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Arqueologia
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F E L I P E VA N D E R V E L D E N
Universidade Federal de São Carlos
Velden, F. V.
Mapa 1 – Localização da terra indígena Karitiana e das quatro aldeias existentes até 2012
(Mapa por Sandra Ayres).
Depois de duas tentativas frustradas locais já foi alterada pela presença dos
(leia-se dois grupos técnicos aborta- brancos, seja via simples ocupação e
dos), instituiu-se em 2011, pela Porta- aproveitamento agropastoril da terra
ria 921/PRES/2011, o grupo técnico (o que não é fortuito, uma vez que as
(doravante GT) para identificação da terras pretas de índio, se apontam zo-
Terra Indígena Karitiana, por mim co-
nas de habitação antiga, também são
ordenado, e que iniciou seus trabalhos
procuradas, por índios e por não índios, em
no mesmo ano. Entre julho e agosto
de 2011 a equipe do GT realizou a função de sua fertilidade), seja, mais re-
pesquisa de campo necessária para a centemente, pela destruição deliberada
identificação das terras de ocupação dos registros com o uso de tratores e
tradicional, incluindo a localização maquinário agrícola, como forma de
e reconhecimento de dezenas de sí- tentar apagar as evidências materiais da
tios de antigas aldeias, paulatinamente presença indígena na região.
abandonadas pelos Karitiana em sua
migração forçada para o oeste, fugindo
da destruição e da violência provoca-
das pelo avanço dos brancos – primei-
ro caucheiros e seringueiros, depois
fazendeiros – pela região do alto Ma-
deira (Vander Velden 2012). A maior
parte dessas antigas aldeias localiza-se
na margem direita do rio Candeias (nos
igarapés Conceição, Tapagem, Taboca
e Três Casas, seus afluentes), a prin- Figura 1 – pé de Licuri (Urucuri? Ouricu-
cipal área que os Karitiana reclamam ri?) marca a localização de sítio da antiga
como sua, e que permaneceu fora da aldeia Karitiana de Pa’ororoj (Foto de Elivar
terra indígena homologada em 1986. Karitiana, 2011).
Em cada um desses sítios – que os ín-
dios localizam e identificam pela me-
mória dos mais velhos, mas também
pela presença de terra preta de índio
(cf. Teixeira et al. 2010) e pela concen-
tração de uma palmeira que os Kari-
tiana denominam licuri5, cujos frutos
– muito apreciados pelos índios – ti-
nham suas sementes descartadas nos
arredores dos locais de habitação, pro-
piciando o aparecimento de palmeirais Figura 2 – índios Karitiana examinam frag-
– podemos encontrar fragmentos cerâ- mentos cerâmicos encontrados em terra
micos em abundância. Digo fragmen- preta no sítio de antigo local de habitação
tos, cacos, porque a maior parte desses indígena (Foto: Elivar Karitiana, 2011).
micos é território Karitiana. Bem pode ser que se acha por toda parte, sugerindo
assim, afinal, já que, no início dos tem- que esses espíritos – ex-Karitiana –
pos, contam os mitos, tudo o que havia anda(vam) por todos os cantos, por
no mundo eram mesmo os Karitiana todo o mundo. E as muitas mortes
(além de outras gentes-animais), com que ocorreram no passado, espe-
os não índios só aparecendo muito cialmente quando da chegada dos
tempo depois (ver Lúcio 1996). Como, brancos, acabam por garantir, hoje,
então, traçar as fronteiras necessárias o território Karitiana (ou, ao menos,
à constituição de uma unidade terri- indicá-lo), cheio de cacos de (ex-)es-
torial – a Terra Indígena Karitiana – píritos. E isto constitui um problema
reconhecida pela Federação? De que a ser enfrentado pelos indígenas, pe-
formas esses vestígios arqueológicos los fazendeiros vizinhos ao territó-
podem nos auxiliar (se é que devem rio indígena, pelos administradores
fazê-lo) na descrição e na definição e gestores do ordenamento territo-
do território tradicional Karitiana? rial brasileiro e, no limite, por todos
Questões desse tipo vêm sendo tra- aqueles interessados em refletir sobre
tadas por crescente literatura arque- as formas possíveis ou desejáveis de
ológica no Brasil, e seria importante acomodar distintos modos de habitar
que antropólogos sociais em geral e o mundo.
