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AUG
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DUARTE PACHECO
AS GRANDES OBRAS
DO ESTADO NOVO
PERIODICIDADE BIMESTRAL
CONTINENTE – €4,90
N.º 46 · ABRIL 2018
1.961
Colaboradores
20
PAÍSES
Instalações
•
•
81 Clínicas
67.339m2
• 259 Gabinetes
62
• 41 Blocos Cirúrgicos
81
• 5 Produtos Patenteados
• 23 Prémios
• 72 Artigos Científicos e Livros Publicados
CLÍNICAS
Formação
• 10.200 Profissionais Formados
• 14 Centros Educacionais
Laboratório
• 55 Laboratórios
• 262 Técnicos
maloclinics.com
HORÁCIO NOVAIS/FCG-BA
GRANDES OBRAS // SUMÁRIO
Hospital de Santa Maria, Lisboa Visita às obras do maior edifício público nacional
Fotos da capa: AML/Judah Benoliel Os títulos, subtítulos e destaques dos artigos são da responsabilidade da redação
VISÃO H I S T Ó R I A 3
GRANDES OBRAS // LINHA DIRETA
10 anos
de VISÃO História
F
oi precisamente há dez anos, em
abril de 2008, que saiu o primeiro
número da VISÃO História. O tema
então escolhido foi uma evocação
do ano de 1968, durante o qual
muitas coisas relevantes se passa-
ram no mundo, desde o Maio de 68 ao
assassínio de Martins Luther King ou
à invasão soviética da Checoslováquia.
Para comemorar a primeira década de
vida da VISÃO História, oferecemos a
todos os leitores a primeira edição em
formato digital.
De 2008 para cá foram dadas à estampa
46 edições regulares, cada uma delas dedi-
cada a um assunto, e um número extra so-
bre Mário Soares, aquando da sua morte.
Este número que o leitor tem nas mãos
debruça-se sobre as grandes obras públi-
cas que, sob a direção de Duarte Pacheco,
foram levadas a cabo em Portugal nas
décadas de 30 e de 40 do século passa-
do e que, no caso concreto da capital do
País, ampliaram enormemente a área
urbanizada da cidade. Foram essas obras,
diga-se em abono da verdade, a principal
herança legada pelo Estado Novo, um
regime político ditatorial que se prolon-
gou no tempo por mais de 40 anos e que
acabaria por tombar de caduco.
Aceda a
visaohistoriaespecial.lojaimpresa.pt
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habituais e encontrará a revista
4 VISÃO H I S T Ó R I A
Uma década As capas
de todos os números
da VISÃO História,
incluindo uma edição
especial sobre Mário
Soares
Número extra
VISÃO H I S T Ó R I A 5
Plantação do Parque
Florestal de Monsanto,
1938
Jovens da Mocidade
Portuguesa e reclusos
do forte das vizinhanças
concretizaram no terreno,
a partir de 1938, a iniciativa
de Duarte Pacheco, com
projeto de Keil do Amaral,
de dotar a capital
portuguesa de um
gigantesco pulmão verde
FOTO: AML
REVOLUÇÃO RUSSA // CABEÇA
Nascimento do bairro
de Alvalade
Em 1947, o troço final
da Avenida de Roma,
em direção ao Hospital Júlio
de Matos, seguia ainda
por terrenos não urbanizados
nos quais seriam depois
traçados os novos
arruamentos. Aqui, o local
durante uma visita
das autoridades camarárias
de Lisboa
VISÃO H I S T Ó R I A 13
Rasgão na serra
O então Viaduto de Alcântara
(depois Viaduto Duarte
Pacheco), integrado
na Autoestrada do Estádio
Nacional (embrião
da atual A5) prolongou Lisboa
para oeste a partir de 1944,
ao mesmo tempo
que na serra de Monsanto
nascia o Parque Florestal
Título
Texto
FOTO: ASSINATURA/FOTOBANCO
Obra pronta
O Hospital de Santa Maria
em 1953, aquando da sua
inauguração, era - como hoje
continua a ser – o maior edifício
público nacional
Duarte Pacheco
Mais depressa,
sempre
Visionário, obcecado, dotado de uma capacidade
de trabalho que roça o mito, Duarte Pacheco, o mais conhecido
ministro de Salazar, dotou o País de importantes infraestruturas
nas décadas de 1930 e 1940 e definiu a Lisboa do século XX
por Emília Caetano
V
erão de 1937. Duarte Pacheco está para a época que alguns consideraram os projetos para o Estádio Nacional e a
com o arquiteto Porfírio Pardal megalómanas. florestação da serra de Monsanto.
Monteiro em Roma. Partiram Fora, aliás, no IST que conhecera Pardal A historiadora Sandra Vaz Costa, auto-
numa longa viagem que os levou Monteiro, então um jovem assistente de ra de O País a Régua e Esquadro, sobre a
também a Nápoles, além de outros Desenho Arquitetónico, a quem ele iria vida e obra de Duarte Pacheco, conta que,
pontos de Itália. E não falharam encomendar o projeto do novo edifício. durante a sua investigação, encontrou na
Paris. Os mais próximos diriam depois que A notícia da sua saída do Governo ti- Torre do Tombo «uma quantidade de car-
voltara deslumbrado, que corrigira ideias nha caído como uma bomba. Mesmo no tas a Salazar, com uns a queixaram-se de
antigas, que vinha cheio de projetos novos. contexto autoritário da altura era difícil que o ministro estava demente e tinha de
Seria a única viagem que fez ao estrangeiro de acreditar que Salazar afastasse o mais ser internado, outros a dizerem que devia
em toda a vida. conhecido dos seus ministros e que, em ser comunista, tal era o seu empenho na
Duarte Pacheco encontrava-se então menos de três anos e meio, já lançara gran- coletivização». Mais a mais, os terrenos
numa espécie de período sabático, só de parte do que seria a sua extensa lista não pertenciam a pequenos proprietários,
que, no seu caso, forçado. Desde janeiro de obras públicas. Um empenho que lhe mas a grandes terratenentes, em princípio
de 1936 que estava fora do Ministério tinha valido, logo em 1933, a Grã- Cruz da apoiantes do regime. Salazar cedeu. E, no
das Obras Públicas, afastado por Salazar. Ordem Militar de Cristo. entanto...
Aquartelara-se então outra vez na «sua» Mas obras públicas reclamavam quase
casa, o Instituto Superior Técnico (IST), sempre terrenos privados. E Duarte Pache- Com o professor de Coimbra
onde se fizera engenheiro eletrotécnico co fizera, em 1934, uma lei de expropria- Duarte Pacheco era um homem com uma
e, depois, chegara a professor e diretor ções para utilidade pública, que tornava missão quando, em abril de 1928, se des-
num prazo meteórico e num processo o processo ágil e barato. Se os inimigos locou a Coimbra. Acabara de tomar posse
pouco ortodoxo. Em contrapartida, dotara já se iam acumulando, o copo parece ter como ministro da Instrução, precisamen-
o instituto de instalações tão grandiosas transbordado quando tentou concretizar te a 18 de abril, na véspera de completar
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Duarte Pacheco
O ministro
workaholic em 1942
CECIL BEATON/CML/GEO
VISÃO H I S T Ó R I A 23
GRANDES OBRAS // PERFIL
Presidente Ministro da Instrução Ministro das Presidente da Câmara Ministro das Obras
do Instituto Superior Pública, nomeado um Obras Públicas e Municipal de Lisboa, Públicas
Técnico. regressaria dia antes de completar Comunicações, a convite do Governo. e Comunicações,
ao cargo entre 1936 28 anos, entre 18 entre 5 de julho Desempenha entre 25 de maio
e 1938 de abril e 10 de de 1932 e 17 de maio o cargo entre janeiro de 1938 e até à sua
novembro de 1928. de 1936 e maio de 1938 morte, em 16 de
O seu ministério novembro de 1943
produziu 80 diplomas
Fonte: O País a Régua e Esquadro, de Sandra Vaz Costa
28 anos, a convite do novo chefe do Go- onze irmãos (sete raparigas e quatro rapa- Para a dimensão daquela vila (hoje ci-
verno da Ditadura Militar, José Vicente de zes), perderia a mãe aos 6 anos e o pai aos dade), pertencia a uma família com algu-
Freitas, um militar republicano conserva- 14. Os rapazes decidiriam então deixar a ma influência social e política. O pai, José
dor que participara no golpe que em 28 herança às irmãs e fazerem-se eles à vida. Pacheco, monárquico, um dos dirigentes
de maio de 1926 derrubara a I República Nascera a 19 de abril, dizia ele que de locais do Partido Regenerador, tinha sido
Vicente de Freitas não nutriria grandes 1900, embora pelo registo paroquial tives- chefe da Repartição de Finanças de Loulé,
simpatias por Oliveira Salazar, a quem sus- se sido em 1899. «Erro do pároco», dizia mas acabou por ser enviado para os Açores.
peitava de algum pendor pró-monárquico. ele. E ironizava que era até uma vantagem, E Duarte era sobrinho de dois pares do Rei-
Mas reconhecia-lhe um certo mérito, ao ten- dado ouvir sempre críticas de que era de- no (membros da câmara alta do parlamen-
tar, na sua anterior passagem pelo Governo, masiado novo para os cargos que ocupava. to): Marçal Pacheco, do Partido Regenera-
dois anos antes, sanear as finanças públicas, Em contrapartida, havia quem achasse dor e ex-presidente da Câmara de Loulé, e
então à beira do caos. Ao fim de duas sema- que era ele que arredondava a data, para Joaquim da Ponte, do Partido Progressista,
nas, Salazar dera por finda essa primeira parecer mais moderno. que fora governador civil de Faro.
experiência, voltando à universidade.
Desta vez Vicente de Freitas queria-o de
volta, mas poupava-se a ir pessoalmente
convidá-lo. Pediu então ao mais jovem
dos seus ministros que fosse a Coimbra
oferecer a Salazar as condições que ele
se queixara de não ter na sua efémera
passagem pelo Governo. Duarte Pacheco
acedeu. E Salazar também.
Assim, seriam colegas de Governo
até novembro seguinte, quando Duarte
Pacheco decidiu, por sua vez, sair. Mas
ambos voltariam a coabitar em São Ben-
to quando, em julho de 1932, Salazar se
tornava presidente do Conselho (primei-
ro-ministro) e lhe entregava a pasta das
JORNAL O SÉCULO/ANTT
24 V I S Ã O H I S T Ó R I A
O pai, monárquico, fora
dirigente do Partido
Regenerador em Loulé,
e dois tios tinham sido
JORNAL O SÉCULO/ANTT
membros da Câmara
dos Pares do reino
Ministro da Instrução Duarte Pacheco (à direita) na tomada de posse, em abril de 1928
E seria assim, como sobrinho de dois zona do Conde Barão, numas instalações A escolha do local fora também decisão
pares do Reino, que Duarte Pacheco che- tão degradadas que lhe chamavam «o de Duarte Pacheco. «Eis que se mete na
garia a Lisboa, para se inscrever no IST. barracão da Boavista». Há longo tempo Câmara Municipal de Lisboa, coberto com
E iria imiscuir-se imediatamente nos que os seus responsáveis reclamavam o simples título de professor e, de alto a
meandros políticos da cidade. Logo em do Governo, sem êxito, a verba para um baixo, esquadrinha a planta da cidade»,
1919 estaria entre o batalhão académi- novo edifício. E parecem ter visto nele a acrescenta. Para esse à-vontade com que
co que pegaria em armas para travar o hipótese de fazer avançar o projeto. Não se movia na autarquia, terá certamente
movimento pró-monárquico que ficou se enganaram. contribuído o facto de Beirão da Veiga
conhecido por «Monarquia do Norte». Mas muito do arranque da sua carreira ser também vereador. Conseguira assim
Ao mesmo tempo, iniciava a sua carreira parece dever-se à relação com Caetano resolver em três anos uma situação que
vertiginosa no Técnico. Beirão da Veiga, que, além de catedrático se arrastara por décadas. E já nessa altura
do IST, era administrador delegado da dera mostras do seu jeito para engenharia
No ‘barracão da Boavista’ empresa proprietária do Diário de No- financeira. «Magicou esta solução genial:
O caso era inédito. Quando, em 1925, ticias. «Não teve nenhum amigo mais adquirir terrenos com área muito mais
surgiu no Conselho Escolar do IST a pro- amigo do que eu», haveria de dizer Beirão extensa do que a necessária ao Instituto.»
posta de contratação de Duarte Pacheco da Veiga, já depois da morte de Duarte O que sobrou seria urbanizado e vendido,
como professor interino, as reservas não Pacheco, durante uma homenagem pro- para amortecer as despesas do projeto.
tardaram. Ele tinha 25 anos, formara-se movida, em 1951, pela Casa do Algarve. Assim, o Estado Novo terá apenas con-
apenas há dois e, ao contrário do que era «Nessa época, o Duarte passava horas tribuído com um empréstimo de 20 mil
habitual, não tinha qualquer produção a meu lado, no meu gabinete particular contos da Caixa Geral de Depósitos para
escrita. Valeu-lhe a autoridade académica e servia-se dele como se seu fosse», con- um edifício que seria uma das suas glórias.
de dois catedráticos, Mira Fernandes e fidenciaria Beirão da Veiga. O Diário de
Caetano Beirão da Veiga. A partir daí, a Notícias abrir-lhe-ia novas portas, já que Apesar de tudo
sua biografia voa: logo no ano seguinte ali travaria conhecimento com persona- O seu afastamento do Governo fora algo
entrará no Conselho Escolar como pro- lidades influentes e intelectuais, como o que Duarte Pacheco sempre digerira mal.
fessor já efetivo e, em 1927, aos 27 anos, escritor Eduardo Schwalbach, de quem Assim, em janeiro de 1938, quando Salazar
tonar-se-á diretor do instituto. se tornaria grande amigo. o convidou para presidente da Câmara de
A falta de produção escrita não era Beirão da Veiga traçaria então o retra- Lisboa, aliás o primeiro a ocupar o cargo
o único entrave a esta chegada súbita to de Duarte Pacheco como um homem por escolha governamental, ele pondera-
ao topo. Fora um bom aluno, mas não «de vistas largas», que seria acusado de ria. Acabaria por aceitar, mas no discurso
com notas extraordinárias. Havia outros megalomania, por ter dotado o Técnico de investidura mostrava que, para si, o
candidatos com mais experiência e cur- de instalações imponentes, numa altura caso não estava esquecido. Confessaria
rículo. Assim, o seu trajeto explicar-se-á em que a escola contava apenas «escassas que aceitara, «apesar de tudo».
antes pelo à-vontade com que se mexia dúzias de alunos». Mas já então ele se Mas o principal dos desabafos estava
nos círculos políticos. Isto, numa altura dizia empenhado em construir não para guardado para o seu regresso ao Ministério
em que o IST se encontrava ainda na o imediato, mas para um século. das Obras Públicas, apenas cinco meses
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GRANDES OBRAS // PERFIL
as suas intervenções
pelo pedestal e pelo enquadramento, teria lamentava ter de parar aos 43 anos, «não
levado o seu projeto emoldurado, para que por falta de trabalho, mas porque alguém
o ministro não pudesse riscá-lo por cima.
E Duarte Pacheco não terá achado graça.
eram normalmente que, dizendo-se meu amigo, mostra a sua
amizade não me deixando trabalhar».
De seguro, sabe-se que Pardal Monteiro foi curtíssimas E Pardal Monteiro reconhecia: «Neste
26 V I S Ã O H I S T Ó R I A
entende que um dos legados importan- tantes para seduzir o povo. E foi um pilar
tes do ministro foi a exigência de Planos de um governo que deixou um país de
Diretores Municipais, como o que lançou analfabetos. Havia até quem dissesse que,
em Lisboa. se não tem morrido tão novo, romperia
E Michel Toussaint acha normal que com Salazar e talvez chegasse a chefiar
Pardal Monteiro reagisse mal aos abusos ele o Governo.»
do ministro sobre o seu trabalho. Já se tor-
nara então conhecido e tinha ligações em Sem limites
Paris, de tal modo que uma das primeiras Workaholic. Se o termo já estivesse ge-
reuniões da União Internacional de Arqui- neralizado na altura, seria certamente o
tetos foi em Lisboa. «Era uma arquiteto traço dominante em qualquer tentativa de
muito interessante, com uma arquitetura reconstituição do perfil de Duarte Pacheco.
sólida, bem pensada e talvez o que evoluiu A sua enorme capacidade de trabalho e o
melhor entre a geração modernista, aquela ritmo que exigia a todos ficam para a His-
com que Duarte Pacheco lidou.» tória. Beirão da Veiga diria que, durante
Já quanto ao legado do ministro, aquele a construção do Técnico, ele passava lá os
académico diz que deve fazer-se um ba- dias e muito das noites, «quase sem co-
lanço «relativamente positivo». E explica: mer». E sempre inspecionava pessoalmen-
«Ele tinha um certo rasgo, se bem que te as obras que encomendava: há quem se
também noutros regimes autoritários da lembre de o ver de fato-macaco no viaduto
embate, tinha necessariamente de ser altura as obras públicas fossem impor- sobre o vale de Alcântara.
derrotado.»
Engenheiros e arquitetos
Uma das intrigas de que Pardal Monteiro
se queixava, na referida carta a Duarte
Pacheco, era a de estar a ser acusado de
«inimigo dos engenheiros». E perguntava:
«Não tenho sido eu o paladino da colabo-
ração entre engenheiros e arquitetos?»
E é unanimemente reconhecido que muito
do mérito da obra deixada pelo ministro
residia na equipa de reputados arquitetos
e engenheiros de que soube rodear-se.
A coabitação entre as duas profissões
não tinha sido, até então, tão evidente:
«Os arquitetos não eram muito valoriza-
dos, sobretudo da parte do Estado, salvo
alguma exceções, como Ventura Terra ou
Raul Lino. Aliás, até depois da Segunda
Guerra Mundial, os engenheiros estavam
acima dos arquitetos na hierarquia do Es-
tado», como explica o arquiteto Michel
AML/JUDAH BENOLIEL
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GRANDES OBRAS // PERFIL
28 V I S Ã O H I S T Ó R I A
interromperia a emissão, as bandeiras se-
JORNAL O SÉCULO/ANTT
riam colocadas a meia haste. Seguiram-se
sessões evocativas na Assembleia Nacional
e na Câmara Municipal de Lisboa, enquan-
to a Revista Municipal lhe dedicava uma
edição especial.
Salazar abriria o seu discurso na As-
sembleia Nacional, na homenagem de
dia 25 de novembro, a anunciar que ia
ser «excessivamente breve talvez», mas
deixaria «para outro momento aquelas
palavras de louvor e de justiça» que o mi-
nistro mereceria.
