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Somos todos terroristas

Sociedade contemporânea e individualismo


a partir de Byung Chul Han e Peter Sloterdijk

Paulo Ghiraldelli

O terrorismo é um ato em busca de autenticidade. O filósofo germano-coreano Byung Chul


Han endossa essa tese. Mas, o terrorismo também é provocado pelo excesso de leveza e
consequente reação em busca de reoneração. Penso que o filósofo alemão Peter Sloterdijk
endossaria essa tese.

Nos resultados, essas teses possuem pontos em comum. Autenticar-se é mostrar-se como
sendo o que se é, com uma identidade que merece atenção. O terrorista é alguém que sabe
que finalmente terá atenção ao detornar um prédio e/ou detornar-se. Finalmente, então, será
ele mesmo – autêntico. Reonerar-se ou adquirir peso é descer à realidade, ter os pés nos chão.
Fazer acontecer e trazer outros ao acontecer é função de quem recupera onerações
identitárias, agora, as de realizador de destinos. O terrorista readquire presença no chão do
mundo, na realidade, pois faz reaparecer a dor. Em ambos os casos, autenticação e reoneração,
o mundo midiático é o que o terrorista elege como realidade, e é por este que seu impacto de
espetáculo se torna realidade e faz dele próprio alguém real. O mundo real é imagem, mas
nesse caso uma representação especial.

Autenticação e reoneração agrupadas à midia: eis os elementos do terrorista para que ele saia
do vazio e do entorpecimento e retorne de onde estava para a vida – a “vida real”, como ele a
entende. Podemos substituri a palavra terrorista pela expressão homem contemporâneo ou,
melhor dizendo, o jovem contemporâneo nas democracias ocidentais liberais. De certo modo
podemos até, com alguma coragem, dizer: nós somos esse terrorista, em algum grau. Cada um
de nós precisa, em algum momento, para sentir a própria presença, dizer-se autêntico, ou
mostrar-se com algum peso social e, então, para tal, em nossa atualidade parece que temos de
causar algum escândalo ou alguma dor relativamente geral. Hoje em dia cada um tem sua
mídia para assim agir e seu círculo de “realidade” recuperado ou fixado.

Autenticação. “Qual a minha virtude? Ora, eu sou autêntica. Eu fui todo o tempo aqui eu
mesma, sem fingir”. Assim fala de si a integrante do reality show BBB, da TV Globo.
Reoneração. “Ele tem um peso no time, sem as investidas dele as coisas se complicam”. Assim
fala um comentarista de futebol ao analisar a participação de um jogador. Alguns chegam
mesmo a usar a palavra “agressivo”. “Fulano de tal é agressivo no mercado, faz as coisas
acontecerem”. “Fulano de tal detona”. Detornar – significativo esse verbo, que ocupa parte dos
discursos populares de nossa época.

Desse modo, ser gente comum é ser terrorista nos tempos contemporâneos. “Ele está
causando” – dizem. A condição normal e cotidiana de vida exige que todos possam “botar
terror”. Fora disso, sentem-se desaparecer. Essas condições são descritas em gênese e
explicadas de modo diferente em Byung-Chul Han e Peter Sloterdijk.

Han nos dá um quadro estático, Sloterdijk nos dá um quadro mais acentuadamente


genealógico. Mas ambos tomam personagens especiais como exemplos para desenvolverem
suas teses. Para a discussão da autenticidade como problema, Han escolhe Sócrates. Para a
discussão da leveza, ou seja, a desoneração, Sloterdijk encontra Rousseau, e para a reoneração
lembra dos jesuítas e seus herdeiros, os consultores de todo tipo.

Han diz:

Os discípulos de Sócrates que o amam o chamam atopos. O outro a quem


desejo está desorientado. Não tolera nenhuma comparação. Em
Fragmentos de um discurso amoroso Roland Barthes escreve sobre a atopia
do outro: ‘Atopia, o outro faz a linguagem se agitar: não se pode falar dele,
sobre ele; todo discurso é falso, torpe, mortificante.’ Como objeto de
desejo, Sócrates é incomparável e singular. A singularidade é alguma coisa
totalmente distinta da autenticidade. A autenticidade pressupõe a
comparabilidade. Quem é autêntico, é distinto dos demais. Porém, Sócrates
é atopos, incomparável. Não só é distinto dos demais, é distinto de tudo
que é distinto dos demais. 1

