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ANUÁRIO ESTATÍSTICO

DO ILAESE 2019 63

ARTIGOS

De volta ao passado colonial:


a desindustrialização do Brasil
Ana Paula Santana

A
decadência da indústria de transformação brasi- mo dividiu os países entre dominados e dominantes. O Brasil
leira e o avanço da agroindústria e da indústria sempre se localizou entre os países dominados.
extrativa minerária para exportação são faces da Uma das características da economia brasileira desde o pe-
mesma moeda. Veremos que nas últimas décadas ríodo colonial e que perdurou até o início do século XX foi
houve um deslocamento das multinacionais que dominavam a produção de produtos primários voltados para exportação.
a indústria de transformação brasileira para países da Ásia. Uma economia de completa dominação e dependência que ao
Ao mesmo tempo, o Brasil está se tornando o maior expor- longo da história se deu por ciclos de exploração: pau-brasil,
tador de produtos primários como minério de ferro e grãos, cana-de-açúcar, ouro, algodão, borracha e café.
como soja e milho. Nesse processo, a participação do país na No período colonial, por exemplo, um Alvará de 05 de ja-
indústria de transformação mundial que já foi de mais de 5% neiro de 1785, da rainha de Portugal, D. Maria I, simplesmen-
(cinco por cento) está hoje em quase 1% (um por cento). te proibia a existência de fábricas e manufaturas no Brasil,
Não é fato simples que estamos diante do menor cresci- facilitando a importação de mercadorias da nascente indús-
mento da indústria de transformação no Brasil ante o cresci- tria inglesa. Naquela época a Inglaterra já exercia um papel
mento vertiginoso do agronegócio para exportação e da in- de dominância político-econômica no mundo e esse é apenas
dústria extrativa minerária. um exemplo da subserviência do país e de como a decisão de
Pretendemos aqui refletir sobre o lugar que o Brasil ocu- se industrializar ou não, conforme será visto, sempre veio dos
pa e o que já ocupou na Divisão Mundial do Trabalho, es- países dominantes. Isso, claro, é característico dos países colo-
pecialmente no processo de industrialização do país e sua nizados, porém, não se pode perder de vista que o país, mes-
dominação pelas multinacionais. Ademais, procuraremos de- mo após a formal independência de 1822, sempre preservou
monstrar, além da questão da soberania nacional, estratégica, as características de dominação, por isso classificamos o Bra-
também o quão refém o país está da situação do comércio in- sil como sendo uma semicolônia.
ternacional. Além disso, questões como remuneração do tra- Dando um salto na história, chegamos aos anos de 1930,
balhador, exploração, crise econômica e distribuição do capi- na República Velha. Ali predominava a política do café com
tal produtivo no PIB, são temas que também serão abordados. leite, onde as oligarquias paulista e mineira revezavam-se na
Por óbvio, este artigo não se propõe a esgotar o tema. presidência da República e que dominou a economia por mais
Como veremos, muito pode ser explorado a partir dos apon- de três décadas. A República Velha foi estremecida com a “re-
tamentos feitos. O objetivo, contudo, é trazer à tona os prin- volução” que levou Getúlio Vargas ao poder. Bom que se diga
cipais pontos desse mecanismo e de seus impactos na econo- que Getúlio contou com o apoio do governo americano. Não
mia brasileira e, principalmente, na vida dos trabalhadores. é à toa que já na década seguinte o capitalismo norte-ameri-
Ademais, vale destacar que o tema realmente merece maiores cano, não satisfeito com seu mercado interno, incentivou um
reflexões já que o governo Bolsonaro já demonstrou que a po- processo de concentração e centralização de capitais em todo
lítica aplicada será de mais destruição, de estímulo ao agrone- o mundo, na forma de empresas multinacionais. Talvez nas-
gócio e às mineradoras. ça aqui uma nova fase da relação entre Brasil como dominado
e Imperialismo, principalmente norte-americano, como do-
A indústria brasileira nasce dominada minante. Relação essa que só poderá ser dissolvida com uma
Como um sistema mundial que reflete a exploração sobre verdadeira revolução.
a grande maioria da população para a apropriação da rique- Voltando aos fatos, durante a Segunda Guerra Mundial,
za produzida para uma minoria de exploradores, o capitalis- Getúlio declara, em um primeiro momento, neutralidade, de-
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pois chega a flertar com os nazistas, e, por fim, se rende à de um projeto para melhor atender às necessidades da me-
preponderância norte-americana, colocando na guerra uma trópole. Desta forma, a cadeia produtiva nunca foi contro-
força expedicionária com mais de 25 mil homens para a Eu- lada nem mesmo ditada pelos interesses nacionais. A in-
ropa, sendo o único país sul-americano a enviar tropas para dustrialização no Brasil, ao não romper com a dominação
a guerra, deixando então, bem claro seu papel subserviente. estrangeira, foi incompleta e a serviço da dominação das
Ainda durante a guerra é celebrado um acordo onde o Bra- grandes empresas estrangeiras. Os investimentos dos mo-
sil se compromete a adaptar sua indústria às necessidades de nopólios internacionais determinaram o tipo de industria-
guerra dos Estados Unidos, fornecendo, por exemplo, minério lização. E a partir dos anos 90 iniciou-se uma involução da
de ferro e aço para os aliados: assim nasce a Companhia Vale indústria brasileira.
do Rio Doce e a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Por Esta involução na indústria, chamada de desindustria-
outro lado, a Argentina de Perón, que até então ocupava o lu- lização, pode ser caracterizada como uma situação de per-
gar de submetrópole do imperialismo na América do Sul, não manente desinvestimento, na qual tanto o emprego indus-
manifesta posição contundente a favor dos Estados Unidos na trial como o valor adicionado da indústria se reduzem em
guerra, mantendo posição ambígua. É nesse contexto que os proporção ao emprego total e ao PIB. Ao mesmo tempo, o
Estados Unidos fazem a opção de fazer do Brasil a plataforma que vemos é um crescimento do agronegócio e da indús-
continental de dominação como submetrópole privilegiada, tria extrativa mineral. Por isso, dissemos no início que a
totalmente dominada. expressão deste crescimento e o desmonte da indústria de
O Estado Brasileiro forneceu investimentos para viabili- transformação são faces da mesma moeda. Abre-se um pe-
zar a instalação das indústrias multinacionais, garantindo ríodo de decadência que se prolonga e aprofunda.
infraestrutura necessária para a industrialização do Brasil,
dando condições para a indústria de base, como minera- A alta das commodities mascarou a crise
ção, siderurgia, energia, estradas, portos e petróleo. Na in- e o subdesenvolvimento
dústria extrativa bons exemplos são a CVRD e a Petrobrás Analisar a participação da Indústria de transformação
e na indústria de base, a CSN. A Companhia Siderúrgica no PIB brasileiro nos revela as incongruências que o con-
Nacional (CSN) construída entre os anos de 1942 e 1947 ceito de PIB tenta mascarar, como indicado no primeiro
foi uma empresa de desenvolvimento nacional de extre- artigo deste anuário. No gráfico abaixo vemos que duran-
ma importância no sistema produtivo industrial, uma vez te três décadas (dos anos 1940 aos anos 1980) a indústria
que abastecia as indústrias com matéria-prima, principal- de transformação correspondia à média de 25% (vinte e
mente metais. Nesse processo, também a criação da Petro- cinco por cento) do PIB Nacional. Nos anos de 1995 pas-
brás em 1953 possibilitou um significativo desenvolvimen- sou para 16,8% (dezesseis, vírgula oito por cento) e em
to das indústrias ligadas à produção de gêneros derivados 2018 passa para 11,3% (onze, vírgula três por cento), che-
do petróleo, como borracha sintética, tintas, plásticos, fer- gando ao menor percentual dos últimos 70 anos.
tilizantes e outros.
Prestemos atenção ao fato que as indústrias incentiva-
das pelo Estado brasileiro não atendiam a um projeto de de- Indústria de transformação (% do PIB)
senvolvimento nacional, mas sim a melhor forma de como Brasil, 1948 a 2018
servir ao imperialismo norte-americano. A burguesia brasi-
leira, que já nasce incapaz de investir em setores que preci- 27,3%
28% 26,8%
sam de grande quantidade de capital, colocou toda a econo- 26,2%
mia do país a serviço das grandes empresas multinacionais, 26%

