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Educação a distância e as novas clivagens educacionais*

Wagner Braga Batista**


wbraga@uol.com.br

Introdução
O artigo examina os limites e as possibilidades da educação a distância, impulsionada pela
economia de mercado e pela inspiração liberal. Aponta suas virtualidades e digressões,
provocadas por um modelo de desenvolvimento socio-econômico que favorece a privatização e
impõe restrições de acesso ao ensino público, gratuito e socialmente referenciado. Observa
que essas digressões foram aprofundadas pela integração passiva do ensino à economia de
mercado em escala mundial. Essa orientação contribuiu para que corporações transnacionais
constituíssem redes de ensino de alcance global, configurando um amplo mercado educacional
graças à educação a distância1. Essa tendência afeta trajetórias históricas e a perspectiva de
integração socio-econômica de países periféricos, bem como a identidade e as peculiaridades
educacionais e culturais dos povos latino-americanos.
A herança do modelo ultraliberal praticado no Brasil constituiu sérias barreiras para a
implementação de um projeto educacional referenciado em demandas sociais substantivas.
Esse modelo ainda subsiste como impregnação ideológica, apesar de seus evidentes fracassos
políticos e econômicos, expressos pelo aumento da dívida externa, da crise fiscal do Estado, da
privatização e da desnacionalização de setores dinâmicos da economia, pela perda de
capacidade de intervenção estratégica e da escalada regressiva que acelerou o
empobrecimento, o desemprego, a violência e a desagregação social.
No campo da educação, o modelo ultraliberal difundiu valores que reduziram a educação a um
recurso meramente instrumental. Alimentou o pressuposto de que a educação equivaleria a
capital humano, êmulo do empreendedorismo, da empregabilidade e da governabilidade.
Contudo, essas formulações mostram-se inconsistentes no atual contexto socio-econômico. A
deterioração social e o deslocamento de atividades competitivas para patamares econômicos
mais elevados, nos quais impera o capital financeiro, limitou as possibilidades de que a
educação seja fonte de emprego em larga escala. A disseminação de investimentos
especulativos e do trabalho improdutivo definiu um novo padrão para o ensino, que está, desta
feita, colado em tendências do capital financeiro. Nesse diapasão, proliferaram cursos
prescritivos, nutridos pela lógica das competências exigidas pela economia de mercado; dentre
elas, podemos elencar as especializações em administração de finanças e de empresas por
intermédio da educação a distância.
Grosso modo, a educação acompanhou a tendência de expansão da economia de mercado. O
capitalismo generalizou a produção de mercadorias, transformando a educação numa delas.
Essa tendência não é irrefutável, nem irreversível. Portanto, deve ser identificada, analisada e
superada criticamente.
A educação a distância, ao incorporar novos implementos técnicos, acelerou e aprofundou essa
tendência.
Contudo, essa modalidade de educação reveste-se de aspectos controversos. Quando
empregada por políticas sociais, pode ampliar e melhorar a educação pública; porém,
promoveu ações supletivas e compensatórias. Apropriada por redes de ensino privadas,
propiciou altas taxas de lucro por meio do ensino de elite e do treinamento corporativo. Essas
digressões são características da educação mercantilizada. Dotada de elevado valor simbólico

*
Publicado na Revista PUCVIVA - Publicação Acadêmica e Informativa Trimestral dos Professores da PUC-SP, Edição nº
24, julho/setembro de 2005. Disponível em: < http://www.apropucsp.org.br/revista/r24_r02.htm >. Acessado
em: 27/03/2007.
**
Wagner Braga Batista é professor do curso de Desenho Industrial da Universidade Federal de Campina Grande,
PB.
1
“ Sob hegemonia liberal, e seguindo diretrizes de agências financeiras multilaterais, projetos de educação a distância
viabilizam as perspectivas da Organização Mundial do Comércio – OMC de transformar o ensino e saúde, serviços
essenciais, em objetos de oscilantes investimentos privados. Sob essa perspectiva, o ensino a distância ao invés de
universalizar o direito à educação contribui para internacionalizar o mercado educacional”. BATISTA, Wagner Braga.
Educação a distância: da universalização de direitos à internacionalização do mercado educacional. Revista ADVIR, Rio
de Janeiro, ASDUERJ, nº 14, setembro de 2001, p. 101.
e carente de substrato humanístico, a educação despoja-se de sua virtualidade socializadora.
Nesse viés, a educação a distância restaura antigas clivagens educacionais e sociais.