Mas ressalvava: «Não era a perfeição
– a pobre argila humana é de sua nature-
za imperfeita –, mas alguns defeitos que
pudessem emergir de uma natureza rica,
exuberante de qualidades, todos estavam
JORNAL O SÉCULO/ANTT
VISÃO H I S T Ó R I A 29
GRANDES OBRAS // INFRAESTRUTURAS
A OBRA PÚBLICA
DE DUARTE PACHECO
O braço forte da lei e o método de trabalho do ministro
explicam a capacidade de concretização do seu gabinete,
que outros nas mesmas condições não conseguiram ter
por Sandra Vaz Costa
MÁRIO NOVAIS/FCG-BA
30 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Construção da Gare
Marítima de Alcântara
Esta nova estação para
navios de passageiros
e a sua congénere
da Rocha do Conde
de Óbidos imprimiram
um novo cunho à
fachada ribeirinha
de Lisboa
VISÃO H I S T Ó R I A 31
GRANDES OBRAS // INFRAESTRUTURAS
A
obra pública de Duarte Pacheco de reconhecimento autónomo no do- que pela sua importância técnica e valor
teve início em 1925, data do seu mínio técnico e científico e uma neces- económico mais convém integrar num
ingresso no corpo docente do sidade de execução política distinta: a plano metódico de realização em todo o
Instituto Superior Técnico. No pasta de que Duarte Pacheco toma posse País» (definição de missão e objetivos do
desempenho do cargo de dire- como ministro. Da tutela da Agricultura Ministério das Obras Públicas e Comuni-
tor do IST a partir de 1927 e até transitam para as Obras Públicas e Co- cações no preâmbulo do decreto-lei que
1938, daria início à construção material, municações a Junta Autónoma de Obras faz transitar do Ministério da Marinha
política, técnica e científica que esta escola de Hidráulica Agrícola. Este organismo para o MOPC o processo de construção
de Engenharia adquiriu a partir do segun- agrega-se aos outros 13 que completam da Base Naval do Alfeite. Diário do Go-
do quartel do século XX. Com a liderança o universo de trabalho ministerial: o Ga- verno, decreto-lei nº 22 055, I Série de
do projeto de construção das novas ins- binete do Ministro, a Secretaria Geral 31 de dezembro de 1932).
talações do IST de 1927 a 1935, um ver- do Ministério, o Conselho Superior de De 1852 a 1932 não existiu uma polí-
dadeiro campus universitário edificado Obras Públicas, as Pagadorias de Obras tica nacional de infraestruturação. Em-
numa zona a partir de então determinan- Públicas, a Direção de Obras Públicas bora o Estado centralizasse as ações de
te na expansão norte e oriente de Lisboa, à do Distrito da Horta, A Direcção-Geral intervenção no património histórico, a
obra pública de Duarte Pacheco acrescem dos Edifícios e Monumentos Nacionais, atuação da Administração Geral de Edi-
todos os projetos por ele concretizados no a Administração-Geral dos Serviços Hi- fícios e Monumentos Nacionais atuava
Ministério da Instrução Pública (1928), dráulicos e Elétricos, a Junta Autónoma em consonância com as verbas irrisó-
no Ministério das Obras Públicas e Co- de Estradas, a Administração Geral dos rias que lhe eram atribuídas. À falta de
municações (1932-1935/1938-1943) e na Correios e Telégrafos, a Administração orientação política, técnica e científica
Câmara Municipal de Lisboa (1938) no Geral do Porto de Lisboa, a Direcção-Ge- que resgatasse da ruína o parque patri-
desempenho dos cargos ministeriais e de ral dos Caminho-de-Ferro e o Fundo Es- monial, acrescia a prática instituída de
presidência camarária. pecial de Caminhos-de- Ferro do Estado. reutilização dos edifícios históricos para
No campo da produção legislativa, foi fins alheios aos da sua construção.
hábil na construção de uma malha legal De Fontes a Pacheco Embora o transporte de pessoas e
que lhe permitiu agir de forma cadencia- Oitenta anos volvidos sobre o ministério bens se fizesse maioritariamente por
da e objetiva. O carisma, a convicção e o de Fontes Pereira de Melo, e nas palavras caminho-de-ferro, se em 1894 a rede
braço forte da lei permitiram-lhe realizar de Duarte Pacheco, estava decretado o ferroviária atingira os 2353 km, em 1905
em 18 anos uma obra pública impressio- restabelecimento do «(...) antigo Minis- a extensão não ia além dos 2380 km. Em
nante em número, escala e repercussão. tério das Obras Públicas, para nele se pro- dez anos os melhoramentos ferroviários
Embora politicamente centralizador, mover a concentração de todas as obras eram de apenas 27 quilómetros. Contu-
revelou-se cooperante, flexível e bom de fomento que interessam à melhoria do, se em 1894 a rede ferroviária servia
ouvinte no modo de trabalhar os pro- dos serviços do Estado e das condições cerca de 8 milhões de passageiros, em
jetos. Neste sentido, soube munir-se de económicas da Nação, mormente aquelas 1905 servia já 19 milhões.
uma equipa de trabalho multidisciplinar, O estado de ruína e parca manutenção
cordata, confiante e produtiva, criando das estradas, a par da crescente impor-
um gabinete de trabalho inédito onde tância do tráfego automóvel, levaram à
existia coordenação, unidade e eficiência. criação em 1927 de um organismo estatal
Embora pensado de forma particular e Entre os Ministérios centrado unicamente na sua construção,
exaustiva, cada projeto era parte de um
todo. Na atividade política de Duarte
das Obras Públicas reconstrução, administração e fiscali-
zação: a Junta Autónoma de Estradas.
Pacheco existiu uma profunda convicção de Fontes Pereira
de que a Educação, os Equipamentos,
as Comunicações e a Cidade tinham de Melo (1852) País periférico
À data da criação do MOPC, no dealbar
uma origem comum na formação dos e Duarte Pacheco dos anos 30, o mercado interno materia-
32 V I S Ã O H I S T Ó R I A
França em Os Anos Vinte em Portugal.
Até 1939 a rede de estradas alcançaria
os 500 km e absorveria 32% das des-
pesas do ministério. Os melhoramentos
portuários absorveriam 40% da verba.
No dealbar do segundo quartel do sé-
culo XX Portugal era um país periférico,
dependente dos combustíveis sólidos e lí-
quidos vindos do exterior. Cerca de 90%
do comércio externo era efetuado por via
marítima, o que justifica a aposta nos
melhoramentos portuários. No dealbar
do segundo quartel do século, e embora
crescesse o debate sobre a necessidade de
industrialização, o Estado optava por dar
primazia às vias de comunicação, acredi-
tando que a mobilidade de pessoas e bens
bastaria para incrementar o mercado
interno. Contudo, o mercado interno
vivia maioritariamente de uma produção
agrícola pouco desenvolvida e de uma
indústria pouco mais que tradicional.
No domínio das Comunicações, o
JORNAL O SÉCULO/ANTT
VISÃO H I S T Ó R I A 33
GRANDES OBRAS // INFRAESTRUTURAS
34 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Obras do Instituto
Superior Técnico, 1934
Uma espécie de acrópole
da «nova» Lisboa, que
seria complementada
pela abertura da Alameda
D. Afonso Henriques, em
construção na parte inferior
da foto
VISÃO H I S T Ó R I A 35
GRANDES OBRAS // INFRAESTRUTURAS
JORNAL O SÉCULO/ANTT
Guarda-fios, precisam-se!
A reparação das infraestruturas de telégrafos e de telefones
foi a prioridade das prioridades de Duarte Pacheco face ao ciclone
que, em 15 de fevereiro de 1941, deixou o País sem comunicações
por Pedro Vieira
‘ A
viso: Em virtude das avarias boa) varre das manchetes as notícias no mesmo sentido: «Um ciclone sobre
causadas pelo temporal, não se literalmente bombásticas da II Guerra Lisboa.»
realiza o baile marcado para esta Mundial, que decorria na Europa e nou- O jornal O Século faz em título e subtí-
noite.» tras paragens, e já tinha transformado tulos uma síntese da situação: «Lisboa foi
Inaugurado em 1931 pelo Pre- a capital portuguesa num ninho de es- assolada no dia de ontem por um terrível
sidente da República, general piões e no cais de partidas e chegadas ciclone. O vento, que chegou a correr a
Óscar Carmona, na Avenida Álvares Ca- do Velho Continente. Aliás, é também 127 quilómetros à hora, causou grandes
bral, o Jardim Cinema era um dos princi- de 1941 um discurso do presidente dos estragos e muitos desastres, afundou
pais polos de animação da vida lisboeta. Estados Unidos, Franklin Roosevelt, a barcos e provocou cenas de pânico. Há
Só a gravidade da situação provocada salientar a importância estratégica das a lamentar algumas mortes e é enorme
pelo ciclone que devastou a capital pode- ilhas portuguesas para os EUA e a en- o número de feridos.»
ria ter levado a sua gerência a anunciar, trada em Timor de tropas australianas
na edição de 15 de fevereiro de 1941 do e holandesas para combater as forças O País ‘partido’
Diário de Lisboa, o cancelamento do baile japonesas. Lisboa? Nas primeiras 24 ou 48 horas,
de sábado. «Lisboa açoitada por um vento ci- o País transforma-se em milhares de
É legítimo presumir que terá sido clónico de extraordinária violência que ilhas isoladas sem comunicações, com
igual o destino do filme em cartaz noutra derrubou chaminés, telhados e árvores, estradas e linhas férreas cortadas e, so-
sala emblemática da cidade, o Cinetea- chegando a atirar, nas ruas, os transeuntes bretudo, sem ligações telefónicas e tele-
tro Capitólio. Por irónica coincidência, ao chão», escreve em título o referido gráficas. Também os grandes jornais do
a película era O Monte dos Vendavais, vespertino. Porto – Jornal de Notícias, O Primeiro
de William Wyler. Por alguns dias, «a O Diário de Notícias do dia seguinte, de Janeiro e O Comércio do Porto – ficam
fúria dos elementos» (Diário de Lis- domingo 16 de fevereiro de 1941, vai limitados no seu noticiário. De tal modo
36 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Ciclone devastador O lisboeta
Cais do Sodré inundado pelas
águas do Tejo e um trecho
da Linha do Sul na zona
de Vendas Novas, sendo reparado
JORNAL O SÉCULO/ANTT
tribuição do jornal é problemática. No
entanto, o ministério, na altura tendo
por titular interino o próprio Salazar, dá
como garantido que a mensagem chegará
aos destinatários. Assim, «as praças que
não se apresentarem serão consideradas
desertoras».
que, apesar da «ação violenta do ciclone» No Governo, tocam as campainhas de Idêntica ordem é publicada na edição
(O Comércio do Porto), o Rápido das 18 e alarme. O Diário de Notícias informa: de terça-feira, 18 de fevereiro, desta feita
30 de sábado para Lisboa seguirá viagem «Estão interrompidas todas as comuni- convocando todas as praças na disponibi-
à hora marcada. No entanto, só viria a dar cações telegráficas e telefónicas com o lidade com a especialidade de guarda-fios,
entrada na Estação do Rossio ao fim de resto do País.»; «Foram chamados ur- das classes de 1935, 1936, 1937 e 1938.
34 horas. Em sentido inverso, a equipa gentemente à capital todos os guarda-fios Segundo o mesmo diário, também «o
do Sporting ainda tomou o Rápido das disponíveis.» administrador geral de Correios e Telé-
18 e 6 para ir jogar com o FC Porto no O apelo aos técnicos encarregados de grafos fez transmitir através do Rádio
domingo, mas não passou de Sacavém, vigiar e consertar as linhas telegráficas Clube Português uma ordem aos chefes
regista o Diário de Lisboa, informando ou telefónicas torna-se imperativo. Logo das várias circunscrições para fazerem
ainda que «os rapazes da Académica» no dia seguinte, o Diário de Notícias pu- seguir para Lisboa pelos meios mais rá-
não conseguiram chegar a Lisboa e que blica a seguinte ordem do Ministério da pidos todos os guarda-fios disponíveis».
a comitiva do Boavista ficou retido na Guerra:
Póvoa de Santa Iria. «São avisadas as praças da classe de A rádio salvadora
1939-P e S do Batalhão de Telegrafistas, A rádio será, de resto, um instrumento
com a especialidade de guarda-fios, que fundamental para quebrar o isolamento
se devem apresentar nas unidades mais do poder central. A Emissora Nacional
próximas das suas residências, a fim de consegue estabelecer ligação com o Porto
receberem a requisição de transporte de em onda curta, para um posto amador.
Postos rádio-navais e rádio-militares e
da Legião Portuguesa veicularam men-
sagens das autoridades regionais para o
Governo. E o ministro das Obras Públicas
e Comunicações, Duarte Pacheco, deu or-
Os municípios dens aos serviços sob a sua tutela através
VISÃO H I S T Ó R I A 37
GRANDES OBRAS // INFRAESTRUTURAS
CÂMARA MUNICIPAL DE SESIMBRA
Sesimbra Foram grandes os estragos causados pelo temporal na vila piscatória, em cujo porto se afundaram cerca de 300 barcos
as comunicações», com prioridade para os muralha marginal ficou destruída desde pelo seu filho, o jornalista José Luís Fero-
traçados de Lisboa, Porto e internacional. Alcântara à Torre de Belém e até a figura nha: «Chuva, chuva, muita chuva, trovoa-
Além das ligações via rádio, o ministro do Infante D. Henrique se desprendeu da e ventania», ao longo de 12 horas. Con-
ordenou o estabelecimento de estafetas do Padrão dos Descobrimentos devido à ta ainda José Luís Feronha que naquele
automóveis irradiando de Lisboa para força do vento e desapareceu nas águas dia, no Arquivo de Identificação, cujos
norte, sul e leste, formadas por agentes do Tejo. O Diário de Notícias escreve que serviços funcionavam no antigo Convento
da Polícia de Viação e Trânsito (organi- «no rio garraram quase todos os barcos de Nossa Senhora da Soledade, na rua
camente dependente do Ministério das e correu sério risco a fragata D. Fernan- das Trinas (atual Instituto Hidrográfico),
Comunicações, ainda que funcionalmen- do». As ligações entre o Cais do Sodré e um membro do pessoal, o sr. Leitão, foi
te dependente da PSP). Esses estafetas Cacilhas, asseguradas pela Parceria dos encarregado de providenciar o transpor-
tinham por missão relatar os prejuízos Vapores Lisbonenses, só seriam restabe- te de táxi de todas as funcionárias para
de que fossem tomando conhecimento lecidas seis dias depois, na sexta-feira. as respetivas residências. Para Lourdes,
e prestar assistência às entidades locais. Em 2016, ao completar um século de então com 24 anos – completaria 25 em
vida, Lourdes Santos Machado recordou 5 de outubro – e ainda solteira, o sábado
13 milhões de euros esse dia 15 de fevereiro de 1941, ou seja, de de trabalho terminou antes de começar.
Logo a 20 de fevereiro, foi aprovada 75 anos antes. O testemunho foi recolhido No porto de Sesimbra afundaram-se
pelo decreto-lei nº 31147 do Ministério 300 embarcações e os portos do Algarve
das Obras Públicas e Comunicações a sofreram igualmente danos avultados.
inscrição de uma verba de 20 mil con- Um galeão espanhol afundou-se ao largo
tos (mais de 13 milhões e 600 mil euros da costa algarvia provocando a morte de
em valor atual) no orçamento do Estado cerca de 40 tripulantes. Foram centenas
para acorrer a «despesas provenientes Mais de 13 milhões de milhares as árvores arrancadas pelo
da reparação de estragos causados pelo
ciclone de fevereiro de 1941, incluindo de euros, em valores vento. Sem conta os edifícios públicos e
particulares que sofreram estragos.
a intensificação de obras públicas para atuais, foram inscritos Notícias sobre vítimas mortais vão
no orçamento do Estado
atenuação de crises de trabalho». aparecendo nos jornais: 28 na região de
À medida que as horas e os dias passam Alhandra, onde no entanto foi possível
sobre o ciclone, vão-se tornando mais
nítidas e completas as dimensões da ca-
para as despesas com resgatar cem pessoas retidas no mouchão
da Quinta Ponta da Erva; 16 marítimos
lamidade. Segundo o Diário de Lisboa, a a reparação dos estragos mortos e 19 desaparecidos no Tejo, em
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JORNAL O SÉCULO/ANTT
VISÃO H I S T Ó R I A 39
GRANDES OBRAS // INFRAESTRUTURAS
Do palácio ao pavilhão,
da disciplina à liberdade
A conceção dos edifícios destinados ao ensino secundário foi sofrendo
uma evolução ao longo do período do Estado Novo
por Gonçalo Canto Moniz*
O
Ensino Secundário no Estado acompanham os melhores modelos da Na organização da escola destaca-se
Novo é objeto de transformações arquitetura escolar moderna. Contu- também o ginásio, que ocupa o eixo cen-
significativas, que são reflexo do do, os grandes envidraçados do liceu tral, evidenciando o culto do corpo em
próprio reposicionamento do de Beja são alvo de crítica pelos mais paralelo com a mente. O edifício liceal
governo autoritário desde a sua tradicionalistas, que estabelecem uma deste período apresenta sempre uma fa-
constituição, em 1933, até ao seu comparação com a arquitetura soviética, chada principal clássica marcada pelo
fim, em 1974. Desde a criação do Minis- do regime estalinista. corpo central da entrada, que é remata-
tério da Educação Nacional, em 1936, A criação do Estado Novo, em 1933, do por um frontão. A imagem dos liceus
até à Reforma de Veiga Simão, em 1971, constitui também um momento de afir- aproxima-se da dos conventos e colégios
o Estado Novo passou de um sistema mação ideológica em torno do paradigma dos séculos XVI a XVIII, transmitindo os
nacionalista e elitista para processo de nacionalista, neste caso a substituição da valores nacionalistas que a propaganda
democratização e de educação de massas. instrução republicana do cidadão pela do Estado tanto ambicionava. Esta mo-
Estas mudanças políticas tiveram conse- educação do povo de caráter fascista. Em numentalidade era também afirmada na
quências óbvias nas práticas pedagógicas, 1936 toma posse o ministro da Educação relação do liceu com a estrutura urbana,
na formação do cidadão, mas também Nacional, António Carneiro Pacheco, pro- devido à nova centralidade proposta pelos
na arquitetura escolar e na cidade que mulgando logo uma Reforma do Ensino planos de urbanização que o ministro das
a enquadra. Secundário (14 de outubro de 1936) em Obras Públicas, Duarte Pacheco, promove
O Estado Novo herda um processo de que privilegia a educação moral ao serviço junto dos municípios para estruturar o
planeamento dos edifícios escolares ini- da família e do Estado, em detrimento crescimento da cidade moderna, nomea-
ciado com a criação pelo então ministro da instrução, dotando os portugueses de damente nas novas áreas habitacionais.
da Instrução Pública, engenheiro Duarte «uma cultura geral útil para a vida. Nas capitais de distrito, como Faro,
Pacheco, da Junta Administrativa para o Santarém, Viseu e Viana do Castelo, o
Ensino Secundário, em 1928, conhecida Estética conventual bairro do liceu constitui um primeiro
por «Junta dos Quarenta Mil», valor Entretanto, a «Junta dos Quarenta Mil»
que correspondia ao orçamento dispo- é transformada, em 1934, em Junta das
nível. Com o objetivo de qualificar os Construções para o Ensino Técnico e Se-
liceus instalados em antigos conventos
ou de construir novos edifícios, a Jun-
cundário (JCETS), um organismo mais
centralizado e com diretivas técnicas e
Na organização
ta faz um levantamento exaustivo do políticas que traça um novo plano para a da escola destaca-se
parque escolar e lança, em 1930, um
conjunto de concursos públicos para
construção de liceus, o Plano de 1938. Os
dez edifícios construídos são estruturas o ginásio, no eixo
novos edifícios, com um programa bem
definido, onde estabelece a hierarquia
com um programa muito hierarquizado,
que organiza as salas de aula em torno de
central, evidenciando
dos espaços e as condições técnicas para amplos pátios de recreio, que eram não o culto do corpo
a construção. Os concursos permitem
encontrar soluções inovadoras para os
só espaços para as atividades informais,
como também espaços de disciplina para
em paralelo
liceus de Coimbra, Beja e Lamego que a Mocidade Portuguesa. com o da mente
40 V I S Ã O H I S T Ó R I A
MÁRIO NOVAIS/FCG-BA
Liceu de Beja Solução inovadora, à semelhança dos de Coimbra e Lamego, acompanhando os modelos da arquitetura moderna.