etnólogos em particular adquirissem ***
amplo conhecimento dela (ver, a res- Até onde sabemos, os Karitiana aban-
peito, Eremites de Oliveira 2015b). donaram a produção regular de peças
O problema que se coloca aqui é cerâmicas há pelo menos 50 anos. Ra-
algo análogo àquele das linhas que chel Landin (1989: 9, minha tradução),
conectam o território Yanomami na missionária que viveu entre os Karitia-
fronteira do Brasil com a Venezuela na a partir de 1972, afirma que as mu-
ao resto do universo, de modo que se lheres “faziam e decoravam potes acordela-
o “peito do céu” (ou seja, a abóbada dos [coiled] de argila de variados tamanhos
celeste) despencar lá do alto (como utilizados para preparar e cozinhar comida”.
ele ameaça fazer em função do ex- Hoje, embora digam que algumas pes-
cesso de fumaça produzida pelos soas (sobretudo mulheres) mais idosas
brancos no mundo contemporâneo), ainda conheçam as técnicas de confec-
cairá sobre todos nós, e não apenas ção de formas diversas de vasilhames
sobre os Yanomami (Kopenawa & cerâmicos, a arte não é mais praticada
Albert 2013). Trata-se, assim, de uma (Silva S/d: 1), e não se veem peças de
questão decididamente cosmopolita, fabricação nativa nas aldeias, nem mes-
e que deve interessar a todos, índios mo já obsoletas. Não obstante, tive
e não índios. Da mesma forma entre notícia, em 2015, de que uma senhora
os Karitiana: um emaranhado de vi- Karitiana havia voltado a confeccionar
vos e mortos que se expande virtu- panelas de cerâmica, e uma dessas pe-
almente por todo o mundo, e isso é ças estava em exposição em uma sala
evidenciado pelos cacos de cerâmica da Coordenadoria dos Povos Indíge-
Não que processos como a formação da e mesmo coabitada por índios e por
de núcleos populacionais indígenas não índios.
junto a, por exemplo, barracões ou co- Outro caso ainda mais interessante é o
locações sejam estranhos a outras re- de uma aldeia – na verdade uma única
giões amazônicas (Gow 1991; Iglesias casa grande (abi atana, “casa redonda”,
2010). O que interessa destacar aqui é denominação Karitiana das antigas re-
que os Karitiana definem esses locais sidências multifamiliares) – conhecida
hoje como aldeias, mesmo que fossem como Abi atana do Moraes, localizada
resultado já avançado do processo de no alto da Serra Moraes, uma eleva-
ocupação do território por não índios ção do terreno situada bem junto à
e da constituição de espaços de convi- margem esquerda do rio Candeias, no
vência e de coexistência entre diferentes sudeste da Terra Indígena Karitiana13.
povos. Bem próximo desta aldeia – ocupada,
Este é, por exemplo, o caso da antiga ao que tudo indica, por volta dos anos
aldeia chamada Nova Vida, situada nas de 1950 – havia um seringal chefiado
proximidades da cachoeira de mesmo pelo seringalista Sizeando César de
nome, no rio Candeias. Nova Vida Oliveira (os Karitiana afirmam que seu
(que não possui denominação na lín- nome era Cizinano ou Cizino, de onde
gua indígena) constituía-se, segundo o nome do atual único xamã e grande
rememora Cizino Karitiana, xamã e líder político Karitiana), pai de Áureo
importante liderança, em uma espécie César de Oliveira, funcionário aposen-
de entreposto comercial onde os Ka- tado da FUNAI hoje com 60 anos. Se-
ritiana trocavam com os brancos que gundo Áureo contou-me em entrevista
circulavam pelo rio, produtos extraídos (concedida em julho de 2011), ele nasceu
da floresta (borracha, sorva, castanha, na aldeia Karitiana na Serra Moraes, pois
caucho, óleo de copaíba, peles de ani- sua mãe vivia lá. Ademais, o pajé Cizino,
mais selvagens) por objetos industria- que nasceu mais ou menos na mesma
lizados. Nova Vida, segundo Cizino, época (final dos anos 40 e início dos
era composta por algumas construções anos 50) trata Áureo como seu primo,
residenciais e outras destinadas ao ar- forma de tratamento pouco usual nas
mazenamento de gêneros para troca, e relações entre índios e brancos na
parecia articular as relações comerciais Amazônia (onde impera o cunhado ou
entre três aldeias Karitiana (a maior de- a forma mais genérica do parente; ver
las chamada Pa’ororoj) localizadas mais Viveiros de Castro 1993). Ao que pa-
ao norte, um tanto longe das margens rece, portanto, tínhamos ali uma aldeia
do rio Candeias e os não índios que cir- interétnica, ou pelo menos em íntima
culavam pela região explorando as ri- relação com um seringal instalado nas
quezas da Amazônia na primeira meta- vizinhanças.