principalmente da indústria automobilística. Assim, se ins- 24% 23,2%

talam no Sudeste do Brasil, nas décadas de 50 e 60, empre- 22%


sas montadoras de veículos como Ford, General Motors e 20%
Volkswagen. O que temos em seguida é uma industrializa- 17,8%
18%
ção dependente, subordinada às multinacionais.
16%
O Estado brasileiro foi incapaz de levar a termo o de-
senvolvimento da indústria nacional e, enquanto nos Esta- 14%

dos Unidos empresas recebiam créditos do Estado, apenas 12% 2018: percentual mais
baixo da história 11,3%
em São Paulo, em 1965, foram fechadas 5.000 (cinco mil) 10%
fábricas. Podemos concluir que o Brasil não completou
1948
1952
1956
1960
1964
1968
1972
1976
1980
1984
1988
1992
1996
2000
2004
2008
2012
2016
2018

seu ciclo pleno de industrialização, já que não desenvol-


veu uma indústria nacional e o que desenvolveu fez parte Fonte: IBGE. Elaboração: Paulo Morceiro para blog Valor Adicionado
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Essa queda no principal setor do capital produtivo por cento) de participação na economia brasileira em
revela um grave problema na economia e especialmen- 1995, chegando a atingir 4,5% (quatro, vírgula cinco por
te para a classe trabalhadora. Percebemos que, paralela- cento) do PIB em 2012. Fácil é entender que essa queda
mente a isso, há um crescimento expressivo do setor ex- não foi percebida justamente por conta do crescimento
trativo minerário, que saltou de 0,7% (zero, vírgula sete da atividade minerária.

Participação da Indústria de Transformação e da Extrativa Mineral


no PIB brasileiro de 1995 a 2018
20%
17,79%
18%
16,52%
14,48%
16% 13,81%
16,59%
14% 14,97% 12,47%
14,95% 15,27% 12,55%
12%
Indústria de
10% 12,01% 11,31% Transformação
8%

6% 4,55%
3,51% 3,82%
3,72% 2,99%
4%
2,03% 2,46%
0,79% 0,62% 1,38% 1,03% Extrativa
2% 3,33%
Mineral
0%
1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008 2010 2012 2014 2016 2018

