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Caderno 7

Gestão de Pessoas e Avaliação de


Desempenho no Setor Público Brasileiro:
crítica à proposta fiscal-gerencialista
da reforma administrativa e diretrizes
para um modelo de Estado orientado à
reflexividade, inovação e efetividade
Brasília, Agosto de 2020

José Celso Cardoso Jr.


Doutor em Desenvolvimento pelo IE-Uni-
camp, desde 1997 é Técnico de Planejamen-
to e Pesquisa do IPEA e professor dos Mes-
trados Profissionais em Políticas Públicas
e Desenvolvimento (IPEA) e Governança e
Desenvolvimento (ENAP). Atualmente, exerce
a função de Presidente da Afipea-Sindical.

Roberto R. Pires
Doutor em Políticas Públicas pelo Mas-
sachusetts Institute of Technology – MIT,
Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA
e professor dos Mestrados Profissionais em
Políticas Públicas e Desenvolvimento (IPEA)
e Governança e Desenvolvimento (ENAP).

Expediente

Realização:
Fórum Nacional Permanente de Carreiras
Típicas de Estado (Fonacate) (Agosto, 2020)
Autores:
José Celso Cardoso Jr.
Roberto R. Pires
As opiniões aqui emitidas são de responsabi-
lidade dos autores e colaboradores.
Diagramação:
Diego Feitosa

Apoio:

Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público


Presidente: Deputado Federal Professor Israel Batista (PV-DF)
Gestão de Pessoas e Avaliação recolocando a economia brasileira na rota da
eficiência, da produtividade e do crescimen-
de Desempenho no Setor to.
Público Brasileiro: Desta forma, o debate corrente sobre a re-
crítica à proposta fiscal- forma administrativa, que voltou ao centro
gerencialista da reforma das discussões públicas desde o início do go-
administrativa e diretrizes verno Bolsonaro/Guedes em 2019, tem um
mérito e vários problemas. O mérito está em
para um modelo de Estado recolocar um tema de fato importante – para
orientado à reflexividade, o próprio Estado brasileiro e sua população
inovação e efetividade.1 – no rol de prioridades governamentais. No
entanto, infelizmente, isso tem sido feito sob
José Celso Cardoso Jr.2 influência de tantos problemas estruturais
de compreensão teórica e histórica acerca
Roberto R. Pires3
do assunto, bem como de visão de mundo
distorcida sobre a essência e as funções do
1. Introdução. Estado nacional e dos servidores públicos na
Após trinta anos (1988 a 2018) de tentati- contemporaneidade, que vem praticamente
vas frustradas de implementação, com certo anulando as possibilidades de diálogo e de
momento mais efusivo de contestação entre avanço institucional a futuro.
2004 e 2014, estão de volta ao cenário nacio- Os documentos que atualmente abordam
nal a ideologia do Estado mínimo e a reforma o desempenho e a produtividade no serviço
administrativa de orientação fiscalista e ge- público estão quase todos centrados numa
rencialista que a acompanha. visão fiscalista e gerencialista da atuação
Seu contexto mais amplo remete à crise de estatal. Por essa razão, fazem referência à
múltiplas dimensões pela qual passa o país suposta necessidade de reduzir salários e o
desde 2015 e às tentativas de respostas dos número de servidores públicos em atuação
governos que desde então se sucederam, (PECs nºs 186 e 188; MP 922/2020). Para
orientadas, primordialmente, pela redução tanto, os documentos defendem uma revisão
do papel do Estado na vida nacional e des- das práticas de gestão de pessoas e de ava-
tinos do país, e pela compressão do gasto liação de desempenho com a finalidade prin-
público. No discurso oficial, a melhoria do cipal de viabilizar a demissão de servidores
ambiente de negócios e o ajuste fiscal resga- públicos ativos, em especial os concursados
tariam a confiança e o investimento privado, e relativamente estáveis.
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1  Este texto reelabora trechos antes publicados em Pires (2010), Afipea-Sindical (2019), Cardoso Jr. e Cerqueira (2019 e
Cardoso Jr. (2020), com a permissão dos autores. Nesta versão, erros e omissões são de responsabilidade dos autores.
2  Doutor em Desenvolvimento pelo IE-Unicamp, desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e professor
dos Mestrados Profissionais em Políticas Públicas e Desenvolvimento (IPEA) e Governança e Desenvolvimento (ENAP).
Atualmente, exerce a função de Presidente da Afipea-Sindical e nessa condição escreve esse texto.
3  Doutor em Políticas Públicas pelo Massachusetts Institute of Technology – MIT, Técnico de Planejamento e Pesquisa
do IPEA e professor dos Mestrados Profissionais em Políticas Públicas e Desenvolvimento (IPEA) e Governança e Desenvol-
vimento (ENAP).
4  Para uma contestação plena relativa a cada uma dessas falácias, os Cadernos da Reforma Administrativa e demais
publicações do Fonacate (http://afipeasindical.org.br/noticias/cadernos-sobre-reforma-administrativa/) desmontam – e apre-
sentam alternativas a – praticamente todos os argumentos governamentais e do Instituto Millenium (https://campanha.ins-
titutomillenium.org.br/wp-content/uploads/2020/08/Reforma-administrativa-Vers%C3%A3o-final.pdf) sobre o assunto, este
último largamente propagandeado pela mídia oligopolista, diretamente interessada no desmonte do Estado brasileiro.
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Em textos divulgados recentemente pelo go- impactos expressos nas transformações das
verno federal e boa parte dos chamados “es- condições de trabalho e produção, e das reali-
pecialistas” que dominam as mídias e redes dades sociais e econômicas, combinando pro-
sociais, há menções a propostas de avaliação dutividade e desempenho com aprendizado e
regular de desempenho dos servidores para inovação institucional constantes.
identificar aqueles que “entregam tudo Para tanto, após essa introdução, o texto
que lhes é demandado”, diferenciando-os aborda – na seção 2 – alguns dos principais
daqueles que “não o fazem da forma ou no mitos e problemas das propostas em voga
ritmo” considerados adequados. As métricas para a reforma da administração pública fe-
para tanto utilizadas estão centradas, via de deral brasileira, situando-a como uma das
regra, em duas dimensões: i) na dimensão sete dimensões relevantes do processo em
individual da atuação dos servidores, prove- curso de desmonte do Estado no Brasil atu-
niente de critérios importados do setor pri- al. Na seção 3, por sua vez, discorremos so-
vado; e ii) na dimensão da eficiência alocativa bre alguns dos principais fundamentos teó-
do gasto público, como se esta fosse a dimen- ricos e históricos da ocupação e do próprio
são correta ou exclusiva da gestão de pessoas desempenho individual no setor público,
e da avaliação do desempenho no setor pú- condicionando a discussão sobre desempe-
blico. nho institucional numa perspectiva analítica
Portanto, em função dessas e outras defi- que o relaciona menos a modelos quaisquer
ciências das abordagens governamental e de gestão de pessoas e mais a fatores estru-
acadêmica dominantes, torna-se necessária turantes da ocupação e atuação das pessoas
uma melhor contextualização do problema no setor público, ou seja, aos próprios funda-
como um todo, bem como uma revisão crítica mentos ali discutidos. Nas seções 4 e 5, mer-
acerca dos sentidos do desempenho no setor gulhamos na discussão aplicada aos sentidos
público, com indicações teóricas e práticas e implicações do desempenho nos modelos
alternativas para requalificar o debate pú- dominantes e alternativos disponíveis, refor-
blico e as perspectivas de implementação de çando, de modo propositivo, a necessidade e
reformas administrativas voltadas a ganhos a oportunidade de deslocar o debate público
de desempenho individual e institucional no para um patamar mais elevado de discussão
âmbito estatal. acerca de modelos de índole reflexiva do de-
sempenho individual e institucional, como
Em particular, é crucial que reformas ou parte de uma compreensão mais ampla e
modelos alternativos e mais promissores se complexa dos determinantes e das formas
projetem além dos modelos atuais baseados de organização e funcionamento do Estado
em metas quantitativas expressas em indica- e da administração pública de modo geral.
dores aparentemente simples, rápidos e fá- Nas considerações finais, resumimos alguns
ceis de serem construídos. Via de regra, eles argumentos e apresentamos um roteiro de
escondem enormes problemas metodológicos propostas para uma reforma administrativa
e dificuldades de implementação ou de expli- de natureza e orientação republicana, demo-
citação de dimensões realmente relevantes crática e desenvolvimentista no setor público
ao julgamento do desempenho individual e brasileiro ainda no século XXI.
institucional em ambientes complexos e di-
nâmicos. Além disso, é crucial que tais mode- 2. Reforma administrativa, mitos li-
los alternativos – que aqui serão chamados berais e o desmonte do Estado no Bra-
de modelos reflexivos da administração públi- sil.
ca – possam medir a ação governamental de Os detalhes específicos da reforma admi-
forma mais completa, qualitativa e sensível nistrativa ainda não são totalmente conhe-
às variações de contextos, induzindo maiores
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cidos. No entanto, suas linhas mestras estão cuperar a confiança dos investidores priva-
sendo explicitadas em uma série de entre- dos, o crescimento e o emprego.5
vistas de autoridades, artigos de opinião e A premissa liberal-fundamentalista afir-
documentos oficiais ou oficiosos sobre o ma que o gasto público real seria a fonte de
assunto. Sinteticamente, a nova orientação todos os males nacionais. Nada se fala sobre
do RH do serviço público visa incrementar a o gasto financeiro. Sob o mantra de que o Es-
produtividade por meio de estímulos indivi- tado brasileiro gasta muito e gasta mal se
duais à concorrência no interior da máquina, esconde a razão de fundo e o objetivo último
e, ao mesmo tempo, combater supostos pri- de toda e qualquer medida do atual governo
vilégios, tais como a estabilidade no cargo. desde o princípio. Apesar do discurso oficial,
Na prática, a reforma administrativa é con- o fato é que são pífias ou inexistentes as pre-
dicionada pela ideologia do Estado mínimo ocupações com o desempenho governamen-
e pelas políticas de austeridade centradas tal (setorial ou agregado) ou com a melhoria
nos cortes de despesa que dificultam a reto- das condições de vida da população brasi-
mada dos investimentos e do crescimento, leira, esta, aliás, vista ou como inimigo in-
desprotegem quem mais precisa dos servi- terno ou como empecilho à acumulação de
ços públicos de saúde, educação, assistência capital.
etc., e desorganizam – ao invés de aperfeiço-
ar – a administração governamental. Nesse sentido, é preciso ter claro que o que
está em jogo no atual contexto nacional não
Partindo de visão ideologizada (vale dizer: são, simplesmente, reformas paramétricas
pouco fundamentada seja na história brasi- a ajustar, ao gosto liberal, a estrutura e o
leira ou das demais nações, seja nas teorias modo de funcionamento do Estado brasilei-
mais adequadas acerca desse objeto com- ro em suas relações com os mercados e com
plexo e multidimensional) e negativa (vale imensos segmentos de populações aqui re-
dizer: preconceituosa e maledicente) acerca sidentes. Trata-se, desde logo, de um amplo
do peso e papel que o Estado deve ocupar e conjunto de diretrizes ideológicas e medidas
desempenhar em suas relações com os mun- governamentais a transformar qualitativa-
dos econômico e social no país, os ideólogos mente, estruturalmente, enfim, de maneira
e propagandistas dessa agenda ancoram paradigmática, a natureza e o funcionamen-
seus dados e argumentos em conclusões to do Estado em suas relações com a socie-
infundadas e falaciosas, as quais supõem dade e com os mercados capitalistas atuan-
ser o Estado brasileiro: i) contrário aos inte- tes em território nacional.
resses do mercado ou do capitalismo como
modo de produção e acumulação dominante Bem ao contrário das ondas anteriores de
nas relações econômicas no país; ii) grande reformas econômicas ou administrativas vi-
ou inchado em termos de pessoal ocupado e venciadas pelo país, trata-se agora de uma
respectivo gasto total; iii) caro ou ineficien- transformação sem precedentes na histó-
te em termos de desempenho institucional; ria republicana brasileira. Trata-se de uma
iv) falido em termos de sua capacidade pró- transformação que se caracteriza por ser ao
pria de financiamento e endividamento; e mesmo tempo abrangente – por afetar pra-
v) dependente das reformas da previdência, ticamente as grandes e principais áreas de
administrativa e microeconômicas para re- atuação governamental –, profunda – por