Educação e concentração econômica


A apologia do ensino a distância é similar à disseminação da idéia de que o desenvolvimento
técnico-científico será capaz de superar disparidades sociais. Historicamente, essa suposição
não se confirmou. A difusão desigual de novas tecnologias aumentou descompassos
socioeconômicos. Ampliou o fosso que separa continentes, países centrais e periféricos,
regiões e bairros de uma mesma nação. A concentração de riquezas, bem como do estoque de
tecnologias e de bens materiais, acentuou a distância entre ricos e pobres em todos os
quadrantes, seja entre as nações mais prósperas, seja entre as mais carentes de recursos.
Reportando-se à recente matéria da revista inglesa The Economist, Sader salienta essas
discrepâncias 2. Os vinte e cinco milhões de norte-americanos mais ricos detêm o equivalente à
renda de 43% da população mais pobre do mundo, cerca de dois bilhões de seres humanos.
Esses hiatos também podem ser observados em indicadores educacionais.
Na atualidade, há 876 milhões de analfabetos no mundo, dos quais 64% são mulheres, grande
parte submetida a relações sociais opressivas. Desse contingente, 42 milhões se localizam na
América Latina e no Caribe. Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira- INEP, em 2004, o Brasil teria 15,2 milhões de analfabetos. A maior
concentração de analfabetismo ocorre na zona rural, na qual 28% dos adultos são analfabetos.
Há forte correlação entre analfabetismo e pobreza.
O analfabetismo e a baixa escolaridade não são responsáveis pelas desigualdades sociais, mas
sim apenas indicadores de sua existência.

Educação e mistificação tecnológica


A mistificação de recursos técnicos ou de modalidades de ensino alimenta a suposição de que
intervenções parciais e localizadas podem superar disparidades sociais. Induzem à crença de
que problemas estruturais e sistêmicos serão corrigidos com programas ou projetos
focalizados. Graças a esse discurso, educadores deixam-se seduzir por proposições
salvacionistas que identificam em tecnologias ou equipamentos sofisticados possíveis
alternativas para problemas sociais crônicos. Transportam soluções técnicas aplicadas em
países centrais para realidades socioeconômicas bastante distintas. Ignoram que as
tecnologias são respostas para problemas particulares, pois sua funcionalidade advém da
capacidade de superar adversidades ou contradições sociais identificadas em determinados
contextos. Ainda que seu emprego possa se universalizar, não pode perder de vista condições
que asseguram sua difusão. A transferência indiscriminada de tecnologias distorce essa lógica.
A sua incorporação acrítica, desprezando peculiaridades econômicas, culturais e educacionais,
tende a aprofundar disparidades sociais.
Essas considerações não têm sido levadas em conta pelos que professam a adoção
incondicional das novas tecnologias da informação e da comunicação. Valorizam o uso
indiscriminado da informática, sem atentar para as condições que viabilizam sua incorporação.
A exaltação do projeto de Nicolas Negroponte e Seymour Papert, vinculados ao Massachusetts
Institute of Technology – (MIT) é emblemática dessa conduta. Esses dois pesquisadores
estiveram no Brasil para apresentar o projeto-piloto desenvolvido nessa instituição de ensino
norte-americana para o Ministério da Educação 3. Trata-se de um laptop que pode ser adquirido
por R$ 250,00 e que será distribuído entre um milhão de estudantes de escolas públicas a
partir de 2006. A proposta prevê a distribuição para todos os alunos da rede pública até 2010.
Atualmente, há cerca de 40 milhões de alunos matriculados no ensino fundamental. Essa
proposição, celebrada por governantes e professores, tende a decalcar um método de
intervenção educacional sem correspondência com a realidade social.
Identificamos alguns de seus rudimentos na experiência desenvolvida em Nova Iorque.No final
da década de 1990, a secretaria de educação de Nova Iorque entregou vários laptops para
crianças matriculadas em escolas públicas de bairros pobres. Os resultados dessa iniciativa