Fonte: IBGE. Elaboração: ILAESE

Contudo, veja-se que curioso. Em 2015, com a queda A nova localização do Brasil:
do valor da tonelada do minério de ferro no mercado in- sem indústrias, sem empregos!
ternacional, o setor entra em crise. Ora, como a indústria
de transformação já vinha em um declínio constante, o re-
sultado não poderia ser outro senão uma “crise econômi-
ca” no país.
Ou seja, a queda do preço do minério fez vir à tona
algo que estava mascarado. Tinha-se a falsa sensação de
que o país vinha em um processo de crescimento econô-
mico, alardeado e propagandeado pelos governos petistas,
mas que na verdade era falso e efêmero. Os números eram
baseados em uma balança comercial positiva por conta de
venda de commodities (onde o minério está incluído) por
preços altamente favoráveis.
A produção industrial brasileira, como dito, já vinha
em franco declínio e o resultado não poderia ser outro. A destruição da indústria não significa somente o fecha-
Isso tanto é verdade que, tão logo iniciada a retomada do mento generalizado de empresas, significa também o aumen-
crescimento da atividade minerária e mantido o processo to do desemprego e do subemprego.
de declínio da indústria de transformação, não houve cres- Notícia veiculada no jornal Valor Econômico de março de
cimento econômico. 2019, revela estudo recente da Universidade Municipal de São
Portanto, é forçoso concluir que a crise econômica que Caetano do Sul (USCS) em que mostra que o PIB industrial
assola o Brasil, reflexo da crise econômica mundial, é um das sete cidades que compõe a região do ABC caiu 16%. Essa
processo complexo, duradouro e profundo que precisará queda, não se dá porque as empresas estão mudando para
ser constantemente analisado. Analisar e entender para to- outras regiões do país e sim porque há um processo de des-
mar ações, uma vez que a classe dominante joga a conta truição do parque industrial brasileiro, gradativamente desde
para cima da classe trabalhadora. a década de 90. A saída da Ford de São Bernardo do Campo
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é somente uma expressão deste colapso a que chegou a pro- Ora, suponho que a ministra não sabe o que é soberania
dução industrial no país. Este modelo baseado na dominação alimentar, nem mesmo soberania nacional. Boa parte do povo
das multinacionais também impôs um grande rebaixamento brasileiro passa fome e vive na miséria, e não se trata de ter
de salários e de direitos aos trabalhadores das indústrias. mangas, se trata de, além de ter o que comer, escolher o que
Mas há outra face da desindustrialização que ainda está vai se comer e em que quantidade; acima de tudo não se pre-
por ser revelada. A nova divisão internacional do trabalho ocupar se terá alimento para a próxima refeição. Será que a
impõe às indústrias que permanecem no Brasil, o papel de se- ministra viveria só de mangas? Poderíamos até diversificar o
rem somente revendedoras. O Brasil está estabelecendo no- cardápio para ela e inserir jacas, pau doce, goiabas, amoras,
vas relações comerciais com países da Ásia, principalmen- que temos aos montes no nosso país.
te com a China. Subsetores da indústria como de máquinas Um dos mitos fabricados intencionalmente na época do
e equipamentos e o setor de eletroeletrônicos, nos últimos Brasil Colonial era que manga com leite causava mal-estar. Isso
anos, têm diminuído a produção em suas fábricas e mesmo para impedir que os escravos consumissem leite, já que o leite
assim aumentado o faturamento. E isso tem se dado com o era um alimento bastante raro e caro, exclusivo dos patrões, os
aumento das importações. senhores de engenho. Como eles não queriam que essa precio-
Esse é o papel que caberá à indústria no Brasil: somente sidade fosse consumida por escravos, inventaram e espalharam
comprar o produto dos países asiáticos e repassar aos consu- a lenda, que sobreviveu até hoje. Vamos ver as próximas péro-
midores. Esse novo fenômeno certamente causará mais de- las deste ministério. Talvez apareça com uma destas, já que a
semprego e mais dominação. intenção é nos fazer voltar ao passado colonial.
Voltando ao tema tratado neste ponto, dos males de ser
De volta ao passado colonial um país exportador de produtos primários, podemos con-
Mas há um outro fenômeno nesse processo e não menos cluir que não temos soberania alimentar porque o campo
problemático. está dominado pela produção para exportação e contro-
O Brasil dispõe de amplos recursos naturais, temos um lado por multinacionais. A produção de cana-de-açúcar,
parque agroindustrial e uma produção agrária com alta pro- soja, laranja e outros não é para atender às necessidades
dutividade, mas que não serve a soberania nacional, pois, as- de consumo do país. Quando há uma concentração na pro-
sim como a indústria de transformação, está dominado pelas dução de produtos primários e que são voltados para a ex-
multinacionais. Pensamos que não é a existência da mono- portação, normalmente o que será consumido será ditado
cultura para exportação o problema central do Brasil, e sim pelo capital financeiro internacional. E por isso, diante de
como os lucros dessa operação industrial são distribuídos, toda riqueza nacional, vivemos assombrados com a incoe-
afinal, o campo também está nas mãos das multinacionais. rência da miséria e da fome.
Cinco companhias controlam mais de 70% dos agroquími- Além da concentração das multinacionais no campo, a
cos: Syngenta, Bayer, Basf, Dow e Monsanto e cinco empre- atividade voltada ao agronegócio é mais propensa à informa-
sas controlam 90% do comércio de cereais: Cargill, Marubeni, lidade e os salários são mais rebaixados se compararmos com
Bunge, Archer Daniels Midland e Louis Dreyfus. outros setores. Aqui podemos dizer que o agronegócio, sinô-
A passos largos o país caminha para acabar com o setor nimo de latifúndio, é uma das razões da miséria no campo e
produtor de mercadorias para o consumo interno e se tornar de conflitos pela terra que resultam na matança de milhares
um país em que a produção é voltada para exportação. Expor- de camponeses pobres no país.
tação de matérias primas, commodities, produtos primários! A atividade agropecuária, no nível tecnológico de hoje,
O significado disto? Não há tomada de decisão no mercado exige pouca mão de obra, o que leva à inevitável conclusão de
interno sobre o que será produzido e nenhuma relação da um excesso de oferta da mesma. E aí é que entra aquela má-
produção com as necessidades reais da população brasileira. xima: quanto maior a oferta, menor o preço. Há um enorme
Em entrevista recente, no mês de abril de 2019, a ministra exército industrial de reserva, conjunto de pessoas sem em-
da agricultura, demonstrou bem a posição do Estado brasi- prego ou no subemprego.
leiro, ao manifestar que pouco se importa com o que produ-
zimos ou mesmo com o que comemos. Tereza Cristina dis- Subdesenvolvimento e atraso são as faces da
se: “A agricultura, para países que já tiveram guerra, que já agropecuária e da mineração
passaram fome, para eles é segurança nacional. Nós nunca Os setores extrativo mineral e agropecuário, únicos volta-
tivemos guerra, nós não passamos muita fome, porque nós dos no Brasil majoritariamente para exportação, apresentam
temos manga nas nossas cidades, nós temos um clima tropi- os maiores índices de exploração do país: isto é, menor per-
cal. Então, aqui nós temos miséria, sim. Nós precisamos tirar centual destinado aos salários e benefícios dos trabalhadores
o povo da miséria. Mas esses países têm muito apreço pelos em relação ao montante acumulado pelas empresas. Esse nú-
seus produtores”. mero é, em média, de 10% (dez por cento).
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Ou seja, se uma dada empresa acumula R$ 10.000.000,00 (dez custos com a produção. Quando comparado ao setor da indús-
milhões de reais) em um dado período, apenas R$ 1.000.000,00 tria de transformação, com as mesmas bases do exemplo ante-
(um milhão de reais) é destinado à remuneração dos trabalha- rior, esse número sobe para 30% (trinta por cento), em média.
dores. Considera-se no exemplo que o valor acumulado se tra- No exemplo acima, então, seriam R$ 3.000.000,00 (três milhões
ta do que a empresa adicionou ao seu capital após descontar os de reais) destinados ao pagamento dos trabalhadores.