Projeto de Cristino da Silva
sinal da cidade moderna que emerge no Agro-Industriais, de Regentes Agrícolas, provoca uma revolução antecipada nas
contexto do Estado Novo. Nas grandes e de Artes Decorativas. Esta diversidade escolas portuguesas. Os liceus instalam-
cidades de Lisboa e do Porto, os liceus leva a JCETS a desenvolver um conjunto -se nos novos bairros periféricos, como
construídos neste período vêm consolidar de projetos-tipo, baseado em sistemas de os Olivais em Lisboa, através de conjun-
o sistema de zonas escolares iniciado no racionalização da construção, com deno- tos de blocos pavilhonares com espaços
início do século XX com a construção dos minadores comuns, como os blocos de mais flexíveis que permitem uma maior
grandes liceus do Porto, pelo arquiteto sala de aula e o ginásio, e com blocos es- liberdade de apropriação dos professo-
José Marques da Silva, e de Lisboa, por pecíficos, como as oficinas. Abandona-se res e alunos tanto na sala de aula como
Ventura Terra. assim a imagem clássica e monumental nos amplos recreios. A sala polivalente,
e regressa-se a uma estética mecanicista, aberta a múltiplas atividades formais e
Aproximação à fábrica próxima de um complexo industrial. informais, é o espaço que melhor repre-
Com a inauguração deste conjunto de A cidade portuguesa e a população senta uma escola mais comunitária e
espaços educativos no final dos anos 40 estudantil crescem exponencialmente, social. Os pavilhões-tipo construídos com
e com o fim da II Guerra Mundial, o tornando evidente a necessidade de en- sistemas prefabricados repetem-se pelas
Estado Novo inverte a sua política edu- contrar outros modelos pedagógicos e periferias das cidades, levando a escola
cativa e aposta numa forte articulação outros espaços educativos. É neste con- pública a todo o território português.
com o desenvolvimento industrial im- texto que o novo ministro da Educação, Em 1971, a reforma de Veiga Simão fixa
pulsionado pelo I Plano de Fomento, Leite Pinto, propõe a adesão de Portugal uma educação mais democrática fundada
através das escolas técnicas e industriais. ao Plano Regional do Mediterrâneo, onde na arquitetura escolar e nos métodos
A reforma do Ensino Técnico e Profissio- a OCDE promove, com o apoio do Reino pedagógicos construídos na década de
nal de 1947 obriga o Estado a construir Unido, reformas educativas e projetos 1960. Estava assim anunciado o fim do
equipamentos que permitam instalar os de arquitetura escolar mais focados no Estado Novo.
programas relativos aos diversos tipos aluno e no envolvimento das comuni-
de ensino: Escolas Técnicas Elementa- dades. O Plano de 1958 e os seus des- * Gonçalo Canto Moniz é docente
do Departamento de Arquitetura
res, Industriais, Comerciais, Industriais dobramentos seguintes, até 1974, são da Universidade de Coimbra e investigador
e Comerciais, Práticas de Agricultura, o reflexo desta atitude progressista que do Centro de Estudos Sociais
VISÃO H I S T Ó R I A 41
GRANDES OBRAS // INFRAESTRUTURAS
E
m Portugal, a rede de escolas pri- da Educação Nacional e executado pelo
márias para o ensino público foi Ministério das Obras Públicas e Comu-
maioritariamente construída du- nicações (MOPC). Metodologicamente, o
rante o Estado Novo. No contexto plano identificou problemas, traçou obje-
da reforma da Educação Nacional tivos e propôs soluções claras. No campo
e da política nacionalista, o Plano dos problemas, além do elevado índice de
dos Centenários, criado em 1941, foi res- analfabetismo, também a falta de condi-
ponsável pela construção de quase 3 mil ções físicas, higiénicas e pedagógicas das
escolas primárias distribuídas por todo escolas primárias existentes não permi-
o País, até 1960. Este plano deu conti- tiam o acesso democrático ao ensino em
nuidade aos dois planos anteriores, o das Portugal. Como solução, o Plano propôs
escolas Conde Ferreira, instituído em construir uma Escola Primária localiza-
1855, e o das escolas Adães Bermudes, da numa zona de influência de modo a
iniciado em 1898, tendo como objetivo que cada criança conseguisse aceder au-
instruir a população, maioritariamente tonomamente, num raio inferior a três
analfabeta, e fomentar o desenvolvimento quilómetros. O plano original proponha
MÁRIO NOVAIS/FCG-BA
económico e social. Além disso, repensou construir 7180 edifícios e 12 500 salas de
a forma da escola primária em função de aula. Para tal, a construção de escolas teria
um programa pedagógico e político. No de ser rápida e económica.
campo pedagógico desenvolveu soluções Por sua vez, para se conseguir construir
orientadas para a educação cívica e moral muitas escolas num curto período de tem-
das crianças. No campo político houve um po, foram desenvolvidos projetos-tipo de num princípio de produção em série. Es-
sentido imagético onde a escola se tornaria arquitetura atentos tanto ao custo, como tes projetos foram realizados pela Dire-
um símbolo nacional com referências à ao programa e orientações políticas do ção-Geral dos Edifícios e Monumentos
pátria e com um forte sentido de renovação Estado na altura. A realização de proje- Nacional (DGEMN) que, em 1943, face
mental da sociedade portuguesa. Neste tos-tipo tinha a mais-valia da reprodução ao aumento de trabalho cria a Delegação
sentido, o Plano dos Centenários foi uma do mesmo edifício por diferentes zonas, para as Obras de Construção de Escolas
importante obra do Estado Novo pelo seu Primárias (DOCEP).
desempenho reformista na construção de
infraestruturas escolares que são, ainda Edifícios regionais
hoje, um dos pilares para a reconstrução Apesar da necessidade internacional da
do espaço social da cidade contemporânea. Foram concebidos estandardização e produção em massa da
O nome «Plano do Centenários» sur-
giu no seguimento das comemorações do edifícios-tipo que sociedade moderna industrial, aos olhos
do regime do Estado Novo o edifício e sua
duplo Centenário da Fundação e da Res- integrassem o mais arquitetura deveriam celebrar a nação e
possível as diferentes
tauração de Portugal, realizadas em 1940. aquilo que nela havia de mais caracte-
A celebração da nação estava, deste modo, rístico e tradicional. Em consequência,
representada no plano de construção de
uma rede nacional de escolas primárias
paisagens regionais os modelos de arquitetura internacionais
não foram seguidos numa primeira fase.
em larga escala, idealizado pelo Ministério envolventes Foram antes desenvolvidos edifícios-tipo
42 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Uma escola
da região Norte
Este modelo regional
é do arquiteto
Fernandes de Sá
VISÃO H I S T Ó R I A 43
GRANDES OBRAS // INFRAESTRUTURAS
H
As escadarias foram sugeridas
pelo próprio Duarte Pacheco,
avia em Coimbra, no topo da Alta,
para que o eixo da Rua Larga
se estendesse pela encosta. duas dezenas de quarteirões onde
Na foto, uma maqueta do conjunto se misturavam as funções univer-
sitárias, residenciais e comerciais.
No início dos anos de 1940, esse
bairro secular começou a ser arra-
sado e substituído por vastos arruamen-
tos e edifícios grandiosos destinados às
faculdades e ao hospital. Assim começou
a revolução urbanística e arquitectónica
mais significativa do Estado Novo.
Confluíram, assim, o desprezo atávico
pelos centros históricos, que vinha do
século XIX, e uma ansiedade de progresso
que defendia a renovação completa das
cidades. A Câmara Municipal e a opi-
nião pública lutavam há décadas contra
a fealdade e a insalubridade dos velhos
quarteirões. O exercício autoritário do
poder permitiu a demolição de cerca de
200 prédios, quatro colégios, um obser-
vatório astronómico, vestígios de duas
torres de menagem e da muralha do cas-
telo, uma igreja de raiz visigótica e o arco
de um aqueduto quinhentista. O Estado
Novo usou os princípios higienistas para
submeter o património à arbitrariedade
e destruir monumentos de indiscutível
importância histórica e artística, alguns
dos quais classificados.
O valor simbólico concedido à localiza-
ção da universidade impôs a ideia de re-
modelação urbana, em vez da construção
de um campus na periferia. Presos àquele
lugar exíguo, à necessidade de ampliar
os espaços escolares e de lhes conferir
grandiosidade arquitectónica, os políticos
e os arquitetos encaminharam-se para so-
luções radicais: demolições sistemáticas,
destruição de património, ampliação da
volumetria dos edifícios, redução drástica
das funções urbanas e desalojamentos
maciços. O apreço pelo pitoresco citadi-
no, manifestado no elogio da ruralidade,
da beleza e da tranquilidade, foi menos
poderoso do que a ideologia higienista e
o anseio monumental do regime.
Os 202 prédios demolidos apresenta-
vam, como se referiu, finalidades diver-
sas. O estudo dos processos de expro-
VISÃO H I S T Ó R I A 45
GRANDES OBRAS //
Cottinelli Telmo
Como ele
há poucos
MÁRIO NOVAIS/FCG-BA
«Chapéus há muitos, seu palerma!» Esta
curta deixa do filme A Canção de Lisboa,
de 1933, permanece como um refrão da
NATCE
46 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Antes e depois A Alta
de Coimbra tal como era
até 1940 e a maqueta
de como ficaria após
a sua «reinvenção»
Cidade Universitária
segunda comissão. Foi ele, por fim, que
recusou as meias-tintas de uma remode- * Nuno Rosmaninho é autor de O Princípio de
lação e impôs um plano de grande impac-
to, mais ambicioso do que a universidade
como uma promessa uma Revolução Urbanística no Estado Novo: os
primeiros programas da Cidade Universitária de
ousara pedir e o próprio Oliveira Salazar de grandeza Coimbra 1934-1940 e de Coimbra e o Imaginário:
a cidade entre o Romantismo e o Estado Novo
VISÃO H I S T Ó R I A 47
GRANDES OBRAS // INFRAESTRUTURAS
Mão-de-obra barata
e contas equilibradas
Lançado para dar uma nova face ao regime,
o programa de obras públicas encontrou
suporte orçamental nas finanças saneadas,
na receita dos impostos e na força
de trabalho dos desempregados
por Clara Teixeira
‘N
ão se dão esmolas, procura Comunicações e homem da confiança de
dar-se trabalho.» A frase, Oliveira Salazar. Pacheco planeava e cons-
JORNAL O SÉCULO/ANTT
impressa em letras gordas truía; Salazar assegurava o dinheiro para
num cartaz do Comissariado pagar as obras, através de uma apertada
do Desemprego, viria a ser gestão orçamental apoiada em políticas
muitas vezes repetida pelos de fomento da economia e de combate
responsáveis do regime ao longo dos ao desemprego.
anos 30 do século XX. A absorção dos Nos 15 anos do programa (um progra-
inativos que, segundo os dados oficiais ma e não um mero plano, como notam entre 1931 e 1934, mas regressou aos
representavam 0,6% da população, foi Fernando Rosas e J.M. Brandão de Bri- 11% nos anos seguintes. O investimento
uma das prioridades – mas não a única to no Dicionário de História do Esta- em obras cresceu de 15% para 17% da
– do Programa de Obras Públicas do do Novo, Círculo de Leitores), o Estado despesa total, mas, até 1939, as receitas
Estado Novo, um vasto plano de inves- gastou, direta e indiretamente, mais de e despesas do Estado praticamente não
timentos posto em marcha, entre 1932 8 milhões de contos em infraestruturas aumentaram. Até perto do final da dé-
e 1947, para atestar a capacidade de rea- (4 mil milhões de euros, a valores atuais). cada, as contas públicas continuaram a
lização do Governo. apresentar saldos positivos.
No início da década de 1930 estavam Grande aumento de impostos Nas vésperas da II Guerra Mundial, a
reunidas as condições para o lançamen- No início do ciclo, as disponibilidades fi- dívida tinha-se reduzido para 7 milhões
to de um conjunto de infraestruturas, nanceiras atingiam uns confortáveis 6,5 de contos (um terço do PIB anual) e os
de inspiração modernista, destinadas a milhões de contos (equivalente a 3,3 mil encargos para 300 mil contos. Depois
expressar a ideologia do regime. Havia milhões de euros, levando em conta a in- de uma década de recuo, Salazar ganhou
finalmente estabilidade política, dinheiro flação). Uma parte – 700 mil contos (354 margem para contrair novos emprésti-
fresco das colónias e das remessas dos milhões de euros) – resultava dos saldos mos, destinados a financiar o programa
emigrantes e, no seguimento de uma nova orçamentais acumulados desde 1928. de investimentos públicos.
reforma fiscal e de uma reestruturação A maior fatia, de 450 mil contos anuais, Claro que o «milagre» do equilíbrio
da dívida, as finanças públicas apresen- sairia, porém, das receitas do Estado, com a financeiro tinha outra explicação: um
tavam-se equilibradas. seguinte finalidade: obras (250 mil contos enorme aumento de impostos. Para sa-
Para projetar os novos equipamentos, por ano, perfazendo 3,75 milhões de contos near as contas públicas, Salazar, na altu-
o Estado Novo chamou arquitetos, enge- em 15 anos), encargos dos empréstimos ra ministro das Finanças, substituiu em
nheiros e técnicos, mas também muitos (100 mil contos anuais) e conservação das 1928 o Imposto Pessoal de Rendimento
desempregados, sobretudo dos campos, obras (100 mil contos anuais). pelo Imposto Complementar, criando as-
para trabalharem sob a direção de Duarte Com o arranque dos trabalhos, a sim um adicional de receita nos impostos
Pacheco, ministro das Obras Públicas e despesa pública subiu para 12% do PIB diretos. Nesse ano e no seguinte, lançou
48 V I S Ã O H I S T Ó R I A
MUSEU MUNICIPAL DE LOULÉ
Salazar, Carmona e Pacheco Um dos
objetivos foi a absorção do desemprego
o Imposto de Salvação Pública (sobre o sobre Sucessões e Doações (sobre trans- três décadas, até meados dos anos 1960.
rendimento dos funcionários públicos) missão gratuita de propriedades). Em Trabalho em vez de subsídio
e a Taxa de Salvação Nacional (sobre os simultâneo, mandou atualizar as matrizes Ao mesmo tempo que entravam em
derivados do petróleo e o açúcar), além prediais sobre as quais incidiam os novos Portugal as primeiras ideias keynesianas,
de um novo Imposto Sobre o Consumo. impostos, com o objetivo de aumentar a avançavam os planos para novas estradas,
Dividiu ainda a Contribuição de Registo receita fiscal. As linhas gerais desta re- pontes, viadutos, gares, caminhos-de-fer-
em dois novos impostos: a Sisa (sobre forma tributária, embora com alterações, ro, portos, aeroportos, telégrafos, tele-
transações de propriedades) e o Imposto mantiveram-se em vigor durante mais de fones, eletrificação, hidráulica agrícola,
saneamento, tribunais, escolas, hospitais,
prisões e bairros económicos.
O programa, enquadrado pela Lei da
Reconstrução Económica, de 1935, assen-
tava em três vetores principais: constru-
ção e melhoramento de infraestruturas
portuárias, rodoviárias e outras de caráter
escolar, hospitalar, etc. Os portos e as
Ao mesmo tempo estradas apresentavam o maior peso nas
VISÃO H I S T Ó R I A 49
GRANDES OBRAS // INFRAESTRUTURAS
50 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Barragem de
Castelo de Bode
As hidroelétricas
destinavam-se
prioritariamente
a produzir energia
COMPARTICIPAÇÕES DO para as indústrias
ESTADO EM OUTRAS OBRAS
769 803 contos
(388,9 milhões de euros)
ATRAVÉS DO FUNDO
DE DESEMPREGO
458 046 contos
(231,4 milhões de euros)
URBANIZAÇÃO
290 512 contos
(146,8 milhões de euros) EM CONTOS
Habitação 50 373
Abastecimento de água 93 121
Esgotos 31 048
Eletrificação 12 491
MÁRIO NOVAIS/FCL-BA
OBRAS DIVERSAS
167 534 contos
(84,6 milhões de euros) EM CONTOS
Assistência 33 953
Igrejas e seminários
Serviços públicos
28 611
22 950 Eletrificar
Casas do Povo
e Grémios de Lavoura 8 855 com novas barragens
Obras diversas 73 165 O plano de eletrificação nacional, passado a letra de lei em 1944 por Ferreira Dias,
então subsecretário de Estado do Comércio e Indústria, lançou as bases para a
ATRAVÉS DO FUNDO industrialização do pós-guerra. Com a normalização do comércio internacional,
DE MELHORAMENTOS RURAIS Portugal começava a investir na modernização da economia. No ano seguinte, seria
280 397 contos publicada a Lei de Fomento e Reorganização Industrial, apontando para um núcleo
(141,7 milhões de euros) EM CONTOS de cinco indústrias: metalurgia de ferro e cobre, produção de sulfato de amónia,
Estradas e caminhos 243 797 cianamida, cálcica e celulose. Mais tarde, seria a vez da fundição de chumbo,
Chafarizes e outros 13 120 fabrico de pneus e condutores elétricos.
Outras obras 23 480 A lei da eletrificação do País favorecia a construção de barragens para fornecer
eletricidade às indústrias, mais do que para irrigação ou abastecimento às
populações. A lei previa também a instalação de uma rede elétrica para armazenar
ATRAVÉS DE SUBSÍDIOS e distribuir a energia gerada pelas barragens.
PÚBLICOS A partir de 1945, foram criadas as empresas de capitais mistos que assegurariam
31 360 contos os aproveitamentos hidroelétricos do Cávado e do Zêzere, nas quais o Estado
(15,8 milhões de euros) EM CONTOS
detinha um terço do capital. As barragens de Castelo de Bode e da Venda Nova
Casas desmontáveis, seriam inauguradas em 1951. Com a sua entrada em funcionamento, a produção de
casas para famílias pobres energia praticamente duplicou em Portugal.
e abastecimento de água 31 360
dotação orçamental do seu gabinete. Uma e também dos trabalhadores liberais. As duplicou de 13 mil para 26 mil quilóme-
fórmula que Sandra Vaz Costa, autora empresas empregadoras dos dois ramos, tros, acompanhando o crescimento do
de O País a Régua e Esquadro, ed. IST, as empresas do Estado e os proprietá- tráfego automóvel e ocupando muita
comparou a uma «máquina orçamental rios rurais e urbanos contribuíam com mão-de-obra desocupada – e barata, já
blindada inédita». mais 1% do valor dos salários dos seus que parte dos salários era suportada pelo
funcionários. Fundo de Desemprego. Dessa forma, o
Fundo pagador de salários À época, não havia nada melhor para regime consagrava «o direito a um salá-
As receitas do Fundo vinham de uma absorver o desemprego do que a cons- rio» para os desempregados, ao mesmo
contribuição «quase insensível» de 2% trução de estradas, de redes de água tempo que recusava conceder-lhes um
lançada sobre os salários mensais dos e saneamento e a limpeza de valas e «subsídio gracioso», considerado então
trabalhadores da indústria e do comércio ribeiras. A expansão da rede rodoviária como uma «esmola do erário».