2
SADER, Emir. Luta de classes na América Latina. Agência Carta Maior, URL: <
http://agenciacartamaior.uol.com.br/agencia.asp?coluna=boletim&id=1394 >. Acessado em 29 de julho de 2005.
3
Instituto americano apresenta projeto de inclusão digital a Lula. Gazeta on line URL: < http://gazetaonline.globo.com
>. Acessado em 30 de junho de 2005.
paulochagas@terra.com.br 2
foram significativos. Não só as crianças, como também seus pais sentiram-se mais motivados
para estudar. Pessoas adultas, com baixa escolaridade, viram-se compelidas a aprender.
Estimuladas pelos filhos, resgatavam conhecimentos fornecidos pela educação escolar e
aprendiam a manejar esse novo equipamento. Ao desenvolverem essa aptidão, superavam
barreiras técnicas. Rompiam, também, resistências e preconceitos típicos da baixa
escolaridade. A iniciativa educacional deflagrada nas escolas novaiorquinas penetrou o núcleo
familiar. Produziu estímulos e desdobramentos positivos. A ação dos pais não se limitou ao
exercício do ensino/aprendizagem. Buscando proteger seus filhos de furtos, passaram a
acompanhá-los até a escola, vivenciando alguns de seus problemas e integrando-se a algumas
de suas rotinas.
Contudo, seria ilusório supor que esses resultados se reproduzissem em escolas brasileiras,
principalmente em áreas rurais ou comunidades favelizadas sem fontes de suprimento de
energia e serviços básicos. Porém, projetos dessa natureza não são novidades no Brasil.
Causaram grande impacto publicitário e poucos resultados plausíveis.

Educação e modernização conservadora


O Ministro Paulo Renato de Souza alardeou a cobertura de matrículas de 97% das crianças em
idade escolar no ensino fundamental e fez propaganda da difusão tecnológica no campo
educacional. No entanto, a qualidade da educação mostrou-se pífia. Não resistiu à avaliação
criteriosa. Há grandes contingentes de alunos que, após cinco anos de estudo, não sabem ler e
realizar operações matemáticas. Políticas educacionais foram subvertidas pelo marketing
político. Durante o governo FHC, a educação converteu-se em veículo de promoção política,
capitalizando indicadores quantitativos sem lastro pedagógico. Lamentavelmente, essa
estratégia ainda não foi revertida. A drástica imagem da modernização conservadora que ainda
se faz presente no cenário educacional torna-se cristalina na charge de Angeli 4 reproduzida a
seguir:

ANGELI – Folha de São Paulo, 29 de novembro de 2000.