2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

Extrativa Mineral 8,28% 6,90% 7,63% 8,40% 9,17% 15,23% 27,92% 16,02% 8,73%
Agropecuária,
9,58% 9,39% 9,98% 9,40% 9,77% 10,36% 9,43% 10,32% 10,46%
extração vegetal
Indústria de transformação 29,79% 32,32% 35,51% 36,20% 35,90% 33,95% 32,16% 32,59% 34,08%
Fonte: Rais e Caged, IBGE. Elaboração: ILAESE

A partir da análise da tabela acima, o leitor deve estar lor adicionado que é o que se chama de renda da terra. Con-
se perguntando do porquê, no setor extrativo minerário, nos sidera-se que o proprietário da terra ou rentista fundiário se
anos de 2015, 2016 e 2017 haver um aumento do percentu- favorece ainda mais em comparação a outros quando as ca-
al de salários, evoluindo, respectivamente, de 15,23% (quinze, racterísticas naturais da terra são favoráveis, ou seja, quan-
vírgula vinte e três por cento), para 27,92% (vinte e sete, vír- do as terras são férteis, não necessitam de muitos insumos
gula noventa e dois por cento) e caíndo para 16,02% (dezes- para produção, quando há água em abundância e estradas
seis, vírgula dois por cento). Note-se, ainda, que em 2018 o para escoar a produção. Este conjunto de fatores não estão
percentual volta ao patamar normal, na casa de 8,73% (oito, diretamente ligados à exploração do trabalho, mas sim às ca-
vírgula setenta e três por cento). racterísticas da propriedade. É este conjunto de fatores que
O que isso quer dizer? Conforme já dito, em 2015 houve determina a renda da terra, que é um ganho extra, que vai
uma queda no preço da tonelada do minério de ferro no cená- além do valor apropriado dos trabalhadores.
rio internacional. Temporariamente, os ganhos dos empresá- A renda da terra faz aumentar a taxa de lucro daqueles
rios do setor foram afetados, mas tão logo o preço do produto que exploram terrenos mais favoráveis para a mineração, pe-
no mercado internacional aumentou, os ganhos voltaram ao cuária e agricultura, porém não aumenta a renda do traba-
patamar anterior. Importante salientar que a elevação do per- lhador. São as condições mais favoráveis que determinarão
centual de remuneração apresentado nos anos de 2015, 2016 quais propriedades serão exploradas e desta forma quem ob-
e 2017 não significou uma elevação dos salários e benefícios terá maior taxa de lucro em um dado período, assim como a
dos trabalhadores, mas tão somente a redução do montante variação de preço de determinados produtos, pois aí depende
acumulado pelos empresários. das condições naturais da propriedade.
Esse é um importante exemplo que demonstra o quão Como a atividade do agronegócio e da indústria extrati-
atrelado o país está ao mercado internacional. va minerária visa a exportação, consequentemente há uma
Quando voltamos os olhos para a indústria extrativa mine- maior concentração de capital, posto que muito pouco da ri-
rária, há a curiosa coincidência de rebaixamento salarial com a queza gerada com essas atividades fica no país. Então, nesse
indústria agropecuária. Entretanto, os salários nesse setor são cenário há uma menor circulação de riqueza.
estatisticamente maiores e ainda gravados com o emprego for- Conforme será dito mais à frente e detalhado nos rankin-
mal. Um fator fundamental para explicar salários maiores na gs deste anuário, os trabalhadores do setor têm um dos salários
indústria extrativa é a presença da Vale. Com efeito, ela possui mais baixos dentre os salários dos setores do capital produtivo.
um enorme papel, pois era uma empresa estatal que herdou Não bastasse isso, como o produto é voltado ao mercado
toda estrutura de salários e benefícios que até hoje perduram, externo, há uma quebra na cadeia produtiva, não há compra
apesar da política de desmantelamento, parte da desnacionali- dos produtos pelo mercado interno, justamente o contrário
zação da empresa. Sendo assim, os valores referentes aos traba- do que ocorre com a indústria de transformação, voltada ao
lhadores da Vale, empurram a média para cima, não refletindo mercado interno.
a realidade do conjunto dos trabalhadores do setor. Para exemplificar o que queremos dizer, tomemos uma fá-
Há ainda algumas particularidades que a agropecuária e a brica de eletrodomésticos: aqueles lotes de produtos fabrica-
mineração carregam, que devem ser consideradas. dos vão para uma transportadora, que por sua vez entrega-
Esses setores, no que toca à exploração, possuem outra rão em uma loja de eletrodomésticos, onde seu proprietário
característica em comum. Além da mais valia, há outro va- empregará um certo número de empregados. Esses eletrodo-
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mésticos são vendidos a um conjunto de pessoas, fechando o O que fica no Brasil dessa riqueza extraída em enormes
ciclo da mercadoria. Veja-se que há uma cadeia de distribui- proporções? Muito pouco ou quase nada. Aliás, o excesso da
ção e geração de riqueza. Fácil é entender que quando se tra- produção na mineração gera crimes como o que a Vale come-
ta de exportações esse ciclo simplesmente inexiste, gerando teu em Brumadinho, sendo o maior acidente de trabalho am-
menos riqueza. pliado de nossa história recente. Ceifou a vida de mais de tre-
Tomemos agora o caso da CSN, já citada aqui, como uma zentos trabalhadores, deixando um rastro de lama que além
das empresas nacionais que cumpriu importante papel na in- de gerar medo constante nas pessoas que vivem no entorno
dustrialização brasileira. A CSN foi privatizada em 1993, ain- de áreas de mineração, ainda destrói de forma irrecuperável
da por Itamar Franco. A promessa era transformá-la em uma os rios, fauna e flora local.
empresa mais rentável, geradora de mais empregos, alavan- É exatamente esse conjunto de fatores elencados que con-
