérea – com o Pão-
de-Açúcar e o Corcovado ocupando lugar central – em que o espaço urbano
está distante5.
Em Cidades quadradas, paraísos circulares (2006)6, Verena Andreatta,
tratando da história da ocupação urbana do Rio de Janeiro, aponta para a
existência de importantes obras de infra-estrutura, a demolição de morros, os
sucessivos aterramentos etc., que deram forma à cidade, o que contrasta
com a imagem de “paisagem natural”, muito frequentemente associada ao
Rio de Janeiro.
Incrustada entre o mar e a montanha, ocupando uma região formada
por alguns pequenos morros e muitas lagoas, pântanos e manguezais, a
cidade colonial cresceu lutando contra as áreas alagadas. E, paralelamente,
foi preciso construir um sistema de abastecimento de água potável. Mas as
marcas que essa história deixou, como os equipamentos urbanos ligados ao
abastecimento de água, os Arcos, alguns poucos chafarizes que ainda
sobrevivem, ou mesmo os aterros, já não nos trazem mais a lembrança da
importância que o tema da água teve para a cidade.

Imagens do aqueduto

Depois de muito e muitos anos de obras, interrompidas e


recomeçadas, em que trabalharam índios e gerações de escravos africanos,
finalmente em 1723 as águas do Rio Carioca estavam jorrando no chafariz
construído no pé do Convento de Santo Antônio, no atual Largo da Carioca.
Em 1750, durante o governo de Gomes Freire de Andrade, ficaram prontos
os Arcos de pedra e cal que hoje chamamos de Arcos da Lapa.
Entre as raras imagens da cidade no século XVIII, é muito conhecida a
a Vista da Lagoa do Boqueirão com os Arcos. A pintura, atribuída a Leandro
Joaquim, faz parte da famosa coleção de ovais pertencentes ao Museu
Histórico Nacional.
No artigo As primeiras telas paisagísticas da cidade, Gilberto Ferrez
estudou detalhadamente a coleção e acabou por concluir que as seis telas
existentes hoje são o que restou de oito que teriam sido pintadas para
decorar um dos pavilhões do Passeio Público7. Ainda segundo G. Ferrez, o
artista teria recebido a encomenda de pinturas que descrevessem
“acontecimentos marcantes da vida carioca durante aquele período;
tipicamente o que hoje chamaríamos de propaganda do governo”8. As telas
estariam associadas, portanto, às remodelações que o vice-rei Luís de
Vasconcelos e Sousa realizou na cidade.
Em Viagem à Cochinchina, John Barrow, passando no Rio de Janeiro
em 1792 a caminho da China, descreveu as paisagens que observou nos
pavilhões do Passeio Público: “são todas dedicadas a cenas do porto”9, ou
seja, nelas, a cidade é retratada a partir do mar. Barrow anotou, ainda, que
uma delas retratava a pesca da baleia. Já John Luccock, descrevendo uma
dessas telas, menciona “os arcos do aqueduto por baixo dos quais um rio
considerável flui”. Em seguida diz: “um boi está pintado atravessando-o e
mostra que o vau dava água pelo joelho”, e acrescenta: “tal, informaram-me,
fora o aspecto do local por volta de 1750 coberto d’água então; e agora
transformado neste jardim e várias boas ruas”10. Ambos ajudam a dar força à
hipótese de G. Ferrez de que as ovais são as telas que decoravam um dos
pavilhões do Passeio Público.