4
ANGELI Filho, Agnaldo. Modernização do ensino público (charge). Folha de São Paulo, 1º caderno, 29 de novembro de
2000, p A2.
paulochagas@terra.com.br 3
Essa advertência é oportuna. Não podemos desprezar oportunidades de acesso às novas
tecnologias, nem tampouco deixar de aplicá-las intensivamente na educação. Contudo, a
adoção de tecnologias deve ser criteriosa. Pressupõe diagnóstico e planejamento eficazes que
não distorçam os problemas educacionais em questão. Suportes técnicos não são tábuas de
salvação. Não asseguram padrões de qualidade para a educação. Implementos técnicos não
devem estar dissociados de concepções pedagógicas consistentes.
Recursos técnicos são necessários para a educação, porém são insuficientes para garantir a
qualidade do ensino. Contraditoriamente, podem mascarar desempenhos deficitários. Estes
são sanados pela reflexão pedagógica, a qual orienta a ação educacional e propicia o
balizamento indispensável à utilização de recursos didático-pedagógicos, os quais incluem as
tecnologias da comunicação e da informação.
A pedagogia não é uma ferramenta que pode ser manipulada de modo instrumental
para credenciar recursos técnicos ou equipamentos sofisticados. Advertimos que a
modernização instrumental converte-se em expediente que lança pressupostos
educacionais na vala comum do ensino prescritivo. A incorporação de novas tecnologias
deve, diversamente, considerar o ambiente socioeconômico e cultural existente.
Conforme assinalamos anteriormente, as tecnologias e as culturas não são como
esparadrapos ou aderentes utilizados de modo incondicional.
Ao abstrair condições materiais e a cultura técnica precedente, a difusão tecnológica torna-se
infrutífera. No campo da educação, essa premissa também é válida. Os problemas
educacionais não são resolvidos por meio de implementos técnicos.
Todas as propostas educacionais devem ser examinadas à luz de uma visão sistêmica. Os
projetos devem ser contextualizados e viabilizados por meio de um planejamento estratégico,
capaz de identificar e solucionar problemas educacionais. Intervenções tópicas podem
comprometer a natureza, o sentido e o alcance das políticas educacionais.
A modernização educacional não é um fim em si. A exclusão digital é um epifenômeno da
exclusão social, e não será debelada por meio de programas assistenciais ou de projetos
focalizados. Contudo, essa ponderação não implica que deixemos de lado graves problemas
localizados. Não podemos perder de vista o hiato entre condições de ensino nas escolas de
elite e as existentes na quase totalidade da rede pública de ensino fundamental e médio.
Se não houver investimentos que minimizem essas disparidades, condenaremos crianças e
adolescentes a conviver com a pobreza e o fracasso educacional. Porém, pouco adianta fazer a
propaganda da modernização educacional de uma educação sem substância e promover a
modernização tecnológica num sistema educacional sem substrato, que reproduz relações
assimétricas.
Em nome da modernização do ensino, projetos de educação a distância têm servido para
falsear padrões educacionais, para aligeirar a formação de professores, para legitimar
contratos de provisão de tecnologias, de equipamentos e de programas de informática em
franco descompasso com a realidade socioeconômica e com as aptidões dos usuários.
A adoção de padrões tecnológicos sem correspondência com a realidade socioeconômica,
cultural e educacional aprofunda problemas. Tecnologias sofisticadas, importadas de países
centrais ou comercializadas por corporações transnacionais, aumentam a relação de
dependência tecnológica e financeira. Instauram padrões culturais e educacionais que
contribuem para desfigurar sistemas e instituições de ensino de base local. Esse processo de
incorporação de tecnologias, de modernização conservadora e de privatização do ensino se
beneficiou da desregulamentação da prestação de serviços imposta pelas novas leis de
comércio mundial, no final do século XX.
Nesse contexto, realizou-se a fusão de empresas transnacionais, que aumentou a sua
capacidade de intervenção em mercados periféricos. No setor de serviços, a voracidade dos
concorrentes levou-os a não medir as conseqüências de suas ações. Aprofundou a desfiguração
de atividades culturais e educacionais, consorciando interesses econômicos díspares. O capital
financeiro fundiu-se com empresas de comunicação, de entretenimento, de publicidade e de
educação, conferindo maior poderio à indústria cultural 5.
5
“As fusões envolvem empresas de entretenimento, de publicidade, provedoras de tecnologia e de comunicação
social. Em sintonia com o processo de concentração da economia de mercado, ao final de 1999, a America On Line -
AOL, maior portal da Internet, funde-se com a Time-Warner, destacada empresa midiática. A atual fusão é
desdobramento da junção das empresas Time e Warner, em 1989. À época, essa operação envolveu recursos
inferiores a US 8 bilhões. A Time Inc. tinha valor estimado em US $ 4,2 bilhões e a Warner Communications, em US $
3,4 bilhões. A fusão envolveu US $ 165 bilhões”. BATISTA, Wagner B. (2004) Educação a distância e modernização
regressiva. In: JAMBEIRO, Othon et ali. Comunicação, informação e cultura. Salvador, Editora da Universidade Federal
paulochagas@terra.com.br 4
Proporcionou condições de provisão de tecnologia e de intervenção no campo educacional sem
precedentes.
Essa estratégia econômica investiu contra instituições de ensino, contra a educação escolar,
contra o estatuto do magistério e contra consistentes concepções pedagógicas. Propondo a
equivalência de empresas midiáticas com instituições de ensino, a excelência das habilidades
requeridas pelo mercado em detrimento da educação propedêutica, a pasteurização de
métodos e de conteúdos pedagógicos, a incorporação do ensino prescritivo e a substituição de
professores por técnicos de informática, entre outras diretrizes, acentuou a disjunção entre o
ensino a distância e a educação presencial.
As redes de ensino de alcance mundial impulsionaram a formação de consórcios educacionais
com objetivos bastante distintos. Os consórcios de educação a distância também estiveram
sujeitos a apropriações díspares. No Brasil, na esfera pública e na rede privada de ensino,
iniciativas dessa natureza foram deflagradas nos anos de 1990. Algumas dessas ações
disputam a primazia do emprego da educação a distância, porém não têm como escopo a
expansão do ensino público e gratuito. Na prática, procuram sedimentar a comercialização do
ensino, servindo como lobbies de interesses privados em instâncias governamentais.
Experiência emblemática dessa utilização do ensino a distância é identificada na UNIREDE.
Consórcio formado em agosto de 2000, adaptou-se à linguagem dos últimos governos, e tem
se configurado como projeto inócuo, favorecendo a interferência em editais de agências de
fomento e a captação de verbas públicas. Após cinco anos, a UNIREDE não se configurou como
canal de expansão do ensino a distância no país. Com projetos ambíguos, tornou-se caixa de
ressonância das tensões resultantes da promoção de interesses restritos, de indefinições de
políticas e de conceitos educacionais herdados do governo FHC. A contínua atualização do
discurso não consegue mascarar ambigüidades e propostas inconsistentes geradas nesse
consórcio. Graças à adoção de um novo discurso, pretende acomodar propostas formuladas em
governos com diferentes perfis. Consumindo recursos de instituições públicas com gastos de
representação em eventos, não conseguiu lograr os objetivos propostos em sua criação.
Converteu-se numa plataforma que conferiu visibilidade a seus dirigentes, tornando-os
interlocutores privilegiados em questões concernentes à educação a distância, facultando seu
trânsito em esferas governamentais e agências de financiamento 6 .