cando a economia. Importante citar esse exemplo, pois nesse figura um país dominado como é o Brasil na atual hierarquia
momento, o plano do governo Bolsonaro e do ministro Paulo de dominação, ou seja, o imperialismo. Mas ainda há um capí-
Guedes é privatizar todas as estatais. Não podemos mais ter tulo repetido, porém recente, que precisamos tocar: o acordo
ilusões sobre isso! Qual foi o resultado com a privatização da do Mercosul/União Europeia.
CSN? Terceirização, rebaixamento de salários e aumento de
crimes ambientas. O que nos revela o acordo do
Além disso, a CSN é um caso exemplar de reprimariza- Mercosul/União Europeia?
ção da economia brasileira. Como isso aconteceu? Retirou-se Muito tem sido propagado na grande imprensa sobre o
o espaço da siderurgia, de alto valor agregado e concentrou acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia. Algu-
na mineração, voltada para exportação de minério bruto. O mas reflexões que reforçam a compreensão sobre a desindus-
ciclo produtivo é simples: 70% do aço produzido na empresa, trialização do Brasil são necessárias, principalmente por con-
alimenta o mercado interno, principalmente o setor automo- ta de sua contemporaneidade.
bilístico, dominado pelas multinacionais. Quanto ao minério O mencionado tratado vem sendo negociado a pelo me-
de ferro, a CSN vende o minério bruto e nós compramos no nos 20 (vinte) anos, tendo seu início no governo FHC na déca-
mercado internacional produtos industrializados mais caros. da dos anos 1990. Então, pergunta-se o porquê de, de repente,
a sua assinatura.
Venda do minério de ferro Temos algumas respostas possíveis:
Há uma intensa guerra comercial entre a China e os Esta-
dos Unidos. Com isso, os Estados Unidos vem se protegendo,
colocando barreiras tarifárias aos produtos chineses. Para se
85,36% 14,64% ter uma ideia dessa realidade, basta ver que no dia 1º de agos-
to de 2019 o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump,
afirmou que vai taxar em 10% (dez por cento), a partir de 1º
de setembro de 2019, US$ 300 bilhões em produtos remanes-
centes importados da China.
A China, diante desse cenário constante de guerra tarifá-
ria, busca a União Europeia como um mercado para seus pro-
dutos. Por sua vez, a União Europeia vê-se numa “saia jus-
ta”, posto que encontra um concorrente muito forte para seus
produtos. Nesse cenário, o Mercosul surge como um “porto
seguro” para escoar ao menos parte dos produtos europeus.
Outra resposta plausível é a queda da venda de automó-
veis novos na Europa. Ora, diante desse cenário, além do des-
Mercado externo Mercado interno
monte das fábricas no Brasil, pode ser muito mais interes-
sante para eles, como temos já indícios, que os brasileiros
Fonte: CSN. Elaboração: ILAESE importem o produto da matriz, com a justificativa de que ha-
verá um barateamento do preço com a queda da tributação
O gráfico acima mostra a divisão das vendas do miné- que hoje é elevadíssima.
rio de ferro para o mercado interno e para o mercado ex- Feitas essas considerações, importante indagar se, de fato
terno na CSN no ano de 2017. Como se vê a CSN está a esse acordo é uma boa notícia para os brasileiros. Se formos
mercê do mercado externo, produzindo matéria prima que raciocinar dentro da perspectiva do que temos debatido até
será incrementada e valorizada nos países estrangeiros. aqui, veremos que a aliança entre Mercosul e União Europeia
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não é necessariamente algo que mereça comemorações. Ob- tivemos oportunidade de sustentar até aqui.
viamente, isso depende também do que se pensa e se espera Esses são pontos que merecem a reflexão de todos. En-
de um projeto de país em termos político-econômicos. tão pergunta-se: que tipo de economia isso gera? Que tipo
Vejamos então. A motivação colocada acima cai como de crescimento? Gera emprego ou retira emprego? Quem vai
mão à luva com o que temos debatido sobre desindustrializa- ser beneficiado?
ção. Ora, se o país está num processo agudo e crescente de de- Podemos concluir que a fragilização da indústria de trans-
sindustrialização, o tratado anunciado simplesmente encerra formação brasileira pode fazer com que a concorrência euro-
qualquer perspectiva de retomada de um processo de indus- peia passe despercebida. Mas esse acordo, eleva ainda mais a
trialização. O terreno fica pronto para recebermos os produ- fragilização estrutural e representa um passo maior no cami-
tos industrializados europeus, o que já é bastante coisa. nho para acabar de vez com desenvolvimento industrial. Os
Sob uma outra perspectiva, as bases também ficam pron- ganhos imediatos que se pode ter, vendendo ainda mais com-
tas para que o Brasil forneça aos Europeus o que eles neces- modities em troca da ampliação do desmantelamento do setor
sitam: matéria prima. Ou seja, privilegia-se o agronegócio e a produtivo, pode gerar a mesma falsa sensação de crescimento
indústria extrativa minerária. que identificamos com a comparação do crescimento da indús-
Feitas essas considerações, será que seria esse mesmo o tria extrativa minerária e da indústria de transformação.
modelo de país que gostaríamos? Veja que esse modelo, ine- Como já dissemos, há um fenômeno que tem crescido no
vitavelmente, privilegia o latifúndio e as monoculturas. Es- Brasil. Algumas fábricas já compram máquinas e equipamen-
tes, por sua vez, trazem consigo menos postos de trabalho e, tos da Europa, principalmente da Alemanha (mas também da
para os que trabalham no setor, salários rebaixados e péssi- China) e apenas revendem produtos industrializados estran-
mas condições de vida. Significa, ainda, concentração do ca- geiros para o mercado interno. É de fato um retorno incre-
pital, que não circula e não gera riqueza para o país, como já mentado ao passado colonial!