Vista da Lagoa do Boqueirão com os Arcos


Tela atribuída a Leandro Joaquim. Museu Histórico Nacional.
Se Gaston Bachelard tem razão e “antes de ser um espetáculo
consciente, toda paisagem é uma experiência onírica”11, talvez pudéssemos
ver na Vista da Lagoa do Boqueirão com os Arcos duas imagens da água: a
“água pura”, água potável, límpida, aquela que não podemos ver, mas
sabemos que é transportada pelo aqueduto, e a água “parada” da lagoa.
Não é uma lagoa lúgubre, parece haver vida na lagoa e, principalmente,
trabalho, ou funções. Há negros por toda parte, e alguns poucos brancos,
como o que está sendo carregado, provavelmente por seu escravo, ao fundo,
no centro da imagem. Há também crianças brancas, talvez ainda cuidadas
por alguma ama de leite. Mas o espaço da lagoa é o espaço do trabalho
escravo. E a água está parada, ou “dormente”. De fato, ela parece ser uma
água disforme, de contornos imprecisos, não controlada pelo engenho
humano, em oposição às construções, igrejas, casas e, principalmente, o
aqueduto, em sua forma tão regular. A água que corre pelo aqueduto foi
“civilizada”, a água parada da lagoa ainda precisa ser.
Na verdade, no momento em que a tela vai ser admirada – se Gilberto
Ferrez está correto em sua análise – o espaço da lagoa também já foi
“civilizado”, ela foi aterrada e agora há o Passeio Público em seu lugar. Na
paisagem do Passeio, a água reaparece em suas fontes.
Além disso, toda a remodelação por que passou esta área da cidade,
com o aterramento da lagoa do Boqueirão, a criação do Passeio Público e a
abertura da Rua das Belas-Noites, (atual Rua das Marrecas), foi coroada com
a inauguração do Chafariz das Marrecas, em 1785. Uma olhada no texto
gravado na placa que ficava no Chafariz deixa ver uma articulação entre a
água da lagoa, a água do mar e a água dos chafarizes e fontes:

Durante o reinado de D. Maria I e D. Pedro III/Secou-se um lago


outrora pestífero/E converteu-se em forma de
passeio/Repeliram-se as águas do mar por ingente
muralha/Aduziram-se fontes em jorrantes bronzes [...]. Ao vice-
rei Luiz de Vasconcellos de Souza, sob cujos auspícios foi tudo
isso realizado/O povo do Rio de Janeiro, em sinal de grato
ânimo/No dia 31 de julho de 1785.12

Falar de água é falar de uma simbologia complexa. Uma gota “basta


para criar um mundo”13. A água cria, mas também tira a vida. Tratando das
características da água imaginária, é ainda Bachelard quem nos fala da
importância da ambivalência e da presença simultânea de desejos e de
medos relacionados às imagens da água14. É muito clara “a supremacia da
água doce sobre a água dos mares”15. A água do mar é a “água violenta”,
que precisa ser contida.
Outra tela, outro chafariz e outra muralha também nos falam dessas
águas. O chafariz da atual Praça XV, pintado em Revista Militar no Largo do
Paço, uma outra oval da coleção, aparece aqui ocupando o lugar central da
imagem. Segundo Gilberto Ferrez, a cena retratada “poderia ser uma revista
militar inaugurando as grandes obras de remodelação total da praça, com a
construção do cais, do novo chafariz e calçamento parcial do largo,
executadas durante o governo de Luís de Vasconcelos e terminadas em
1789”, ou seria uma revista militar para comemorar o aniversário de D. Maria
I, ou as duas coisas juntas. Muitas hipóteses foram levantadas, mas, para G.
Ferrez, o que fortalece a idéia de que fosse uma comemoração pelas obras
recentes é o fato de que o chafariz aparece “festivamente decorado com
bandeiras de diversas cores”16. De qualquer forma, o chafariz organiza de tal
maneira a imagem, que José Mariano Filho comentou: “Nesse documento
mentiroso, o chafariz aparece locado no eixo da praça [...]”17.
O que importa ressaltar, no entanto, é a associação entre a água doce,
boa para beber, que o chafariz faz vir até o Largo do Paço, e a do mar, que a
muralha ajuda a conter.
Revista Militar no Largo do Paço.
Tela atribuída a Leandro Joaquim. Museu Histórico Nacional.