5  Em adição à nota de rodapé anterior, ver os livros: i) Mitos Liberais acerca do Estado Brasileiro e Bases para um
Serviço Público de Qualidade. Brasília: Afipea-Sindical, 2019; e ii) Desmonte do Estado e Subdesenvolvimento: riscos e
desafios para as organizações e as políticas públicas federais. Brasília: ARCA (Articulação de Carreiras Públicas para o
Desenvolvimento Sustentável), 2019.
5
promover modificações estruturais, e não engendrarão resultados agregados (mesmo
apenas paramétricas, nos modos de funcio- que setoriais) eficazes ou efetivos do pon-
nar das respectivas áreas – e veloz – já que to de vista macroeconômico, ainda mais se
processada em ritmo tal que setores da po- olhados tais resultados sob a ótica dos em-
lítica e mesmo analistas especializados mal pregos, rendas e tributos gerados para os de-
conseguem acompanhar o sentido mais ge- mais agentes econômicos envolvidos nesse
ral das mudanças em curso. Essas três ca- tipo de regime de acumulação de capital em
racterísticas, por sua vez, apenas se expli- bases estritamente privadas.
cam pelo contexto e estado de exceção a que Em segundo lugar, a agenda liberal atual
estão submetidas as instituições, a grande é também disruptiva em relação ao futuro.
mídia, a política, a economia e a própria so- Ao pretender alterar de forma estrutural o
ciedade (des)organizada, desde a destitui- modo pelo qual a classe trabalhadora deve
ção da Presidenta Dilma Rousseff em 2016. doravante se comportar e agir para se inse-
É somente em função desse estado de ex- rir e sobreviver nos mundos do trabalho e
ceção que se pode entender a ousadia (e até da proteção social – baseada em condições
aqui, o sucesso relativo) do projeto liberal- e circunstâncias estritamente individuais e
-fundamentalista em seguir implementan- tremendamente assimétricas ou desiguais
do, sem encontrar maiores resistências ou para tanto –, a agenda atual promete pro-
desavenças, a sua agenda disruptiva, en- mover mudanças estruturais – para pior –
tendida em dupla chave de análise. Em pri- nas formas de sociabilização básica entre
meiro lugar, a agenda proposta é disruptiva as pessoas, em todas as fases de suas vidas,
em relação ao passado. Em termos históri- e em suas capacidades e possibilidades de
cos, trata-se de uma agenda diferente das sustentação e reprodução das condições mí-
ondas anteriores de reformas econômicas nimas de sobrevivência ao longo do tempo.
e administrativas porque não há no atual Serão reforçados o individualismo como for-
projeto liberal-fundamentalista qualquer ma predominante de conduta e o consumis-
perspectiva de construção nacional ou de mo como ideal de realização pessoal.
fortalecimento do Estado para este fim. Não Pois para viabilizar tal projeto em sua en-
há qualquer referência ao desenvolvimento vergadura, há, portanto, ao menos sete di-
da nação como objetivo último de suas re- mensões a serem destacadas para entender
formas, mas tão somente o entendimento de melhor o processo em curso de desmonte do
que a consolidação e a valorização capitalis- Estado, do aparato público brasileiro e da
ta de mercados autorregulados poderia en- própria CF-1988, a saber:6
gendrar algum tipo de “desenvolvimento”,
que em termos do liberalismo econômico 1. Subalternidade Externa: a ideia de so-
em voga significa coisas como maximização berania nacional é trocada pela ideia de
das rentabilidades empresariais de curto acordos bilaterais de natureza predominan-
prazo, crescimento microeconômico eficien- temente econômica. Esse processo, que po-
te dos empreendimentos etc. Ora, de diver- deria ser chamado de “renúncia de sobera-
sas maneiras já foi demonstrado que o so- nia”, implica em perda de protagonismo e
matório de empreendimentos empresariais de autonomia no plano internacional, redu-
eficientes e rentáveis do ponto de vista mi- zindo a atuação do Estado brasileiro a um
croeconômico não é garantia (na verdade, patamar quase que meramente comercial e
não há evidência empírica alguma) de que financeiro, que trata tão somente de iden-
tificar e viabilizar negócios rentáveis entre

6  Para um detalhamento maior de cada uma das referidas dimensões, ver Cardoso Jr. (2020, no prelo).
6
capitais privados nacionais e estrangeiros, de governo, cuja escala já alcançada de si-
sem maiores preocupações com estratégias tuações demonstra que o fenômeno deixou
de internacionalização ou com a geopolítica de ser algo esporádico ou acidental, como
do entorno estratégico brasileiro, redundan- no passado, para se tornar algo patológico,
do daí grande perda de status e de poder no uma prática intencional com objetivos cla-
plano internacional. ramente definidos, a saber: i) desorganizar
2. Inversão e Reversão do Estado Democrá- – para reorientar pelo e para o mercado – a
tico de Direito: também conhecida como des- atuação estatal; ii) deslegitimar as políticas
democratização, essa dimensão do processo públicas sob a égide da CF-1988; e iii) por
em curso de desmonte do Estado de Direito fim, mas não menos importante, desqualifi-
no Brasil consiste, fundamentalmente, em car e negativar os próprios servidores públi-
certa “institucionalização” de formas pelas cos, mormente os estatutários, sob guarida
quais a soberania popular – e o povo como do RJU criado também na CF-1988.
ator político legítimo e soberano – são ali- 4. Privatização do Setor Produtivo Esta-
jados dos processos decisórios fundamen- tal: privatizações descabidas, realizadas a
tais da república e até mesmo suas formas preços e condições aviltantes, que impli-
de participação política e reivindicações cam em: i) desnacionalização patrimonial
sociais são denunciadas, desconsideradas e perda de soberania nacional; ii) perda de
e, por fim, criminalizadas e reprimidas em densidade e articulação das cadeias produ-
nome da lei e da ordem. A lei e a ordem pas- tivas; iii) desarticulação dos investimentos
sam a ser impostas pelas classes dominan- públicos indutores e multiplicadores dos
tes ao país, por meio de um governo que, investimentos privados e do próprio cresci-
declaradamente, assume governar em prol mento econômico setorial e agregado; e iv)
apenas de interesses empresariais, religio- enfraquecimento do potencial indutor de
sos dogmáticos e militarizados. inovações estratégicas das estatais junto a
3. Assédio Institucional: intimamente re- segmentos a montante e à jusante das res-
lacionada à desdemocratização está este pectivas cadeias produtivas.
fenômeno sociológico e jurídico novo e per- 5. Privatização de Políticas Públicas Ren-
turbador, até o momento negligenciado no táveis: esta outra forma de privatização em
debate público, mas com consequências de- curso opera de forma silenciosa e quase im-
sastrosas para o ente estatal e para a própria perceptível, por dentro de políticas e pro-
sociedade brasileira. O assédio institucional gramas públicos, visando a introdução de
possui uma vertente organizacional e outra atores e interesses privados, sobretudo em
moral, mas em ambos os casos, trata-se da áreas rentáveis para a acumulação de capi-
forma dominante de relacionamento entre tal e a consolidação de mercados lucrativos
distintas instâncias ou organizações hierár- em áreas tais como: previdência, trabalho,
quicas em cada poder da União e nível da saúde, assistência, educação, esportes, cul-
federação. Alguns exemplos são eloquentes tura, segurança, meio ambiente, ciência,
contra Universidades e Institutos Federais, tecnologia, inovação, comunicações etc.
Ibge, Bndes, Cnpq, Capes, Finep, Funai, Inpe, Por meio de discursos e práticas de inver-
Inep, Ipea, Fiocruz, Anvisa, Ancine, Ibama, são do espírito, princípios e diretrizes origi-
Icmbio e até mesmo contra organizações e nais da CF-1988, opera-se um conjunto de
carreiras do chamado núcleo administrativo alterações constitucionais, tanto através de
ou estratégico de Estado, representado pelo emendas formais, como também por meio
Fonacate (Fórum Nacional Permanente das de reinterpretações do texto constituinte,
Carreiras Típicas de Estado). Nesta perspec- que juntas, desfiguram a Constituição e per-
tiva, ele pode ser considerado um método mitem a privatização por dentro de políticas
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públicas que, em essência, deveriam seguir Portanto, ao chamarmos o processo acima
o rumo da universalidade, integralidade, de privatização das finanças públicas, quere-
gratuidade etc. mos com isso chamar atenção para o fato de
6. Privatização das Finanças Públicas: por que, por detrás dos mecanismos econômi-
meio da financeirização da Dívida Pública co-financeiros subjacentes, aparentemente
Federal e da sua gestão pelas autoridades neutros ou simplesmente técnicos, existe na
monetária (BACEN) e fiscal (STN), trata-se realidade um processo extraordinariamente
de processo paulatino e simultâneo, pelo desigual de apropriação e enriquecimento
qual se vão consolidando, desde a CF-1988, financeiro. Este processo favorece apenas
duas situações antagônicas. determinados segmentos da sociedade, nu-
mericamente minoritários na população,
De um lado, normativos constitucionais geralmente travestidos de agentes econô-
(tais como as EC 01/1994, EC 10/1996, micos tais como bancos comerciais, bancos
EC 17/1997, EC 27/2000, EC 56/2007, EC de investimento, seguradoras, corretoras,
68/2011, EC 93/2016, EC 95/2016, além das fundos de pensão e agentes estrangeiros, os
PEC 186 - Emergencial, PEC 187 - Fundos quais são não apenas os maiores operadores
Públicos, PEC 188 - Pacto Federativo, todas desse processo, como também os seus prin-
editadas em novembro de 2019 e ainda em cipais beneficiários diretos.
tramitação legislativa), como infraconsti-
tucionais (LRF/2000 e vários dispositivos 7. Reforma Administrativa: amparada ideo-
de controle e punição aplicados quase que logicamente por entrevistas de autoridades,
anualmente por meio das LDO e LOA) que artigos de opinião, documentos oficiais e
primam pelo enrijecimento e criminalização postura agressiva da grande mídia a favor
do gasto público real, de natureza orçamen- do assunto, consiste em 4 eixos complemen-
tária, justamente aquele que é responsável tares, a saber:
pelo custeio de todas as despesas correntes, • Redução de estruturas, carreiras e car-
tanto as intermediárias/administrativas, gos: reduzir o número de carreiras do
como as finalísticas destinadas à implemen- Executivo das cerca de 310 atuais para
tação efetiva das políticas públicas federais 20 ou 30; centralizar e racionalizar a
em todas as áreas de atuação governamen- gestão do RH; facilitar a mobilidade en-
tal. tre órgãos.
De outro lado, outros tantos normativos • Redução de remunerações e do gasto
constitucionais (das quais a EC 95/2016 do global com pessoal: adiamento por tem-
teto de gastos e a PEC 187/2019 dos fun- po indefinido de concursos; priorização
dos públicos são bastante expressivas), de formas de contratação via terceiriza-
bem como infraconstitucionais (por exem- ção e contratos temporários; rebaixa-
plo: Lei nº 9.249/95, Lei nº 11.803/20 e mento dos salários de entrada com ali-
Lei 13.506/2017, esta que blinda o sistema nhamento em relação ao setor privado;
financeiro brasileiro da punição criminal revisão das tabelas de progressão no
sobre os ilícitos financeiros cometidos, tais sentido de estendê-las no tempo e im-
como evasão de divisas, fraudes e remessas pedir que todos os servidores cheguem
a paraísos fiscais). Todos esses regramentos ao topo remuneratório; possibilidade
representam a flexibilização sem limite supe- de redução forçada de jornada com di-
rior e a blindagem do gasto público financei- minuição proporcional de salários.
ro, justamente o oposto do tratamento que • Avaliação de desempenho para demis-
vem sendo conferido ao gasto primário real são: nova regulamentação da demissão
do setor público brasileiro. por insuficiência de desempenho.