de do século XIX. O dado interessante Esses dois exemplos14 nos levam a um
é que Cizino afirma sempre Nova Vida ponto crucial, e que também adiciona
como uma aldeia Karitiana; mas uma al- um complicador a mais no uso das evi-
deia que era continuamente frequenta- dências arqueológicas para reconhecer
não índios que ocupam a sua região a novos objetos por parte dos índios,
partir de meados dos oitocentos. As suas origens, suas formas de circu-
peças de fabricação industrial, pois, são lação naquela zona e de intercâmbio
evidências Karitiana, e não do contato entre brancos e índios, sua inserção
destrutivo; oferecem informações so- nas redes locais de trocas e os modos
bre coexistência de índios e brancos, de descarte ou abandono que os lega-
e não apenas sobre violência, desloca- ram até nós hoje. Pode ajudar, assim,
mentos forçados e a substituição de um a compreender como as histórias dos
conjunto de habitantes por outro. É povos indígenas são muito mais com-
claro que os Karitiana sofreram muitas plexas do que as linhas de continui-
violências nas mãos dos brancos, posto dade normalmente admitidas sem, no
que estes invadiram, paulatinamente, entanto, sugerir que estas mestiçagens
seu território tradicional, começando tenham impacto negativo nas identi-
pela margem direita do rio Candeias e dades indígenas e no conjunto de seus
pela região drenada por seus afluentes direitos específicos, especialmente ao
(do leste para o oeste) – isso não se território. Ao contrário, a análise etno-
pode, claro, negar, e as memórias Kari- arqueológica desses materiais híbridos
tiana mencionam agressões e choques deverá permitir demonstrar a natureza
belicosos abundantemente. É óbvio, Karitiana da própria mistura.
da mesma forma, que o resultado final
desse processo foi a definitiva expulsão
dos Karitiana desta área e sua migração CONSIDERAÇÕES FINAIS
para a margem esquerda do Candeias e A necessidade de um arqueólogo na
para o vale do rio das Garças, lá pelo equipe do Grupo Técnico (GT) de
final dos anos de 1960. O que estou so- identificação da Terra Indígena Kari-
licitando é apenas uma maior atenção tiana é algo a ser considerado funda-
às sutilezas e complexidades dos pro- mental. É certo que a Antropologia
cessos históricos e dos desenvolvimen- pode discutir com os índios as evi-
tos das relações interétnicas naquela dências materiais do passado recolhi-
região, cujos impactos, bem analisados, das no rés do chão, e mesmo atingir
devem levar à iluminação de aspectos a posição sistêmica desses objetos nas
da cosmologia e da historicidade dos transformações históricas da cosmo-
Karitiana ainda obscuros (Lúcio 1996; logia nativa. Contudo, uma interpreta-
Vander Velden 2008), como tem sido ção fundada em dados cientificamente
feito com sucesso para outras partes da consistentes que possa, de fato, em-
Amazônia (Hornborg & Hill 2011). pregar o vestígio arqueológico como
As tais “arqueologias adjetivadas” (Cabral apoio à sustentação das reivindicações
2014: 323) – arqueologia colaborativa, ar- territoriais dos índios só me parece po-
queologia pública, arqueologia participativa der ser alcançada com a mútua fertili-
e arqueologia indígena – podem auxiliar zação obtida no diálogo entre Arque-
em muito neste trabalho, ao investigar ologia, Antropologia e a comunidade
as formas de uso e apropriação desses indígena em questão (Silva, Bespalez
uso estratégico desses vestígios ma- Lima, Thomas Fibiger e Astrid Kieffer-
teriais. Reconheçamos, aqui também, -Døssing pelas valiosas sugestões.