Aspectos controversos da educação a distância


A análise do sistema educacional pressupõe a compreensão do papel desempenhado por novas
entidades e modalidades de ensino. A proliferação de empresas privadas e corporativas, que
se autodenominam educacionais, modifica características do sistema organizado a partir de
instituições de ensino convencionais. A educação a distância vai contribuir para mudar a
amplitude e tornar mais frágeis os nexos deste sistema. A excessiva abrangência, a diluição de
conceitos fundamentais, a volatilidade das relações pedagógicas e a eliminação de requisitos
sobre os quais se firmava a educação presencial provocam a desfiguração do sistema
educacional, de instituições de ensino e da educação escolar em franco benefício da
comercialização do ensino com padrões de qualidade deficientes. A flexibilização de relações
de trabalho e pedagógicas facultou condições excepcionais para a comercialização do ensino.
As altas taxas de matrícula desdobraram-se em altos índices de desistência em cursos de
ensino a distância. Anunciando facilidades e promovendo dificuldades de acompanhamento ou
de assimilação de programas, negociantes do ensino a distância conseguiram obter altas taxas
de lucro. Essa percepção já se evidenciara nos EUA, no início do século XX, período no qual
Noble indica haver extorsivos preços cobrados por matrículas associados a elevados índices de
evasão. Desse modo, os custos de manutenção de cursos a distância caíam
extraordinariamente, proporcionando a lucratividade mencionada 7 .
Ao dissolver conceitos básicos e reduzir problemas educacionais à lógica minimalista, os
projetos de educação a distância consagram a prevalência da operacionalidade técnica sobre o
método pedagógico. Apelando aos preceitos construtivistas, restauram o comportamentalismo
e o ensino prescritivo; da mesma maneira, celebram o atraso educacional como expressão da
modernidade tecnológica.
da Bahia, p. 155.
6
BATISTA, Wagner B. (2002) UNIREDE, vetor da privatização do ensino superior, XXV Reunião Anual da ANPED,
Caxambu. URL: < http://www.anped.org. br/25/wagnerbragabatistat11.rtf. >.
7
NOBLE, David. (2000) Ensino à distância, lucros e mediocridade. Diplo, Revista Le Monde Diplomatique, Ano 1, n. 3,
maio de 2000.
paulochagas@terra.com.br 5
A introdução de tecnologias de informação e de comunicação implica planejamento e
capacitação prévia de professores. Contudo, os implementos técnicos em alguns projetos de
educação a distância não têm espelhado essas preocupações, e tampouco produzem
resultados práticos satisfatórios. A difusão da TV Escola, implementada pelo MEC em 1997, foi
ilustrativa dessa constatação. Para sua transmissão, foram comprados cinqüenta e dois mil kits
(televisor, vídeo e antena parabólica) para instituições de ensino fundamental com mais de
cem alunos. O uso adequado desse recurso foi dificultado por problemas elementares, a
exemplo da instalação da antena, da sintonia da TV com o vídeo e da colocação dos cabos
coaxiais, entre outros. No Rio de Janeiro, uma programação similar, desenvolvida pela Empresa
de Multimeios da Prefeitura do Rio de Janeiro – Multirio, colidia com a grade da TV Escola. Por
conta da obsolescência tecnológica, após cinco anos já se cogitava substituir o padrão
analógico pelo digital, implicando novos investimentos num curto espaço de tempo.
Em instituições públicas de ensino superior, a inexistência ou a precariedade de planos de
desenvolvimento estratégico têm favorecido a disseminação de iniciativas pulverizadas. A
educação a distância converteu-se em pedra de toque de grupos de professores ou de núcleos
temáticos para a obtenção de verbas extra-orçamentárias. Visando a obtenção de recursos
financeiros, seus objetivos ficam circunscritos aos termos de editais. A autonomia de projetos
de pesquisa, de extensão ou de ensino subordina-se a diretrizes de agências de financiamento,
nas quais a formação de professores ganha relevo. Presume-se que a falta ou as deficiências
da formação de professores do ensino fundamental sejam corrigidas por cursos aligeirados. A
educação a distância, em vez de ampliar e melhorar o ensino superior, reveste-se de um
caráter instrumental.
Em instituições de ensino superior, a educação a distancia também foi absorvida pelos
chamados cursos de pós-graduação auto-sustentáveis, verdadeiros caça-níqueis. Em larga
escala, também proporciona dados estatísticos que mascaram debilidades do ensino supletivo 8
. Como recurso publicitário, a educação a distância falseia padrões educacionais e forja
indicadores de cobertura de matrículas.