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• Cerceamento das formas de organização, bem como um processo de desestímulo ao
financiamento e atuação sindical: proi- trabalho, com consequências deletérias so-
bição do desconto em folha da contri- bre a própria capacidade e qualidade das po-
buição voluntária sindical e associativa líticas públicas em atender, adequadamen-
dos servidores (MP 873/2019, que não te, a população beneficiária em cada caso
prosperou no Congresso, mas que en- concreto.
sejou a apresentação do PL 3.814/2019 A PEC 187, por sua vez, tem como princi-
no mesmo sentido); exigência de com- pal objetivo eliminar os fundos públicos vi-
pensação do ponto em caso de ausência gentes e com isso provocar uma repactuação
motivada por atividade sindical. fiscal-federativa em larga escala, já que boa
Não por outra razão, a postura discursiva parte dos tais fundos se organizam e ope-
dos altos escalões do governo federal e o pa- ram com base em sistemas federativos de
cote de propostas legislativas em curso atu- políticas públicas, repasses fundo a fundo,
almente no Brasil, no que tange aos temas atribuições compartilhadas entre os 3 entes
do Estado, suas organizações, instituições e federativos etc. Ainda que uma parte desses
servidores públicos concursados possui em fundos existam apenas em termos contábeis
comum a mesma sanha reducionista de pre- ou possuam pouco ou nenhum impacto eco-
ços e quantidades, persecutória contra orga- nômico e social que os justifiquem, há vá-
nizações e pessoas não alinhadas ao mesmo rios fundos (passíveis de extinção pela PEC
ideário e práxis político-ideológica e crimi- 187) que, ao contrário, existem como produ-
nalizadora da própria atuação governamen- to de pactos sócio-políticos e arranjos seto-
tal e de parte dos seus servidores (cf., por riais e federativos específicos, ademais com
exemplo, a LRF/2000, a EC 95/2016, e as impactos econômicos e sociais importantes,
PECs 186, 187 e 188 que conformam o cha- cuja extinção representará severa crise de
mado Plano Mais Brasil). subfinanciamento ou mesmo colapso seto-
A PEC 186 tem como principal objetivo rial e federativo de monta para várias polí-
cortar gastos públicos de pessoal, por meio ticas públicas relevantes e deles (dos pactos
da redução de 25% dos vencimentos de e arranjos) dependentes. O agravante dessa
servidores públicos federais, mas poten- situação é que a PEC 187 possui apenas o ob-
cialmente aplicáveis também aos estados e jetivo fiscal de desobrigar, desindexar e des-
municípios. Essa medida é completamente vincular recursos dos fundos para livre uso
contraproducente, pois ao invés de contri- pela União (leia-se: federalização e abati-
buir para o almejado ajuste fiscal estrutural mento da dívida pública federal), oferecen-
do setor público, deve na verdade intensifi- do em troca nada mais que promessas não
car a contração da demanda agregada (di- fundamentadas e nada claras de realocação
reta e indiretamente financiada pela massa federativa dos mesmos. Vale dizer, sem pro-
de rendimentos do trabalho proveniente dos jeto algum de reinvestimento, priorização
servidores públicos) e, portanto, contribuir de gastos ou – menos ainda – de desenvol-
para a redução mais que proporcional do vimento regional ou de qualquer outro tipo
consumo doméstico, do faturamento empre- sobre o qual se pudesse talvez ancorar a re-
sarial, do emprego privado e da arrecadação ferida justificativa de extinção dos atuais
tributária direta e indiretamente dependen- fundos.
te e derivada da mesma massa de rendimen- Por fim, a PEC 188 tem como destino, além
tos). Ademais, uma medida desse porte, se da extinção do PPA (único instrumento for-
concretizada, deve induzir um processo de mal destinado a orquestrar o processo de
fuga de talentos do setor público para o se- planejamento governamental nos 3 níveis
tor privado, até mesmo para fora do país, da federação) e do mesmo corte de venci-
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mentos de servidores públicos já previsto na emergência fiscal permanente, na medida
PEC 186, a inclusão de um parágrafo único em que os critérios contábeis auto impostos
ao artigo 6º da CF-1988, prevendo que “será de aferição e cumprimento das atuais regras
observado, na promoção dos direitos sociais, fiscais brasileiras são inexequíveis na práti-
o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”. ca e inadequadas teoricamente.
Se aprovado, isso representará uma forma Tudo somado, essas são as razões gerais
de relativização ou severa restrição dos di- pelas quais o chamado Plano Mais Brasil
reitos sociais fundamentais, ao condicioná- (PECs n. 186, 187 e 188) e a reforma admi-
-los ao “equilíbrio fiscal intergeracional”, nistrativa que o acompanha estão assenta-
mesmo sendo este um conceito teórica e em- dos em dogmas ideológicos não referencia-
piricamente questionável. dos, de modo substantivo, nem na economia
Em primeiro lugar, a noção de equilíbrio do mundo real, nem na história das experi-
intergeracional traz em si uma visão estática ências internacionais ou brasileira de todos
de um fenômeno que é intrinsecamente di- os tempos. Por isso, nada assegura que a re-
nâmico. Ao submeter, constitucionalmente, forma administrativa, da qual as PECs 186,
a realização dos direitos sociais ao tal equi- 187 e 188 são parte, todas centradas em re-
líbrio fiscal contábil intergeracional de lon- dução de direitos e redução de entregas de
go prazo, a malfadada proposta estará, na bens e serviços à população, em arrocho sa-
verdade, comprometendo as possibilidades larial e em demissões diretas de servidores
de sucesso e realização das gerações futu- (e indiretas de trabalhadores cujas rendas
ras, as quais terão que (sobre)viver para sa- dependem dos gastos daqueles) melhorem
tisfazer os regramentos inexequíveis da lei, este quadro. Pelo contrário, devem agravá-
ao invés de a lei servir para fazer cumprir -lo, ou na melhor das hipóteses instaurar
os direitos sociais da população. Tal regra- a estagnação com retrocesso social como o
mento é também estático no sentido de que novo normal brasileiro.
sequer concebe a possibilidade de novas de- Desta maneira, ao invés de trabalhar para
mandas e necessidades sociais decorrentes elevar e homogeneizar o padrão de vida da
das mutações que naturalmente acontecem população residente no país, o governo Bol-
nos padrões demográficos, epidemiológicos, sonaro/Guedes age para nivelar por baixo o
sanitários, educacionais e civilizacionais ao padrão histórico brasileiro de condições e
longo do tempo em qualquer lugar do mun- relações de trabalho, lançando também os
do – mas menos no Brasil, ao que parece! trabalhadores do setor público ao patamar e
Em segundo, do ponto de vista da lógica práticas milenares da sociedade escravocra-
jurídica, não faz sentido constitucionalizar ta nacional.7
algo que representará uma espécie de pe-
trificação das finanças públicas brasileiras,
uma verdadeira normalização da exceção, a
instalar, essa sim, uma situação futura de

7  Para não dizer que não há preocupação alguma com o Estado, suas organizações, funções e servidores, veja-se que tanto
na reforma da previdência como nesse conjunto de PEC’s 186, 187 e 188, é conferido tratamento diferencial e privilegiado
justamente ao núcleo militar-policial-judicial-repressivo do Estado: “O pacote econômico do governo, elaborado pela equipe
do Ministro Paulo Guedes para diminuir os gastos públicos, prevê a criação do estado de emergência fiscal, acionado quando
União, Estados ou Municípios estiverem em situação de aperto para pagar suas contas. O governo pode reduzir a jornada
e o salário dos servidores por um período determinado, e fica impedido de abrir concursos, dar reajustes, criar cargos ou
promover funcionários. Neste caso, porém, não estão incluídos juízes, membros do Ministério Público, militares e pessoal
do serviço exterior, como diplomatas. Servidores dessas categorias continuam podendo ser promovidas.” Veja essa matéria
completa em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/11/13/pec-emergencial-promocao-juizes-militares.htm
10
3. Fundamentos da ocupação e do também responsáveis, em última instância,
desempenho institucional no setor pú- pelo bom desempenho institucional agrega-
blico. do no setor público, presentes em maior ou
menor medida nos Estados nacionais con-
No Brasil, o regime jurídico dos servidores temporâneos, que precisam ser levados em
públicos civis (RJU) consiste em um con- consideração para uma boa estrutura de go-
junto de regras de direito público que trata vernança e por incentivos corretos à produ-
dos meios de acessibilidade aos cargos pú- tividade e a um desempenho institucional
blicos, da investidura em cargo efetivo e em satisfatório ao longo do tempo. São eles:
comissão, das nomeações para funções de
confiança, dos deveres e direitos dos servi- • estabilidade na ocupação, idealmente
dores, da promoção e respectivos critérios, conquistada por critérios meritocrá-
do sistema remuneratório, das penalidades ticos em ambiente geral de homoge-
e sua aplicação, do processo administrativo neidade econômica, republicanismo
e da aposentadoria. político e democracia social, visando
a proteção contra arbitrariedades – in-
Desta feita, o emprego público tende a ser clusive político-partidárias – cometi-
não apenas um emprego de qualidade e dig- das pelo Estado-empregador;
nidade elevadas no espectro total de ocupa-
ções em uma sociedade emergente como a • remuneração adequada e previsível ao
brasileira, como ainda se reveste de atribui- longo do ciclo laboral;
ções e competências algo distintas daquelas • qualificação elevada e capacitação per-
que prevalecem no mundo das contratações manente no âmbito das funções precí-
privadas. De um lado, sendo o Estado o em- puas dos respectivos cargos e organiza-
pregador em primeira instância, há obvia- ções;
mente a necessidade de que se cumpram to-
• cooperação – ao invés da competição –
dos os requisitos legais e morais mínimos à
interpessoal e intra/inter organizações
contratação e manutenção desses empregos
como critério de atuação e método pri-
sob sua custódia e gestão. Requisitos esses
mordial de trabalho no setor público.
que dizem respeito, basicamente, às condi-
ções gerais de uso (jornada padrão), remu- • liberdade de organização e autonomia
neração (vencimentos equânimes), proteção de atuação sindical, no que tange tanto
(saúde, segurança e seguridade nas fases às formas de (auto)organização e fun-
ativa e pós-laboral), representação (sindica- cionamento dessas entidades, como no
lização e demais direitos consagrados pela que se refere às formas de representa-
OIT) e acesso à justiça contra arbitrarieda- ção, financiamento e prestação de con-
des porventura cometidas pelo Estado-em- tas junto aos próprios servidores e à
pregador. sociedade de modo geral.8
De outro lado, há distinções claras relativa-
mente aos empregos do setor privado, dada 3.1. A estabilidade funcional dos servi-
a natureza pública dessas ocupações que se dores nos cargos públicos
dão a mando do Estado e a serviço da coleti-
Começando pelo tema da estabilidade na
vidade, cujo objetivo último não é a produ-
ocupação, é preciso ter claro que ela remon-
ção de lucro, mas sim a produção de bem-
ta a uma época na qual os Estados nacio-
-estar social. Neste sentido, há pelo menos
nais, ainda em formação, precisaram, para
cinco fundamentos históricos da ocupação,

8  Este é o único dos fundamentos que não será tratado neste texto. Para tanto, ver Camargos (2020).
11
sua própria existência e perpetuação (isto é, submetido exclusivamente às ordens feu-
consolidação interna e legitimação externa) dais e reais, para assumir, crescentemente,
transitar da situação de recrutamento mer- funções estatais permanentes e previsíveis,
cenário e esporádico para uma situação de em tarefas ligadas às chamadas funções
recrutamento, remuneração, capacitação e inerentes dos Estados capitalistas modernos
cooperação junto ao seu corpo funcional. e contemporâneos, cf. Quadro 1 abaixo.
Este, gradativamente, foi deixando de estar

Quadro 1: Atributos intrínsecos da ocupação para desempenho institucional adequado


do setor público e seus contrários de natureza liberal-gerencialista.

Fundamentos Burocracias Atributos Intrínsecos para


Receituário Liberal
Históricos dos desempenho institucional
Especializadas Gerencialista
Estados Nacionais adequado

• Flexibilidade quantitativa
• Estabilidade e proteção por meio da possibilidade de
contra arbitrariedades. demissão.
• Remuneração adequada e • Remuneração flexível e bônus
Monopólio da previsível. por desempenho.
Diplomacia
representação externa • Qualificação elevada e • Responsabilização individual
capacitação permanente. pela capacitação e progressão.
• Cooperação interpessoal e • Competição interpessoal e con-
intra/inter organizacional. corrência intra/inter organiza-
cional.

• Estabilidade. • Flexibilidade quantitativa.


Forças Armadas, For- • Remuneração. • Remuneração flexível.
Monopólio do uso da
ças Policiais, Poder
força física • Qualificação. • Responsabilização individual.
Judiciário
• Cooperação. • Competição interpessoal.

• Estabilidade. • Flexibilidade quantitativa.


Monopólio da formula- Parlamento: classe • Remuneração. • Remuneração flexível.
ção e implementação política e burocracia
das leis parlamentar • Qualificação. • Responsabilização individual.
• Cooperação. • Competição interpessoal.

• Estabilidade. • Flexibilidade quantitativa.


Burocracia econômi-
Monopólio da imple- • Remuneração. • Remuneração flexível.
ca: emissão e gestão
mentação e gestão da
monetária e funções • Qualificação. • Responsabilização individual.
moeda
derivadas
• Cooperação. • Competição interpessoal.

Fisco: fiscalização, • Estabilidade. • Flexibilidade quantitativa.


arrecadação e fun-
Monopólio da tributa- ções derivadas, tais • Remuneração. • Remuneração flexível.
ção / arrecadação como orçamentação, • Qualificação. • Responsabilização individual.
planejamento, ges-
tão, controle. • Cooperação. • Competição interpessoal.

Fonte: Elaboração própria.

12
Tais funções, estruturantes dos Estados Administração.” No Brasil, consolidou-se a
modernos, e posteriormente outras fun- estabilidade do servidor público com a Lei
ções derivadas de novas áreas de atuação nº 2.924 de 1915. Constitucionalmente, a
governamental na modernidade,9 estão to- estabilidade foi recepcionada em 1934, e
das dotadas desse mesmo atributo original de lá para cá tem sido mantida em todas
e essencial, qual seja, o da indispensabili- as Constituições, até na de 1988, ainda for-
dade da estabilidade do corpo funcional do malmente vigente.
Estado como forma de garantia da provisão O inverso disso, ou seja, o receituário li-
permanente e previsível das respectivas fun- beral-gerencialista em defesa da flexibili-
ções junto ao próprio ente estatal, nos territó- dade quantitativa como norma geral, por
rios sob suas jurisdições e suas populações. meio da possibilidade de contratações e de-
Olhando da perspectiva histórica, Praze- missões rápidas e fáceis no setor público,
res (mimeo, s/d), esclarece que: “Este mo- insere os princípios da rotatividade e da in-
delo possui como princípios a profissionaliza- segurança radical não apenas para os ser-
ção, a organização dos servidores em carreira, vidores, que pessoalmente apostaram no
a hierarquia funcional, a impessoalidade e o emprego público como estratégia e traje-
formalismo. Este tipo de administração públi- tória de realização profissional, como tam-
ca foi desenvolvido com o objetivo de distin- bém introduz a insegurança na sociedade e
guir o público do privado e, também, separar no mercado, pelas dúvidas e incertezas que
o político do administrador.” (s/pg). E com- a rotatividade e a insegurança acarretam à
plementa Silva (mimeo, s/d): “O Princípio capacidade do Estado em manter a provi-
da Estabilidade nasceu nos Estados Unidos são de bens e serviços públicos de forma
para barrar um costume desumano e imoral, permanente e previsível ao longo do tem-
sem contar o fato de que bania completamente po. Portanto, permanência e previsibilidade
a democracia da Administração Pública, em são duas características fundamentais das
virtude da usual e costumeira troca de gover- políticas públicas e da própria razão de exis-
nantes no Poder Público de partidos políticos tência e legitimação política do Estado, algo
influentes, os Democratas e os Republicanos. que apenas pode estar assegurado por meio
Diante desse panorama antidemocrático em da manutenção da estabilidade e da prote-
que viviam os cidadãos estadunidenses, onde ção do seu corpo funcional, além de outros
os servidores eram sumariamente demitidos, fatores.
quando considerados contrários ou desneces- Diante do exposto, entende-se melhor
sários ao atual governo que buscava se cer- porque é que a ocupação no setor públi-
car apenas de seus partidários. Tais atitudes co veio, historicamente, adotando e assu-
causavam total desalinhamento na prestação mindo a forma meritocrática como critério
do serviço público, afetando a credibilidade fundamental de seleção e acesso, mediante
do governo, e causando injustiças tanto aos concursos públicos e sob a guarida de um
servidores quanto aos administrados. Dessa regime estatutário e jurídico único (RJU),
forma, buscando atender ao interesse cole- como no caso brasileiro desde a CF-1988.
tivo idealizou-se o instituto da estabilidade, Sabemos, não obstante, que o critério we-
almejando alcançar proteção aos cidadãos beriano-meritocrático de seleção de qua-
na prestação das atividades essenciais da dros permanentes e bem capacitados (dos