ENTREVISTA

“Já não tem mais fábricas,


parece mais museu”
Entrevistamos Josias de Oliveira Neto, nascido em São José dos Campos. Montador de
automóveis da General Motors de 1976 a 2000, foi dirigente sindical entre os anos 1989 e 2000,
quando passou a organizar os trabalhadores aposentados. Hoje, aos 70 anos, é diretor da
Associação Democrática dos Aposentados do Vale do Paraíba – ADMAP.

Ana Paula: São José dos Campos é a cidade Polo da (fábrica de produtos alimentícios), lá tinha, dentro da fábri-
região do Vale do Paraíba, região de mais de dois ca, três chefes que batia no peão lá dentro. Era muita pres-
milhões de habitantes. Polo industrial e tecnológico, são, mas era fácil sair de uma fábrica e entrar na outra. A
que abriga empresas multinacionais como a General gente tinha emprego, então vivíamos melhor. Eu mesmo,
Motors e de alta tecnologia como a EMBRAER, além antes de ir para a GM, trabalhei na Alpargatas, que produ-
de centros de pesquisa, incubadoras e universidades zia calçados, na Ericsson e na Bund.
como o ITA. Tinha muita produção e emprego na metalúrgica, na
Conta para a gente como era a cidade de São José dos construção civil, nas redes de produtos alimentícios. Ti-
Campos nos anos 70? nha fábricas de calçados, como a Alpargatas que chega-
vam a ter mais de seis mil trabalhadores. Na década de 70
JOSIAS: A cidade era pequena, mas existia muito em- para cá começou a chegar as grandes indústrias. Eu mes-
prego. Apesar da pressão que existia nas fábricas, pois vi- mo, tudo que construí na minha vida, foi com as indeni-
venciamos uma ditadura militar, tínhamos emprego e a gen- zações de quando saía de uma fábrica e ia para outra. Foi
te podia escolher. Eu trabalhei por exemplo no Matarazzo assim que construí o que tenho hoje. Quando eu entrei na
ANUÁRIO ESTATÍSTICO
70 DO ILAESE 2019

GM, por exemplo, eu tinha sido chamado para a EMBRA-


ER e para a Engesa e escolhi a GM. Tinha mais de uma
oferta de posto de trabalho.

Ana Paula: Sabemos que ao longo dos últimos


cinquenta anos há uma mudança no modo de
produção. Como era organizada a produção dentro das
fábricas? Como era o maquinário?

JOSIAS: Na década de 70, o maquinário era muito obso-


leto, usava muito trabalho braçal e quase tudo era manual,
inclusive muitos trabalhadores deste período desenvolveram
doenças como a ortomoleculares. Com a modernização na
década de 80, a situação para os trabalhadores não melhorou,
porque a máquina que ditava o ritmo, então o ritmo era mais
acelerado. O que ajudou na década de 80 quanto ao ritmo e
forma de trabalho foi a organização do movimento sindical,
que impunha limites.
A pressão nas fábricas era ainda forte, a forma que tratava JOSIAS: A GM, que era onde eu trabalhava, era uma cidade,
quem não entrava na linha era no tapa. Muitos trabalhadores a gente tinha que rodar dentro da fábrica de ônibus, era uma fá-
que discordavam e questionavam eram chamados para uma brica muito grande, que produzia quase todas as peças do carro.
salinha e lá três capatazes fortes intimidavam e espancavam Quase tudo era produzido lá dentro, o parafuso, a biela, o cabe-
os trabalhadores. O movimento sindical começou a crescer, e çote, o eixo de comando. Hoje empresas como a GM, a Volks, são
aí tinha denúncias, tinha imprensa, tinha movimento que fez somente montadoras e as peças acabam vindo de fora. Por um
esses espancamentos diminuir. tempo, depois que deixou de fabricar as peças dentro da própria
A modernização não facilitou a vida de ninguém, pelo empresa, ainda se terceirizava para fábricas menores da região.
contrário, trabalhávamos mais e alguns perdiam emprego. Hoje não é mais assim, vem quase tudo de fora.
Por exemplo, na GM eu trabalhei no setor das prensas, que ti- O sistema capitalista começou a descentralizar as fábricas,
nha umas dez linhas que trabalhavam umas 40 pessoas. Com além de diminuir o número de trabalhadores em uma mesma
os robôs controlando, ficou somente quatro linhas e uma pes- fábrica, esses trabalhadores não conseguem ver o processo
soa em cada ponta, isso significa que os empregos foram em- completo de produção. Foi uma forma que encontraram para
bora. Mas neste período ainda tinha emprego, até a década de aumentar os lucros, criaram banco de horas, participação nos
90, quem saia de uma grande fábrica tinha como ir para as fá- lucros, o discurso era de mais produtividade e nós não víamos
bricas menores. São José era um celeiro de empregos, a situ- o processo produtivo completo. Também, na minha opinião,
ação de vida era boa. essa nova forma de organização do trabalho afetou a organi-
A partir dos anos 90 começa a fechar fábricas. A Kodak zação dos trabalhadores, ficamos mais dispersos e menos or-
fechou, o Matarazzo e a Ericsson se resumiram a quase nada, ganizados. Uma vez eu visitei a Volks, era uma coisa bonita,
a própria GM que antes tinha quinze mil trabalhadores dire- mais de quarenta mil trabalhadores, na porta da fábrica ven-
tos, sem contar os terceirizados, hoje tem só uns quatro mil. dia de tudo, era uma festa a hora da saída, os trabalhadores
Não somos contra a tecnologia, mas queremos que a paravam, conversam, um sabia da vida do outro, então podia
tecnologia sirva para que os trabalhadores tenham melho- praticar a solidariedade e também se organizar para melhores
res condições de vida. Se gastamos menos tempo para pro- condições de trabalho.
duzir mais, então deveríamos trabalhar menos horas, ter
mais tempo disponível para lazer, para conviver com a fa- Neste momento entrou na sala uma trabalhadora do setor
mília. Mas não é isso que acontece. Apesar da moderniza- de eletroeletrônicos, Janaina dos Reis, hoje dirigente da CSP
ção, o ritmo é muito acelerado, isso causa mais acidentes e Conlutas e entrou no bate papo, explicando que nas fábricas do
doenças do trabalho. setor de eletroeletrônicos também aconteceu essa mesma mu-
dança na forma de produção.
Ana Paula: Como você disse, as maiores fábricas
viraram um museu. Se você fosse comparar essas JANAINA: Na Philips tudo era feito na planta, um exem-
fábricas nos anos 70 com o que são nos dias de hoje, o plo são os monitores e defletoras que é o canhão que vai den-
que você pontuaria? tro da televisão para refletir a imagem. A tela, os componen-
ANUÁRIO ESTATÍSTICO
DO ILAESE 2019 71