VISÃO H I S T Ó R I A 51
GRANDES OBRAS // LISBOA
LISBOA,
A CAPITAL
DO IMPÉRIO
Do
D om modernismo
odernismo d
tradicionalismo d
tradicionalismo
das
da
as B
Beaux-Arts
eaux-Arts ao
ao
Heimatstil e de
a Heimatstil de novo
novo
ààss cconceções
onceções do
do u rbanismo m
urbanismo oderno
moderno
e do
do espírito
espírito nas new towns,
nas new towns, a cidade
cidade
ccresceu
resceu nono século
século XX
XX dede forma
forma espetacular
espetacular
AML/JUDAH BENOLIEL
por A
po
por Ana
na
a Tostões
Tos
stõ
tões
ões
es
Praça do Areeiro,
início dos anos 50
Um projeto
do arquiteto Luís
Cristino da Silva
desenhado a partir
de 1938
VISÃO H I S T Ó R I A 53
GRANDES OBRAS // LISBOA
E
m Lisboa, há 70 anos, no dia 28 de
maio de 1948, a Exposição 15 anos
de Obras Públicas, o 1º Congres-
so Nacional de Arquitetura e o 2º
Congresso Nacional de Engenharia
eram inaugurados em simultâneo
no Instituto Superior Técnico (IST). No
átrio do Pavilhão Central, a prosa de Sa-
lazar plasmava-se em letras gigantes:
«São coisas muito grandes a passarem/
do sonho para a realidade da vida/ ante
CML/GEO
contar essa história sem nomear Duarte Duarte Pacheco, o encomendador escla-
Pacheco, falecido em 1943. E não existia recido, o empreendedor compulsivo, o
lugar mais simbólico do que o IST para transformador consequente, e Porfírio
o fazer, porque tinha sido justamente aí Pardal Monteiro, o arquiteto que fazia da entregar-lhe o projeto para o Instituto
que tudo começara 20 anos antes sob a eficácia excelência. Em comum, a paixão ou confiar este trabalho a um arquiteto
liderança dessa figura que «paira em todos transformadora e a pulsão construtiva ao estrangeiro, portanto escolha’. Perante
os setores da obra apresentada». serviço do desígnio do progresso. uma tal ação intimidativa e o ar decidido
Formado em Engenharia Electrotéc- Como recordou o arquiteto: «A primeira de Pacheco, que só agora conhecia e que o
nica em 1923, docente no ano seguin- conversa com Duarte Pacheco, no velho futuro veio a confirmar quanto era duro
te, diretor do IST em 1927, ministro da Instituto, ao Conde Barão, foi dramáti- e firme, aceitei a incumbência.» (Porfírio
Instrução Pública em 1928, ministro da ca e constituiu o primeiro embate sério Pardal Monteiro, notas autobiográficas,
Instrução em 1928 e Ministro das Obras com este homem voluntarioso e decidi- documento manuscrito, 1956-1957).
Públicas e Comunicações entre 1932 e do. Perante a grandeza da obra a realizar A dimensão, imagem e localização do
1936 e novamente entre 1938 e 1943, foi pedi-lhe que encarasse a possibilidade de IST concorrem para o impacto público
o trabalhador incansável, o estratega vo- fazer um concurso entre arquitetos, no da obra. Representando o paradigma da
luntarioso, o político sagaz, o engenheiro qual eu decerto tomaria parte, tanto mais monumentalidade das obras públicas, foi
empenhado na transformação do seu país, que fazendo eu parte do corpo docente do a primeira grande construção pública do
o ministro desassombrado em estado de Instituto a encomenda pura e simples que regime e o primeiro campus universitário
vertigem apaixonada pela modernização. me era feita podia parecer um ato de favo- erguido em Lisboa. Levando a arquite-
Quando se lançou na empresa das novas ritismo (...). Pacheco mal me deu tempo tura à escala da cidade, criou a acrópole
instalações do IST, no Arco do Cego, abre de falar, porque imediatamente me inter- moderna de Lisboa. Situada ao cimo da
um capítulo novo na história do IST, de rompeu dizendo: ‘Tenho a seu respeito monumental Alameda e fechando o de-
Lisboa e do País. Afirmando a ideia de boas informações, dadas por pessoas que senho das Avenidas Novas, coordenou o
ciência aplicada ao serviço do bem-estar me merecem a maior confiança. Você é o desenvolvimento norte da capital com
público, apostada na modernização de um arquiteto que eu e o Conselho escolhemos. a implantação de novos equipamentos
país, simbolizavam o progresso, a afirma- Portanto só tenho um caminho a seguir: modernos: o Instituto Nacional de Esta-
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Étienne de Groër e Alfred Agache
AML/ANTÓNIO PASSAPORTE
Os estrangeiros
Alguns arquitetos estrangeiros
trabalharam em Portugal nas décadas
de 1930 e 1940, a convite de Duarte
Pacheco. Destes, o que deixou
uma marca mais profunda foi Étienne
de Groër (1882-1952).
tística (Pardal Monteiro, 1932) ou a Casa (1896-1976). Lisboa foi eleita, na sua qua- Nascido na Polónia quando esta
da Moeda (Jorge Segurado, 1933-1941). lidade de capital do império, como modelo pertencia ao Império Russo, De Groër
das operações marcando o novo sentido fez os seus estudos de Arquitetura em
Protagonistas fundamentais político e urbano. São Petersburgo mas radicou-se em
Paris após a revolução bolchevique.
Uma estreita e forte relação começa a ser Ao longo dos anos 30, Duarte Pacheco Aliciado para trabalhar na «nova»
estabelecida entre o poder e a arquitetu- define uma ampla estratégia, reforçada Lisboa que se rasgava na década
ra capaz de expressar simbolicamente o a partir de 1932 aquando da criação do de 30, mudou-se uma vez mais,
Estado que importava afirmar após a «re- Ministério das Obras Públicas e Comu- agora para a capital portuguesa,
volução nacional» de 1926. Na verdade, o nicações e do seu empossamento como onde trabalhou com Faria da Costa
em projetos como os planos de
conjunto das grandes obras públicas então ministro. Esta tinha como horizonte a urbanização da Costa do Sol (hoje
desencadeadas teve certamente como ob- transformação de Lisboa como capital Costa do Estoril), Almada, Sacavém e
jetivo, em paralelo com a ação no quadro do Império capaz de celebrar as come- Vila Franca de Xira.
dos monumentos nacionais, a construção morações centenárias com a Exposição Como urbanista conselheiro técnico
de uma história e de uma memória com a erguer em Belém em 1940. da Câmara Municipal de Lisboa,
De Groër lançou as linhas do Plano
consciência de futuro, articuladas como Nesse quadro, Duarte Pacheco chama a
Diretor de Urbanização da cidade,
meio de afirmação do seu próprio tempo. Lisboa em 1933 o «urbanista» Donat-Al- trabalho que se estendeu ao longo
E o tempo era o do Estado Novo. fred Agache , encarregando-o do estudo e uma década, entre 1938 e 1948.
É nesta perspetiva que se pode entender de urbanização da Costa do Sol. Agache Mereceram também a sua atenção
o espaço aberto à inovação criado pelo equaciona a questão de forma integrada: outras cidades portuguesas, como
Coimbra, Braga, Évora, Abrantes, Beja,
poder, que ficará indelevelmente ligado localiza o Centro Desportivo no Jamor, es-
Sintra e, até, a capital da então colónia
à mediática figura política do engenheiro tuda a articulação dessa expansão poente de Angola, Luanda.
Duarte Pacheco. Integra profundamente a suportada pela Marginal e pela Autoes- Um dos conceitos que trouxe para
noção política de ação para o bem público, trada para Cascais com a construção do Portugal foi o de cidade-jardim,
para uma nova disciplina arquitetónica e viaduto sobre o Vale de Alcântara (mais lançado em finais do século XIX pelo
inglês Ebenezer Howard e então muito
urbanística com um duplo objetivo: do-
em voga pela Europa.
tar o País tão carenciado de novos equi- No nosso país, Étienne de Groër
pamentos públicos e, simultaneamente,
Estabelece-se uma
trabalhou episodicamente com o
afirmar, do modo mais mediático e pe- francês Donat-Alfred Agache, durante
tarde chamado Viaduto Duarte Pache- do Restelo era também urbanizada se- Rebelo de Andrade (Carlos, 1887-1971 e
co) considerando dois centros vitais na gundo o plano de Faria da Costa. A sul, Guilherme, 1891-1969) desenharam em
cidade: a rotunda Marquês de Pombal e a marginal iria receber a referida Expo- estilo neojoanino.
a Praça do Comércio. sição dos Centenários, em Belém, que Na escala da arquitetura a partir de
em breve seria ligada à Costa do Sol. O finais da década de 30, um vocabulário
O Plano Diretor porto de Lisboa é ampliado através de historicista e regionalista aposta numa
O Plano Diretor de 1938-48 constituiu o aterros, para os quais se projetam diver- narrativa de raiz clássica próxima dos mo-
último plano pensado como projeto para sos equipamentos como as magníficas delos nazis e fascistas da época. A tribuna
a cidade. Encarando a globalidade do seu gares marítimas, de Pardal Monteiro. do Estádio Nacional erguida por Miguel
território, estabeleceu as vias estruturan- A norte, o Campo Grande seria tratado Jacobetty Rosa (1901-1970) constitui sím-
tes de desenvolvimento e os novos limites por Keil do Amaral bem como o Parque bolo eloquente desta problemática. Na
de Lisboa, e criaram-se as condições para Eduardo VII (1942), objeto de um plano pequena escala explora-se a imagem de
uma estratégia capaz de articular a cidade geral e de equipamentos como a Estufa um regionalismo ruralista potenciada nos
como projeto: Duarte Pacheco exigiu a Fria (1933) ou o malogrado projeto do bairros sociais de promoção oficial (Alvito,
aprovação do seu projeto-lei de expro- Palácio da Cidade, nunca realizado e que Encarnação, Alto da Ajuda, Alto da Serafi-
priação (que esteve no centro da discórdia deveria coroar a diligência cívica deste na, Madre de Deus, etc.) tradicionalmente
que havia levado Salazar a demiti-lo de arquiteto na cidade. constituídos por casas unifamiliares com
ministro das Obras Públicas em janeiro logradouro e suportadas por uma rede viá-
de 1936), transformando em solo urbano Areeiro, o paradigma ria de estreitos perfis. Ou nas moradias de
as antigas extensões rurais, expropriadas Também o lado oriental da cidade, ten- uma alta burguesia construídas com uma
«por interesse público» (cerca de um ter- dencialmente mais deprimido, começava amálgama de motivos inspirados quer
ço do concelho). Através de um desenho a ser valorizado. A localização do aero- nos modelos eruditos quer no léxico de
coerente que refletia a vontade de fazer porto parecia dignificar essa opção ao beirais e alpendres divulgado pela «Casa
cidade, foram construídos equipamentos mesmo tempo que funcionava como álibi Portuguesa».
de referência urbana, concebidos com programático na reestruturação viária Mas foi o vasto espetáculo da Exposi-
retórica monumentalidade, e grandes da saída norte bem como na justificação ção do Mundo Português de 1940 que
conjuntos residenciais entendidos como social da construção de alojamento de concentrou a pulsão celebrativa do regi-
foco de dinâmica urbana (Alvito, Encar- carácter económico: a sua posição de fe- me e das suas realizações, constituindo
nação, Alto da Ajuda, Alto da Serafina, cho do limite urbano da cidade justificava o laboratório da viragem protagonizada
Madre de Deus, etc.). a infraestruturação viária, funcionando pelos mesmos autores, onde vestígios
A partir de então, a cidade pacata que se como polo desencadeador de processo modernistas andam a par da afirmação
confinava aos limites das Avenidas Novas urbano. Daí o sentido transformador da da nova fase nacionalista. Momento de-
e da Praça do Chile, com uma mancha ur- estrada de Sacavém-Avenida Almirante cisivo na recuperação dos revivalismos
bana limitada à área interior da via férrea Reis, pontuada junto ao IST através da de sentido nacionalista e na inflexão para
de cintura, começava a ser pensada em Alameda triunfal, pela Praça do Areeiro, uma expressão de monumentalidade
termos globais como capital do século XX. praça monumental modelar do regime, academizante, marca o fim do primeiro
Para desenvolver estas ações o muni- cujo desenho Cristino da Silva inicia tam- modernismo na arquitetura portuguesa.
cípio acolhe técnicos dos quais caberá bém em 1938, terminando na rotunda Por meados da década de 40 a situação
destacar: os arquitetos Francisco Keil do Aeroporto, ponto de articulação das de pós-guerra tende a conformar a rutura
do Amaral (1910-1975) e Inácio Peres saídas e vias de cintura. moderna e o tempo da contestação ao
Fernandes (1911-1989); os urbanistas A Praça do Areeiro define o paradigma regime no contexto do Congresso heroico
Guilherme Faria da Costa (1906-1971) e da arquitetura de regime, no seu desenho dos arquitetos, o I Congresso Nacional
Étienne de Groër (1882-1952), consultor classizante baseado num padrão tradicio- de Arquitetura, realizado como sabemos
da Câmara e autor do Plano. nalista de estilização da arquitetura erudi- em 1948 ao mesmo tempo que o governo
A zona ocidental da cidade era rema- ta. À sua imagem realizava-se o quarteirão faz o balanço e a propaganda das Obras
tada pelo Parque de Monsanto, cerca de de prestígio (Avenida Oriental ao Parque Públicas. Pela primeira vez, os arquite-
mil hectares expropriados para regime e António Augusto de Aguiar) ou a mo- tos portugueses reunidos reivindicam a
florestal, projetado por Keil do Amaral, numental Alameda D. Afonso Henriques, arquitetura moderna e a solução do pro-
e atravessada pela nova autoestrada que retoricamente coroada, em oposição ao blema da habitação, com a contribuição
ligava ao Estádio Nacional. A encosta IST, pela Fonte Luminosa que os irmãos dos arquitetos modernos na construção
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HORÁCIO NOVAIS/FCG-BA
Avenida de Roma O eixo central da moderna Lisboa foi rasgado numa paisagem ainda rural
FOTOS: HORÁCIO NOVAIS/FCG-BA
Fonte Luminosa Estilo neojoanino no topo leste da Alameda Alvalade Um bairro construído no prolongamento do tecido urbano
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GRANDES OBRAS // LISBOA
da viragem, juntando
ções acompanhavam o contorno das ruas pendicularmente às vias ao longo de uma
e praças e a hierarquia viária articulava monumental plataforma. A exploração
a ligação entre as células. Faria da Costa
abandona o traçado da grande composi-
elementos modernistas das vistas de rio a sul e a ligação das duas
diferentes cotas através de escadas desta-
ção e o desenho Beaux-Arts que caracte- e nacionalistas cadas nos painéis de azulejos dos muros
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Exposição
dimensões (186 hectares para 40 mil ha- da cidade-jardim e das new towns com os
do Mundo
Português bitantes). Ao contrário do que aconteceu valores de uma cultura meridional pou-
Uma arquitetura com Alvalade, os Olivais foram concebidos co habituada a valorizar o espaço verde
do efémero que sem concessões ao urbanismo tradicional público. A Carta de Atenas, teórica e abs-
seria replicada e semintenção de continuidade com o trata, era contornada pela experiência
de forma
tecido urbano existente. Formam como da realidade vivida. E é justamente esse
duradoura
noutros pontos que uma cidade satélite, uma new town sentido do interesse público, capaz de ca-
da cidade construída no limite da própria cidade. tivar área livre para arborizar e ajardinar,
Nos Olivais Norte o terreno foi re- que é ainda hoje uma das mais-valias do
gularizado, criando-se, à boa maneira bairro. A criação de uma «reserva» natural
de suporte recriam, modernamente, o moderna, uma plataforma de nível. A situada bem no coração do bairro, o ce-
tema da caprichosa topografia lisboeta. rua tradicional desapareceu e em seu lebrado «Vale do Silêncio», constitui um
A sugestão de uma escala «grandiosa» lugar surgiu uma rede de circulação que equipamento único: pela dimensão, pelo
e o rigor modulado dos grandes blocos já separava os «caminhos de pedestres» valor autêntico de «natureza». Parque e
colocados como objetos sobre a magnífica das «vias de circulação mecânica». As natureza tiveram um importante papel,
plataforma que domina altaneira a via habitações agrupavam-se em blocos de combinados com o desenho do plano e
de tráfego, testemunham uma época em variadas formas e dimensões. Não for- dos edifícios, cuidadosamente integrados
que se investia de um modo qualificado mavam volumes contínuos alinhados com na natureza envolvente.
no espaço urbano. os arruamentos, implantavam-se isola- Entretanto, os programas oficiais con-
damente de uma forma livre apenas se tinuavam o desenvolvimento dos cânones
Olivais, a ‘new-town’ subordinando às exigências da orientação monumentais. Uma expressiva monu-
No final da década de 50 a Câmara Muni- solar mais conveniente. Finalmente, os mentalidade seria igualmente procurada
cipal desencadeia o processo para a urba- espaços entre blocos, tratados como zonas no conjunto da Cidade Universitária de
nização de uma extensa área situada ainda ajardinadas, representavam no conjunto Lisboa, incluindo a Biblioteca Nacional,
no interior do novo perímetro de Lisboa e pela primeira vez entre nós, uma área concretizados já no final da década de
definido pelo Plano Diretor, prolongan- muito generosa: cerca de 62% da área 50 e inícios da de 60, ou o Laboratório
do, na sequência do Bairro de Alvalade, a total do plano. Nacional de Engenharia Civil iniciado
extensão da cidade para nordeste. O novo Os Olivais Sul anunciam já uma postura em 1949 e concluído em 1955. Obras de
Bairro dos Olivais, destinado a habitação crítica às propostas dogmáticas e mais Pardal Monteiro testemunham natural-
social, dividia-se em duas áreas que se ortodoxas do Movimento Moderno. A sua mente, com acentos de diferente tonali-
desenvolveram com um ligeiro desfasa- conceção deve menos à Carta de Atenas e dade, os trabalhos para as obras públicas,
mento cronológico: os Olivais Norte, com muito mais ao espírito das new towns in- os grandes equipamentos de um regime
uma área mais pequena (40 hectares para glesas. A sua importância reside no modo que ainda se desejava celebrar.
8500 habitantes), concluíram-se primei- como introduziu e valorizou o espaço livre
ro, tendo servido como uma espécie de verde como bem coletivo da cidade, con- * Ana Tostões é professora catedrática do IST,
laboratório para os Olivais Sul, de maiores jugando a contribuição anglo-saxónica e do Presidente Docomomo International
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GRANDES OBRAS // LISBOA
MÁRIO NOVAIS/FCG-BA
MÁRIO NOVAISFCG-BA
Pardal Monteiro
taria do pai, em Montelavar, no concelho
de Sintra. Justamente como outro grande
arquiteto e expoente máximo do Movi-
mento Moderno da Arquitetura, Mies
O arquiteto moderno
van der Rohe (1886-1969) cujo pai tinha
também uma empresa de cantaria, na
qual Mies trabalhou quando era jovem.
Formado em 1919 na Escola de Belas
Deixou uma marca de modernidade e de qualidade nos Artes de Lisboa, num tempo em que o
edifícios que desenhou e concretizou curso se demorava corretamente por lon-
gos oito anos (três de Desenho, seguidos
por Ana Assis Pacheco*
de cinco de Arquitetura
q Civil),
), Porfí-
rio desde
sde cedo entendera que
C
o mundo
ndo feito pelo homem
om modernos óculos de aro grosso construíram em Lisboa nas décadas de não era
ra só um conjunto
e escuro à Le Corbusier, Porfí- 30, 40 e 50 do século XX, foi membro da eias, desenhos ou
de ideias,
rio Pardal Monteiro (1897-1957) Architecture d’ Aujourd’Hui, presidente tos, mas também
projetos,
espreita de longe com o ar mais da Ordem dos Arquitetos e professor ca- de pesados
esados blocos de
confiante do mundo. E não é para tedrático no Instituto Superior Técnico. mármore
more talhados com
menos. Afinal, foi cinco vezes lau- Os primeiros conhecimentos da arte uadria certa, colu-
a esquadria
reado com o Prémio Valmor, realizou os de construir adquiriu-os durante a sua nas, capitéis
apitéis e frisos de-
maiores e mais modernos edifícios que se infância e juventude, na empresa de can- corativos,
ivos, peças que
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MÁRIO NOVAIS/FCG-BA
Amigo
Almada
Obras em Lisboa, entre os anos 30 e 50,
em que Almada Negreiros colaborou
Vitrais: Seminário dos Olivais.
