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Emmanuel
Emmanuel
Quais são as relações que prendem essas três palavras fundamentais da cultura e
do pensamento grego: physis, phos e techne? Essas três realizações: physis, traduzida
por natureza, phos, traduzida por luz, e techne, traduzida por arte, reciprocamente,
formam um palíndromo [frase que, ou se leia da esquerda para a direita, ou da direita
para a esquerda, tem o mesmo sentido], onde uma depende da outra, uma se articula
com a outra. Caso se perguntasse: Qual é o princípio que rege a arte grega? O princípio
é essa articulação recíproca e comum entre physis, techne, através, por meio de e na
dinâmica de processamento da phos, luz [entre, haja vista espelho, especular, pensar,
contecer]. Este é o princípio que rege a arte grega. Na Grécia, luz é o princípio de tudo:
da vida e do pensamento, da arte e da cidade, do conhecimento e da produção, do agir e
do prestar, da vida e da morte. Quando se diz isso, supõe-se um determinado
entendimento do que é princípio, claro, do que é luz, do que é a arte e do que é
realidade. O que é princípio? Em que sentido luz é princípio da arte? Nós sabemos da
metafísica de Aristóteles que há uma articulação no desdobramento do princípio
dizendo: só é possível pensar em principio porque physis, a realidade, (1) não é estática,
é dinâmica. Só é possível pensar em princípio porque a dinâmica da physis (2) não é
linear, é circular. Só é possível pensar em principio porque a circulação da physis (3)
não é finita, é infinita. Só é possível pensar em principio porque a infinitude da physis
(4) não é de exclusão, mas de inclusão. Assim não é possível não pensar em princípio
quando a physis faz pensar em profundidade (5) os desempenhos e exercícios de sua
realização.
Assim, agitado pelo movimento irrequieto da physis, o grego, por ser e para ser
grego, só podia pensar o princípio de tudo na luz e pela luz. E por quê? E em que
sentido luz se faz princípio de tudo, nessa quíntupla acepção? A primeira condição para
compreender isso é se dar conta de que não se deve reduzir luz à claridade. A escuridão
também pertence à luz e, por isso mesmo, nunca deixa de ser a escuridão luminosa. O
que isso quer dizer? Quer dizer que luz é tensão do ser dos seres, a tensão da unidade de
claridade e escuridão, no próprio de cada um. É desta unidade que fala Heráclito de
Éfeso, dizendo que tudo é um: hen panta einai [Frag. 50: ...ouk emou allà tou logou
akousantas homolegein sophón estin hen panta einai: ...auscultando não a mim, mas ao
Lógos, é a-propriado concordar que tudo é um]. Neste fragmento ele está dizendo: se
não escutares a singularidade do indivíduo, se não escutares os conteúdos singulares das
experiências, se não escutares este indivíduo que fala, se não escutares a mim, mas a
linguagem de união e reunião é então próprio - próprio traduz aqui sophón - dizer e
afirmar que tudo é um, que a pluralidade vive da unidade, que a totalidade do real e o
universo de todas as realizações vive e se diferencia pela força de união de sua
identidade, na identidade do uno, na identidade da unidade. É que a luz provém e,
provindo, remete para o que Heráclito chamou de combate originário, aquele combate
que cria tudo e rege todas as coisas: Pólemos pánton mèn páter esti, pánton dè
Basileus... Esse combate originário é o pai de tudo e é também o senhor de tudo, a
dominação de tudo, no sentido de que é o criador e o gerador de tudo. Então toda a
energia das realizações remetem e provêm, e, por isso, remetem à sua fonte de
realização na luz. Nesse sentido, para o grego, luz é sempre energia irradiante. Em todo
ser e não ser de tudo que está sendo, de tudo que não é e não está sendo. Energia de pura
irradiação, a luz concentra em si a força criadora do raio de Zeus que, novamente, nas
palavras de Heráclito, rege e acata todas as coisas; táde pánta oiakídzei keraunós (frag.
64: O raio conduz todas as coisas que são). Mas qual será então essa obra universal da
luz? Ela é a morada [casa, linguagem] que aconchega todas as coisas. Trata-se de uma
energeia. De um vigor, de uma força e dinâmica que interioriza e por interiorizar se
externaliza [entre]. É o sentido de energeia, alguma coisa que está operando numa
dinâmica de integração de fora e dentro numa obra, ergon e energeia. Uma operação de
se desrealizar e de realização que põe tudo em obra, por constituir em tudo o que antes
de ser já sempre era, na formulação lapidar, embora um pouco estranha, de Aristóteles:
to ti en einai, que Boécio traduziu, no começo da Idade Média, para o latim, com a
expressão corrente em toda a Idade Média: quod quid erat esse: o que já sempre era ser.