tes, o enegrecimento de cones metálicos (cones que eram de dois salários-mínimos. Em uma cidade como essa, que o
usados no tubo da televisão para tornar o aparelho inoxidá- custo de vida é alto, não dá para arcar com todas as despesas
vel) tudo era feito dentro da mesma planta. Até 1995, boa par- com dois salários. O pessoal está deixando de comer, por isso
te desse processo produtivo era feito no mesmo polo, foi nes- os supermercados estão fechando, o povo está vivendo pior.
se período que fechou o setor de produção de monitores. A Antes não tinha na cidade pessoas pedindo nas ruas, agora
partir dos anos 2000, a Philips passa a importar todos os ma- todo lugar nós vemos alguém pedindo, pessoas morando nas
teriais, tudo já vem pronto e algumas peças montadas, o anel ruas, trabalhadores que foram demitidos da EMBRAER estão
que ia no tubo já vinha com as braçadeiras, antes era soldado indo trabalhar de UBER.
dentro da fábrica. Se for analisar, a Philips deixa de ser uma É muito triste para nós, aposentados, que vivemos um pe-
produtora de televisão e passa a ser uma montadora. Os co- ríodo que tinha empregos na cidade, que conseguíamos com-
nes que era um produto nacional passou a ser importado da prar nossa casa, ver hoje o povo vivendo dessa maneira. E
Holanda. Nos anos finais da Philips era só colocar a tela na sabemos que ainda as condições para os aposentados podem
embalagem, não tinha mais o produzir, o que restou também piorar. Os aposentados estão assustados de ver os lugares
foi terceirizado. onde trabalhavam virando museus e os mais jovens não sa-
O mais impactante foi o fechamento da fábrica, que deixou bem onde vão trabalhar.
de existir no Sudeste e nos outros lugares do Brasil, deixando A classe trabalhadora não tem fronteiras, não teria pro-
uma planta, praticamente uma portinha em Manaus. A Philips blema se não tivesse indústria aqui, contando que tivesse uma
passou a importar televisores da China e da Índia prontos e so- forma planificada mundial de organização da economia. O
mente colocar a etiqueta e a embalagem, isto desde 2007. problema é que quando ficamos sem indústria, acaba os em-
pregos e ficamos reféns do que o capital financeiro quer que
Ana Paula: Após o fechamento de várias fábricas na a gente compre.
região como ficou as condições de vida da população? Em Taubaté, a LG fechou o setor de linha branca este mês
(07/2019) e 70 pessoas ficaram sem emprego. Me dói ver a
JOSIAS: Na zona sul de São José dos Campos, tinha mui- EMBRAER que era uma empresa que tínhamos orgulho, de
tas fábricas pequenas que forneciam peças para as multina- tecnologia nacional, ser entregue como foi.
cionais, isso a partir da década de 90, quando foi descentrali- Também na organização sindical, enfrentamos proble-
zando e terceirizando o trabalho. Hoje esse lugar é quase um mas, porque com todo esse desemprego e falta de fábricas,
deserto, poucos trabalhadores, vários restaurantes fecharam, ficamos mais dispersos. Temos que nos unir, temos que ter
supermercados da região fecharam. uma saída que resolva de vez um caminho para o Brasil, que
Antes quem trabalhava nessas fábricas pequenas tinham é um país rico, mas que o povo é pobre por causa da ganância
como viver, tinham salários que ainda dava para pagar um dos patrões e da falta de políticas do Estado. Todos os gover-
aluguel. Hoje, quem trabalha nas empresas maiores, por nos sempre deram dinheiro para as multinacionais e sufoca-
exemplo, na própria GM estão sendo admitidos com menos ram os pequenos empresários que são do país.
ANUÁRIO ESTATÍSTICO
72 DO ILAESE 2019

ENTREVISTA
“O maior impacto para os trabalhadores
foi o medo do desemprego.”
Conversamos com Valério Vieira dos Santos, 59 anos, vive na região de Mariana, Minas Gerais e atua junto
aos sindicatos de trabalhadores da região da mineração dos Inconfidentes – MG, desde 1989. Técnico em
eletrônica trabalhou na Vale desde o inicio do projeto da Mina de Timbopeba na década de 80. Foi presidente
do Metabase Inconfidentes por seis anos e hoje é vice-presidente desta mesma entidade.

ILAESE: Quando afirmamos que a predominância


da produção do setor extrativo minerário é para a
exportação, isso significa que pouco da riqueza fica
no lugar de onde é extraído o minério. Como você
vê esse impacto nas cidades em que se instalam
mineradoras, do ponto de vista do povo das cidades
e dos trabalhadores do setor?

VALÉRIO: Esta pergunta me vem a cabeça dois mo-


mentos distintos que exemplifica bem os malefícios da
produção quando é toda voltada para a exportação. Veja o
caso da Vale, que foi privatizada em 1997 e é quando alte-
ra todas as condições de trabalhadores e a relação da em-
presa com os municípios onde se instalava. Até 1997, não
que era um sonho, uma maravilha trabalhar na Vale, mas a
empresa tinha uma visão mais nacionalista. Se olhar o lu-
cro da Vale na década de 80 e até a privatização em 1997,
não eram lucros exorbitantes como hoje, mas os resultados
são muito parecidos. Ao mesmo tempo que lucrava mui-
to, também investia no povo e na qualidade de vida das
cidades mineradoras, de certa forma ela trazia desenvol-
vimento para as cidades. Ao ser privatizada toda essa ló-
gica mudou muito e predominou a filosofia de lucro pelo exemplo, no bairro jardim dos inconfidentes, as casas e o
lucro, para beneficiar os acionistas, que eram estrangeiros. bairro foram todas construídas por uma fundação chama-
O controle acionário da empresa passou a ser feito pelos da Vale do Rio Doce. Tinha uma fundação voltada para
grandes bancos internacionais. Como havia uma delimita- criar, desenvolver e implementar projetos que previam as-
ção política da empresa e do próprio sistema, o lucro passa faltamento, saneamento básico, iluminação, etc. Os bairros
a ser todo remetido ao exterior, a situação foi só piorando tinham projetos arquitetônicos agradáveis para os traba-
tanto quanto as condições de trabalho como as condições lhadores. Entregava-se bairros de qualidade dentro das ci-
de vida das cidades. Chegamos ao ponto que é hoje e como dades. Isso se deu em Mariana, em Itabira e outros locais
o reflexo mais claro os crimes que foram cometidos pela do país, como Carajás no Pará. Concluímos que em algum
Samarco em Mariana/ Bento Rodrigues e pela Vale em momento com uma política que não era de extrair tudo, as
Brumadinho que são frutos de uma política consciente de cidades também recebiam investimentos. Vemos por esse
ir na contramão dos interesses dos trabalhadores e das co- exemplo que há diferença quando uma empresa é admi-
munidades vizinhas da mineração. nistrada pelo Estado, ela dava mais valor aos aspectos so-
Antes da privatização da Vale se tinha uma maior pre- ciais e ambientais. Isso refletia na relação que os trabalha-
ocupação com as cidades. O exemplo que eu gosto de ci- dores tinham com a empresa, que era de um certo ‘afeto’.
tar são as vilas operárias. Essa região onde estamos, por Quando falamos para os trabalhadores que a privatização
ANUÁRIO ESTATÍSTICO
DO ILAESE 2019 73