9  Tais funções, complexas e abrangentes, foram surgindo e exigindo respostas tão estruturadas quanto possíveis da co-
letividade e seus respectivos governos, sejam finalísticas, tais como no campo das políticas sociais, econômicas e de desen-
volvimento territorial, setorial e produtivo, financeiro, regulatório, ambiental etc., como aquelas tipicamente administrativas,
dentre as quais as de orçamentação, planejamento, gestão, regulação, controle etc.
13
pontos de vista técnico, emocional e moral) ram autonomia operacional, e a uma legis-
para o Estado depende de condições obje- lação recente sem a qual seria impossível
tivas ainda longe das realmente vigentes identificar, denunciar e punir assaltos aos
no Brasil, quais sejam: ambiente geral de cofres públicos, assim como realizar opera-
homogeneidade socioeconômica, republi- ções especiais como todas aquelas articula-
canismo político e democracia social10. das entre Ministério Público Federal, Justiça
De todo modo, mesmo operando em con- Federal e Polícia Federal. Estão entre essas
dições adversas, o critério meritocrático leis, todas incorporadas ao ordenamento
aplicado ao setor público evita, justamente, jurídico nos últimos anos, as seguintes: i)
que sob qualquer tipo de comando tirânico Lei da Transparência (Lei Complementar
ou despótico (ainda que “esclarecido”!), se nº 131/2009, conhecida como Lei Capibe-
produza qualquer tipo de partidarização ou ribe); ii) Lei de Captação de Sufrágio, que
aparelhamento absoluto do Estado. No caso aceita a evidência do dolo para efeito de
brasileiro, sob as regras vigentes desde a cassação de registro e de mandato (Lei nº
CF-1988, há garantia total de pluralidade 12.034/2009); iii) Lei da Ficha Limpa (Lei
de formações, vocações e até mesmo de afi- Complementar nº 135/2010); iv) Atualiza-
liações políticas, partidárias e ideológicas ção da Lei de Combate à Lavagem de Dinhei-
dentro do Estado nacional, bem como ga- ro (Lei nº 12.683/2011); v) Lei de Conflito
rantia plena do exercício de funções movi- de Interesses (Lei nº 12.813/2013); vi) Lei
das pelo interesse público universal e sob de Responsabilização da Pessoa Jurídica,
controle tanto estatal-burocrático (Lei nº ou Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013);
8.112/1990 e controles interno e externo vii) Lei da Delação Premiada, ou a lei que
dos atos e procedimentos de servidores e trata de Organizações Criminosas (Lei nº
organizações) como controle social direto, 12.850/2013); e viii) Emenda Constitucio-
por meio, por exemplo, da Lei de Acesso a nal do voto aberto na cassação de manda-
Informações (LAI). tos e apreciação de vetos (E. C. nº 76/2013).

Além dessas leis, no campo da transpa- Ou seja, nos regramentos já existentes


rência e do combate à corrupção, destaque para delimitação da ocupação no serviço
deve ser dado ao empoderamento dos ór- público, estão previstas possibilidades de
gãos de fiscalização e controle, que ganha- avaliação e de monitoramento da ativida-

10  O ambiente geral de homogeneidade econômica e social é condição necessária para permitir que todas as pessoas
aptas e interessadas em adentrar e trilhar uma carreira pública qualquer, possam disputar, em máxima igualdade possível de
condições, as vagas disponíveis mediante concursos públicos, plenamente abertos e acessíveis a todas elas. Por sua vez, o
republicanismo político e a democracia social implicam o estabelecimento de plenas e igualitárias informações e condições de
acesso e disputa, não sendo concebível nenhum tipo de direcionamento político-ideológico nem favorecimento pessoal algum,
exceto para aqueles casos (como as cotas para pessoas portadoras de deficiências ou necessidades especiais, e as cotas para
gênero e raça) em que o objetivo é justamente compensar a ausência ou precariedade histórica de homogeneidade econômica
e social entre os candidatos a cargos públicos. Em outras palavras: o mérito, como critério primordial de seleção e ocupação
de cargos públicos, só pode cumprir plenamente o seu papel precípuo de filtrar os melhores ou mais aptos (dos pontos de vista
técnico, emocional e moral), se estiver assentado em condições de máxima homogeneidade econômica e social possível entre
os cidadãos concorrentes em qualquer processo seletivo ou concurso público. De outra maneira, quanto mais heterogênea e
desigual forem as condições econômicas e sociais de uma dada população, mais os processos ditos meritocráticos tenderão a
sacramentar – ou até mesmo ampliar – as desigualdades e heterogeneidades previamente existentes nessa sociedade. Como
afirma Soares (2020): “O meritocrata não é nada sem a sociedade em que está inserido e as condições que essa sociedade lhe
proporcionou para se transformar neste “Self Made Man”, super empreendedor, que enriqueceu imenso graças a uma ideia
genial criada às costas de milhares de pessoas que contribuíram para que essa ideia genial pudesse ter surgido. Portanto,
o nosso mérito será qualquer coisa como 90% sorte, 10% esforço. Certamente que ver as coisas desta forma tira muito gla-
mour a todas as nossas conquistas sociais. Mas é a realidade!” Essa citação, apesar de longa, resume tão bem os problemas
em torno do conceito e condições para o êxito da meritocracia que mereceu, de nossa parte, a sua inclusão na íntegra como
Anexo desse texto.
14
de do agente público, além da aplicação de para a colocação em operação, pelo territó-
um amplo rol de sanções administrativo- rio nacional, de políticas públicas de vários
-disciplinares, que podem culminar com a tipos e abrangências.
expulsão de servidores estatutários da ad- Por sua vez, os demais atributos intrín-
ministração pública federal, em amplo es- secos da ocupação e do bom desempenho
pectro. Por sua vez, a Lei nº 8.112, de 11 de individual e institucional no setor público,
dezembro de 1990, define em seu art. 3º o quais sejam: a remuneração adequada e
termo “cargo público”: trata-se do conjunto previsível ao longo do ciclo laboral, a qua-
de atribuições e responsabilidades previs- lificação elevada e a capacitação perma-
tas na estrutura organizacional a que está nente no âmbito das funções precípuas dos
circunscrito e que devem ser observadas respectivos cargos e organizações, a coope-
pelo servidor. As penas administrativas ração interpessoal e intra/inter organiza-
previstas na mesma Lei são as seguintes: cional como critério de atuação e método
advertência, suspensão, demissão, cassa- primordial de trabalho no setor público,
ção de aposentadoria ou de disponibilida- todos eles, derivam precisamente do atri-
de, e destituição de cargo em comissão ou buto primordial da estabilidade do corpo
de função comissionada. funcional.
Entre 2003 e julho de 2019 estão conta-
3.2. Remuneração adequada e previsí-
bilizadas 7.588 punições expulsivas apli-
vel ao longo do ciclo laboral
cadas a servidores estatutários do Poder
Executivo Federal, cerca de 500 ao ano. A remuneração adequada e previsível no
Quanto às suas fundamentações, 64% des- tempo é condição de segurança financeira
sas expulsões devem-se a atos relacionados e de estabilidade emocional dos servido-
à corrupção; 26% por abandono de cargo, res, fatores necessários a qualquer pessoa
inassiduidade ou acumulação ilícita de inserida em uma relação de trabalho que
cargos; os demais 10% estão divididos en- apenas existe e se realiza em função do Es-
tre desídia (3%), participação em gerência tado, em favor da coletividade e em caráter
ou administração de empresas (1%) e ainda permanente. Desta maneira, ela precisa ser
outras razões e motivos variados (6%). adequada e previsível não apenas para que
o servidor goze de segurança financeira e
Em suma, a estabilidade do servidor no
estabilidade emocional no desempenho de
cargo para o qual ingressou via concur-
suas funções, dificultando ao máximo que
so público não é uma condição absoluta,
ele possa sofrer qualquer tipo de assédio
e é um direito fixado no arranjo jurídico
moral, captura externa, tentativa de extor-
brasileiro. Um direito, uma prerrogativa
são ou qualquer outro tipo de corrupção,
que busca a preservação no tempo das
como que ele tenha que de suas funções
próprias funções de Estado e a proteção do
precípuas se dispersar, prejudicando com
servidor contra o arbítrio político indevido.
isso o seu desempenho profissional no car-
A estabilidade visa antes de tudo o interesse
go público e, por extensão, o desempenho
público. Neste sentido, ao falarmos do tema
institucional satisfatório da sua organiza-
emprego público, estamos na realidade
ção junto à população.
falando de parcela não desprezível de
postos de trabalho criados por decisão e É claro que tais fatores são também
demanda política do Estado, com vistas importantes para as relações capital-
tanto ao desempenho institucional condi- trabalho no mundo dos negócios, razão
zente do poder público, como visando ao pela qual o processo histórico de regulação
incremento de uma das capacidades esta- social do trabalho incorporou tais
tais fundamentais na contemporaneidade temas na defesa de contratos por tempo
15
indeterminado, remunerações mínimas dos da segurança financeira e da estabili-
garantidas, pletora de benefícios e direitos dade emocional. Uma vez implementadas
laborais e sociais, negociações coletivas, no setor público, propostas de remunera-
direito de greve, acesso à justiça etc. Porém, ção flexível tenderão a fazer aumentar – ao
diferentemente da ocupação no setor invés de diminuir! – a insegurança financei-
público, as ocupações no setor privado, ra e a instabilidade emocional dos servido-
mesmo aquelas contratadas sob o amparo res afetados, deixando-os mais expostos a
das leis de proteção laboral e social ainda vivenciarem situações de assédio moral,
vigentes, estão mais fortemente sujeitas captura externa, tentativas de extorsão ou
aos ciclos econômicos, discricionariedades qualquer outro tipo de corrupção ativa ou
e – por vezes – arbitrariedades dos empre- passiva no desempenho de suas funções.
gadores. No mundo dos negócios, reinam – Deste modo, ao invés de estimular um
infelizmente de modo quase naturalizado maior e melhor desempenho individual, ou
nas sociedades capitalistas contemporâne- incrementar a produtividade própria ou or-
as, sobretudo naquelas subdesenvolvidas ganizacional, medidas dessa natureza ten-
como a brasileira – relações assimétricas derão, na verdade, a acirrar a competição
e muitas vezes desumanas de poder, razão interna e a deteriorar as condições pesso-
pela qual a regulação pública (externa e ais e coletivas de sanidade e salubridade
coercitiva) exercida pelo Estado, por meio no ambiente de trabalho.
do sistema de justiça, sobre as relações ca- No setor público, pela simples razão de
pital-trabalho, é tão necessária, ainda que que critérios privados ou meramente téc-
insuficiente, para mitigar ou contra arres- nicos não podem ser transpostos automa-
tar as tendências abusivas, predatórias ou ticamente para o setor público, o aumento
socialmente injustas que em geral as carac- da competição laboral interna, ainda que
terizam. possa redundar em maiores indicadores
Já no âmbito estatal, lugar por excelência de produtividade individual, raramente
da esfera pública, as relações laborais não significará melhores condições de sanida-
são do tipo capital-trabalho, são relações de e salubridade em locais de trabalho que
estatutariamente assentadas no pressu- primam pela cooperação como fundamento
posto da igualdade formal e real entre indi- da ação coletiva, nem tampouco significará
víduos e destes com o Estado-empregador, maior eficiência, eficácia ou efetividade da
ente que representa a própria sociedade ação pública de modo geral.
coletivizada. Nem por isso, como se sabe, Metodologicamente, dadas as imensas
prescindem de praticamente os mesmos diferenças qualitativas que existem entre
direitos e deveres consagrados ao emprego as funções de natureza pública (cuja razão
assalariado típico, e também de semelhan- última é de índole sócio-política) e as de
tes aparatos burocráticos de justiça, defesa motivação privada (cuja razão última é de
e garantia de direitos em suas relações com índole econômica, mais facilmente quan-
o Estado-empregador. tificável e mensurável), e sendo dificílimo
Diante do exposto, fica clara a razão pela identificar e isolar as variáveis relevantes
qual a proposta liberal-gerencialista de mínimas necessárias ao cômputo da pro-
transformar a remuneração (fixa, adequa- dutividade (individual ou agregada) no
da e previsível) do servidor público em uma setor público, conclui-se que as propostas
remuneração flexível, contendo uma parte liberais-gerencialistas são, como um todo,
fixa mínima e outra variável, remunerada incompatíveis com a essência pública do Es-
na forma de bônus extra por desempenho tado e suas necessidades de planejamento,
individual, afronta os princípios supracita- gestão e administração.
16
3.3. Qualificação elevada e capacitação Algo muito distinto da lógica liberal-geren-
permanente cialista que prima pela oferta de incentivos
(e punições) individuais à capacitação do
Da mesma maneira que a remuneração,
servidor, induzindo-o a um processo de es-
também no caso da qualificação e da ca-
pecialização acrítica e a uma lógica concor-
pacitação, as propostas liberais-geren-
rencial nefasta de progressão funcional na
cialistas aparecem como insatisfatórias e
carreira.
contraproducentes ao bom desempenho
pessoal e agregado do setor público. No se- 3.4. Cooperação – ao invés da compe-
tor público, devido tanto à amplitude de te- tição – como método de trabalho no se-
mas ou novas e inescapáveis áreas progra- tor público
máticas de atuação governamental, como
Por fim, mas não menos importante, a co-
à complexidade das mesmas em contextos
operação interpessoal e intra/inter organi-
de heterogeneização global e acirramentos
zações emerge como corolário dos atributos
nacionais e regionais crescentes, qualifica-
e fundamentos anteriores, colocando-se
ção elevada desde o início nas carreiras e
– ao invés da competição – como critério
processo contínuo de capacitação pessoal
substancial de atuação da administração
e organizacional são exigências do mundo
pública e método primordial de gestão do
atual aos Estados nacionais soberanos.
trabalho no setor público. No setor privado,
Ambas as exigências – qualificação ele- a competição, disfarçada de cooperação, é
vada desde o início nas carreiras e proces- incentivada por meio de penalidades e es-
so contínuo de capacitação pessoal e orga- tímulos individuais pecuniários (mas não
nizacional – colocam desafios imensos às só) no ambiente de trabalho, em função da
políticas públicas de pessoal e sugerem facilidade relativa com a qual se pode indi-
atrelamento de fases e tratamento orgâ- vidualizar o cálculo privado da produtivi-
nico aos novos servidores desde a seleção dade e os custos e ganhos monetários por
por concurso, trilhas de capacitação e alo- trabalhador.
cação funcional que combinem as vocações
No setor público, ao contrário, a operação
e interesses individuais com as exigências
de individualização das entregas (bens e
organizacionais de profissionalização da
serviços) voltadas direta e indiretamente
função pública, passando ainda pelas di-
para a coletividade é tarefa metodologica-
mensões da progressão na carreira, da re-
mente difícil, ao mesmo tempo que política
muneração adequada e previsível em cada
e socialmente indesejável, simplesmente
nível, dos critérios e condições de acompa-
pelo fato de que a função-objetivo do setor
nhamento e avaliação, até o momento da
público não é produzir valor econômico na
aposentação.
forma de lucro, mas sim gerar valor social,
Tal política de pessoal no setor público, cidadania e bem-estar de forma equânime
porque abrangente e complexa, apenas e sustentável ao conjunto da população por
pode ser realizada sob a égide de aborda- todo o território nacional. Por esta e outras
gens reflexivas (e porque não dizer, holís- razões, portanto, a cooperação (ao invés da
ticas), visando formar servidores críticos e competição) é que deveria ser incentivada
conscientes da realidade brasileira em suas e valorizada no setor público, local e ator
diversas dimensões. O aumento de produti- por excelência da expressão coletiva a ser-
vidade e a melhoria de desempenho institu- viço do universal concreto.
cional agregado do setor público será resul-
Tudo somado, este é o escopo necessário
tado desse trabalho custoso e demorado de
para uma discussão qualificada acerca do
profissionalização da burocracia pública.
ciclo laboral no setor público e suas rela-
17
ções com os temas e objetivos da produtivi- Por isso, tem sido alvo de debates intensos
dade e do desempenho institucional do Es- e polarizados, especialmente, nas últimas
tado brasileiro no século XXI.11 Em outras décadas (Bouckaert e Balk, 1991; Dunleavy
palavras, o aumento de produtividade e a e Hood, 1994; Hood, 2007; Dooren, Bou-
melhoria de desempenho institucional agre- ckaert e Halligan, 2010). Assim, ao longo
gado do setor público será resultado desse desse período, o conceito de desempenho
trabalho custoso, mas necessário, de profis- tem sido definido de forma bastante diver-
sionalização da burocracia pública ao longo sa, sendo a ele atribuído sentidos múltiplos
do tempo, para a qual importa, sobremanei- e frequentemente ambíguos.
ra, a estabilidade funcional dos servidores Recuperamos aqui a definição geral na
nos respectivos cargos públicos. Não há, qual desempenho diz respeito ao compor-
portanto, choque de gestão, reforma fiscal tamento intencional e deliberado, seja de
ou reforma administrativa contrária ao in- indivíduos ou de organizações. Nesse sen-
teresse público que supere ou substitua o tido, Dooren, Bouckaert e Halligan (2010)
acima indicado. sugerem que é possível distinguir quatro
4. Perspectivas sobre o sentido de perspectivas sobre o desempenho, quando
desempenho. pensamos tal fenômeno a partir de duas
dimensões relativas a sua qualidade: i) a
Uma vez perscrutados o contexto mais qualidade das ações realizadas; e ii) a qua-
geral da reforma administrativa pretendi- lidade daquilo que foi alcançado por meio
da pelo governo Bolsonaro/Guedes (seção dessas ações (resultados).
2), e os fundamentos da ocupação e do de-
sempenho individual e agregado no setor Quadro 2: Relações entre processos de tra-
público (seção 3), é possível agora mergu- balho e resultados finais para avaliação do
lhar numa discussão atinente aos sentidos desempenho.
e implicações do desempenho nos modelos Qualidade dos Qualidade dos
dominantes e alternativos disponíveis no resultados resultados
debate internacional. Não Sim
A ideia é reforçar, de modo propositivo, a (D1)
necessidade e a oportunidade de deslocar o (D3)
Qualidade das Não há
debate público a um patamar mais elevado ações / processos julgamento
Desempenho
de discussão acerca de modelos de índole Não como avaliação
sobre qualidade
dos resultados
reflexiva do desempenho individual e insti- do desempenho
tucional, como parte de uma compreensão
mais acurada acerca dos determinantes e (D4)
(D2)
das formas de organização e funcionamen- Qualidade das Desempenho
Desempenho
to do Estado e da administração pública de ações / processos como a
como
Sim produção de
modo geral. competência /
resultados
capacidade
sustentáveis
Para tanto, é importante começar por en-
tender que a ideia de desempenho há tem- Fonte: Dooren, Bouckaert & Halligan (2010), apud Pires
(2010: pg. 09).
pos faz parte do debate sobre a atuação das
organizações do setor público e tudo indi- No Quadro 2, no primeiro quadrante te-
ca que permanecerá sendo aspecto central mos a perspectiva na qual a qualidade das
da reflexão sobre a atuação dos governos. ações e de suas realizações não importa,