A expansão do ensino a distância


O ensino a distância experimenta vertiginosa expansão mundial. No Brasil, país de porte
continental com grandes disparidades socioeconômicas e crônicos problemas educacionais, foi
invocado como tábua de salvação. Beneficiado por novos dispositivos legais, adquiriu a
legitimidade e a visibilidade almejadas por diferentes segmentos do setor educacional. Com
interesses distintos, educadores e negociantes celebram a difusão da educação a distância.
Como todo processo social ou educacional, essa modalidade de ensino possui facetas
ambíguas e controversas, comporta tensões e desenlaces antagônicos. Pode ampliar e
melhorar a rede pública; no entanto, têm contribuído significativamente para promover
interesses restritos e a privatização do ensino. A educação a distância, como todo bem ou
serviço apropriado pela economia de mercado, sofre pressões e digressões.
Não podemos ignorar que, em diferentes contextos, a adoção do ensino a distância e de
modalidades educacionais similares foi provocada por fortes pressões sociais. O Centre
National d'Enseignement à Distance - CNED, na França, surgiu como alternativa para a oferta
de educação a contingentes de refugiados da Guerra Civil Espanhola, no final da década de
1930. Na ex-União Soviética e em países socialistas do leste europeu, a busca de qualificação
técnica resultou em políticas de articulação entre educação e trabalho. Por meio de diversos
programas, operários graduaram-se sem se afastar do trabalho graças à educação a distância.
Instituições de ensino a distância contribuíram para superar barreiras geográficas e climáticas,
bem como para superar entraves da diversidade étnica 9. No Reino Unido, o Partido Trabalhista
8
Ensino supletivo tem incremento de 1.607% em dez anos. Matriculados passaram de 29.944 em 1995 para 481 mil
neste ano; sindicato critica a qualidade desse método Folha de São Paulo, Cotidiano, 9 de agosto de 2005, URL: <
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0908200517.htm >.
9
“A experiência do ensino por correspondência na ex-União Soviética está associada aos ideais da revolução socialista
de 1917. A perspectiva de universalização do ensino esbarrava em barreiras territoriais. A URSS ocupava território com
22 milhões km2 distribuídos ao longo de 11 fusos horários. Os projetos educacionais tiveram que prover grandes
demandas em condições extremamente adversas. Com populações sujeitas ao isolamento, a URSS teve de superar
inúmeras barreiras materiais e intelectuais para viabilizar a educação de diferentes etnias. Integrada por mais de 100
grupos étnicos em cerca de 300 nacionalidades, reunia 15 repúblicas federadas, com 290 milhões de habitantes. Na
URSS eram falados cerca de 270 idiomas ou dialetos. A unidade da federação socialista constituía-se em meio à
diversidade cultural que exigia diferentes formas de provisão do sistema educacional de caráter unitário. As diferenças
entre modelos de ensino a distância e presencial não deveriam se refletir na qualidade dos padrões educacionais. Com
base neste princípio desenvolve-se a experiência do ensino por correspondência. O objetivo da educação soviética foi
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Inglês, em 1962, formulou a proposta da Open University. A instituição seria fundada em 1969,
na vigência de um governo conservador, para viabilizar o atendimento a trabalhadores
egressos do sistema educacional. A perspectiva de criação de Universidade Aberta, no Brasil,
no início dos anos de 1970, esteve associada à oferta de vagas no ensino superior para conter
a pressão das camadas médias. Desejosas de ascensão social, viram-se frustradas pelo
limitado número de matrículas na rede de ensino superior. O regime militar esvaziou essa
tensão por meio da expansão do ensino privado. Paradoxalmente, até mesmo os artífices das
políticas do governo perceberam os riscos da degradação de padrões educacionais pela
educação a distância apropriada por setores privados. Em 1973, Newton Sicupira, articulista de
políticas educacionais do regime militar, produziu um substancioso relatório sobre o assunto 10.
Registra sua visita à Open University, do Reino Unido, com o objetivo de instruir a criação de
uma universidade similar no Brasil. Poucos meses depois, esta proposta foi abandonada.
Sicupira, emérito conservador, advertiu para possíveis conseqüências da privatização do
ensino a distância 11. O receio de que o ensino a distância acarretasse a deterioração de
padrões educacionais ou se convertesse em estuário para o proselitismo de esquerda levou o
Ministro da Educação, Ney Braga, a aventar outras prioridades (financiamento da merenda
escolar) para sustar a implementação deste projeto.