Alimentado pelo mesmo sistema do Carioca, por calhas que


mergulhavam por baixo do Convento da Ajuda, chegando até a beira do cais,
o chafariz da tela foi o segundo que a praça teve. Gomes Freire teria
mandado construir o primeiro, mais no centro do Largo. Esse primeiro durou
pouco e já estava arruinado, quando o vice-rei Luis de Vasconcelos mandou
construir um novo, juntamente com a murada do cais, e cujo risco é atribuído
a Mestre Valentim18. Formando um conjunto, de cais e chafariz, a obra
passava a ter várias funções, abastecer a cidade, sem deixar de embelezar,
abastecer as embarcações, com as bicas que ficavam voltadas para o mar e,
finalmente, funcionar como cais para quem desejasse desembarcar de
escaler no Paço. No chafariz, lê-se ainda hoje:

Sendo Rainha de Portugal Maria Primeira, Pia, Ótima, Augusta,


tendo-se feito um desembarcadoiro, quebrado com um grande
cais a violência das ondas, refluentes [...] transformados o largo
e o chafariz, dando-se-lhes disposição mais considerável e
cômoda, com enorme despesa do Erário Real; a Luís de
Vasconcellos e Souza [...] em cujo governo estas obras foram
concluídas, o povo de São Sebastião agradecido pelos seus
tantos e tão grandes serviços, ergue este monumento aos vinte
e nove de Abril de 1789.19

Na outra face, os dizeres de uma cartela em mármore atribuem ao


vice-rei o poder de lutar contra as artes de Phebo, deus da luz, associado ao
Sol: “Enquanto Phebo com ignífero carro os povos queima, Vasconcelos,
com as águas, expele da cidade a sede. Phebo, retrocede já e, deixando a
mansão celeste, esforça-te, é melhor, por ajudar o ilustre homem”20.
Outra função, talvez, que se possa ver nas obras de remodelação da
Praça é a de ter aproximado suas feições às do Terreiro do Paço em Lisboa.
Em A capital como modelo: a circulação das formas (1998), Rafael Moreira
observou que a segunda metade do século XVIII conheceu “a transformação
dos ‘Terreiros do Paço’ em vastas ‘praças regulares’ abertas ao oceano por
dois braços estendidos em simetria neoclássica”21. Assim, podemos pensar
que a pintura na verdade destacava na praça esses elementos de
comparação, servindo-se para isso de um ponto-de-vista muito semelhante
ao utilizado pela iconografia da época para retratar a Praça do Comércio, em
Lisboa. Lá, a centralidade da imagem é marcada pelo Cais das Colunas,
aqui, pelo cais do chafariz.
No Rio de Janeiro, o Largo do Paço vai ser o cenário principal para as
cerimônias do poder em vários momentos. E será assim na aclamação de D.
João VI, em 1818, quando vários artistas foram contratados para transformar
o Largo em cenário para a festa. À beira do cais, em frente ao Paço, foi
instalado um templo grego consagrado a Minerva. No meio da praça, perto
do chafariz, foi construído um obelisco em estilo egípcio, em falso granito.
Ainda próximo ao Chafariz, pelo lado do mar, foi instalado um arco triunfal à
romana. Segundo a análise de Afonso Carlos Marques dos Santos, “o
cenário, embora efêmero, afirmava o sentido daquele espaço e o consagrava
como lugar da afirmação do Estado monárquico”22. Nessa que “era a primeira
aparição de D. João em público com todo o esplendor da realeza” seriam
enfatizadas, “nos rituais adotados e na decoração simbólica, as vinculações
com o passado histórico da Monarquia, do Reino e do Ocidente”23.
No cenário da aclamação, as marcas da semelhança entre o espaço
construído do Largo do Paço nos trópicos e o Terreiro do Paço em Lisboa
também foram buscadas na decoração do arco triunfal instalado no chafariz:
“coroando o arco de triunfo, apresentava-se um grupo escultural de belo e
rico movimento, formado por dois rios (o Tejo e o Rio de Janeiro), apoiando-
se às armas coroadas do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves”24.
Nessa aproximação entre o Tejo e o “Rio de Janeiro”, a “água perigosa”, que
é a água do mar, aparece, finalmente, transformada em “rio”, e já incapaz de
oferecer qualquer ameaça.
Afinal, a presença da Coroa portuguesa, através de seus
governadores, vice-reis e, por fim, do príncipe regente, agora rei, tinha sido
capaz de garantir a existência da própria cidade, abastecendo-a com água
potável e, ainda, defendendo-a das “águas perigosas”, de lagoas pestíferas e
do mar.
Retornando à imagem da Vista da Lagoa do Boqueirão com os Arcos,
é possível pensar que o aqueduto deveria ser lido, por aqueles que iam
admirar a tela no pavilhão do Passeio, como metáfora do poder, o poder da
Coroa portuguesa. Em sua forma romana, a construção lembrava a herança
clássica que a Coroa trazia para a colônia. Lewis Munford escreveu, em A
cidade na História (1961): “Quando se pensa na antiga cidade de Roma,
pensa-se imediatamente em seu império: Roma com seus símbolos de poder
visível, seus aquedutos, seus viadutos e suas vias pavimentadas, cortando
sinuosamente colinas e prados, saltando sobre rios e pântanos, movendo-se
em formação ininterrupta, como uma vitoriosa legião romana”25. Aquedutos
são, assim, imagens da expansão do poder de Roma. E Munford continua
observando que, nas áreas periféricas da metrópole, “somente um vislumbre
ocasional de planejamento urbano, um templo, uma fonte, um pórtico e um
jardim, despertaria um eco nobre do centro da cidade”26.
Os Arcos da Vista da Lagoa do Boqueirão, trazendo a água dos
arredores para o centro, significavam a própria urbanidade. Não urbanidade
no sentido que a palavra terá mais tarde, de cidadania, de vida pública na
cidade, mas com o significado de “civilização”, um conceito que domina o
olhar no século XVIII. Os Arcos da tela simbolizavam, então, não só a
presença da Coroa portuguesa, mas o seu poder de construir cidades e,
portanto, de “civilizar” o espaço ultramarino.