iria mudar tudo isso, aumentando a exploração das cidades moradores do entorno das minas. Ela está somente aguar-
e dos trabalhadores, alguns não acreditaram. Hoje vemos dando para voltar a produzir nos mesmos níveis de antes
que os salários diminuíram drasticamente, os salários da deste crime, porque houve uma ameaça de perder acionis-
Vale já se aproximam a média da indústria, além disto não tas estrangeiros importantes e ela quer deixar parecer que
há nenhum investimento nas cidades e as cidades ficam re- está reformulando sua forma de trabalhar.
féns da atividade de mineração. Neste cenário, ganhamos a estabilidade dos trabalhado-
res da Vale até abril de 2020, o que é importante para nos-
ILAESE: Em 25 de janeiro de 2019, vimos o maior sa luta. Mas o que vai ser depois de abril? Será o que a Vale
crime ambiental e o maior acidente de trabalho vai fazer? Todas essas questões nos remetem ao futuro de
ampliado da história do nosso país. O curioso é Minas Gerais, que infelizmente não vejo com bons olhos. A
que esse crime, chamado de acidentes por muitos, produção do minério em Minas Gerais tem caído há quase
se deu quando a produtividade do setor extrativo uma década e essa região que é dependente da mineração,
minerário, especialmente das minas onde a que os postos de emprego são da mineração e a economia
Vale estava explorando na região aumentou. gira em torno desta atividade, padecerá ainda mais. A região
Nos explique como isso se dá: quanto maior a afetada pelo crime que a Vale cometeu em janeiro de 2019
produtividade, maiores as probabilidades de em Brumadinho, só retoma, e se retomar ,próximo a abril de
acontecer crimes? 2020, que é o vencimento da estabilidade dos trabalhadores.
Poderá haver uma transição de produção da região sudeste
VALÉRIO: Veja o que acontece, a empresa minerado- para o norte do Brasil. Então, os trabalhadores e o povo de
ra escolhe a região que vai explorar e muitas vezes compra Minas Gerais poderão ficar somente com os buracos, a de-
de empresas menores com instalações obsoletas e ultra- vastação dos recursos naturais, a destruição dos rios e as lá-
passadas, com barragens construídas para sustentar uma grimas por aqueles que se foram.
produção muito menor do que acontece de fato, e aí não Existe ainda uma dinâmica do mercado mundial que
faz nenhum investimento. Aumentam exponencialmente indica redução do consumo de minério de ferro, fruto da
a produção nesses locais, sem se preocupar em estruturar guerra comercial dos Estados Unidos com a China e a re-
a mina para esse aumento de produtividade. Não há com- tração da economia. Associando essas questões do merca-
promisso com as comunidades do entorno, não há políticas do mundial, que o Brasil sempre ficará refém, com a bus-
sérias de segurança e isso é um risco calculado por essas ca de lugares onde se produz a mais baixo custo dentro do
empresas. Há um descuido com a manutenção das barra- país, poderá haver uma concentração de produção para lo-
gens e há falta de equipamentos de segurança, os traba- cais como Carajás no Pará.
lhadores não tem tempo para olhar sua própria segurança
pois é exigido sempre mais produtividade. ILAESE: Com a crise do preço da tonelada do
O município de Bento Rodrigues, atingido pelo crime minério no mercado mundial em 2015, qual foi
em 2015, foi destruído, até hoje os moradores dali sofrem impacto para os trabalhadores?
consequências deste crime. De 2007 a 2015, a Vale vinha
ampliando a produção da Samarco com uma estrutura não VALÉRIO: O maior impacto para os trabalhadores foi
preparada para esse aumento de produção. E após tudo o medo do desemprego. As cidades mineradoras tem uma
isso acontecer, a Vale está agora com uma conversa de que economia dependente da mineração. De se contar, que ain-
o futuro vai ser muito bom para os trabalhadores, porque da onde está a Vale tem salários e benefícios maiores, po-
vai instalar caminhões autônomos, aqueles que não preci- rém o medo paira quando diminui a produção. O segundo
sam de motoristas. efeito foi o próprio desemprego. Me lembro de que nesta
época muitos trabalhadores de Timbopeba foram transfe-
ILAESE: Após o crime que a Vale cometeu em ridos para o Norte do País, em Carajás, onde a extração do
Brumadinho e após toda a cobertura de imprensa e minério é mais fácil. É comum, em momentos de maior cri-
mobilização da sociedade, poderá haver uma mudança se que a Vale concentre mais trabalhadores naquela região.
na forma de exploração do minério pela Vale? Lá os salários são menores dos que os da Região Sudeste e
a extração é mais fácil.
VALÉRIO: Eu acredito que a Vale não mudou sua es- A Vale sabia que não voltaria às mesmas condições de
tratégia e não mudará sua forma de trabalhar. Mesmo após produção na região dos Inconfidentes, então transferiu mais
esses crimes e todo clamor social, ele fez apenas uma reti- trabalhadores para Carajás, e aqui se manteve um número
rada de cena para voltar a atuar da mesma forma, sem ne- de trabalhadores diretos. Muitos destes trabalhadores já re-
nhuma garantia de segurança para a população e para a os tornaram, porém fica sempre a incerteza do que será.

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