Considerações finais
Nos anos de 1980, a educação e, em especial, o ensino público sofreram duros reveses. A
depreciação foi provocada pela crise do financiamento da educação, pela retração do mercado
de trabalho, pelo aviltamento salarial e pela falta de perspectivas sociais geradas pela
qualificação da mão de obra. Nos anos de 1990, ocorreu uma significativa mudança de inflexão
no papel da educação, a qual deriva da promoção, por parte da restauração liberal, da
precedência do conhecimento em relação ao trabalho humano. Ensaios dessa natureza já
vinham sendo elaborados desde a década de 1960 por autores relacionados às técnicas de
gerenciamento empresarial (Theodor Schultz, Alvin Tofler, Peter Drucker).
Nesse contexto, a perda da centralidade do trabalho, conceito chave da reflexão e da prática
social, foi celebrada pelos artífices da sociedade do conhecimento. Esse artifício ideológico
instruiu correntes neoiluministas à recuperação da crença na razão e na educação. A
presunção de que um cenário político, econômico e cultural mais harmonioso iria se desenhar
graças às novas redes de comunicação exacerbava a importância dos meios técnicos de
comunicação e obscurecia o aumento das disparidades sociais em escala mundial e regional. A
ideologia da globalização converteu-se no epicentro de difusão de uma nova cultura promotora
do consenso e do multilateralismo proporcionados pela razão, pela melhoria das condições de
trabalho e pela elevação de padrões educacionais. Essa lógica, em franca contradição com a
dinâmica da realidade social, foi apropriada pelo pensamento liberal para conferir valor
simbólico à educação, bem como pelos apologistas da sociedade do conhecimento. Sob esse
viés, a racionalidade comunicativa revestiu-se de caráter instrumental e foi capitalizada pela
ideologia liberal.
Os ultraliberais, para quem o ensino prescritivo e pragmático materializa-se em capital
humano, professam uma nova ordem internacional que convive com estruturas de poder e com
condições materiais de vida assimétricas. A educação converte-se no móvel da livre iniciativa,
do empreendedorismo e da competência, termos de uma ideologia que mascara leis históricas
da acumulação de capital. A educação e o conhecimento tornam-se fontes de uma nova ordem
social, que se pressupõe mais harmoniosa, porém não suprime a velha lógica restritiva da
acumulação de capital. A nova racionalidade instrumental aposta na pujança das redes de
conhecimento instauradas pela telemática 12 .
Na década de 1990, a concentração econômica identificada pelos ativos de corporações
transnacionais suplantou valores do PIB da ampla maioria dos países. Esse montante
expressava a magnitude do poderio político e econômico dessas corporações. A desenfreada
a formação integrada articulando o aprendizado com o trabalho produtivo.” BATISTA, Wagner B. (2002) Educação a
distância: ampliar ou superar distâncias. Tese de doutorado. Faculdade de Educação, UFRJ, pp. 111-12.
10
SICUPIRA, Newton. Universidade aberta: uma nova experiência de ensino superior na Inglaterra. Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos, v. 59, no 131, julho/setembro-1973, Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, INEP /MEC, p.
431.
11
“De modo algum pode ser considerada uma empresa entregue à iniciativa privada. Doutra parte, nenhuma
universidade teria condições para fazer funcionar, com a eficácia desejada sistema tão complexo.” No Brasil, correio
pode ser um dos obstáculos. Folha de São Paulo, Educação, 24 de abril de 1974, p. 14.
12
ROUANET, Sergio P. (2000) Da pólis digital à democracia cosmopolita. Folha de São Paulo, Caderno Mais, 21 de maio
de 2000, p. 15.
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disputa por mercados periféricos articulou interesses bastante díspares e impôs estratégias de
mercado que combinavam especialização e diversificação de atividades.
Na atual conjuntura, a capacidade de iniciativa dessas corporações é notável. O poder de
investimento, de captação financeira, de uso de tecnologias, de dissuasão política e ideológica
oferece a essas corporações condições de intervenção estratégica sem paralelo.
As corporações transnacionais formaram grandes consórcios de interesses, por meio dos quais
inibem a concorrência e limitam ações em setores mais dinâmicos da economia. Ampliaram
sua esfera de influência e de investimentos em áreas bastante diferenciadas. Estenderam seu