Igreja Nossa Senhora de Fátima
e remodelação do Ministério
de Finanças
desde a Antiguidade Clássica se aplicavam Gare Marítima de Alcântara Duarte Pacheco, que pouco depois viria a
nas grandes construções arquitetónicas. Tal como o seu vizinho ser diretor do Instituto Superior Técnico,
da Rocha do Conde de Óbidos,
De Montelavar, Porfírio vira sair peças em este terminal das grandes não tarda em confiar-lhe o novo edifício
mármore para obras do arquiteto Ventura linhas de navegação seria para albergar a escola, obra de grandes
Terra (1866-1919), cliente do seu pai e que interiormente decorado com dimensões, comentando o arquiteto mais
o convidaria para estagiar no seu ateliê frescos de Almada Negreiros tarde que «se me tivesse dito que o Tejo
quando estudante finalista. deixara de correr para o oceano ou ou-
tro facto inesperado qualquer não devia
O Técnico ficar mais perplexo do que fiquei nesse
A carreira de Pardal Monteiro começa queno, brilham, modernos, os três qua- momento». A notável competência do
bem, pois na década de 1920 recebeu su- drados de mosaico dourado da fachada arquiteto era por essa altura também
ficientes encomendas, tanto de casas para principal da pequena e moderna casa que francamente visível na cidade do Porto,
particulares como de edifícios públicos. É tem o nº 207 da Avenida 5 de Outubro. pois na Avenida dos Aliados laboravam
nesta década que, em Lisboa, desenha a Mas teria sido em agosto de 1928 que semanalmente 130 operários dirigidos
Estação do Cais do Sodré numa estética o arquiteto conheceu Duarte Pacheco, por Amadeu Gaudêncio, para terminar
Art Déco, bastante moderna para a época durante a inauguração da nova estação a filial da Caixa Geral de Depósitos que
e pouco usada em Portugal, e cujo átrio ferroviária do Cais do Sodré, por si pro- projetara, e que se inauguraria em 1931.
ainda hoje encanta quem lá entra pela jetada para a Sociedade Estoril presidida A década de 30 começa, portanto, com
profusão de decoração geometrizada e por Fausto de Figueiredo, investidor que os alicerces do Técnico a serem feitos, num
festiva que preenche todo o espaço e até na ocasião elogiou publicamente o arqui- terreno grande e sobranceiro a um vale,
o teto. É também dentro destas linhas teto, pela sua «notável competência». onde mais tarde seria rasgada a Alameda
«Anos 20» que, na zona do Campo Pe- Igualmente bem impressionado, D. Afonso Henriques. Os nove edifícios
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GRANDES OBRAS // LISBOA
HORÁCIO NOVAIS/FCG-BA
armado, calculado pelo engenheiro José
Bélard da Fonseca (1889-1969). do seu tempo
Os edifícios do Técnico são modernos,
cumprindo já uma estética purista, com-
postos por paralelepípedos, com moderna
cobertura plana e despojados de orna-
mento. Hoje chamar-lhes-íamos minima- pre mantendo-se atualizado quanto aos Garnier, Auguste Perret, Viking Gorans-
listas. No edifício principal o tratamento avanços construtivos e estéticos da arqui- son e Alfred Agache.
arquitetónico foi diferente, com um átrio tetura. A sua cultura de base francófona, Viajado e informado, Pardal Monteiro
rico em mármores e alguma decoração comum na época, levou-o a integrar em acompanhou sucessivamente as corren-
no exterior. 1932 o grupo internacional que fundara tes arquitetónicas do seu tempo. As suas
a revista Architecture d’Aujourd’Hui, que obras são modernas porque exteriorizam
O ‘Diário de Notícias’ ainda hoje se publica. Único arquiteto o programa funcional e tiram partido
Pardal Monteiro, que iniciara as suas português que a integrou, foi nesse con- máximo do sistema construtivo, não
viagens ao estrangeiro em 1923, foi sem- texto que conheceu, entre outros, Tony facilitando a vida aos engenheiros...Por
desenhar sempre com base nas formas
claras de sólidos regulares, como o cubo
e o cilindro, e por usar com frequência
a cobertura em terraço, contribuiu para
uma mudança estética e funcional da
arquitetura portuguesa.
A década de 40 começa com Pardal
Monteiro a receber um merecido Prémio
Valmor, pela obra da sede do Diário de
Notícias, na Avenida da Liberdade. Edi-
fício modernamente assimétrico, ostenta
uma torre-farol do lado esquerdo, uma
montra gigante na parte de baixo e um
decorativo fresco de Almada Negreiros
no átrio. Tinha no topo um terraço, que
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FOTOS: HORÁCIO NOVAIS/FCG-BA
Cidade Universitária Concretizado já nos anos de 1950, o campus lisboeta radica em projetos de duas décadas antes
do edifício imprimia os jornais, que sem fazer as necessidades do intenso tráfe- que ainda hoje marca fortemente a frente
se notar saíam pela porta das traseiras. go marítimo, como o do ano de 1936, ribeirinha de Lisboa. Nelas pode ser ex-
O espanto da obra e a qualidade com em que Lisboa recebeu 827 navios, com tremamente moderno, desenhando co-
que se materializou levaram o municí- 95 116 passageiros, vindos de Inglaterra, berturas curvas, que excecionalmente fo-
pio a elogiá-la no correr do burocrático Alemanha, França, Noruega, Brasil, Itália, ram construídas em betão armado, e cujo
texto do Auto de Vistoria, sublinhado Dinamarca, Suécia e Espanha. Quando as cálculo foi feito pelo engenheiro Tomás
em 1940 que a construção fora «cuida- duas gares inauguraram – a da Doca de Eiró. No interior das gares escondem-se
dosamente realizada e acabada em todos Alcântara em 1943 e a da Rocha do Conde as mais imponentes e importantes obras
os seus pormenores com esperado zelo, de Óbidos em 1948 – foi com a chegada de Almada Negreiros, que para ali criou
pelo que, gostosamente julga de louvar de navios desta feita provenientes de Fi- enormes frescos destinados a ornamentar
os construtores». ladélfia, nos Estados Unidos. os salões principais, onde seriam recebi-
Nos projetos das gares, desenvolvidos dos, no primeiro andar, os passageiros
Gares marítimas entre 1934 e 1939, Pardal Monteiro es- chegados a Lisboa de navio. Integrados
Concluídas na década de 40, as gares colheu o Estilo Internacional pontuado entre pilastras de ricos mármores, os fres-
marítimas foram projetadas para satis- por uma estética de inspiração náutica cos contribuem para ornamentar os dois
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GRANDES OBRAS // LISBOA
A Cidade Universitária
Os primeiros estudos para os novos edifí-
cios universitários de Lisboa – a Reitoria,
a Faculdade de Letras e a Faculdade de
Direito – foram encomendados a Pardal
Monteiro em outubro de 1935. Mas o
seu desenvolvimento só mais tarde seria
retomado, coincidindo com o deflagrar
da II Guerra Mundial. Em 1941 Pardal
Monteiro é oficialmente informado de
que deveria alterar os projetos devido à
«presente conjuntura».
As alterações exigidas obrigaram não
apenas a reduzir os programas dos edi-
fícios, como a modificar o seu sistema
construtivo e, consequentemente, a sua
arquitetura. Concretamente, impôs-se a
Pardal Monteiro, por ordem de Duarte
Pacheco, ministro das Obras Públicas,
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Projetos
nos anos
30 e 40
1930 Stand automóvel da Ford Lusitana
(já não existe)
1932 Seminário dos Olivais
1932 INE- Instituto Nacional de Estatística
1934 Igreja de Nossa Senhora de Fátima
(Prémio Valmor)
1934 Gare Marítima de Alcântara
1934 Gare Marítima da Rocha do Conde
de Óbidos
1935 Edifícios universitários de Lisboa:
Reitoria, Faculdades de Letras
e de Direito (construção adiada para
a década de 50, sendo iniciados
apenas em 1953)
1936 Edifício do Diário de Notícias
(Prémio Valmor)
1945 Prédio, Av. Sidónio Pais
(Prémio Municipal de Arquitetura)
1949 LNEC-Laboratório Nacional
de Engenharia Civil
MÁRIO NOVAIS/FCG-BA
de Lisboa. Repare-se que dois edifícios ro ao «seu» Instituto Superior Técnico, do convívio com o resto da população
de habitação projetados por Pardal Mon- têm cobertura em telhado mas que nem núcleos importantes de pessoas que,
teiro na década de 40 para a Alameda sequer se vê, não sendo portanto uma descontentes, chegarão a julgar-se, até
D. Afonso Henriques (nºs 39 e 41), a tal escolha estética, mas económica. e por isso, espécie nova de leprosos ou
«alameda» que surgiria no vale frontei- indesejáveis». Como alternativa, sugeriu
As ‘novas mourarias’ que se demolissem prédios ou quartei-
A década de 40 termina com o 1º Con- rões degradados localizados no centro de
gresso Nacional de Arquitetos, orga- Lisboa, para ali se construírem também
Pardal Monteiro era nizado em 1948 em paralelo ao dos habitações económicas. Com esta sua
isolados do convívio
Contribuição para o estudo da habita- do Governo.
ção económica em Lisboa. Ali, defende
com o resto que, ao construírem-se novos bairros
económicos na periferia da cidade, se es-
Ana Assis Pacheco é arquiteta, investigadora
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GRANDES OBRAS // LISBOA
Keil do Amaral
A arquitetura
e a vida
Opositor ao regime do Estado Novo, pôde mesmo
assim imprimir a sua marca
à capital moderna surgida no século XX
por Ana Tostões Arranjo do Parque
Eduardo VII A alameda
F
central deveria ser
coroada pelo Palácio
rancisco Keil do Amaral (Lisboa, da Cidade, que nunca
1910-1975) oriundo de uma famí- passaria do papel
lia de artistas (bisneto de Giuseppe
Cinatti e neto de Alfredo Keil), ho-
mem da resistência antifascista, é
uma figura referencial para a clas- de uma grande cidade moderna, Duarte
se dos arquitetos. Resistente à aplica- Pacheco vai lançar as bases de uma po-
ção direta dos códigos das vanguardas lítica de fomento urbano transferindo
do Movimento Moderno, a referência para o município a orientação efetiva das
à arquitetura holandesa de Dudok está atividades urbanizadoras. «E essa foi, sem
patente na sua obra, que assenta no de- dúvida, a parte substancial e profunda da
senvolvimento de uma terceira via entre sua obra em prol de Lisboa», recordará
o local e o internacional, conjugando o Keil do Amaral reconhecendo os esforços
valor do lugar com uma austera economia do presidente da CML no controlo da
de meios criando espaços de qualificada especulação e na dinamização do cresci-
intimidade. Incentivador do Inquérito à mento urbano (Lisboa, Uma Cidade em
Arquitetura Regional Portuguesa (1955- Transformação).
-1960) os diversos livros de reflexão sobre Dois empreendimentos vão condicio-
a arquitetura e a cidade que escreveu (A nar o futuro: o Parque Florestal de Mon-
Arquitetura e a Vida, 1936; A Moderna santo (1938-48) e o Plano de Urbaniza-
Arquitetura Holandesa, 1943; O Proble- ção da Costa do Sol (1935), intervenções
ma da Habitação, 1945; Lisboa, Uma complementares que sublinham o vetor
Cidade em Transformação, 1969; Quero de expansão para ocidente.
Entender o Mundo, 1974) contribuem De uma família de No âmbito do controlo do solo, a enor-
para o enquadramento de uma atividade
generosa e intensa como profissional e artistas, optou por me extensão de terrenos que expropria,
protegendo-os da urbanização e da pres-
cidadão. A partir de 1938, Keil e os com-
panheiros de geração transformaram a
uma terceira via são dos especuladores, a venda de lotes
urbanizados pelo município conjugada
pacata e provinciana cidade de Lisboa. arquitetónica, austera com a definição das linhas mestras de
Empossado em circunstâncias excecio-
nais, com poderes invulgares e uma larga
e intimista, entre o local um plano geral onde deviam integrar-se
planos parcelares embaraçou os urbani-
visão dos problemas inerentes à expansão e o internacional zadores particulares transferindo toda
68 V I S Ã O H I S T Ó R I A
gestão desse mesmo plano. Sem grandes
definições, os instrumentos de trabalho
reduziam-se a desenhos de obra esque-
matizando plantações, definindo movi-
mentos de terra e esboçando o traçado
de caminhos. Baseado numa arborização
densa com pinheiros, eucaliptos e carva-
lhos formando zonas de mata com uma só
espécie, cortada apenas pelos caminhos
essenciais. A configuração acidentada da
serra proporcionando fabulosos pontos
de vista oferecia condições excecionais
para este programa. Mantém-se a topo-
grafia geral, traçam-se novas estradas
sobre os caminhos existentes, aprovei-
tam-se os antigos fortes ou os moinhos
que povoavam a serra e exploram-se in-
teligentemente as fabulosas vistas sobre
a cidade, o rio e arredores construindo
equipamentos inovadores, criando mira-
douros e zonas de estar ao ar livre.
Quanto ao trânsito, evitava-se que
os automóveis entrassem no bosque de
a autoridade e a definição das regras do ção do Parque Florestal da Cidade. Foram modo a permitir tranquilidade, dando
jogo para o município. expropriados, florestados e transforma- especial relevo aos caminhos de peões
É neste contexto que Keil do Amaral dos com equipamentos – «os centros de e de cavaleiros, propondo circuitos que
ingressa na câmara logo no mês seguinte interesse» – perto de mil hectares de serra passassem pelo meio das árvores mais
ao do início do mandato do presidente, árida. A proposta nunca foi plenamente belas, por acidentes interessantes, por
como arquiteto ao lado do seu colega Fa- entendida na sua dimensão inovadora, diversos pontos de vista panorâmicos.
ria da Costa. Encetarão juntos um novo embora o regime florestal que lhe foi A grande preocupação de Keil con-
tempo de vida municipal desenvolvendo aplicado a mantenha protegida, per- centrava-se na garantia de transpor-
projetos fundamentais para o crescimen- manecendo como um precioso pulmão tes públicos eficazes, tendo chegado
to e o ordenamento da capital. Tinham verde situado agora no centro da Área a propor a criação de uma linha de
sido criadas as condições que tornavam Metropolitana de Lisboa. eléctricos até ao parque.
possível trabalhar na câmara, agora que Regressado da sua viagem pelos par-
o município chamava a si o controlo do ques da Europa, confrontando as expe- … e outro ‘urbano’
solo e a execução dos projetos. Keil fica- riências que visitara, parecia-lha certa, Na sequência da destruição do Passeio
rá encarregado de concretizar o Parque em 1939, a opção de criar «um bosque Público (1879), o plano de Ressano Garcia
Florestal da Cidade. E foi com entusias- natural e selvagem com centros de inte- integra a construção do parque nos terre-
mo que, logo em 1938, arranca com o resse para todas as classes da capital na nos a norte da Rotunda. A solução de Lus-
plano geral, estudando os equipamentos serra de Monsanto». Durante a década seau escolhida em concurso (1889) nunca
de apoio, os acessos, a utilização. Sem seguinte desenvolve o plano geral e os seria concluída. No final dos anos 1920,
hesitações, com rapidez, munindo-se de projetos dos equipamentos. A conceção Forrestier apontava o prolongamento da
um poder forte, desencadeou esta obra do plano foi setorial e decorreu em simul- Avenida sobre o Parque Eduardo VII,
de grande envergadura, levando a cabo tâneo com as expropriações, a arboriza- projeto que Cristino da Silva desenvolve
um projeto inédito. ção, a abertura de estradas, os sucessivos e apresenta em 1930. As duas avenidas
traçados da autoestrada e mesmo com a laterais são abertas e é lançado o trainel da
Um parque ‘selvagem’… construção de equipamentos. Plano dinâ- faixa central no final dos anos 1940. Em
Os terrenos incultos da serra de Monsan- mico, anulando a distância entre projeto 1945, quando se tornava inadiável uma
to serviram eficazmente para a constru- e obra, realizava em simultâneo plano e solução para «o problema do parque», o
VISÃO H I S T Ó R I A 69
GRANDES OBRAS // LISBOA
70 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Monsanto O Clube de Ténis
(foto da esquerda), a esplanada
de Montes Claros e o restaurante
panorâmico (ao lado) são alguns
dos pontos fulcrais do parque
florestal concebido por Duarte
Pacheco para dotar Lisboa
de um pulmão verde e
concretizado por Keil do Amaral
VISÃO H I S T Ó R I A 71
GRANDES OBRAS // LISBOA
A porta da Europa
Obra das mais emblemáticas e dispendiosas do Estado
Novo, o aeroporto internacional de Lisboa
inaugurou-se discretamente em plena II Guerra
Mundial. Transformou a paisagem. E a cidade
Por Luís Pedro Cabral
N
o dia 12 de janeiro de 1928, o ge- muito preciso. Como ministro e como
neral Passos e Sousa, ministro da cidadão, digo que é indispensável esta-
Guerra e um dos grandes obrei- belecer o aeroporto no Campo Grande.»
não distassem
é que não havia entendimento. à sua fase embrionária, mesmo que, em
Depois de voar pelos céus de Lisboa, paralelo, já se dessem passos decisivos
Passos e Sousa disse assim ao Diário
de Notícias, para conferir ferrete oficial
mais de 7 km para tudo o que envolvia o aeroporto e o
funcionamento das futuras linhas aéreas,
ao seu lado da questão: «O aeroporto é do centro das cidades a começar pela criação das estruturas
72 V I S Ã O H I S T Ó R I A
embora tivesse sido obrigado a uma ater-
ragem forçada em 1936, quando eclodiu
a Guerra Civil.
Depois de tanto marcar passo, o plano
geral de urbanização do aeroporto da Por-
tela levantou voo ainda em 1936, com base
em estudos preliminares de especialistas
holandeses. Para acabar com as dúvidas
residuais sobre o projeto e sobre a sua
localização, no primeiro dia de maio desse
ano descolaram do aeródromo da Granja
do Marquês (a caminhar para obsoleto,
obrigado a encerrar quando chovia) cinco
aeronaves, que sobrevoaram a capital e
aterraram «em total segurança» nos ter-
raplenos precoces do futuro aeroporto.
Foi a primeira de muitas inaugurações
oficiosas da pista da Portela, que teria
muitas aterragens imprevistas enquanto
as obras e a II Guerra Mundial decorriam.