11  Sobre o tema do ciclo laboral no setor público, ver Queiroz e Santos (2020).
18
isto é, atividades são desenvolvidas inde- mais amplos, os quais priorizam a produ-
pendentemente de avaliações sobre o seu ção de soluções (produtos) adequadas para
grau de sucesso ou insucesso (D1). No se- produzir impactos (mudanças no ambiente
gundo quadrante, temos a perspectiva que social e produtivo) em contextos diferen-
se centra na qualidade dos processos e não ciados e que tenham também a capacidade
na qualidade dos seus resultados e realiza- de perdurar ao longo do tempo (sustentabi-
ções (D2). Nessa perspectiva, o desempe- lidade).
nho é concebido como competência ou ca- Pensar desempenho nesses moldes re-
pacidade, tal como enfatizado por modelos quer, por sua vez, reflexões mais criativas
tradicionais de controle burocrático-proce- sobre as relações entre processos de traba-
dimental. No terceiro quadrante, a ênfase lho (recursos, procedimentos e formas de
recai sobre a qualidade dos resultados sem atuação) e produtos. Isto é, não se trata
igual atenção para as ações empreendidas nem apenas de controlar processos e nem
ou processos mobilizados (D3). Nesse caso, apenas de controlar resultados, mas sim
desempenho passa a ser definido como a de explorar como variações em processos,
obtenção de resultados e não como a capa- em função de adaptações às circunstâncias
cidade das organizações e de seus agentes, de atuação das burocracias e seus agentes,
tal como enfatizado pelos modelos de raiz se articulam com a realização de produtos
gerencialista (New Public Management – e soluções mais adequadas para cada si-
NPM). Finalmente, quando o desempenho é tuação. Para além do estabelecimento de
concebido como atenção tanto à qualidade métricas baseadas em relações fixas entre
das ações como à qualidade dos resultados insumos e produtos – as quais nos permi-
(D4), temos a perspectiva do “desempenho tem classificar organizações em termos de
como sustentabilidade” (ou dos “resultados sua eficiência e produtividade – o que a
sustentáveis”), isto é, aquela que procura perspectiva de desempenho que enfatiza
iluminar em uma organização a sua capa- resultados sustentáveis sugere é que a pro-
cidade reflexiva para desempenhar e sua ha- dução de impacto, e a sustentabilidade dos
bilidade em converter tal capacidade em re- produtos que os geram, requer maior fle-
sultados (produtos e impactos) sustentáveis xibilidade e adaptabilidade por parte dos
ao longo do tempo, chamando atenção para processos. Trata-se, fundamentalmente, de
possíveis resultados disfuncionais. um processo contínuo, coletivo e cumulativo
É essa noção de desempenho, sintetizada de aprendizado e inovação, no qual as rela-
pela ideia de “resultados sustentáveis”, a ções entre diferentes processos de trabalho
que aqui nos interessa, pois nos permite e seus respectivos resultados, em cada con-
romper com a limitação das perspectivas texto específico, estão sempre em foco.
anteriores. Cada vez mais, organizações Como consequência dessa perspectiva, a
tem se defrontado com a necessidade de questão fundamental que se coloca é como
pensar o seu desempenho não apenas conciliar, por um lado, maior flexibilidade,
como capacidade – isto é, a mobilização adaptabilidade e customização de proces-
dos inputs necessários e a construção e sos – elementos essenciais para a promo-
desenho de processos de trabalho – e não ção do aprendizado e inovação – com as
apenas como produtividade e eficiência – necessidades de controle e direcionamento
entendidas como relações fixas entre os por parte de supervisores, e de prestação
inputs disponíveis e produtos produzidos de contas para o público externo, por outro
de forma padronizada. Organizações nos lado, na produção de ações que tenham o
mais diversos setores têm sido forçadas a maior potencial de impacto e sustentabili-
refletir sobre o seu desempenho em moldes dade na realidade social e econômica.
19
Esse é, por sua vez, um dos desafios cen- instâncias de decisão, execução e avaliação
trais e perenes para a gestão de burocracias: de ações desempenhadas por burocracias
equacionar o dilema entre o controle da atu- (i.e., separação entre meios e fins). Nesse
ação de seus funcionários e a flexibilidade, sentido, a tarefa de gestão do desempenho
criatividade e expansão de suas capacida- envolve o estabelecimento de mecanismos
des (reflexivas) necessárias para a resolução e sistemas de avaliação de forma apartada
de problemas nos momentos de provisão de dos contextos substantivos da execução
serviços, implementação de políticas públi- das tarefas (decisões, comportamentos e
cas e regulação de atividades econômicas. práticas em cada situação concreta ou caso
Se por um lado, ampla flexibilidade, adap- específico). Esses sistemas, em geral, são
tabilidade e criatividade na ponta geram constituídos por procedimentos formais,
inconsistências na atuação da organização como indicadores e metas quantitativas,
e minam as possibilidades de produção de os quais servem como parâmetro externo, e
objetivos e políticas institucionais; por ou- supostamente objetivo, para o julgamento
tro lado, mecanismos de controle, padro- do sucesso ou fracasso das ações empreen-
nização e indução de motivação frequente- didas. O objetivo central desses sistemas
mente minam a construção e a mobilização é promover maior eficiência, por meio da
de capacidades e criatividades necessárias minimização de custos e aumento de pro-
para o desenvolvimento de soluções que dutividade na realização de um conjunto
produzam impacto e mudança de práticas restrito de objetivos-resultados.
e comportamentos em cada contexto espe- Essa abordagem geral tem, infelizmente,
cífico. se consolidado, por meio da disseminação
É possível conciliar controle/consistência de modelos de gestão de organizações do
com flexibilidade/criatividade na gestão de setor público de cunho “gerencialista” (ou
burocracias públicas? Por meio de quais inspirados no movimento da nova gestão
processos e práticas gerenciais, servidores pública). O modelo gerencialista se tornou
e dirigentes públicos podem equilibrar es- um dos mantras da reforma do setor públi-
sas dimensões? co por todo o mundo nos anos 1980 e 90.
No contexto da alegada falência do Estado,
5. Abordagens para a gestão do de- da precária atuação de burocracias nas dé-
sempenho em burocracias públicas. cadas anteriores e do descontentamento
É possível dizer que existem duas abor- generalizado com a atuação dos governos, a
dagens gerais para pensarmos o problema abordagem gerencialista trouxe para o cen-
da gestão do desempenho em burocracias tro do debate a preocupação com o desem-
públicas, as quais estabelecem diferentes penho do setor público. Com seu foco em
formas de combinação entre elementos resultados e na otimização do orçamento
de controle/consistência e de flexibilidade/ público, prometeu a melhoria na eficiência
criatividade (Pires, 2009; Pacheco, 2009; e responsividade de burocracias por meio
Jann e Reichard, 2002; Kettl, 1997). da estruturação de sistemas de incentivos
que levariam burocratas (agents) a cumprir
Princípio da otimização as metas estipuladas por formuladores de
A primeira delas se orienta pelo “princí- políticas públicas, representantes políticos
pio da otimização” e se ancora na presun- e cidadãos (principals) na provisão de bens
ção da separação entre os momentos e as e serviços públicos.12 Buscando superar er-