alcance para continentes, países e nichos regionais. Os oligopólios no campo da comunicação e
da indústria cultural também se constituíram no setor educacional, consorciando empresas
dessas duas áreas econômicas 13 .
A capacidade de intervenção estratégica dessas corporações aumenta vertiginosamente. A
tendência da concentração econômica e da centralização da capacidade de decisão estratégica
é inerente à dinâmica do desenvolvimento do capitalismo. Já assinalada na transição do século
XIX para o século XX, essa tendência adquire novas características na atualidade.
A abertura dos mercados periféricos propicia condições sem precedentes para a intervenção
econômica das corporações transnacionais. Associada a este fenômeno, a expansão da
economia de mercado, sob o arcabouço ideológico da globalização, viabiliza novas formas de
hegemonia e de dominação política, econômica, cultural e educacional. As corporações
transnacionais, neste quadro, expandem seu domínio sobre o mercado educacional, ao mesmo
tempo em que se valem do extraordinário poderio econômico e de acúmulos técnicos para
exercer influência política, cultural e educacional em escala mundial.
No caso do Brasil, assinalamos a brusca substituição de veleidades desenvolvimentistas pela
perspectiva de estabilização econômica adotada desde o Governo Fernando Henrique. Esta
guinada foi requisito para a inserção passiva do país na economia de mercado mundial; porém,
teve como conseqüência a retração da economia brasileira.
Em países periféricos, a exemplo do Brasil, o aparelho de Estado foi posto a serviço do
financiamento da privatização da esfera pública. Este processo não se consubstanciou no
aumento da capacidade produtiva da economia, mas representou o aumento da participação
de corporações transnacionais e a desnacionalização da economia brasileira 14 .
As restrições impostas pelas metas do ajuste fiscal, fundamento da estabilização econômica,
constrangeram políticas sociais. As políticas de educação pública superior foram drasticamente
afetadas pela redução de orçamentos. As restrições financeiras desdobraram-se no estímulo à
privatização do ensino, à ampliação do mercado educacional e ao fomento de políticas de auto-
subsistência de instituições públicas. A política educacional foi orientada para a definição de
áreas de intervenção estratégicas. Setores educacionais mais rentáveis, graças a omissões
governamentais, ficaram reservados para a iniciativa privada. O ensino fundamental,
massificado e precário, será contemplado com programas focalizados. Essas diretrizes
consolidaram-se por meio de programas financiados por agências de fomento multilaterais,
objetivando a consolidação do mercado educacional, a limitação do nível de escolaridade sob a
responsabilidade do poder público e a atenuação da pobreza para assegurar a governabilidade
em condições de vida assimétricas. O atual governo não reverteu essas orientações. A
educação compensatória é reforçada por programas de cunho assistencial, viabilizados graças
ao consórcio de instâncias do Estado com organismos não governamentais, empresas privadas
e agências financeiras.
A expansão do ensino a distância do Brasil segue estas tendências. Bifurca-se no ensino
corporativo, sofisticado e privatizado, destinado a elites, e em programas educacionais
aligeirados e de baixa qualidade. Entre esses, podemos destacar os voltados à capacitação de
professores do nível fundamental.
Sob inspiração liberal, a educação a distância restaura as dicotomias na educação escolar,
típica das economias capitalistas. O diagnóstico dessa relação assimétrica, feito por Baudelot e
Establet 15 , é atualizado por padrões educacionais instaurados por diretrizes políticas,
condições sócio-econômicas e novas tecnologias da informação e da comunicação aplicadas de
modo desigual.

13
SCHILLER, Dan. (2002) A globalização e as novas tecnologias, São Paulo, Editorial Presença.
14
Múltis crescem 146% na década liberal: Capital externo aumentou eficiência do país, mas não expandiu a
capacidade produtiva ou exportadora. Folha de São Paulo, Dinheiro, 10 de fevereiro de 2002, p. B 1.
15
BAUDELOT, Christian e ESTABLET, Roger. (1972) L‘école capitaliste en France. Paris, Maspero.
paulochagas@terra.com.br 8
Graças a essa clivagem, observa-se a crescente destinação comercial do ensino a distância.

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