De aqueduto a viaduto

No século XIX o Rio de Janeiro cresce, outros rios são canalizados e,


aos poucos, o sistema do Carioca passa a não ter mais importância. No final
do século, o velho aqueduto, obsoleto, deixa de funcionar e é transformado
em viaduto para o bonde de Santa Teresa. Em 1895, os Arcos passam por
um teste de esforço. No dia 1º de setembro de 1896 a Companhia Ferro-
Carril Carioca inaugura a linha elétrica de bondes do Largo do França, em
Santa Teresa, até o Largo da Carioca. Como noticiou o jornal O Paiz, a
cerimônia de inauguração começou na estação construída na Carioca, “por
detrás da monumental caixa d´água, que já conta com 62 anos de idade” 27,
ou seja, o terceiro chafariz do Largo. A estação era “um pavilhão de ferro, em
estilo gótico escocês muito bem desenhado” e fundido nas oficinas da
Capital. Ali, “em carros elegantes [...] tomaram lugar o Dr. Chefe de Polícia,
um oficial representante do Sr. Presidente da República, outros funcionários
municipais e federais, grande número de senhoras, muitos cavalheiros e
representantes da imprensa”.

No percurso, de mais de três quilômetros, muitas famílias


saudaram a passagem dos carros inaugurais, saindo as alunas
do Colégio Madureira, no Curvelo, a atirar flores sobre os
passageiros, gentileza que foi correspondida com estrepitosos
vivas. A passagem dos arcos – aqueduto convertido em viaduto
– produziu extraordinária sensação em todos que não
conheciam tão belo ponto-de-vista28.

A cerimônia seguiu com “um lunch, servido pela Casa Colombo no


jardim da caixa d´água” do França. Às 5 h da tarde, a comitiva retornou à
estação da Carioca e os bondes elétricos começaram no mesmo dia o
serviço ao público. A reportagem dá detalhes da novidade:

O sistema adotado é o da General Electric Company, de


New York. A força motriz é produzida por duas possantes
máquinas a vapor, montadas na estação da rua do Riachuelo, e
conjugadas com dois dínamos hexapolares de Thomson
Huston, podendo cada unidade dispor de uma força de 200
cavalos.
As caldeiras são do tipo Stirting, premiadas na Exposição
de Chicago em 189329.