Toda arte erige em obra uma luminosidade geradora, material, criadora, onde
surgem e se instalam possibilidades de ser, de não ser que, entregue e deixada a si
mesma, a realidade nunca chegaria a produzir nem vir a ser. Na obra, a arte vive sempre
as tensões da união do real com a realidade nas realizações. Uma identidade circular de
posições, oposições compõem as diferenças exclusivas de uma com as diferenças
próprias da outra. Por isso não é possível compreender, em profundidade, o que se
ilumina e brilha na arte grega, sem o confronto das realizações entre real e realidade
com a dinâmica de iluminação e de obscuridade da luz. Isso significa, numa formulação
concentrada: sem physis não há techne. Por outro lado, nenhum real se desenvolve
perfeitamente em sua realização nem chega à plenitude de surgir e de cumprir-se por si
mesmo, no mundo, sem a vigência da arte nas obras. Em outras palavras: É o templo
que faz aparecer e deixa brilhar a paisagem. Se, de um lado, é a claridade do templo que
deixa aparecer no mundo a paisagem como paisagem, isto é, como dinâmica de criação,
por outro lado, é a tensão das diferenças entre país e paisagem que permite ao templo
surgir em todo o esplendor de sua identidade de obra de arte.
Mas trata-se de uma dificuldade salutar, criativa, pois nos ajuda a depor o nosso
hábito moderno de unidimensionalizar e generalizar tudo. É o entendimento técnico
moderno que só entende toda transformação e mudança por um influxo causal, segundo
o modelo de agente e paciente. Esta é uma experiência não grega de se entender a
experiência grega. Tomemos um exemplo: o mármore, philetis, uma matéria, no sentido
de ser um real dotado de peso, densidade, dureza, cor e impenetrabilidade, mas tudo isso
numa tensão constante consigo mesmo e com as outras matérias. Sendo pesado, o
mármore tende para baixo, para a morada da terra, por ter cor, tende para cima e assim
brilhar na claridade do sol, sendo denso e duro, tende a resistir à penetração dos pingos
da chuva. A tudo isso, o mármore pode tender, pelo simples fato de ser mármore.
Entregue e abandonado a si mesmo, ele cumpre e exerce essas condições, essas
propriedades. No entanto, tornar-se estátua de Apolo, nas mãos de Policleto, ou chegar
às frisas do Paternon, ou vir a ser a escadaria do templo de Paeston, a nada disso o
mármore pode tender pela simples condição do seu modo próprio de ser mármore.
Nenhuma dessas obras, nem a estátua nem a frisa nem a escadaria realizam a
possibilidade que tem o princípio de sua origem e de seu vir a ser no próprio mármore.
Brilhar ao sol, ocupar o lugar de base, respingar os pingos da chuva, tudo isso o
mármore pode cumprir entregue a si mesmo e por si mesmo. São possibilidades, diz
Aristóteles, hiléticas do mármore, não realizam uma possibilidade a que o mármore
pudesse satisfazer, exigindo, pois, um princípio diferente dele mesmo. Portanto, uma
morphé diferente da hylé mármore.
E por que não? Porque cada um desses vir a ser, na frisa, na estátua, na
escadaria, pressupõe e exige um outro princípio de origem e de sintonização. É
indispensável um outro princípio de articulação e de dinamização. Isto se diz em grego
uma outra morphé, uma outra condição, um modo de ser diferente da simples
modalidade de ser mármore. Supõe, portanto, uma significância, isto é, um vigor de
ultrapassagem, de transcendência do modo de dar-se e de exercer-se do mármore, que
suspenda e integre a matéria do mármore num perfil de sentido, que ultrapassa as
limitações e as condições concretas da realização do mármore. Para tanto, o mármore
não pode ser apenas mármore. Mas tem de assumir, em seu ser mármore, todos os
outros modos de ser e todos os outros seres. Da mesma maneira, o mar pode vir a ser,
por si mesmo, por ser mar, o movimento incessante das ondas, mas não pode ser, por si
mesmo, o sorriso incansável da libertação, de que fala Prometeu, tão logo Hércules lhe
solta a língua, no Cáucaso. É possível para o mar tornar-se por si mesmo revolto, de
força indomável, mas não lhe é possível vir a ser, por si mesmo, “o mar de vagas
abismadas de raiva na tempestade do vento sulino”, que canta o coro de Antígona.
Também não é por si mesmo, em virtude da sua própria realização, que as ondas dão
passagem aos navios gregos ou sustentam os remos das trirremes, durante a batalha de
Salamina. Para chegar a realizar-se uma possibilidade desse nível, pressupõe uma tal
diferença de ser e de essência, que atinja a universalidade do que antes de ser já sempre
era.
Platão no Simpósio, 612, ...me ontos, diz nessa passagem: tudo que responder
pela passagem do não ser para o ser, qualquer que seja, é uma poiesis, é uma criação.
Assim techne é um termo técnico tanto em Platão quanto em Aristóteles. Técnico
significa um termo dotado de uma pregnância, de uma integração de todas as
possibilidades. A palavra techne provém de um substantivo homérico: tekton, que
designa quem trabalha a madeira de qualquer maneira que seja, isto é, quer seja de
maneira refinada, como, por exemplo, o marceneiro, seja de maneira tosca, como, por
exemplo, o carpinteiro. A diferença entre artesão e artista é uma diferença moderna, não
é uma diferença nem grega nem medieval. De tekno derivou-se o verbo teknaino, com o
significado primeiro de talhar a madeira, depois de tecer, tramar, maquinar, de construir
e elaborar, de plasmar alguma coisa. A forma homérica techne diz arte, na acepção
ampla, que inclui tanto o artesão, a indústria, a habilidade, a perícia, o expediente, o
processo, o procedimento e a criação de ser e de deixar ser.