O anteprojeto para os estudos finais só
tinha sido entregue à CML no último
que garantissem o seu funcionamento e anteriores, que é exatamente o hiato entre trimestre de 1938, o ano em que a engre-
a sua gestão. as primeiras expropriações e o pagamento nagem se tornou imparável e o grosso das
Ainda em 1929, foi constituída a So- efetivo das indemnizações de algumas expropriações, que no total ascenderam
ciedade Portuguesa de Estudos das Li- destas, que permitiram o usufruto dos a perto de 14 mil contos, encontraram
nhas Aéreas (SPELA), que em poucos terrenos pagos pela edilidade de Lisboa e abrigo no Decreto-Lei nº 28.797.
meses garantiu a concessão dos direitos o início das operações de terraplanagem, No coração do Estado Novo, 1938 foi
de exploração das linhas aéreas nacio- com estas obras devidamente incluídas no também um ano de expropriações. E de
nais, quando o aeroporto fosse realidade. caderno de encargos municipal. muitas conjugações, que nada tinham de
O que na altura parecia bem encaminha- Não era uma coincidência. Portugal cósmico. Foi o ano em que dois fatores
do, já que em 1930 foram concretizadas as corria o risco de perder uma cartada coincidiram no mesmo homem: Duarte
primeiras seis expropriações na Charneca. geoestratégica de vital importância, co- Pacheco, que iniciou um segundo man-
Também em 1930, os direitos de conces- locando em risco, temia-se, o próprio dato enquanto ministro das Obras Pú-
são foram transferidos para a Companhia «Império». Os mais acérrimos defenso- blicas, acumulava o cargo de presidente
Portuguesa de Aviação que, junto com res da construção do aeroporto de Lisboa da CML, que exerceu de forma omnipre-
a SPELA, estariam na génese da Aero acicatavam o orgulho nacional, como era sente até se esgotar prematuramente o
Portuguesa, a primeira companhia aérea exemplo acabado o major Pinheiro Cor- seu mandato de vida. Em 1938, com a
nacional, que só seria criada quatro anos reia (militar respeitadíssimo em matéria Comissão Instaladora do Aeroporto já no
depois, em 1934. aeronáutica, à data comandante do Grupo ativo, assim com o Conselho Nacional do
de Aviação Nº 1, na Amadora), que em Ar, o Estado agradeceu publicamente a
O ‘perigo’ vindo de Sevilha 1935, durante uma conferência na CML, cedência magnânima, a todos os títulos
Entre 1930 e 1936, o projeto do aeroporto havia de deixar no ar o soundbyte da na- patriótica, dos terrenos adquiridos pela
conheceu pouco desenvolvimento subs- ção para os tempos vindouros: «Lisboa CML no âmbito do projeto do aeroporto,
tantivo, apesar de Duarte Pacheco, um – Aeroporto Terminal da Europa.» Se a transformando-se, sem dúvidas residuais,
dos seus maiores impulsionadores, ter engrenagem portuguesa se mantivesse numa causa nacional. O aeroporto da
sido ministro das Obras Públicas e Co- em pousio, corriam-se sérios riscos de Portela seria tudo o que tinha de ser.
municações durante quatro desses anos. no outro lado da fronteira se ouvir coisa A cidade, que nessa altura não passava do
No seu último ano de mandato (1936), idêntica do aeroporto de Sevilha, um pro- Areeiro, cresceria ao seu encontro. Duarte
porém, fez-se mais do que nos cinco anos jeto que em Espanha já tinha descolado, Pacheco foi o denominador comum.
VISÃO H I S T Ó R I A 73
GRANDES OBRAS // LISBOA
Quando o projeto final do aeroporto in- solidez suficiente para acolher aerona- O projeto da aerogare, não menos que
ternacional de Lisboa ficou oficialmente ves até 20 toneladas de peso, preparadas a joia da coroa do aeroporto da Porte-
definido, planeado com tudo o que era para um upgrade que lhes permitiria de la, ficou sob os auspícios do arquiteto
topo de gama em infraestruturas aero- futuro receber aviões até ao dobro desse Francisco Keil do Amaral. Nesta se con-
portuárias, já algumas obras estavam peso. Toda a zona envolvente das pistas, centrava toda a imagem de elegância e
em curso. bastante ampla, seria arrelvada com 16 modernidade do aeroporto internacional
toneladas de sete variedades de sementes de Lisboa. Uma fachada de beleza dis-
Uma obra faraónica de relva, importadas dos Estados Unidos creta e sofisticada, que se ampliava na
‘Inaugurações’
imprevistas
Em 1941, um ano antes de o aeroporto
da Portela ser inaugurado, as obras
ainda decorriam, mas as pistas e as
plataformas estavam já funcionais. Muitas
aterragens imprevistas ali aconteceram,
algumas gerando momentos de pânico
no aeroporto, outras quase hilariantes se
não fossem os tempos de guerra.
Em novembro desse ano, um aparelho
Wellington da Royal Air Force britânica
aterrou de emergência na pista da
JORNAL O SÉCULO/ANTT
74 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Pedras Rubras
A partir de 1945,
o Porto e a região
envolvente passariam
também a contar com
o seu aeroporto
ao aeroporto português um acréscimo circunstância mas sem pompa. Nem dia deixar de ser, o presidente da CML,
imenso de importância estratégica, dada sequer Salazar esteve presente. Nem na pessoa do engenheiro Rodrigues de
a neutralidade de Portugal no conflito. o engenheiro Duarte Pacheco, um dos Carvalho, que desempenhava o cargo em
Por outro lado, atrasou significativamen- principais responsáveis pela execução regime de substituição a Duarte Pacheco,
te alguns setores do aeroporto, como do projeto. que não podia fazê-lo oficialmente por ser
a construção dos hangares, devido à No dia 14 de outubro de 1942, em plena ministro das Obras Públicas. As contas
falta de ferro. Ou a chegada da apare- II Guerra Mundial, decorreu a inaugura- definitivas, que estiveram alguns tempos
lhagem de segurança e navegação, que ção simbólica do aeroporto da Portela, no segredo dos deuses, apontavam para
se foi prolongando indefinidamente. com um avião da British Airways que um custo total de perto de 43 milhões de
Foi esta, aliás, uma das razões por que levava a bordo o ministro britânico John contos. Mais de 13 milhões foram gastos
a inauguração do aeroporto da Portela Balfour, o comandante-geral da Aeronáu- nas referidas expropriações, cerca de 169
não constituiu uma daquelas gigantes- tica Militar coronel Alfredo Sintra, repre- mil contos em estudos em projetos, pouco
cas ações de propaganda do regime, que sentantes das companhias de navegação mais de 2 milhões em «apetrechamento»,
optou por uma cerimónia informal, com Ala Littoria e Lufthansa e, como não po- cerca de 179 mil contos nos chamados
«diversos». E a obra propriamente dita
que custou aos cofres do Estado mais de
E apareceram, com grandes sorrisos, coletivo. Traídos pelo brilho do sol em 26 milhões de contos.
junto aos operários que trabalhavam dezembro e pelas palmeiras decorativas No dia 15 de outubro, os jornais faziam
nas obras do aeroporto, estarrecidos no espaço exterior do aeroporto, parangonas com esta informação: A par-
com a ocorrência. O piloto explicaria julgaram ter aterrado em Marrocos. tir de hoje os aviões de carreira podem
mais tarde que era do protocolo da E só perceberam o erro muito depois.
guerra não abandonar a aeronave sem a
utilizar o aeroporto de Lisboa.
À boa maneira portuguesa, o episódio
destruir, para que não caísse em mãos rapidamente se transformou em anedota. Óscar Carmona, o Presidente da Repú-
erradas. Este caso não foi, aliás,o único A escassos meses da inauguração do blica, só visitou o local uma semana de-
em que tripulações incendiaram os seus aeroporto, já em 1942, um Lightning pois, coincidindo com a tomada de posse
aviões na Portela. aterrou na Portela. Da aeronave, saiu da Comissão Administrativa do aeropor-
Cerca de um mês depois deste um piloto esbaforido, em passo de
to. Uma cerimónia «singela», com algu-
acontecimento, uma esquadrilha de onze corrida. Dirigiu-se à primeira pessoa que
aviões ingleses, em rota para Casablanca, viu, perguntando-lhe onde estava. Mal ma populaça a acenar-lhe efusivamente,
aterrou no aeroporto de Lisboa. Os soube a resposta, virou as costas ao seu com os olhos vidrados de espanto perante
tripulantes saíram com ares de missão informador e voltou para o seu avião em a imponência da obra feita. O chefe de
cumprida, dirigindo-se aos responsáveis passo de corrida, levantando voo sem Estado, porém, não deixou de notar que
do aeroporto. Fora o chamado erro dar qualquer explicação a ninguém,
os hangares não estavam concluídos e que
contra todas as regras de segurança
e de diplomacia. Descolou à mesma faltavam os imprescindíveis aparelhos de
Abertura ao tráfego O avião da Ala velocidade com que tinha aterrado. navegação. Alguém lhe explicou que eram
Littoria, em 14 de outubro de 1942 Como um Lightining. coisas da guerra.
VISÃO H I S T Ó R I A 75
GRANDES OBRAS // LISBOA
de ‘Casablanca’?
seu violento e implacável xadrez de
tamanho real. Que interesse teria para
os homens de Hollywood que concebe-
ram e produziram a fita o pormenor do
Numa noite brumosa de 1942, o Lockheed Electra local de pouso do Lockheed num lugar
«de» Ingrid Bergman levantou voo para a lenda, rumo para eles tão vago como era a cidade
do estuário do Tejo? Mas para nós, que
a Lisboa. Mas… a que sítio de Lisboa? somos portugueses, tem algum.
Se não aterrou na Portela, o Lo-
D
por Luís Almeida Martins
ckheed que, ficticiamente, transportava
epois de, na cena final do célebre O estatuto de neutralidade de Portugal a bela sueca apaixonada pelo homem
filme Casablanca, estreado em na II Guerra Mundial assim o permitia, que deixara para trás e que provavel-
outubro de 1942, «Liza Lund» apesar da bem conhecida animosidade mente nunca mais veria e o seu marido
(Ingrid Bergman) e «Victor La- de Salazar e do Estado Novo em ge- resistente checo, pousou, ou na Granja
zlo» (Paul Heinreid) terem em- ral contra os estrangeiros que faziam do Marquês, em Sintra, ou no Campo
barcado no avião da Air France entrar no País a ventania das «ideias Internacional de Aterragem, em Al-
rumo a Lisboa, deixando em terra «Rick arejadas», colocando simultaneamente verca. Mais provavelmente neste último
Blane» (Humphrey Bogart) e o «capitão ao regime o problema de ter de acenar aeródromo. Escasseia o glamour onde
Louis Renault» (Claude Rains) a ensaia- à «velha aliada» Inglaterra sem dei- impera a realidade.
rem os primeiros passos de «uma bela xar de piscar nervosamente o olho à
amizade» de contornos político-estratégi- Alemanha nazi. Em meados de 1942, Alverca cosmopolita
cos, o Lockheed Electra levanta voo para antes das derrotas de El-Alamein e O que era o Campo Internacional de
a escuridão do céu noturno e perde-se no Estalinegrado e quando a Alemanha Aterragem? Simplesmente, um vasto
mistério da lenda. Sabemos que o seu estava ainda na mó de cima, Lisboa terreiro para pouso de aeronaves anexo
destino geográfico é Lisboa, mas ignora- era a plataforma entre um continente às instalações da aeronáutica militar
mos qual o futuro percurso sentimental vergado à suástica e outro que prometia que, ampliadas, ainda hoje existem e
das personagens que transporta no seu o sonho de «novas oportunidades» – e onde fica uma secção do Museu do Ar.
ventre prateado e, mais prosaicamente, os autores do filme não podiam deixar Criadas, tal como a «pista», em 1919,
nada sabemos em concreto sobre o local de o saber. Na Baixa, no Bairro Alto, essas instalações constituíam a base
da capital portuguesa onde vai aterrar. do Grupo Independente de Aviação de
No Aeroporto da Portela? Dificil- Bombardeamento (GIAB) e das Ofi-
mente. A ação da fita arranca em finais cinas Gerais de Material Aeronáutico
de 1941 e prolonga-se por não muito (OGMA). Foi aquele campo que assis-
tempo. Quanto ao aeroporto da capital tiu aos primeiros ensaios de aviação
portuguesa, apenas seria inaugurado comercial no País, concretamente os
em 15 de outubro desse ano. voos Lisboa-Madrid-Sevilha operados
Este pormenor não terá preocupado em 1927 pelos Serviços Aéreos Portu-
o realizador Michael Curtiz, o produ- gueses (SAP), uma empresa subsidiária
tor Hal B. Wallis ou os guionistas Ju- da alemã Junkers Luftverkehr mas que
lius Epstein, Philip Epstein e Howard
Koch. E que interesse pode ter tal por- A ação e a rodagem operava com aeronaves da Unión Aerea
Española, também ligada à firma ger-
menor para a trama? Lisboa é referida
naquele jogo de claros e de sombras
de ‘Casablanca’ mânica. O primeiro aparelho da SAP
registado em Portugal foi um Junkers
por ser a porta de saída dos refugiados são anteriores F-13 proveniente da Suécia, matriculado
mais desafogados para a América, esse
«país da liberdade» com que todos os
à inauguração como C-PAAC. Ia já passando o tempo
dos «gloriosos malucos das máquinas
perseguidos pelo nazismo sonhavam. do Aeroporto da Portela voadoras», mas a aviação estava ainda
76 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Aeroporto Marítimo
Era dos Olivais
que os Clippers
partiam
para a América
ANA AEROPORTOS DE PORTUGAL
a anos-luz de se tornar o transporte de que ia gozar um pequeno passeio de para um dos seus «quartéis-generais»
massas fiável que depois seria. alguns minutos.» deste lado do Atlântico e desde 1938 que
No Magazine Bertrand de agosto de Chegado ao aeroporto, foi almoçar a tinha estabelecido a sua base na Doca
1928, um autor que se oculta atrás do uma tasca ali existente, onde alguém, dos Olivais, em Cabo Ruivo – a mesma
pseudónimo de Bluff descreve a «aven- «passeando o olhar habituado pelo onde agora está o Oceanário do Parque
tura» da sua ida ao campo de Alverca, mosquedo que recobria as paredes, foi das Nações. Os voos eram efetuados por
esperar uns amigos espanhóis. O que dizendo: ‘Pois, meu amigo, aqui têm grandes hidroaviões Boeing 314, batiza-
ressalta das suas impressões é a sen- almoçado quase todas as pessoas gradas dos de Clippers, um dos quais, o Yankee
sação de enorme distância a que o ae- que arribam a Portugal nos Junkers». Clipper, se despenharia no Tejo em 22 de
roporto ficava da capital, ideia decerto Conclusão final de Bluff: «Corei de fevereiro de 1943, num acidente em que
partilhada por toda a gente, habituada vergonha. Quando voltámos à pista, morreram 24 dos 39 ocupantes.
sempre que viajava a tomar um com- o enorme pássaro branco vogava no Para ligar o aeroporto terrestre (Por-
boio no centro da cidade – concreta- azul, riscando o céu, para logo vir poi- tela) ao marítimo (Cabo Ruivo) foi na
mente no Rossio, visto que a estação sar delicadamente, em airosa curva, no altura aberta a Avenida Entre Aeropor-
de Santa Apolónia só seria reativada centro do prado crestado, onde ficou a tos,atual Avenida de Berlim.
na segunda metade da década de 1950. rebrilhar ao sol. Apressadamente, abre- Cabo Ruivo, que só seria desativado
«Supunha eu», conta Bluff, «que os viando os cumprimentos, encafuei os em finais da década de 1950 (embora
amigos queridos das Espanhas viriam amigos no automóvel e mandei largar a carreira dos Clippers tenha cessado
aterrar num destes aprazíveis arredo- ‘a nove’ para Lisboa.» no final da guerra), nunca chegou a
res à vista do pacato elétrico ou de um possuir uma aerogare moderna, tendo a
modesto táxi de bandeirinha verme- Os Clippers em Cabo Ruivo Pan Am instalado os seus serviços num
lha. Confesso que a minha rudimentar Voltando ao filme Casablanca. Desem- edifício portuário antigo, onde também
corografia não me fazia suspeitar da barcados presumivelmente em Alverca, funcionava a burocracia alfandegária
mágica distância que se traduzia por para onde terão seguido depois os fictícios portuguesa. Essa aerogare de recortes
esta palavra: Alverca. Eis, portanto, Liza Lind e Victor Lazlo? Com toda a cer- pombalinos seria fielmente reconsti-
a causa da minha primeira surpresa teza, para o Aeroporto Marítimo de Cabo tuída para outro filme americano, este
quando me juraram que para esperar o Ruivo, a fim de tomar o Clipper da Pan fadado para voos muito mais baixos
avião que chegaria às 14 horas e meia, American com destino a Nova Iorque e do que Casablanca: Tempestade em
teria que marchar num ronceiro com- com escala técnica na Horta, ilha do Faial Lisboa (Storm over Lisbon), de George
boio às 9 e pico. Respinguei, protestei (talvez, especulemos, após breve estada Sherman, estreado em 1944 com Vera
que este longo prazo era monstruoso, num hotel de luxo como o Avenida Palace Ralston e Erich von Stroheim no elenco.
mas a única coisa que consegui foi ou o Avis). A companhia aérea ameri- Novos jogos de sombras numa cidade
perder o comboio e ter que me enca- cana, que mesmo em tempo de guerra abençoada pelo azul do céu e luminosa
fuar num automóvel, esperançado em operava para a Europa, escolhera Lisboa por natureza.
VISÃO H I S T Ó R I A 77
GRANDES OBRAS // LISBOA
Um estádio novo
em tempos de guerra
Ambiente marcial num «oásis de paz». Assim ocorreu
a inauguração da monumental infraestrutura desportiva do Jamor,
quatro dias depois do Dia D nas praias da Normandia
por João Pacheco
A
sombra de um avião passa por próximo da perfeição. Poderão ouvi-lo os Os rebentamentos que ouvimos são
cima dos rapazes que marcham. mais de 60 mil espectadores que enchem de morteiros e foguetes e fazem parte
A coreografia marcial não se des- as bancadas de pedra branca. Poderá ou- desta festa desportiva que é, antes de mais
mancha, a música de guerra con- vi-lo mais tarde quem assistir ao filme nada, uma celebração nacionalista do
tinua. Os rapazes marcham em documental que está aqui a ser rodado, vigor do regime. E estes rapazes da MP
ordem, com calções brancos de com realização de António Lopes Ribeiro. estão apenas a abrir a festa.
ginástica, indiferentes ao aparelho que Sim, acabámos de ouvir rebentamentos É a tarde de 10 de junho de 1944 e,
sobrevoa o campo nesta tarde de junho. mesmo ao lado do novo Estádio Nacional. sim, o Dia D, o desembarque dos Alia-
A manobra é orientada aos berros por um Acabámos de ver o fumo. Mas isto não dos na Normandia aconteceu há quatro
capitão que todos poderão ouvir, graças ao é a guerra. Aliás daqui a pouco vamos dias. Mas essas notícias que prenunciam
sistema sonoro do estádio. Poderão ouvi- ouvir um atleta a ler aos microfones um a aproximação do final da II Guerra
-lo todos estes 3600 filiados na Mocidade agradecimento a Salazar em que este es- Mundial perderão agora importân-
Portuguesa (MP) que fazem agora exer- tádio e a paz são vistos como conquistas cia nas páginas dos jornais portugue-
cícios de ginástica com um sincronismo e dádivas do líder da nação. ses. Aliás, os jornais mais próximos do
78 V I S Ã O H I S T Ó R I A
HORÁCIO NOVAIS/FCG-BA
regime já passaram os últimos dias a dar acompanhados na tribuna de honra pelos Estádio Nacional Aproveitando
um enorme destaque à inauguração que membros do Governo em peso. um declive do terreno, como na
antiga Grécia, o recinto apresenta
se avizinhava. Esta escala de multidão é Tudo foi previsto ao pormenor. Até
linhas clássicas
rara, mesmo ao longo das décadas que houve ensaios no estádio, dias antes da
durou em Portugal o Estado Novo. Estão inauguração, relatados nos jornais. «Às
mais de 60 mil portugueses nas bancadas, cinco horas chegou o chefe, Salazar», con-
prontos para ovacionar o Presidente da ta-se na locução do filme do realizador António Ferro continua a liderar a es-
República e o Presidente do Conselho, António Lopes Ribeiro sobre a inaugura- tratégia de comunicação do regime. Mas,
ção do Estádio Nacional – «essa obra mo- perante a vitória iminente dos Aliados,
numental digna de Portugal ressurgido e foi preciso trocar este ano o nome do
pacífico» – no vale do Jamor, em Oeiras. Secretariado de Propaganda Nacional
O locutor garante que «Salazar, cam- para algo de mais inócuo: Secretariado
peão da pátria» era «o atleta nº 1 naquela Nacional de Informação, Cultura Popular
festa de campeões», embora as imagens e Turismo (SNI). E, ainda há poucos dias,
do filme nos mostrem um homem de cha- os ventos da guerra levaram Portugal a
péu, fato escuro e ar desconfiado, que acabar com a venda de volfrâmio aos dois
nessa tarde nem discursará. Os tempos lados do conflito mundial, negócio que
não estão fáceis para Salazar. Ainda em tanto tinha contribuído para a liquidez
maio houve greves e manifestações contra do Estado, possibilitando, por exemplo,
Tudo foi previsto o aumento do custo de vida, resolvidas
com forte repressão policial.