que esses usos do material arqueológi- 2
Noto que não estou me referindo à ideia
co em torno da “manutenção da identidade de que os vestígios arqueológicos são to-
étnica” e da “memória cultural” também mados como provas definitivas da ocupa-
são informados por estratégias tecidas ção indígena de certa região, mas apenas
pelos índios de modo a constituir con- afirmando que este tipo de material recebe
tinuidades e, assim, produzir discursos atenção diferente da que recebe, por exem-
plo, a história oral, como aconteceu, por
mais afinados com as noções do senso
exemplo, no caso dos Caxixó em Minas
comum acerca de território ancestral/
Gerais (discutido em Santos & Pacheco de
tradicional e de continuidade histórico- Oliveira 2003). Ainda que vários autores
-cultural. Um debate cuidadoso, então, destaquem que objetos materiais não falam
em torno dos usos estratégicos dos por si mesmos, dependendo, sempre, do
vestígios arqueológicos, envolvendo saber discursivo produzido hoje (por arque-
arqueólogos, antropólogos, historiado- ólogos e índios) a respeito deles, evidên-
res, juristas, os povos indígenas (con- cias arqueológicas são fortes em sua mate-
forme apelou Eremites de Oliveira rialidade positiva, permitindo mesmo, em
2007: 111) e, no limite, toda a socie- alguns casos, a negação de reivindicações
dade civil interessada, se faz mais do étnicas e territoriais com base na (preten-
sa) inexistência de vínculos entre um povo
que necessário. Só assim, “indigenizando
e os sítios arqueológicos de sua região (de
a Arqueologia” (Silva, Bespalez & Stuchi
novo, tome-se o caso dos Caxixó). O ob-
2011: 37), poderemos alcançar uma jetivo do presente artigo é, entre outros,
posição descolonizante que acabe de refletir sobre a natureza do conhecimento
vez com a “violência epistêmica” (Eremi- produzido na interface dos saberes de ar-
tes de Oliveira 2015a: 360) que a Ar- queólogos, antropólogos e povos indíge-
queologia, mas também, seguramente, nas, tomando para isso um caso particular.
a Antropologia, insistem em infringir Sobre a questão das relações entre Arque-
aos povos indígenas. ologia e Antropologia Social na construção
de laudos antropológicos, remeto o leitor
às reflexões de Jorge Eremites de Oliveira
NOTAS (2010, 2012, 2015a, 2015b, 2016).
3
Não tive oportunidade de conhecer a
1
Este trabalho foi apresentado no II CIA- aldeia mais recente, Caracol, fundada em
EE – Congresso Iberoamericano de Arqueologia, 2014. Por isso, este trabalho faz referência
Etnologia e Etnohistória, realizado na Uni- apenas às quatro aldeias Karitiana existen-
versidade Federal da Grande Dourados tes até 2012.
(UFGD), em Dourados/MS, em junho de
2012. Uma versão reduzida dele foi apre-
4
O próprio formato da Terra Indígena
sentada, em janeiro de 2017, no evento Karitiana, praticamente um retângulo per-
Brazilian Heritage – a small seminar, realizado feito, sugere a inexistência dos estudos de
pelo Master’s Degree in Sustainable Heri- identificação previstos em lei.