Afinal, estava inaugurada a nova linha, “admirável pelo arrojo da sua


construção e pela beleza de alguns trechos de seu traçado. Quanto à parte
pitoresca, ela é inexcedível”. A paisagem dos Arcos já não lembra mais a
urbanização pela via do abastecimento de água. Agora, os Arcos ganham um
novo significado, que também está relacionado à urbanização, eles são
caminho, via, estrada. A antiga obra, que garante uma pitada de sabor
pitoresco, é atualizada quando vira viaduto, ela serve agora para deixar
passar o bonde elétrico, que é o que existe de mais moderno, o último grito
em transporte urbano. Assim, a paisagem dos Arcos, como aqueduto e como
viaduto, representou, de duas maneiras diversas, as várias possibilidades da
vida urbana.
No princípio do século XX, a região da Lapa sofreu uma série de
reformas urbanísticas, com demolições e abertura de ruas. Houve alguns
projetos de modernização para a área, mas os velhos arcos escaparam e,
afinal, em 1938, com a criação do IPHAN, foram protegidos pelo
tombamento. Incorporados ao tecido da cidade, havia várias construções
coladas ao monumento, como aconteceu com antigos aquedutos em outros
países. Em 1975, a Lapa sofreu uma obra de reurbanização e os Arcos
tiveram sua vista desobstruída, o que, aliás, foi perdido em parte com a
introdução de uma perspectiva de palmeiras em reforma urbanística recente.
Executada pela Secretaria de Obras do antigo Estado da Guanabara, a
urbanização da “Nova Lapa” valorizava o antigo monumento que, ecoando o
tema da água, chamava a atenção para as reformas de infra-estrutura na
área do abastecimento em que o governo estadual na altura estava
empenhado.

Conclusão

Se a sensação de uma cidade e seu tecido físico estão sempre


presentes para seus habitantes e, como argumenta Joseph Rykwert, em A
sedução do lugar (2000), esse tecido é uma representação “tangível daquela
coisa intangível, a sociedade que ali vive – e suas aspirações”30, talvez
pudéssemos argumentar que no caso do Rio de Janeiro, a cidade é pouco
atenta para aspectos de sua história relacionados com o que foi construído
pela mão do homem. A imagem que mais lhe agrada hoje é a da “beleza
natural”, diversa, portanto, da imagem de uma cidade cuja ocupação foi
marcada por grandes intervenções na paisagem.
A história da ocupação urbana do Rio de Janeiro está muito ligada ao
Rio Carioca, e à captação de suas águas, e isso ninguém discute. Mas onde
está o Rio Carioca? Rio urbano, condenado a altos índices de poluição,
principalmente por esgoto doméstico, ele segue seu caminho, escondido por
baixo da cidade. Visível apenas em trechos mínimos, poucos moradores e
visitantes do Rio de Janeiro são capazes de apontar no mapa o seu percurso
atual31.
No caso dos Arcos, graças ao tombamento, sua estrutura física está
preservada e, por conta de terem sido transformados em ponte para o
bondinho de Santa Teresa, eles continuam admiravelmente incorporados à
vida da cidade. Mas a ligação do velho monumento com o tema da água e,
portanto, com a história da cidade, já não é clara para boa parte das pessoas
que passam por lá, no burburinho apressado da Lapa. O chafariz do antigo
Largo do Paço, igualmente tombado, continua lá. O seu “passado” de
chafariz e de muralha para conter o mar, no entanto, talvez seja de mais
difícil leitura ainda, já que hoje ele está quase no centro da Praça, afastado
do mar, cercado por um estranho “fosso” e sem uma gota de água. A cidade
ainda tem outras fontes públicas, como o Chafariz da Glória (de 1772), ou o
da Rua do Riachuelo, esse já do século XIX, mas eles também sofrem com
uma conservação precária.

Pequena construção, no Silvestre,


do antigo sistema de abastecimento de água, com placa de 1744 (foto da autora).