as grandes obras púbicas.
ao pormenor. Até houve Por estes dias, chega a ser dada na Fechado para a festa
ensaios no próprio «Página da Mulher» do Diário de Lis-
boa uma receita para as portuguesas
O filme documental de António Lopes Ri-
beiro estrear-se-ia em Lisboa logo no início
estádio, dias antes cozinharem porquinhos-da-índia, «um de julho, no São Luiz, como complemento
da inauguração
apreciável recurso alimentar, tanto em à comédia A Menina da Rádio, de Arthur
período normal, como nesta angustiosa Duarte. A propósito, logo no início do fil-
quadra de guerra». me de humor podemos ler uma nota que
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GRANDES OBRAS // LISBOA
80 V I S Ã O H I S T Ó R I A
tradução exata da sua legenda, extraída Com bandeiras nacionais por todo o A Portuguesa nunca teria sido cantada
de Os Lusíadas: ‘Ó gente forte e de altos lado e estandartes da MP serem trans- por tantos milhares de pessoas ao mes-
pensamentos’.» portados de forma estudada, as ovações mo tempo, no mesmo sítio. «De facto,
A «gente forte» que participou nas de- a Salazar e a Carmona foram pontos al- num país profundamente rural, ausente
monstrações e nas provas desportivas foi tos só ultrapassados pelo hino nacional. de grandes espetáculos, de grandes con-
neste caso representada por rapazes da centrações de massas e pessimamente
MP, por praticantes de todas as modali- dotado de infraestruturas desportivas, era
dades do desporto (incluindo pescadores natural um ambiente de euforia, nunca
e caçadores ), por representantes de todos A obra estava quase antes vivido», escreve Ricardo Serrado em
os clubes do País e por 300 raparigas da
Fundação Nacional para a Alegria no Tra-
concluída em 1940, O Jogo de Salazar – a política e o futebol
no Estado Novo (Casa das Letras, 2009).
balho (FNAT) «na graciosidade helénica mas acabou por só ser «Por outro lado, recorde-se que Portugal
das suas túnicas azuis», segundo a re-
portagem publicada na revista Stadium. inaugurada em 1944, tinha uma elevadíssima taxa de pessoas
com salários mínimos e outras tantas no
O lado competitivo da festa era o que dado o envolvimento limiar da pobreza. Para estas, com certeza,
sucessivo de
menos interessava, mas refira-se que o a construção do Estádio representou uma
Sporting dominou, vencendo as provas de afronta e uma arrogância sem preceden-
atletismo de 100 metros e de 800 metros
e o jogo de futebol contra o Benfica (3-1,
vários arquitetos tes. E, efetivamente, entre 1942 e 1949,
o Estado Novo enfrenta a sua primeira
após prolongamento). e arquitetos paisagistas grande crise, tendo o seu culminar, em
VISÃO H I S T Ó R I A 81
GRANDES OBRAS // LISBOA
O primeiro
paisagista
Portugal-Espanha em 1947
Os autores envolvidos terão sido vários, de forma
O Estádio Nacional
sucessiva. Mas na época da inauguração, os louros
era, efetivamente,
foram todos para os responsáveis políticos: o
a «casa» da seleção das quinas
presidente do Conselho António Oliveira Salazar
e o ministro das Obras Públicas e Comunicações
Duarte Pacheco, que tinha morrido na estrada
uns meses antes.
Além de Jorge Segurado, «no concurso terão
participado os arquitetos Carlos Ramos (1897-1969),
em colaboração com o holandês Jan Wils (1891-1972)
autor do Estádio Olímpico de Amesterdão, e Cristino
Silva (1896-1976), com a colaboração de Constantino
Constantini, autor do Forum Mussolini de Roma»,
escreve Teresa Andersen no livro Do Estádio Nacional
ao Jardim Gulbenkian – Francisco Caldeira Cabral e a
primeira geração de arquitetos paisagistas (1940-1970)
(Gulbenkian, 2003). Entre outros arquitetos, ficará
HORÁCIO NOVAIS/FCG-BA
Entrada VIP e bancada O acesso dos convidados faz-se pela via superior
1945, com uma série de manifestações trições justificadas pela guerra. Houve
e greves, e a formação de uma oposição quem pusesse a funcionar carros que
organizada que fez estremecer todo o estavam parados, mesmo sendo neces-
Regime.» sário recorrer por vezes ao aluguer de
pneus, como se lê no Boletim do Grémio
Lisboa-a-Nova
Vieram a Lisboa, para a festa da inau-
Centenas de autocarros dos Industriais de Transportes em Auto-
móveis, em número especial de julho de
guração do Estádio, autocarros de todo e de automóveis, 1944, dedicado à inauguração do Estádio
o País. Centenas de autocarros e auto-
móveis foram mobilizados pelo Grémio provenientes de todo o Nacional.
Terá sido um esforço épico, isto de ter a
dos Industriais de Transportes em Au- País, foram mobilizados funcionar um serviço pendular de carros
para transportar as
tomóveis, para participar no transporte e autocarros entre o estádio e a capital.
do público e dos desportistas. Em tempo E o orgulho do Grémio vai ao ponto de se
de guerra, o esforço dos empresários
do setor mereceu do Governo algumas
mais de 60 mil pessoas incluir no Boletim um destaque gráfico
para o número de quilómetros percor-
exceções às regras rodoviárias e às res- presentes nas bancadas ridos, comparando-os com os necessá-
82 V I S Ã O H I S T Ó R I A
AML/AMADEU FERRARI
HORÁCIO NOVAIS/FCG-BA
HORÁCIO NOVAIS/FCG-BA
Pedra da região As arquibancadas de cantaria desenvolvem-se numa curva harmónica
rios para se dar uma volta ao mundo. atividade de engenheiros e arquitetos, Como traço comum à monumentali-
E isto para não falar noutros transpor- topógrafos e silvicultores, desenhadores dade das obras públicas da época, havia
tes, também referidos na publicação: e artistas, canteiros e jardineiros, homens a preocupação de construir tudo à esca-
«O Estádio Nacional é servido pela de gabinete e homens do campo, todos la de uma grande cidade, emprestando
autoestrada, estrada marginal, carros irmanados pelo desejo ardente de verem grandiosidade e perspetiva de futuro ao
elétricos e caminho-de-ferro, os quais surgir do solo a obra sonhada.» próprio regime, como se defende na pu-
formam um conjunto de vias de acesso Nas publicações da época não é dada blicação do SNI dedicada à inauguração:
que grandemente excedem as exigências importância aos nomes dos urbanis- «Começa a erguer-se aqui uma povoação
do maior movimento previsto.» tas, arquitetos, arquitetos paisagistas para todos os trabalhadores do Estádio.
Salienta-se o lado épico dos anos que ou engenheiros envolvidos na obra. E, porque ele fica na vizinhança de Linda-
demorou a ser construído o estádio numa O verdadeiro obreiro e autor era Duar- -a-Velha e Linda-a-Pastora, alguém teve
publicação do SNI: «Foi um trabalho ver- te Pacheco, ao serviço de Salazar. Mas a ideia, gentil e feliz, de a batizar com o
dadeiramente notável que, tendo encon- no caso do Estádio Nacional um papel nome de Linda-a-Nova. Paralelamente, a
trado o mais vivo impulso nesse homem fundamental foi assumido pelo primeiro toda esta cidade que se avizinha grandiosa
dinâmico, nesse raro operário que foi o arquiteto paisagista português, Francis- no que se vê, se poderá, talvez, chamar
ministro Duarte Pacheco, congregou a co Caldeira Cabral. um dia – Lisboa-a-Nova.»
VISÃO H I S T Ó R I A 83
GRANDES OBRAS // LISBOA
Estrada Marginal É-nos
hoje difícil conceber a não
existência de uma ligação
direta Lisboa-Cascais
Uma estrada
para o futuro
A marginal Lisboa-Cascais simboliza a visão de um
homem e o coroar de um projeto bem concretizado
por Margarida Magalhães Ramalho
A
chegada do comboio a Cascais, tarde, pela mão de Fausto Figueiredo.
em 1889, promoveu o desenvol- Homem de visão, Figueiredo apresenta
vimento não só desta vila balnear, ao parlamento, em 1914, uma luxuosa
«eleita» pelos últimos reis, como brochura onde estava consignado o pro-
de todas as povoações servidas jeto, assinado por Henri Martinet, para
pela linha. Com a implantação da uma nova estância balnear. Esta desen-
República, o palácio da Cidadela passaria volver-se-ia entre um casino, que coroava
a ser utilizado como casa de férias por uma grande pelouse relvada, e a praia. Ao Costa do Sol e as unidades hoteleiras vão
quase todos os Presidentes. Em 1929, Car- longo de um parque nasceriam avenidas multiplicar esforços para divulgar a Costa
mona escolheu-o para residência oficial. com palmeiras, luxuosos hotéis, galerias do Sol, a nível nacional e internacional.
Enquanto Cascais se sedimentava como envidraçadas, lojas e umas termas. Em 1927 é legalizada a concessão de
estância balnear de elites, o vizinho Esto- O deflagrar da I Guerra Mundial, dois jogo, o que seria determinante para o
ril iniciava uma trajectória fulgurante que meses depois da apresentação do projeto, futuro sucesso. Em 1929 inaugurava-se
o catapultaria para o plano internacional. veio criar dificuldades práticas, uma vez o Hotel do Parque. Desenhado por Silva
Até finais do século XIX, este lugar que a maior parte dos materiais necessá- Júnior, tinha um complexo termal com
pouco mais era do que um pinhal. Aí rios teria de ser importada de países em buvette, piscina coberta, salas de meca-
existia o que restava do quinhentista con- guerra, e ainda financeiras, por retração noterapia e de ginástica, etc. Um luxo.
vento de Santo António e um secular dos investidores. Apesar disso, em 1916, A 1 de setembro de 1930, um novo
balneário termal. Com a extinção das or- era lançada a primeira pedra do casino. passo era dado para colocar o Estoril na
dens religiosas, em 1834, o conjunto fora O processo corre mal e Martinet é substi- rota da Europa. O famoso comboio Sud-
comprado por Manuel Joaquim Jorge. tuído por Silva Júnior. O desenho defini- -Express, que fazia a ligação Lisboa-Paris,
Este, para albergar as famílias que aqui tivo do casino, inaugurado em 1931, será passava a terminar aqui a sua marcha.
vinham fazer tratamentos, constrói um de Raoul Jourde. Nesse mesmo verão inaugurava-se o
grande edifício. Mais tarde, as termas e Os constrangimentos financeiros le- luxuoso Hotel Palácio, desenhado por
o casarão serão vendidos a José Viana da vam à redução do plano original. Para Raul Jourde. A fama da Costa do Sol, que
Silva Carvalho, que em 1880 constrói o financiar as obras, é desenvolvido à vol- rivalizava com a Côte d’Azur, aumenta.
um elegante edifício «neo-árabe». ta do parque um projeto imobiliário. O Na década de 1930, a face do Estoril
O sucesso das novas termas faz triplicar sucesso é grande, e em 1922 o Governo também se modifica e moderniza, com a
a procura, obrigando Viana a aumentar vê-se obrigado a refrear as construções entrada do arquiteto Jorge Segurado para
o número de tinas e a abrir, em 1882, o sob pena da descaracterização do lugar. o departamento de urbanismo da Câmara
primeiro estabelecimento hoteleiro do Entretanto, Fausto Figueiredo promo- de Cascais. Sob a sua orientação, as novas
Estoril, o Hotel Paris. Por essa altura ini- via a eletrificação da linha de Cascais, a moradias terão de obedecer a projetos
cia também a construção de um bairro de primeira do país com tracção eléctrica. mais contemporâneos e de qualidade.
moradias sobranceiro à praia, no Monte Apostada em captar turistas estrangei- Esta é a razão por que ainda hoje, e apesar
Estoril. Estava lançado o fermento da ros de alto poder económico, a Comissão dos atentados ao património verificados, o
futura estância balnear que viria a ga- de Iniciativa de Turismo do Concelho de Estoril continua a ter um elevado número
nhar corpo e nome algumas décadas mais Cascais, a Sociedade de Propaganda da de construções modernistas de grande
84 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Expropriações
e contribuições
À semelhança do que acontecera com
outras obras de Duarte Pacheco, a
abertura da Marginal sacrificou muitas
propriedades privadas. A forma das
expropriações e os valores monetários
atribuídos não satisfaziam ninguém. Mas
Duarte Pacheco tinha por vezes artes de
convencer os renitentes. Conta Keil do
Amaral (na Revista Municipal nº 138/139,
de 1973) que um dia, no serviço em que
trabalhava na Câmara Municipal de
AML/ANTÓNIO PASSAPORTE
Lisboa, lhe apareceu um homem discreto
e bem-educado:
«–Trata-se de um prédio… – disse-me – De
um prédio que já não existe…
Pensei que quisesse informações sobre
cérceas para uma nova construção. Mas
não era.
qualidade, assinadas por arquitetos como magnífica faixa marginal a ser servida – Foi demolido para a Exposição do Mundo
Português… as expropriações corriam
Pardal Monteiro, Cristino da Silva, Antó- pela nossa primeira estrada de turismo».
lentas e o sr. engenheiro Duarte Pacheco
nio Varela ou Adelino Nunes. No ano seguinte inicia-se o complicado convocou-me e pediu-me que o ajudasse
processo de expropriações. Os numerosos a não falhar; que o ajudasse a demolir o
Poderosos beliscados lesados vão odiar a decisão do ministro. prédio enquanto a burocracia concluísse as
Este espírito de modernização era tam- Entre os expropriados contavam-se, suas diligências. Estava em jogo o prestígio
da Câmara e de Portugal. Até me pegou na
bém partilhado por Duarte Pacheco. Será para além de muitos cidadãos comuns,
mão e levou-a ao peito… sobre o coração.
sob a sua égide que Alfred Agache, vice- os Palmela (em Cascais), o Aquário Vas- Não fui capaz de resistir…
-presidente da Sociedade Francesa de co da Gama, o hospital de Sant´Ana e o – Pagaram-lhe o prédio, é claro – disse eu
Urbanistas, fará um estudo preliminar de Sanatório Antonio José de Almeida, o a interromper o monólogo constrangido e
urbanização de Lisboa, Estoril e Cascais. Instituto de Socorros a Náufragos, The constrangeste.
– Ainda não.
Ciente das potencialidades da Costa do Anglo Portuguese Telephone Company
Face à minha cara de espanto acrescentou:
Sol, o ministro acarinha a ideia de uma e dois antigos Presidentes da República, – Mas eu não venho cá para isso! Um dia
estrada marginal. Nesse sentido, afirma Bernardino Machado e Teixeira Gomes. será. Queria que ao menos dessem baixa
em abril de 1933 «a traça a que haveriam Apesar do coro de protestos, os traba- do prédio. Porque as Finanças continuam
de obedecer no futuro todos os elemen- lhos arrancaram em 1938, sob a batuta a obrigar-me a pagar a contribuição todos
os anos…»
tos de aproveitamento e valorização da do engenheiro Serpa Pinto Marques.
O primeiro troço será inaugurado em
1940, por ocasião da Exposição do Mundo
Português. A partir daí, como se pode ler ceámos que o nosso querido carrito fosse
Poderosos lesados no diário de H. Boon, funcionário diplo- desfazer-se tão perto da meta. Suspirando
VISÃO H I S T Ó R I A 85
GRANDES OBRAS // RESTAUROS
RESTAURAR,
PALAVRA
DE ORDEM
O restauro (ou reinvenção) dos monumentos nacionais
foi usado pelo regime salazarista para transmitir uma imagem
de competência em ligação com um passado glorioso
por Maria João Neto*
Guimarães e Lisboa
Restaurados o castelo
e a capela, na cidade
berço, foi depois a vez
de reerguer praticamente
do nada o antigo Paço dos
HORÁCIO NOVAIS/FCG-BA
Duques de Bragança.
À esquerda, a Sé da capital
depois do acrescento
SIPAFOTO
de ameias às torres
86 V I S Ã O H I S T Ó R I A
VISÃO H I S T Ó R I A 87
GRANDES OBRAS // RESTAUROS
‘R
estauração material, restauração o «antes» e o «depois». A composição vimentada e dos automóveis, não destruía
moral, restauração nacional; não relativa ao património histórico e artístico o aspeto rural da comunidade. A legenda
me acode ao espírito nenhum ou- fazia contrastar uma imagem onde impe- reforçava a expressão das imagens: «Do
tro exemplo mais expressivo que rava a degradação física dos edifícios – o abandono dos serviços públicos, e das
a dessa magnífica peça arquitetu- castelo, a igreja, os paços do concelho e a ruínas sinais de desordem e de miséria,
ral – hoje a Biblioteca e Arquivo escola primária sob uma atmosfera mise- o Estado Novo, ao mesmo tempo que
de Braga – há setenta anos incendiada, rabilista, passiva e silenciosa, sublinhada edifica faz renascer o património histórico
em destroços, aguardando através de dois pela monocromia, apenas quebrada pelas e artístico da Nação.»
regimes diferentes e de muitos governos descontroladas brincadeiras das crianças A mensagem transmitida por este car-
contrários que nós a restaurássemos, a – com a mesma perspetiva visual, mas taz confirma o estatuto conferido aos
restituíssemos à pureza das suas nobres desta vez toldada de cor, onde sobres- monumentos pelo regime, tornando-se o
linhas (…).» saíam os monumentos restaurados (o seu restauro um exemplo de competên-
Por ocasião da celebração dos dez anos castelo e a igreja) a par de construções cia e dever, a fim de cultivar a memória
do movimento militar de 28 de Maio de novas de raiz (escola e câmara municipal), e reconduzir Portugal na tradição do
1926, Salazar proferia estas sugestivas segundo projetos dignos e funcionais, de seu nobre passado. Para realizar esta
palavras da varanda do antigo paço epis- acordo com a face digna do poder local tarefa, o regime consolida, dentro da
copal de Braga, voltado para a Praça do e a renovação moral e cívica dos jovens. poderosa máquina das Obras Públicas,
Município, depois de este edifício ter sido O traço de modernidade, igualmente a Direção-Geral dos Edifícios e Monu-
restaurado e adaptado às suas novas fun- conferido quer pelos cabos de energia mentos Nacionais (DGEMN), criada em
ções de biblioteca e arquivo, no início elétrica quer ainda através da estrada pa- 1929. Tutelado pelo dinâmico ministro
dos anos 30. Os monumentos nacionais Duarte Pacheco, o novo organismo de-
encontravam-se carentes de cuidados face pressa passou a servir um dos objetivos
à negligência de anos, sobretudo por falta político-culturais mais importantes para
de verbas e de concretização de uma ação o governo de Oliveira Salazar. Como
eficaz de salvaguarda, como resultado da expressava a composição de Martins
profunda instabilidade política vivida em Barata, a atividade sobre o património
Portugal, tanto no final da Monarquia, arquitetónico nacional devia evidenciar
como durante a I República. O Estado uma imagem de perfeita compatibili-
Novo e, em particular, o seu líder, cedo dade entre passado, tradição histórica
perceberam como o restauro dos edifícios e modernidade e progresso.