12  A vasta literatura sobre o assunto identifica três características principais das reformas do setor público orientadas pe-
20
ros do passado, como a ênfase no controle diatos dessas organizações à implantação
de processos tal como feito por procedi- de sofisticados sistemas de informação que
mentos legais e administrativos, a propos- associam esses indicadores a bases de da-
ta gerencialista se inspira em certa cultura dos diversas sobre a situação de trabalha-
do setor privado e envolve basicamente a dores e empresas nas diversas regiões do
instituição de metas e indicadores de resul- país.
tados para a mensuração do desempenho Avaliações da implementação de refor-
de organizações e seus funcionários, com mas gerencialistas ao redor do mundo têm
forte ênfase em incentivos de base pecu- apontado para resultados paradoxais. Por
niária, tais como sistemas de gratificação um lado, existem evidências em relação ao
por desempenho. Sob esse modelo, orga- aumento de produtividade. Estudos já de-
nizações do setor público devem enfocar monstraram aumento de produtividade nos
um conjunto de metas de desempenho que serviços de saúde na Grã-Bretanha como
possam ser definidas de forma específica, resultado da introdução de mecanismos
quantificável e mensurável. de remuneração baseado no desempenho
Cada burocrata na organização deve cum- individual. Por exemplo, a produtividade
prir uma parte do objetivo geral. Super- de dentistas, medida pelo número de pa-
visores monitoram constantemente o de- cientes tratados, aumentou 26% em com-
sempenho de seus burocratas em termos paração com a gestão do serviço público via
da consecução dessas metas, tendo como contratos de remuneração fixa (Chalkley et
referência indicadores quantitativos de re- al, 2010). Até mesmo no caso da inspeção
sultados. De forma a administrar correta- do trabalho no Brasil, a introdução de sis-
mente os incentivos, gestores distribuem temas de gratificação por desempenho a
gratificações nos salários apenas dos fun- partir de 1998, e sua intensificação a partir
cionários que satisfizerem periodicamente de 2004, acarretaram maior produtividade
as metas. dos auditores-fiscais na formalização de
A adoção desses mecanismos de avaliação trabalhadores, ainda que durante o perío-
baseados na aferição de produtividade com do não tenha ocorrido variações significa-
base em metas quantitativas e no estabele- tivas no contingente de auditores-fiscais e
cimento de relações entre o cumprimento no número de empresas fiscalizadas.
dessas metas e recompensas pecuniárias Por outro lado, aumentos de produtivi-
(remuneração variável) tem sido ampla- dade em relação a alguns indicadores es-
mente adotada nas mais variadas áreas de pecíficos também têm sido acompanhados
atuação governamental ao redor do mun- pela constatação de problemas relativos à
do, em maior ou menor grau.13 As experi- manutenção de níveis satisfatórios de mo-
ências variam do monitoramento de metas tivação, envolvimento e comprometimen-
básicas relativas aos produtos mais ime- to por parte dos servidores. Por exemplo,

los princípios gerencialistas: a) descentralização, com a desagregação do Estado em atores subnacionais, cisão de grandes
estruturas hierárquicas, e separação de funções de governo essenciais (core) daquelas consideradas auxiliares ou complemen-
tares; b) privatização e competição, com a desregulamentação de mercados, criação de quase-mercados para grande parte dos
serviços públicos, e parcerias público-privado (PPPs); e c) gestão do desempenho, com a instituição de metas e indicadores
de resultados para a mensuração do desempenho de organizações e seus burocratas, além de uma forte ênfase em incentivos
específicos com base pecuniária, tais como sistemas de gratificação por desempenho (Osborne e Gaebler, 1992; Dunleavy e
Hood, 1994; Pollit, 1995; Bresser-Pereira e Spink, 1999; Barzelay 2001).
13  Para visualizar de forma resumida essa questão, ver Pires (2010), em especial o Quadro 2 no Anexo, que descreve a
sistemática de avaliação do desempenho de alguns países selecionados.

21
os mesmos estudos sobre profissionais de burocratas encontrem formas de converter
saúde e dentistas no setor público britâni- as atividades que normalmente estão habi-
co (Houston, 2000; Chalkley et al, 2010) tuadas a fazer nos produtos e metas alme-
apontaram que sistemas de gratificação jados pelos seus supervisores. Um exemplo
por desempenho envolvendo incentivos disso é um programa do serviço de imigra-
pecuniários podem até contribuir para o ção norte-americana, na primeira década
aumento de produtividade, mas, em ge- dos anos 2000, o qual, embora tenha sido
ral, acarretam perdas significativas da desenhado e autorizado pelo Congresso es-
motivação intrínseca desses profissionais pecificamente para focar apenas nos imi-
– isto é, a motivação derivada de valores, grantes com ordem de deportação em exe-
compromissos e senso de missão em rela- cução e suspeitos de crimes e terrorismo,
ção ao trabalho, em oposição à motivação acabou por encarcerar uma vasta maioria
extrínseca baseada em recompensas não de imigrantes ilegais sem ficha criminal,
substantivamente associadas à realização dos quais caberia deportação para apenas
do trabalho, como o dinheiro. uma minoria dos casos. Sob pressão para
Além disso, outra linha de problemas “bater” metas de detenção e demonstrar
identificados com reformas gerencialistas desempenho para seus superiores, agentes
diz respeito às distorções provocadas pelos de imigração começaram a “atirar” nos al-
sistemas de incentivos implementados. vos mais fáceis (Bernstein, 2009).
Um volume considerável de estudos tem Em outro exemplo, pesquisas sobre médi-
chamado atenção para os efeitos disfun- cos na Inglaterra e nos Estados Unidos re-
cionais de medidas de desempenho quan- velaram que esses profissionais desenvol-
titativas e pré-definidas (Bouckaert e Balk, vem práticas de “maquiagem” de números
1991; Dunleavy e Hood, 1994). Primeiro, a quando no preenchimento de formulários
definição de metas de desempenho especí- e relatórios para aferição de produtividade.
ficas e quantificáveis provoca necessaria- Outros exemplos são indicativos da “conta-
mente um excessivo reducionismo daquilo bilidade criativa” que se estabelece no re-
que se espera ser competência do Estado e gistro de atividades realizadas por parte de
de suas burocracias. O estabelecimento de funcionários em sistemas de mensuração
metas tende a limitar e concentrar as ações de desempenho. Resultados supostamente
realizadas por organizações em torno de al- indesejáveis podem ser facilmente codifi-
vos ou pontos bem específicos, reduzindo cados em termos de resultados almejados
a capacidade de funcionários de perceber como, por exemplo, a redução do tempo de
e abordar problemas de forma mais ampla. permanência em listas de espera por meio
Por exemplo, a promoção da saúde mental da criação de listas de espera para entra-
envolve mais do que a redução do número da na lista de espera, ou a transfiguração
de hospitalizações psiquiátricas; ou a qua- de registros de trens ou ônibus atrasados
lidade de um sistema de educação envolve em registros de avaria ou manutenção em
mais do que preparar alunos para pontuar percurso, ou ainda, como acontece nas or-
e serem aprovados em provas; e a satisfa- ganizações policiais, a subclassificação de
ção de um funcionário envolve mais do que crimes sérios em violações da lei de menor
a adequação de seu nível de remuneração. importância ou o registro de homicídios em
locais distintos dos lugares onde acontece-
Além da questão do reducionismo provo- ram, tendo em vista a melhoria dos indi-
cada pela pré-determinação e especifica- cadores de um determinado distrito poli-
ção dos resultados a serem alcançados, a cial. Essas situações revelam que sistemas
mensuração e aferição quantitativa destes de gestão de desempenho desse tipo não
resultados frequentemente fazem com que
22
são imunes à manipulação do processo de si, parte de um processo – contínuo, coleti-
mensuração e à manipulação dos produtos vo e cumulativo – mais amplo de aprendi-
organizacionais, em ambos os casos pro- zagem e inovação institucional.
movendo comportamentos disfuncionais As reformas associadas ao modelo “expe-
do ponto de vista da efetividade das ações rimentalista” têm materializado esses prin-
realizadas por burocracias públicas. cípios e oferecido inspirações para experi-
Em suma, é possível perceber que um mentos de gestão de burocracias públicas
conjunto amplo e diverso de evidências e de superação de algumas das limitações
têm apontado para os efeitos colaterais dos do modelo gerencialista. O modelo experi-
sistemas de avaliação de desempenho ba- mentalista (ou Experimentalist Governance
seados no modelo gerencialista. Após mais - EG) emergiu como uma crítica por parte
de quatro décadas, até mesmo os analistas de seus proponentes (C.Sabel, J.Zeitlin, M.
simpatizantes já reconheceram que refor- Dorf, e W.Simon, entre outros) à insusten-
mas inspiradas na abordagem gerencialista tabilidade empírica do arcabouço econômi-
têm falhado em concretizar as expectativas co-racional que está no cerne da proposta
de uma administração pública mais eficaz, gerencialista, mais precisamente os pres-
eficiente e efetiva (Hood and Peters, 2004; supostos sobre as relações agent-principal.
Dunleavy et al., 2006). Com inspiração no institucionalismo eco-
Princípio da reflexividade nômico da teoria da escolha racional, a
Uma segunda abordagem para a questão abordagem gerencialista em geral separa os
da gestão do desempenho, a qual se orien- momentos de concepção/decisão das ações
ta pelo “princípio da reflexividade”, dife- associados com sua execução, pressupondo
rencia-se da abordagem anterior ao rejei- a existência de principals (sejam eles ato-
tar a separação entre decisões, execução res da sociedade civil, partidos políticos,
e avaliação e enfatizar a necessidade do ou representantes eleitos) que saibam tudo
desempenho ser avaliado de forma contex- o que precisa ser feito para a solução de
tualizada (julgamento substantivo), como problemas coletivos. Supostamente, esses
atividade embutida no próprio contexto principals estão aptos a traduzir objetivos
de realização das atividades (i.e. interação coletivos em metas de desempenho deta-
meios e fins). lhadas – por exemplo, um aumento de 50%
na formalização do trabalho, uma redução
Além disso, a abordagem reflexiva tam- de 20% na evasão escolar, etc.
bém rejeita os pressupostos simplificado-
res do comportamento humano nos quais Em contraposição, os proponentes da
se baseiam sistemas de incentivo para o abordagem experimentalista defendem que
desempenho, tal como proposto pela abor- principals com tal conhecimento robusto
dagem gerencialista – i.e. percepção de que e panorâmico não existem nas comunida-
indivíduos (ou grupos e organizações) são des políticas reais, muito menos um con-
motivados, fundamentalmente, pelo dese- senso inquestionável sobre quem deveria
jo de obter recompensas (como dinheiro desempenhar tal papel diretivo. Portanto,
ou status) e evitar sanções. Assim, nessa segundo esses autores, o problema da refor-
segunda abordagem, a tarefa de gestão do ma do setor público não se resume apenas
desempenho envolve o estabelecimento de à definição de metas de desempenho e do
rotinas que possibilitem aos agentes envol- respectivo sistema de incentivos, mas sim
vidos a reflexão e revisão contínua das ati- envolve a construção de processos de inova-
vidades e ações burocráticas, de modo que ção e aprendizado – contínuos, coletivos e
o monitoramento do desempenho seja, em cumulativos – por meio dos quais os atores
envolvidos interajam, descubram, e apren-
23
dam conjuntamente aquilo que precisa ser de possíveis desvios em relação aos
feito e a melhor forma possível de executá-lo protocolos estabelecidos.
(Sabel, 2004, 2005). Ao rever essas explicações, superiores di-
Assim, de acordo com esse modelo de ges- retos (e até mesmo órgãos de controle) po-
tão, a solução requer instituições experi- dem detectar erros de conduta e considerar
mentalistas “que reconheçam o caráter pro- como corrigi-los, no que tange aos casos
visório de suas metas e que institucionalizem específicos, assim como aos procedimen-
a aprendizagem social por meio do questio- tos mais gerais que regulam e organizam
namento recorrente da adequação entre os o programa. Por meio desses processos,
fins e os meios disponíveis, e por meio da re- organizações “experimentalistas” apren-
visão periódica de suas normas e estruturas dem como aprimorar sua atuação ao mes-
à luz das respostas obtidas” (Sabel, 2004: mo tempo em que monitoram a atuação de
4). Instituições experimentalistas demons- seus funcionários e, assim, o mesmo pro-
tram a atitude de constante detecção e cor- cesso que possibilita a adaptação de ações
reção de erros nos níveis operacionais da e serviços às variadas circunstâncias, o
organização, ajustando, na sequência, as torna também suscetível ao controle e di-
estruturas superiores para a generalização recionamento gerencial (Noonam, Sabel, e
de sucessos e aprimoramento do sistema de Simon, 2009).
aprendizado a partir de erros. Por meio de Recentes avanços por parte de institui-
ajustes reflexivos constantes, os proponen- ções experimentalistas vêm sendo regis-
tes da abordagem experimentalista argu- trados em diferentes países assim como
mentam que burocracias públicas podem, em diferentes áreas do serviço público.14
simultaneamente: Essas experiências oferecem exemplos
• expandir suas capacidades para solu- bem concretos de sistemas de avaliação do
ção de problemas complexos por meio desempenho baseados no princípio da re-
da adaptação rápida às condições ex- flexividade, voltados para a superação dos
ternas em constante mudança e da problemas e distorções causados por refor-
possibilidade de customização de suas mas baseadas no princípio da otimização.
ações a diversas clientelas; e Em geral, as avaliações de experiências
• incrementar a prestação de contas por que visaram concretizar sistemas baseados
parte de burocratas aos seus supervi- no princípio da reflexividade têm apontado
sores e ao público, por meio de explica- para algumas vantagens potenciais em re-
ções situacionais sobre suas decisões lação à abordagem gerencialista tradicio-
e conduta em cada caso e justificações nal, a saber:

14  Essas experiências incluem: a reforma de escolas públicas e esquemas de meta-regulação na área de vigilância sani-
tária nos Estados Unidos (Sabel, 2004), a reforma da assistência à criança e ao adolescente nos estados de Alabama e Utah
(Noonam, Sabel, e Simon, 2009), provisão de assistência e benefícios sociais na Holanda, Dinamarca e Irlanda (Sabel, 2005),
sistemas de proteção social, saúde e segurança ocupacional, vigilância sanitária, telecomunicações, eletricidade, segurança
marítima e serviços financeiros na União Européia (Sabel e Zeitlin, 2008). Em particular, ver em Pires (2020) exemplos
concretos de práticas experimentais em dois programas governamentais específicos: o Programa Liberdade Assistida (PLA,
Belo Horizonte-MG) e o Programa de Avaliação Qualitativa de Serviços em Alabama e Utah (EUA). O Programa Liberdade
Assistida (Pires, 2020: Box 1, pg 16) foi implantado em 1998, pela Prefeitura de Belo Horizonte, no âmbito da Secretaria
Municipal Adjunta de Assistência Social (SMAAS) em parceria com o Juizado da Infância e da Juventude e Pastoral do
Menor. Ele visava romper com o tratamento padronizado do Código de Menores, partindo do reconhecimento da particula-
ridade do contexto nos quais os adolescentes autores de ato infracional se inserem e buscava tratar cada caso respeitando a

24
• A primeira vantagem diz respeito à • A terceira vantagem diz respeito à
possibilidade de aferição e monitoramen- substituição de uma lógica de controle e
to de resultados de grande relevância que auditagem do desempenho de burocra-
muitas vezes não se apresentam de forma tas, sustentada na desconfiança genera-
necessariamente mensurável (traduzí- lizada em relação ao comprometimento
veis em indicadores numéricos) – e por e senso de missão dos funcionários (isto
isso frequentemente negligenciados no é, na ausência de incentivos extrínsecos
modelo anterior – por meio da instituição ao trabalho, há tendência à baixa produ-
de mecanismos para constante detecção e tividade e envolvimento), pela confiança
correção de erros baseados em explicações no profissionalismo do corpo técnico e na
situacionais e justificativas por parte de profissionalização como elemento de con-
burocratas (comissões de avaliação inter- trole da conduta e de aprendizagem para
na, revisão por pares, etc.). lidar com o dinamismo e complexidade
• A segunda vantagem, decorrente dos problemas.
diretamente da instituição dos mecanis- Mecanismos de revisão qualitativa do de-
mos descritos acima, diz respeito à inser- sempenho, em contraposição a sistemas de
ção do monitoramento do desempenho aferição de resultados quantitativos, criam
nos contextos substantivos de realização relacionamentos diferentes entre funcio-
de tarefas e atividades. Em contraposi- nários na linha de frente e os supervisores
ção à pré-especificação dos resultados a ou centros administrativos. Ao invés de se-
serem produzidos, tal como faz o modelo rem objeto da aferição de metas numéricas
gerencialista, o modelo experimentalista pré-determinadas, os profissionais passam
cria condições para a compreensão mais a ser participantes ativos na reconstrução
contextualizada e sistêmica das caracte- de metas, procedimentos e estratégias de
rísticas de cada situação-problema a ser fiscalização, com base nos resultados ad-
enfrentada. Isto é, favorecendo a identi- vindos de suas operações.
ficação, por exemplo, dos problemas que Um resumo de ambas as abordagens pode
impedem o cumprimento das leis e nor- ser visto no Quadro 3 abaixo.
mas trabalhistas por parte das empresas
que, por sua vez, permita a customização
das ações de fiscalização para produção
do maior impacto possível em cada situ-
ação. Em outras palavras, essa mudança
de perspectiva permite que agentes de
inspeção pensem menos em como pegar
mais e mais infratores e se concentrem
mais nas causas das violações (root-cau-
ses) e na busca por possíveis soluções le-
gais, gerenciais e tecnológicas.

individualidade e singularidade do jovem na construção de soluções efetivas para sua vida. Já o programa norte-americano
(Pires, 2020: Box 2, pg 17) pretendia dar maior autonomia aos funcionários que trabalham diretamente com as crianças neces-
sitadas e, ao mesmo tempo, fazer com que eles possam ser constantemente questionados e responsabilizados por suas ações. A
experiência desses dois Estados dos EUA tem apontado na direção de mecanismos alternativos de avaliação do desempenho
que estabelecem formas de responsabilização e monitoramento das condutas e decisões dos assistentes sociais sem compro-
meter a capacidade de ação dos mesmos e muito menos a qualidade do serviço oferecido.

25
Quadro 3: Síntese das duas abordagens sobre avaliação
de desempenho em burocracias complexas.

Abordagens “Burocracia Otimizadora” “Burocracia Reflexiva”

Aprendizado e revisão contínua, foco


Eficiência estática, foco na minimiza-
na qualidade, impacto e sustenta-
Ênfase ção de custos e aumento de produti-
bilidade das ações para solução de
vidade.
problemas.

Provisório e sob constante revisão;


Pré-determinado; Singular; Foco
Atenção para inter-relações entre
Caráter das metas e objetivos em metas específicas (priorização),
múltiplos objetivos (natureza comple-
gerando reducionismo e miopia.
xa dos problemas).

Relação entre avaliação de desem- Avaliação inserida, contextual e


Avaliação externa, objetivo formal.
penho e execução de tarefas substantiva.

Deliberativa (grupo), envolvendo pro-


Individual (solitária) e avaliativa,
cessos de justificação (explicação de
Relação entre “linha de frente” e com base em parâmetros e indica-
condutas e dos resultados produzidos
centro administrativo dores específicos; dois resultados
a partir da experiência concreta de
possíveis: conformidade ou desvio.
implementação).

Tendência a tratar o novo e o ines- Ocorrências inesperadas são cons-


Relação com incertezas ou “o perado como se fossem variações de tantemente problematizadas para
inesperado” rotinas pré-estabelecidas (enquadra- detecção de problemas e correção de
mento categórico) ou exceções. erros; difusão de inovações.

Fonte: Pires (2010: pg. 18).

Nesse sentido, os experimentos em anda- para o exercício (ou o experimentalismo) da


mento sugerem que a indução de melhor de- autonomia burocrática com responsabili-
sempenho pode estar mais associada à va- dade e engajamento, e fontes primárias da
lorização da autonomia de burocratas para aprendizagem e da inovação institucional
inovar e aprender a partir da reflexão sobre como essência do modelos reflexivos de ges-
suas próprias práticas (justificação) do que tão de pessoas e do desempenho no âmbito
à criação de incentivos formais e pressões público. Além disso, fica claro que aquilo
por maior produtividade em um conjunto que tem sido proposto pelo atual gover-
restrito de resultados desejados. Por óbvio, no como única e exclusiva solução para os
a profissionalização da burocracia, assen- problemas a serem enfrentados pela refor-
tada nos fundamentos discutidos na seção ma administrativa – foco na competição e
3 – a saber: a estabilidade funcional dos vinculação da remuneração variável ou re-
servidores nos cargos públicos, remunera- compensas financeiras com o atingimento
ção adequada e previsível ao longo do ciclo de metas individuais e quantificáveis – está
laboral, qualificação elevada e capacitação longe de esgotar as possibilidade existentes
permanente no âmbito das funções precí- de abordagem aos desafios de tornar a admi-
puas dos respectivos cargos e organizações, nistração pública mais inovadora, efetiva e
e a cooperação – são condições necessárias sustentável.

26
Considerações Finais
Hoje em dia, por meio das entidades repre- A reforma administrativa do governo fede-
sentativas dos servidores, o Brasil possui o ral, como visto, centra-se fundamentalmente
mais completo estoque potencial de conhe- na redução do tamanho do Estado e na com-
cimentos sobre as estruturas e as formas de pressão do gasto público, daí derivando as
funcionamento da administração pública fe- medidas de congelamento e redução da re-
deral brasileira. Seja por meio de estudos téc- muneração, avaliação do desempenho indi-
nicos que elas produzem, seja simplesmente vidual para demissão de servidores, redução
pelo conhecimento tácito que os servidores radical do número de carreiras e cerceamen-
possuem sobre o cotidiano de virtudes e pro- to da atividade sindical no serviço público.
blemas do Estado, o fato é que somos nós, Em essência, tais propostas carecem de com-
os próprios servidores públicos, os que mais preensão sistêmica sobre os condicionantes
têm condições teóricas e práticas de produzir e determinantes do desempenho estatal no
a melhor explicação situacional possível e as campo das políticas públicas, algo que foi
mais adequadas e aderentes proposições ou apresentado acima e pode ser resumido pelo
soluções para os problemas de desenho orga- Quadro 4.
nizacional e de desempenho institucional do
governo federal.

Quadro 4: Reforma Administrativa Republicana e Democrática X Reforma


Administrativa Liberal-Gerencialista do Governo Federal.

REFORMA REFORMA
REPUBLICANA E DEMOCRÁTICA LIBERAL-GERENCIALISTA

Flexibilidade quantitativa por meio da


Estabilidade funcional e proteção contra
expansão das possibilidades de demis-
arbitrariedades.
são.

Remuneração adequada e previsível ao Flexibilização remuneratória e redução


longo do ciclo laboral. das despesas com funcionalismo.

Qualificação elevada e capacitação per-


Responsabilização individual pela capa-
manente atrelada à progressão e interes-
citação e pela progressão funcional.
se público.

Cooperação interpessoal e intra/inter Promoção da competição interpessoal e


organizacional como fundamento do pro- da concorrência intra/inter organizacio-
cesso de trabalho no setor público. nal.

Liberdade de organização e autonomia de Obstaculização da organização e da atua-


atuação sindical ção sindical

Fonte: Elaboração própria.

27
Em síntese, no cerne das propostas do Federal brasileira em vigor (cf. art. 39, caput,
atual governo estão: como fundamento, a CF-1988). Com isso, uma verdadeira política
negatividade intrínseca do Estado; e como nacional de recursos humanos no setor públi-
desiderato, a destruição de sua índole pú- co deve ser capaz de promover e incentivar a
blica e potencialmente transformadora. Em profissionalização da burocracia pública a
consequência, se bem-sucedidas, restarão: partir de um modelo reflexivo de gestão de pes-
um Estado plutocrático;15 e organizações, soas e do desempenho institucional, atrelado
instituições e servidores a serviço dos mer- diretamente ao ciclo laboral no setor público.16
cados ao máximo liberalizados e dos privi- Em suma, uma coisa é aperfeiçoar instru-
légios e status quo dos grupos no comando mentos existentes de avaliação, ética, con-
do poder político. Evidentemente, esse não duta, desempenho, o que sempre é e será
é um cenário que aponte para nada parecido bem-vindo; outra bem diferente, e que deve
com soberania nacional, sustentabilidade ser evitada, é, sob os mantras do ajuste fiscal
ambiental, inovação produtiva, inclusão ou a qualquer preço e da produtividade, sujeitar
participação social... o servidor à demissão por subjetividade das
Por outro lado, as evidências disponíveis chefias e arbítrio ou incompreensão dos go-
demonstram cabalmente a relevância das vernantes. Neste sentido, em linha oposta à
organizações públicas e carreiras de Estado agenda governamental, visando alargar o ho-
para qualquer projeto de desenvolvimento rizonte de discussões e de proposições sobre
que ainda se almeje ao Brasil neste século o tema, indicamos abaixo algumas diretrizes
XXI. Desmontar tais capacidades em nome de gerais para, posteriormente, avançarmos no
um fundamentalismo liberal vai, ao mesmo detalhamento técnico e jurídico adequado a
tempo, destruir o potencial transformador uma reforma administrativa de matriz refle-
que a sociedade brasileira construiu por meio xiva e de índole republicana e democrática,
do Estado ao longo de mais de cem anos de voltada para um serviço público efetivo e
República, como comprometer as chances de qualidade, condição sine qua non para o
de emancipação e desenvolvimento social próprio desenvolvimento nacional em suas
de sua população – sobretudo a mais vulne- dimensões geopolítica, econômica, social,
rável – justamente num contexto econômico ambiental e institucional. São elas:
(nacional e internacional) marcado por enor- • Medidas para conferir mais e melhor
me complexificação, frente à qual soluções transparência dos processos decisórios
aparentemente rápidas e fáceis se mostram, intragovernamentais e nas relações entre
de saída, fadadas ao fracasso. entes estatais e privados, bem como sobre
Todos os aspectos apresentados e discu- resultados intermediários e finais dos atos
tidos neste texto justificam a permanência de governo e das políticas públicas de modo
de um regime diferenciado de contratação e geral. Este é um dos principais campos de
gestão dos servidores públicos, um regime ju- atuação republicana contra a visão mora-
rídico único (RJU) nos termos da Constituição lista e punitivista de combate à corrupção