tage Management da University of Aarhus, 5
Não procedemos à identificação botânica
Dinamarca. Agradeço a Robson Rodri- da palmeira que os Karitiana denominam
gues, Graziele Acçolini, Clarissa Martins licuri, chamada também de ouricuri em ou-
tras regiões do Brasil. O fato é que a es- etc – que define seres que manifestam
pécie assim denominada (Syagrus coronata disposições agressivas e/ou monstruosas;
(Martius) Beccari) não é nativa da Ama- como tal, recobre desde seres apavorantes
zônia, sendo encontrada nas áreas secas como o Mapinguari (Owojo) e o Kida hu-
e áridas das caatingas do norte de Minas jhuj (uma espécie de morcego gigante que
Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernam- uiva como um cão e é associado ao diabo
buco (Crepaldi et al. 2001). É provável que cristão), até animais peçonhentos, agressi-
os Karitiana estejam se referindo à pal- vos e potencialmente mortais (e, por isso,
meira urucurí ou ouricuri (Attalea excelsa) não menos apavorantes) como serpentes,
que, segundo Miller (2009: 40), é “dos mais aranhas, escorpiões, onças e outros. Neste
significativos indicadores vegetais, quanto à boa uso – “alma” como “bicho” – os Karitia-
qualidade do solo para a agricultura, que atraiu na se referem às manifestações perigosas,
e adensou os sítios Prototupí desde Ca. 5.210- agressivas e muitas vezes fatais das almas
5.070 a.P.”; além disso, os urucurizais in- dos mortos.
dicariam “as melhores terras para o plantio” 7
Recordemos que, desde Manuela Carnei-
(Miller 2009: 42). O ouricuri é a principal ro da Cunha (1978) os mortos são outros
palmeira identificada pelos Manchineri nas e, portanto, não são gente (viva).
formações arqueológicas denominadas ge-
oglifos, evidências de grandes densidades
8
Para os Asurini do Kuatinemu os inú-
populacionais no passado da Amazônia meros cacos de cerâmica encontrados nas
ocidental (Virtanen 2011: 98-99). No Pan- aldeias são os restos das panelas de Anu-
tanal, os Guató usam e manejam uma pal- mai mamapira, personagem mítico que,
meira chamada acuri, que produz cachos nos tempos antigos, retirou-se para outro
enormes com centenas de frutos (Eremites mundo (Silva 2002: 180). Todos os vestí-
de Oliveira 1996: 116-117). Desconheço se gios arqueológicos no território Asurini
os Karitiana chamam de licuri esta espécie são tidos como evidências da passagem,
de palmeira nativa (o uricurí), ou se uma por este mundo, de seres sobrenaturais nos
planta introduzida nesta região da Ama- tempos míticos (Silva 2002); desta forma,
zônia após a chegada dos brancos – talvez contrastam com os materiais Karitiana,
pelos muitos migrantes nordestinos que se que evidenciam apenas a existência preté-
espalharam pela região desde fins do sé- rita de pessoas humanas – seja de seus ar-
culo XIX – tendo os Karitiana aprendido tefatos, seja das próprias pessoas (como os
a apreciar seus frutos. Neste último caso, fragmentos cerâmicos) – e aproximam-se
teríamos, então, a indicação da existência dos petróglifos e formações rochosas que,
de sítios de antigas aldeias Karitiana por para os povos no alto rio Negro, também
uma espécie vegetal alógena, introduzida ilustram passagens míticas (IPHAN 2007).
após o contato com os não índios. De fato, 9
“Era tempo” é a expressão empregada no
veremos adiante que esta possibilidade discurso Karitiana, em português, para
coaduna-se com outras evidências encon- marcar o tempo dos antigos, que se opõe
tradas em locais de habitação indígena no tanto ao presente quanto ao passado míti-
passado. co, este introduzido pela expressão “tempo
6
“Bicho” (kida) é uma categoria polissê- antigamente”.
mica do pensamento Karitiana – cuja tra- 10
Em 2002, no âmbito do Projeto Tupi
dução alternativa (talvez intercambiável) Comparativo, o arqueólogo britânico Ste-
é “coisa”, daí kida o, “coisa redonda”, i.e., phen Shennan planejou dar início a pes-
fruta; kida papydna, “coisa-asa”, beija-flor, quisas arqueológicas na região (e com a