históricos podia personificar uma atitude Uma reorientada leitura da História de
de recuperação e eficácia e um profundo Portugal de acordo com uma perspetiva
respeito pelo passado secular da Nação, triunfalista irá condicionar o processo de
constituindo um ótimo veículo de pro- seleção e os critérios de intervenção nos
paganda e poder. monumentos nacionais. São retomados
factos e figuras, com especial predileção
O ‘antes’ e o ‘depois’ por aqueles que melhor encarnavam os
Restauração era a palavra de ordem do valores histórico-simbólicos, criteriosa-
regime. Atitude essa que começou nas mente selecionados. Este pano de fundo
finanças públicas, estando obrigada a implicou uma natural preferência pelos
estender-se a todos os níveis da vida na- monumentos com eles relacionados, de
cional, a fim de recolocar o País nos trilhos A Direção-Geral dos forma a funcionarem como testemunhos
certos da prosperidade, honrando o seu
passado glorioso. A Lição de Salazar – de-
Edifícios e Monumentos vivos, selando a memória e facilitando a lei-
tura da mensagem por parte dos cidadãos.
signação dada a um conjunto de cartazes Nacionais serviu
propagandísticos comemorativos dos dez
anos da sua chegada ao poder, como mi- um dos objetivos A ‘unidade de estilo’
Mas esta identificação não influiu apenas
nistro das Finanças, em 1928 – mostrava,
através do pincel de Martins Barata, a
mais importantes para nos critérios de seleção dos monumentos
a restaurar. Foi igualmente decisiva na
obra feita, sublinhado as diferenças entre o governo de Salazar perfilhação de doutrinas de intervenção
88 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Propaganda do regime Um castelo e um palácio intervencionados são, juntamente com uma nova escola, o tema deste cartaz
dirigidas para a reposição das constru- DGEMN relativamente às verbas gastas do período manuelino continuou a ser
ções históricas no seu estado primitivo, e ao número de imóveis restaurados, para privilegiada, com a Torre de Belém e o
expurgando-as de acrescentos posterio- perceber a estrita ligação com a iniciativa Mosteiro dos Jerónimos a emoldurarem
res. Se o monumento apresentasse todo política do regime. As comemorações do a grande Exposição do Mundo Portu-
ele a mesma gramática estético-artística, «Ano X da Revolução Nacional» (1936); guês erguida em 1940 na nova Praça do
estando esta de acordo com o período os Centenários de 1940 (Fundação e Império. Também os palácios nacionais
histórico com o qual se pretendia a ime- Restauração de Portugal); a Exposição foram objeto de campanhas de obras e
diata identificação, a leitura da mensa- Evocativa dos 15 Anos de Obras Públicas de uma redecoração de interiores a car-
gem pretendida tornava-se mais fácil e (1947); as visitas a Portugal de chefes go do arquiteto Raul Lino, tornando-se
direta. Deste modo, a «unidade de estilo» de Estado estrangeiros, em particular Queluz residência oficial das altas indi-
encontrou no Portugal do Estado Novo da rainha Isabel II de Inglaterra (1957); vidualidades em visita a Portugal. Já o
um ambiente particularmente favorável o V Centenário da morte do Infante restauro dos monumentos entre Lagos
para imperar. D. Henrique (1960); e as celebrações dos e Sagres sublinhavam a imagem do In-
Os arquitetos ao serviço da DGEMN, 40 anos do regime (1966) foram os princi- fante D. Henrique enquanto símbolo da
cuja formação prática se ajustava às so- pais acontecimentos que condicionaram aventura dos portugueses nos mares, o
licitações do momento, são mais intér- a agenda da DGEMN. qual conferia legitimidade à posse de
pretes do que propriamente mentores A fazer valer os oito séculos de Portu- várias colónias portuguesas na África e
desta linha de atuação. As solicitações de gal, privilegia-se o restauro dos vetustos no Oriente, quando começavam a soprar
que foram alvo intensificaram-se sempre monumentos românicos rurais, a par dos de forma ameaçadora os ventos indepen-
em vésperas de festas, comemorações castelos e das catedrais. Os exemplares dentistas.
centenárias e visitas de Estado, com os do gótico também não são esquecidos,
monumentos a servir de palco e de cice- com enfoque nos antigos conventos e * Maria João Neto é professora associada
rones em muitas cerimónias e receções. mosteiros, destacando-se a interven- com agregação de História da Arte
e investigadora integrada do ARTIS -
Basta olhar, em determinados anos, os ção em Alcobaça para receber a visita Instituto de História da Arte da Faculdade de
números que espelham a dinâmica da da rainha de Inglaterra. A arquitetura Letras da Universidade de Lisboa
VISÃO H I S T Ó R I A 89
GRANDES OBRAS // RESTAUROS
MÁRIO NOVAIS/FCG-BA
O
s últimos desenvolvimentos no comando do cônsul Décimo Júnio Bruto cidadela fortificada que albergava o poder
campo arqueológico permitem Galaico, terá sido aqui erigida uma nova administrativo, militar e religioso). Estas
fazer remontar a pelo menos o fortificação, um castellum, que terá sido estruturas situar-se-iam mais ou menos
século VI a.C. a ocupação humana depois melhorado quando a Felicitas Julia nos locais onde hoje estão implantados
no morro sobre o qual se implanta Olisipo romana foi elevada a município. o castelo e o Bairro do Castelo, respeti-
o Castelo de São Jorge, em Lisboa. A cidade foi depois sucessivamente vamente. Apesar de a Al-Ushbuna islâ-
Acredita-se que neste local altaneiro, do- tomada durante as chamadas «Invasões mica ter sido esporadicamente tomada,
minando o estuário do Tejo, poderá ter Bárbaras», nomeadamente por suevos e por curtos períodos de tempo, pelos reis
sido erigida, ainda durante a Idade do visigodos, povos que terão contribuído cristãos Afonso II das Astúrias, Ordonho
Ferro, uma primeira estrutura fortificada, para o melhoramento do conjunto for- III de Leão e Afonso VI de Leão e Castela,
que certamente terá assistido a contactos tificado pós-romano de Ulishbona. Até acabou sempre por regressar ao domínio
entre as gentes locais da então chamada que, após a conquista da cidade em 714 muçulmano, tendo as fortificações sido
Alis Ubbo e outros povos, nomeadamen- pelos muçulmanos, as suas fortificações melhoradas por forma a obstar aos avan-
te de civilizações mediterrânicas como sofreram uma substancial reformulação, ços decorrentes da Reconquista Cristã.
a fenícia, a grega ou a cartaginesa. Por nomeadamente com a edificação de um As fortes defesas islâmicas que permi-
volta de 138 a.C., durante as campanhas qas’r (alcácer, palácio fortificado), que tiram rechaçar uma primeira tentativa de
romanas na Hispânia efetuadas sob o estaria rodeado pela qas’bah (alcáçova, conquista feita em 1142 por D. Afonso
90 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Castelo de São Jorge
A antiquíssima fortaleza
de Lisboa devia, segundo
Salazar, «dominar
espiritualmente o País»
Henriques, primeiro rei português, não rescaldo da crise dinástica de 1383-85, de obras de reparação feitas por D. Manuel
foram porém suficientes para impedir que resulta a nova dinastia iniciada por I e, mais tarde, por D. Sebastião, já na
a tomada da cidade pelas forças cristãs D. João I, que o castelo adquiriu o nome década de 1570. O domínio espanhol da
em 1147, onde a tenaz persistência dos si- de São Jorge, o seu padroeiro. dinastia filipina, a partir de 1580, trouxe
tiantes portugueses e cruzados nórdicos e a adaptação do castelo e do antigo paço
das suas máquinas de guerra permitiram Quartéis, observatório e asilo real a prisão e quartel militar; mais tarde,
finalmente ultrapassar o eficaz sistema A perda da importância estratégica do a restauração da independência portu-
defensivo muçulmano. As fortificações Castelo de São Jorge como elemento guesa, em 1640, motivou algumas obras
da cidade terão sofrido melhoramentos defensivo, consequente ao advento da de reparação do complexo, bem como
no período subsequente, nomeadamente pirobalística, associado à mudança da algumas outras remodelações no seio do
após Lisboa se tornar a capital de Portugal residência régia para o Paço da Ribeira, recinto fortificado.
em 1255, no reinado de D. Afonso III. junto à margem do rio Tejo, em inícios do Enquanto os terramotos de 1290, 1344,
O conjunto terá sido por essa época remo- século XVI, marcaram indubitavelmente 1356, 1531, 1551, 1597 e 1699 haviam oca-
delado e ampliado, agregando o castelo o início da decadência do conjunto for- sionado danos moderados no conjunto,
medieval e o paço real (Paço da Alcáçova) tificado lisboeta, não obstante algumas que foram reparáveis, o grande terramoto
que, ao longo dos tempos, continuaram de 1755 provocou avultados estragos no
a sofrer obras de reparação e melhora- castelo, entre os quais o desmoronamento
mento de maior ou menor envergadura, da Torre do Tombo e a ruína do antigo
especialmente nos reinados de D. Dinis O grande terramoto paço real. No local de implantação deste
(reformas góticas de finais do século XIII
e início do século XIV) e de D. Fernando de 1755 fez desmoronar último foi edificado um complexo desti-
nado a albergar uma guarnição militar e
(guerras com Castela da segunda metade
do século XIV). Este último foi, aliás,
a Torre do Tombo os respetivos serviços; pouco tempo de-
pois, após a extinção da alcaidaria-mor de
responsável pela instalação do arquivo e reduziu a ruínas Lisboa em 1769, foram instaladas novas
real numa das torres do castelo – a Tor-
re do Tombo, antes chamada Torre do
o antigo Paço Real valências no antigo espaço fortificado,
nomeadamente o Observatório Astro-
Haver, por guardar o tesouro real. Foi no da Alcáçova nómico e Geodésico na Torre do Obser-
VISÃO H I S T Ó R I A 91
GRANDES OBRAS // RESTAUROS
92 V I S Ã O H I S T Ó R I A
HORÁCIO NOVAIS/FCG - BA
espaço verde que permitia exibir a forti- como «compor ameias em castelos como Veja as diferenças O castelo antes
das obras, sem ameias (à esquerda) e
ficação isolada e dominante visualmente. dentes em dentaduras» – e a sarcasmos,
numa foto após a intervenção (em cima)
Apesar de em 1944 se terem realizado como o de que o castelo lisboeta «ressus-
operações de ajardinamento, devido à citou das cinzas como uma Fénix, pronto
proximidade das celebrações do Oitavo a combater mouros e castelhanos» ou
Centenário da Tomada de Lisboa (em «se Martim Moniz regressasse à vida,
1947), só em 1959 foi elaborado com maior não reconheceria o castelo onde morreu ção no conjunto formado pelo castelo e
consistência o projeto paisagístico, por entalado» –, respondeu o diretor-geral pelas remanescências do paço real, tendo
Gonçalo Ribeiro Telles e Pulido Garcia. Gomes da Silva mencionando que mais sido introduzidas novas atividades de ín-
do que «um brinquedo construtivo ou dole cultural. Na Torre de Ulisses foi ins-
Críticas às obras um edifício novo», o Castelo de São Jorge talada uma câmara escura que, mediante
As opções tomadas pela DGEMN foram sempre ali estivera, obstruído por «ex- um periscópio, permite ter uma visão
condicionadas pela existência de uma crescências parasitárias» sem valor que a panorâmica sobre Lisboa, recuperando
imagética cultural que estabeleceu os DGEMN se limitara a demolir, reparando um pouco do espírito medieval da torre
enquadramentos formais e visuais da in- o monumento das mutilações sofridas e como ponto privilegiado de observação.
tervenção: mais do que resgatar a forma reintegrando a sua beleza primitiva sem No complexo remanescente do Paço da
pristina da fortificação, o objetivo foi re- nada acrescentar de novo. E, assim, o Alcáçova instalou-se o Olisipónia – Cen-
constituir um perfil imagético congruente Castelo adquiriu a sua atual imagem ge- tro de Interpretação da Cidade de Lis-
com a imagem cultural do «castelo me- ral, coroando uma das colinas de Lisboa. boa que, através de meios audiovisuais
dieval português», que se consideraria Já no nosso século, foi implementado e outras tecnologias multimédia, trans-
o mais adequado para a «acrópole da um programa de valorização e revitaliza- mite aos visitantes informações sobre a
nação». O Castelo de São Jorge conver- História de Lisboa. Concebeu-se ainda o
teu-se assim num «avatar» do Castelo Núcleo Arqueológico de São Jorge, que
de São Mamede em Guimarães, símbolo permitiu musealizar um conjunto de ves-
nacional que encarnava o perfil idealizado
do «castelo português». Nesse sentido,
Apesar de em 1944 tígios que englobavam um amplo período
temporal, nomeadamente reconstituir de
o castelo lisboeta adquiriu uma imagem se terem realizado maneira abstrata a volumetria de duas ca-
intemporal que poderá nunca ter existido.
Não é por isso surpreendente que a
operações sas islâmicas sem contudo as mimetizar,
interpretando a espacialidade interna e
polémica reintegração do Castelo de São de ajardinamento, a volumetria externa dos primitivos edi-
Jorge tenha começado a ser criticada den-
tro dos meios patrimoniais portugueses. só em 1959 foi elaborado fícios construídos em torno de pátios.
ria as práticas da DGEMN nos castelos o projeto paisagístico do ARTIS – Instituto de História da Arte da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
VISÃO H I S T Ó R I A 93
GRANDES OBRAS // RESTAUROS
A recriação
do ‘berço’
Devolver o castelo, a capela
e o paço de Guimarães à traça original
foi o objetivo da 'limpeza' de 1940
por Maria João Neto
A
s campanhas de restauro leva- arquitetónico, entre plantas, alçados
das a cabo no núcleo históri- e cortes. O castelo viu, primeiro, con-
co-artístico de Guimarães, na cluídos os trabalhos de restauro, assi-
triangulação entre o castelo, a nalados com a publicação do boletim
capela de São Miguel e o Paço nº 8, em junho de 1937. Seguiram-se
dos Duques de Bragança, obe- as obras na capela de São Miguel, ter-
decem a circunstâncias mentais e políti- minadas em vésperas das celebrações
cas precisas. Trata-se de monumentos de dos centenários, às quais se dedica o DGPC/SIPA
94 V I S Ã O H I S T Ó R I A
JORNAL O SÉCULO/ANTT
da pelo general de engenharia José Maria ção hipotética do seu plano primitivo. Castelo de Guimarães O «berço da
Feijó, da Real Associação dos Arquitetos O projeto foi inicialmente entregue ao nacionalidade» foi o cenário escolhido
para a abertura das comemorações
Civis e Arqueólogos Portugueses. arquiteto Rogério de Azevedo, contratado dos Centenários, em 1940
O projeto elaborado e executado entre para o efeito pela DGEMN, e supervisio-
1874 e 1880 não seguiu uma unidade es- nado pelo diretor de Serviços, Baltazar
tilística redutora, o que valeu uma ponta de Castro.
de crítica, por entre referências laudató- Era grande o empenho político na acerca do aproveitamento de certa parte
rias à iniciativa local de oitocentos, como rápida execução da obra, embora não do edifício em questão para se adaptar
refere o respetivo texto do boletim: «Os fosse clara a reutilização a dar a tal espaço. a residência presidencial temporária.»
restauradores de 1874-80, apesar de su- Segundo a documentação do processo de Num relatório posterior, datado de 28
periormente orientados, não ousaram obra do monumento, guardada nos arqui- de outubro de 1939, o mesmo arquiteto
(cedendo talvez a pedidos ou melindres vos desta antiga direção-geral, Rogério justifica já o seu projeto para a fachada
que lhes pareceram respeitáveis) fazer de Azevedo diz ter-lhe sido pedido um principal do imóvel, onde desenhara uma
desaparecer todos os vestígios da ação estudo «atendendo à sua utilização para larga varanda servida por três grandes
reformadora dos antigos administrado- museu, biblioteca e arquivo». janelões-porta, para que o «Chefe do Es-
res da Igreja.» Estes vestígios aludidos Posteriormente, refere o arquiteto, tado pudesse agradecer as homenagens
referem-se ao pequeno campanário er- «foi aventada a ideia de se instalar nos do povo que não caberia inteiramente
guido na fachada principal, aos altares paços, além daqueles serviços cultu- no salão». Esta hipótese de ocupação,
interiores e às janelas e porta rasgadas na rais, a câmara municipal», ideia esta que poderá ter pairado no espírito de
capela-mor que o restauro da DGEMN reforçada na última visita do ministro Oliveira Salazar, é ainda hoje sublinhada
não poupou. Duarte Pacheco a Guimarães. Rogério por alguns. Segundo esses, o presidente
de Azevedo levanta ainda a ponta do véu do Conselho, na intenção de usufruir da
Uma reconstituição hipotética de uma terceira hipótese, esta envolta carga simbólica do lugar, terá projetado
Já o Paço dos Duques ofereceu aos ar- numa certa reserva: «Podíamos acrescen- fixar a residência da mais alta figura do
quitetos-restauradores um autêntico tar aqui, somente a título de curiosidade, Estado republicano no lugar onde Portu-
exercício de revivalismo, na reconstitui- a ideia-ensaio espalhada em Guimarães gal havia nascido como nação.
VISÃO H I S T Ó R I A 95
GRANDES OBRAS // RESTAUROS
FOTOS. DGPC/SIPA
Paço dos Duques de Bragança O edifício, de inspiração medieval francesa, antes e depois das profundas obras de que foi objeto
Os arquitetos tinham pela frente uma ta- as ideias que concebera para a elabora- construção de algumas partes do imóvel,
refa que lhes aliciava o seu espírito cria- ção do programa de restauro do Paço de nomeadamente na escadaria de acesso
tivo. O monumento havia sofrido uma Guimarães. Com as obras a decorrer, o à capela, levam ao abrandamento dos
degradação e descaracterização acentua- arquiteto acaba o projeto em todos os trabalhos e ao seu prolongamento até
das devido ao abandono progressivo ao pormenores. aos anos 1960. Por esta ocasião, o arqui-
qual foi sendo votado depois do século A dimensão das obras e a divergência teto então diretor de serviços João Vaz
XVI, com a fixação da residência ducal que se desencadeia com Alfredo Pimen- Martins empreende mais uma viagem,
de Bragança em Vila Viçosa, bem como ta e com outros arquitetos do Serviço desta vez até ao Cairo e a Alexandria,
à utilização pelo Exército para aquar- de Monumentos, na solução dada à re- para refletir sobre pormenores da con-
telamento de tropas já no século XIX. clusão dos trabalhos, nomeadamente dos
Rogério de Azevedo entrega-se ao traba- interiores, a nível de tetos de madeira.
lho com profunda dedicação, conforme O monumento é hoje um museu
sobressai dos seus ofícios e projetos de com interessantes peças de diferen-
obras. Procura fazer um estudo históri- A dimensão das obras tes origens, muitas delas adquiridas
co-artístico do monumento que deseja
alicerçar com uma pesquisa arqueológi-
e as divergências no mercado da arte antiga nacional,
procurando recriar um ambiente pa-
ca. A proposta de influência francesa no desencadeadas levaram laciano tardo-medieval. O seu estudo
traçado do paço, possivelmente de um
tal «mestre Anton de Pedraria», leva ao abrandamento continua a constituir um desafio para
os historiadores de arte, quer a nível
Rogério de Azevedo a empreender uma
viagem, na companhia de Baltazar de
dos trabalhos histórico e ideológico quer no domínio
da ação técnica e de labor artístico que
Castro, pelo Sul de França, pouco tempo e ao seu prolongamento presidiram aos restauros, bem como
antes de rebentar a II Guerra Mundial.
No relatório dessa viagem, Rogério de
no tempo, até as necessárias tentativas de apurar
a traça e as influências originais do
Azevedo afirma ter visto confirmadas à década de 1960 invulgar monumento.
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VISÃO H I S T Ó R I A 99
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