15  Proveniente do grego, a palavra  Plutocracia  significa governo da riqueza, ou seja, trata-se de um sistema
político em que o poder está concentrado nas mãos dos indivíduos que são detentores das fontes de riqueza da
sociedade. A Plutocracia pode ser vista, em alguns casos, como uma forma de oligarquia, na medida em que grupos
se organizam e se articulam para manterem-se no poder, controlando o governo. A Plutocracia exerce presença real
quando os representantes políticos atendem interesses sobretudo daqueles que os apoiaram no financiamento do
processo eleitoral, deixando de ser o cargo público uma representação legítima do voto e do povo. Deste modo, o
financiador – direta ou indiretamente – exerce controle sobre as ações do seu representante no comando do governo.
16  Para uma visão completa acerca de cada uma dessas fases do ciclo laboral no setor público, ver Queiroz e San-
tos (2020).
28
no país.17 zação da ocupação no (e do) serviço público,
• Medidas para democratização da ges- tais que uma verdadeira política de recur-
tão pública: reforço dos princípios e meca- sos humanos para o setor público brasileiro
nismos ligados ao mérito, transparência, – que leve em consideração de modo articu-
autonomia, inovação, mobilidade e respon- lado e orgânico as etapas de seleção, capaci-
sabilidade, tanto em nível individual como tação, alocação, remuneração, progressão e
organizacional. aposentação – esteja ancorada e inspirada
pelos valores e princípios da república, da
• Medidas para aperfeiçoamento cotidia- democracia e do desenvolvimento nacio-
no da gestão pública: instauração e difusão nal. Ademais, deve atentar para os fatores
de novas tecnologias de informação, (tele) que realmente garantem ganhos de produ-
trabalho, gestão e comunicação intra e in- tividade e de desempenho institucional no
ter pessoais e organizacionais no âmbito setor público, alguns dos quais também
do setor público e em suas relações com o abordados neste texto, isto é: i) ambiente
mercado e a sociedade. de trabalho; ii) incentivos não pecuniários
• Medidas para estimular mais partici- e técnicas organizacionais; iii)  trilhas de
pação social e melhor controle público sobre capacitação permanente; iv) critérios para
os poderes da União (Executivo, Legislativo, avaliação e progressão funcional; v) remu-
Judiciário) e Ministério Público, nos três ní- neração adequada e previsível; vi) funda-
veis da federação. O empoderamento social mentos da estabilidade e critérios justos
no âmbito de conselhos e outras instâncias para demissão; vii) condições de realização
de compartilhamento de poder no âmbito dinâmica e retroalimentação sistêmica en-
dos três poderes constitucionais (e Ministé- tre as dimensões citadas.
rio Público) é condição fundamental para o Com tal conjunto de reformas sugeridas
reequilíbrio de poder e valorização da esfe- acima, o Estado nacional recupera poder e
ra pública no país. centralidade em virtude de sua capacidade
• Medidas de recuperação e ativação sui generis de mediar os diferentes interes-
das capacidades estatais de planejamento ses presentes na comunidade política para a
governamental e de coordenação estraté- construção de um referencial universalizan-
gica dos investimentos e demais decisões te que se projeta ao futuro. Tais questões – e
das empresas estatais. Neste particular, é certamente outras mais – são cruciais para
preciso compatibilizar a sustentabilidade aprimorar o debate contemporâneo sobre
empresarial de longo prazo com a função a reforma do Estado necessária ao desen-
social pública das estatais, já que a efici- volvimento brasileiro ainda no século XXI.
ência microeconômica de curto prazo não As eventuais respostas dependem de uma
pode estar acima da eficácia macroeconô- compreensão adequada acerca do papel do
mica e da efetividade social nos médio e Estado como promotor e provedor do desen-
longo prazos. volvimento e têm nas reformas sugeridas
acima um de seus pilares fundamentais.
• Medidas de profissionalização e valori-

17  No tocante à corrupção, a concepção neoliberal que tem sido predominante no Brasil criminaliza a política, legitima a
adoção de leis, procedimentos e jurisprudências de exceção, prega a entrega do patrimônio público e dos serviços essenciais
para o controle das grandes empresas privadas. Mas os brasileiros finalmente estão tomando consciência de que este caminho
antidemocrático e antirrepublicano leva, ao contrário da visão simplista e punitivista, ao máximo de corrupção. Isto porque
a corrupção não diz respeito especificamente ao Estado e à dimensão política do poder, mas sim às relações espúrias que se
estabelecem entre interesses privados / privatistas e o Estado / esfera pública. Dito assim, a corrupção não é importante apenas
na explicação da formação do Estado nacional, mas está também vinculada ao problema da desigualdade na medida em que
esta é historicamente (re)produzida e mantida, essencialmente, pela corrupção do poder. Desta maneira, a luta contra a corrup-
ção deve ser concebida de modo subordinado ao aprofundamento do caráter democrático e republicano do Estado brasileiro.
29
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32
Anexo

O Mito da Meritocracia:
a piada que se transformou
num dogma
Disponível em: https://www.scimed.pt/geral/o-mito-da-me-
ritocracia-a-piada-que-se-transformou-num-dogma/
João Soares, 14 de janeiro de 2020.

do nosso mérito. No entanto, esta atitude/


ideologia transformou-se num modelo de
perpetuação de uma nova aristocracia, já
O termo “meritocracia” foi criado por Mi-
que um dos maiores fatores para ser bem
chael Young, quando escreveu o romance
sucedido na vida é ser filho de pessoas bem
satírico em 1958, “The Rise of Meritocra-
sucedidas. Mesmo que tenham más notas
cy”. No livro, Young descrevia um tipo de
na escola.
autoilusão em que as pessoas ricas se con-
venciam que a sua riqueza era evidência da E ser filho de pessoas bem sucedidas in-
sua superioridade moral. A piada é que a fluencia o nosso futuro sucesso de duas for-
sátira virou dogma. Hoje vivemos da meri- mas. Os genes que herdamos e o ambiente
tocracia. Onde nos convenceram que aquilo familiar e socioeconômico em que somos
que alcançamos depende apenas do nosso criados. Dado que ninguém escolhe o seu
trabalho árduo e perseverança. Se não con- próprio genoma, não estou a ver onde está
segues, a culpa é tua. Não te esforçaste o o mérito disso. E como ninguém escolhe a
suficiente. família onde nasce – se rica se pobre, com
bom ou mau aporte nutricional, se bem co-
Não só isso, como se criou outra piada in-
nectada em termos sociais ou nem por isso,
teressante. A ideia da meritocracia come-
se numa família estruturada ou não – tam-
çou por ser uma ideia anti-aristrocrática já
bém não me parece que seja possível atri-
que, cada um de nós, independentemente
buir o nosso mérito a essas ocorrências.
das nossas origens, poderia ser rico, fa-
moso e bem sucedido dependendo apenas Aliás, uma das passagens do Behave, do

33
Salpolsky, que mais me impressionou, foi rito. Como exemplo, se fossem mulheres e
esta: nascessem na Arábia Saudita, dificilmente
“A conexão entre a adversidade infantil e iriam conseguir alcançar alguma coisa de
a maturação frontocortical é visível quando relevante, dadas as limitações impostas às
se estuda a pobreza infantil. O trabalho de mulheres nessa sociedade. Ou se tivessem
Martha Farah, da Universidade da Pensilvâ- nascido numa aldeia na Nigéria e a vossa
nia, Tom Boyce, da UCSF, e outros demonstra aldeia fosse dizimada pelo Boko Haram e
algo ultrajante: aos cinco anos, quanto me- vocês transformados em Crianças-Solda-
nor o estatuto socioeconómico de uma crian- do, dificilmente iriam ter capacidade para
ça, em média, (a) maiores os níveis basais de criar uma Startup fantástica na área da
glicocorticoides e/ou mais reativa a resposta Inteligência Artificial. Portanto, parabéns
ao estresse glicocorticoide, (b) mais fino é o pela vossa sorte.
córtex frontal e menor o seu metabolismo,
e (c) mais fraca é a função frontal em rela- Os “Meritocráticos” versus Instituições
ção à memória operacional, regulação das Governamentais
emoções, controlo de impulsos e tomada de
decisões executivas; além disso, para obter A coisa mais perversa associada a esta
uma regulação frontal equivalente, as crian- ideia da meritocracia, é que levou a uma
ças com estatuto socioeconómico mais baixo corrente liberal anti-Estado. No fundo, a ló-
devem ativar mais o córtex frontal do que as gica é a seguinte: “se eu fui bem sucedido
crianças com estatuto socioeconómico mais na vida à conta do meu esforço e tu não fos-
alto. Além disso, a pobreza infantil prejudi- te bem sucedido porque és um preguiçoso e
ca a maturação do corpo caloso, um feixe de não te esforçaste o suficiente, porque é que
fibras axonais que conectam os dois hemis- eu tenho que pagar mais impostos para te
férios e integram a sua função. Isso é tão er- sustentar a ti?”
rado – escolha estupidamente uma família
pobre para nascer e, no jardim de infância, Surge assim a ideia do “Self Made Man”
a probabilidade de ter sucesso nos testes de criado no vazio, como se não tivesse sido
marshmallow da vida já estão contra si.” o Estado (ou seja, todos nós), os responsá-
veis pela criação das infraestruturas, das
Pesquisas consideráveis concentram-se instituições e serviços que permitiram ao
em como a pobreza “penetra na pele”. Al- “Self Made Man” prosperar. Mas o mais im-
guns mecanismos são específicos para o portante, é que o Estado é dos poucos me-
ser humano – se é pobre, é mais provável canismos que poderá impor um verdadeiro
que cresça próximo de toxinas ambientais, sistema meritocrático, ajudando a reduzir
num bairro perigoso, com mais lojas de be- as desvantagens existentes entres os dife-
bidas alcoólicas do que os mercados que rentes estratos sociais, para que as crian-
vendem vegetais; é menos provável que fre- ças que tiveram o azar de ser menos afor-
quente uma boa escola ou tenha pais com tunadas nos ambientes em que nasceram,
tempo para ler para si. É provável que na tenha menos desvantagens em comparação
sua comunidade tenha pouco capital social às crianças que nasceram em “berços de
e você, baixa autoestima. ouro”. Um estudo da OCDE mostra quantas
Mas estas pessoas, para além de terem gerações são necessárias para subir no es-
nascido numa família com condições socio- trato socioeconômico. E não há surpresas…
econômicas favoráveis e terem a bênção ge- países nórdicos, conhecidos pela sua me-
nética, também conseguiram ter o “mérito” nor desigualdade socioeconômica, permite
de nascer num país, numa sociedade, ca- uma mais rápida mobilidade social.
paz de aproveitar todo o seu esforço e mé-
34
35
Não só isso, como o desrespeito pelo Esta- transformar neste “Self Made Man”, super
do demonstrado por esta ala meritocrática empreendedor, que enriqueceu imenso gra-
é um pontapé na boca a todos nós, já que o ças a uma ideia genial criada às costas de
investimento público em investigação, ino- milhares de pessoas que contribuíram para
vação, tecnologia é um dos grandes pilares que essa ideia genial pudesse ter surgido.
que permite que estes “Self Made Man” vão
surgindo. O telemóvel que temos na mão, é Conclusão
graças ao investimento do Estado. Mesma
coisa para GPS, baterias de lítio, airbags e a Portanto, o nosso mérito será qualquer coisa
Internet. E a mesma coisa para muitos dos como 90% sorte, 10% esforço. Certamente que
fármacos que consumimos hoje em dia (1, ver as coisas desta forma tira muito glamour a
2, 3). todas as nossas conquistas sociais. Mas é a rea-
Mas não é apenas isso. É a sociedade e to- lidade.
das as instituições criadas pela sociedade Que fique claro, não se está a falar contra os
que permitiram a evolução cultural e a acu- empreendedores. Eles têm mérito e alguns deles
mulação de conhecimento. Portanto, quan- revolucionaram a sociedade em que vivemos.
do um “Self Made Man” cria alguma tecno- Agora, que se acabe com esta ideia que surgem
logia revolucionária, o mérito dele é uma no vazio, que o seu mérito é exclusivamente seu
e que os com pouco mérito o são por “pregui-
ínfima parte de todo o processo de criação,
ça” e “não se terem esforçado o suficiente”. Ob-
já que assenta em conhecimento produzido
viamente que também existem os preguiçosos,
por milhares de pessoas que o antecederam. mas a generalização como forma de atacar o Es-
Aliás, hoje em dia grandes descobertas são tado Social para reduzir a contribuição do “Self
feitas por equipas de pessoas e não por uma Made Man” via impostos para a sociedade, é só
pessoa só, dada a complexidade cada vez ridícula.
maior em fazer avançar o conhecimento e
E, para quem acha que o “Self Made Man” con-
produzir tecnologia. seguiu erguer-se à custa de um trabalho imen-
Mas mais…estes meritocratas não seriam so, investindo 100 horas por semana na sua
nada, na ausência das pessoas “sem gran- carreira, desengane-se. Os CEOs trabalham em
de mérito” ou status social, que lhes produ- média 60 horas por semana. Não é mau… mas
zem a comida, constroem a casa, mantém agora vamos imaginar a mãe solteira com dois
os sistemas de canalização, de eletricidade empregos, a receber o ordenado mínimo, sem
ajuda em casa para tomar conta dos filhos, o
e aquecimento, fazem recolha do lixo, etc.
que significa que ainda tem que fazer a lida do-
Aqueles funcionários sem mérito que rece- méstica e acompanhar as crianças na escola…
bem pouco, mas que mantêm todas as nos- faltará esforço a esta pessoa? Onde está a sua
sas infraestruturas a funcionar. recompensa por este esforço? Ou terá tido azar
Citando o Ricardo Lopes, do Canal Dissen- relativamente às suas condicionantes de vida?
ter, esta atitude dos meritocratas “é uma fal- E terminamos com um vídeo do Rationality
ta de respeito abjeta pela sociedade em que Rules (https://www.youtube.com/watch?time_
vivem, pela longa história da humanidade e o continue=4&v=e5GB5mZb0yM&feature=emb_
nível mais alto de arrogância e egocentrismo logo), que devia ser visto por todos estes Self
que alguém pode atingir.” Made Man liberais, que pensam no Estado como
um sorvedouro de impostos inútil, que apenas
O meritocrata não é nada sem a socieda- serve para matar a iniciativa privada.
de em que está inserido e as condições que
essa sociedade lhe proporcionou para se

36
www.fonacate.org.br

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