O que nos resta fazer hoje? Talvez uma recuperação ou um novo uso
da estrutura da Mãe D’Água (há um reservatório do século XIX, hoje mantido
pela CEDAE), no Silvestre, que, transformada em “museu da água”, em
“lugar de memória” – como a Mãe D’Água do antigo aqueduto das Águas
Livres de Lisboa – pudesse ajudar os habitantes da cidade a pensarem sobre
a nossa história de luta “contra a água” e “pela água”. Talvez, assim, os
Arcos da Lapa e os chafarizes se reencontrassem com os seus antigos
significados e nós pudéssemos nos reconciliar, ao menos em parte, com a
nossa história de cidade construída, para o bem e para o mal, também pela
mão do homem.
1
Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no XII Encontro Regional de História da
ANPUH, no Rio de Janeiro, em 2006.
2
Montesquieu. Cartas Persas. São Paulo: Paulicéia, 1991, p. 60.
3
SPIX, J. B., MARTIUS, C. Viagem pelo Brasil, 1817-1820. São Paulo: Edusp, Belo
Horizonte: Itatiaia, 1981.
4
No Prefácio de ARGAN, G. C. História da arte como história da cidade. São Paulo: Livraria
Martins Fontes, 1992, p. 7.
5
Cf. DENIS, Rafael Cardoso. O Rio de Janeiro que se vê e que se tem: encontro da imagem
com a matéria. In: A paisagem carioca – catálogo. Rio de Janeiro: Rioarte, 2000.
6
ANDREATTA, Verena. Cidades quadradas, paraísos circulares: os planos urbanísticos do
Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.
7
FERREZ, Gilberto. As primeiras telas paisagísticas da cidade. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, n. 17, 1969.
8
FERREZ, G. Op. cit., p. 232.
9
FERREZ, G. Op. cit., p. 221.
10
FERREZ, G. Op. cit., p. 224.
11
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São
Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 10.
12
A inscrição que existia no chafariz era em latim. Essa versão é de Padberg-Drenkpol,
citada em CORRÊA, Magalhães. Terra Carioca: fontes e chafarizes. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1939, p.59.
13
BACHELARD, G. Op. cit., p. 5.
14
BACHELARD, G. Op. cit., p. 13.
15
BACHELARD, G. Op. cit., p. 15.
16
FERREZ, Gilberto. Op., cit., p. 229.
17
MARIANO FILHO, José. Os três chafarizes de Mestre Valentim. Rio de Janeiro:
[Construtora Andrade Gutierrez], 1943, p. 60.
18
MARIANO FILHO, José. Op. cit.; CARVALHO, Anna Maria Fausto Monteiro. Mestre
Valentim. São Paulo: Cosac & Naify, 1999.
19
Tradução de José Mariano Filho, citada em CARVALHO, Anna Maria Fausto Monteiro.
Op., cit., p. 48.
20
Idem.
21
MOREIRA, Rafael. A capital como modelo: a circulação mundial das formas. In: Pavilhão
de Portugal. Exposição Mundial de Lisboa de 1998. Catálogo Oficial. Lisboa: Expo, 1998, p.
196.
22
Cf. SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. O Paço da cidade: biografia de um monumento.
In: CAVALCANTI, Lauro (org.). Paço imperial. Rio de Janeiro: Sextante Artes, 1999, p. 76.
23
Idem.
24
NAVES, Rodrigo. A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. 2 ed. São Paulo: Ática,
1997, p. 60.
25
MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo:
Martins Fontes, 1998, p. 227.
26
MUMFORD, Lewis, Op. cit., p. 246.
27
Jornal O Paiz de 2 de setembro de 1896.
28
Idem.
29
Idem.
30
RYKWERT, Joseph. A sedução do lugar: a história e o futuro da cidade. São Paulo:
Martins Fontes, 2004, p. 7.
31
Para um estudo sobre o Carioca, ver SCHLEE, Mônica B., COELHO NETTO, Ana L.,
TAMMINGA, Kenneth. Mapeamento ambiental e paisagístico de bacias hidrográficas
urbanas: estudo de caso do Rio Carioca. In: COSTA, Lucia M. S. A. Rios e paisagens
urbanas em cidades brasileiras. Rio de Janeiro: Prourb, 2006.

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