A atenção para com o atopos, a partir de Sócrates, é um bom exemplo. Sócrates se diz cidadão
de Atenas, tendo saído da cidade só duas vezes, ainda assim, por obrigações militares. Todavia,
quando se faz necessário, como no Timeu, falar do funcionamento da cidade ideal, ele recua e
deixa a vez para o estudioso disso, o próprio Timeu. Mostra-se como quem não tem lugar,
como que estando fora de orientação em um espaço já traçado e, por isso mesmo, pouco
capaz de falar de como é viver na cidade ou explicá-la em seu melhor. Essa ideia de atopia é
bem aproveitada por Barthes e, ao seu modo, por Han. Trata-se de procurar o distinto que é
distinto de todos os outros distintos. Mira-se antes o singular que o autêntico.

A autenticidade se faz quando há elementos que se parecem, e que então clamam por
comparações várias de modo que aquele não falseado emerja. Dessa forma, como Han de fato
explica, a autenticidade é filha da comparação. Segundo ele, nossa sociedade atual é
comparativa. Ele chama uma tal sociedade de “neoliberal”, e penso que, com esse termo, não
está dizendo nada além do seguinte: a sociedade capitalista contemporânea é aquela em que a
linha de produção obedece o consumo, e este, ao procurar ser consumo em grande escala, se
torna finalmente um consumo do que é diversificado. Basta uma troca de carbono em sua
fórmula química para que um desodorante derive outro. O primeiro, mais famoso, se diz
autêntico, o outro serve como cópia e deverá ter um preço mais baixo, para os menos ricos.
Após isso, se o segundo se fixar também no gosto das classes médias, pode abandonar seu
caráter de cópia, vir a ser um original autêntico de sua própria marca. Essa diversificação das
marcas de produtos-mercadorias para o consumo (o que não implica em várias fábricas mas,
ao contrário, um certo caráter monopolista), segundo essa fase do capitalismo que começou

1
Han, B.C. Die Austreibungen des Anderen. Frankurt am Main: S. Fischer Verlag GmbH, 2016, cap. 3.
no início do século passado e que agora é regra inexorável, se expande para além de
desodorantes, caixinhas de leite, geladeiras, carros e até serviços. Adentra as atividades das
pessoas.

Nesse sentido é que as pessoas deixam de lado o caráter para falarem em personalidade.
Persona é máscara, então, qual máscara estou usando que é mais próxima do meu rosto? Ou a
máscara que estou usando já é meu rosto e, então, sou atêntico? Se sou autêntico, sou
virtuoso. Mas para ser autêntico, me coloquei na condição de comparável, portanto, diante de
algum mecanismo de igualação. O mercado “neoliberal” é o campo dessa regra: todos querem
ter um eu autêntico! Mas ser autêntico é ser autêntico para alguém, para todos, e causar a
realidade com essa tal autenticidade. O terrorismo de cada um começa quando cada indivíduo,
no relativo isolamento dentro de multidões, faz com que cada um pratique algum ato para se
fazer autêntico, se mostrar autêntico. Os atos menos nobres, nesse caso, por serem da ordem
do espetaculoso, ganham mais ênfase. Autenticidade na base do mercado atrai a ordem que já
conhecemos por conta de uma tal sociedade, a da visibilidade e transparência 2.

Han chega a dizer que essa busca por autenticidade favorece certo narcisismo. Cada um quer
que o mundo seja seu espelho, esteja voltado para ele e o reflita. Mas essa busca de
autenticidade é também, segundo ele, o campo no qual o apelo pela diversidade “neoliberal”
aflora. Pedir diversidade é, para Han, sintoma dessa sociedade “neoliberal”. Pois o diverso cai
no âmbito dos muitos que são comparáveis. Não se trata aí de admitir a alteridade como
negativa, mas sim clamar pela diferença que, permitindo o trabalho da igualação para efeitos
de comparação, abre espaço para que cada um diga que é autêntico, que não falseia. Ora,
estamos de fato cansados de ver a pluralidade da sociedade contemporânea eleger a
democracia liberal com o seu campo e com o seu paraíso obrigatório. Mas cada elemento da
diversidade convive com o outro permitindo o igual, a comparabilidade, todos no mesmo
plano, portanto. O outro como negativo, como contrariedade, como aquele que ajuda mas
também critica, como o que se mostra digno de ser, como Sartre diz, o “inferno”, este não é
colocado em uma sociedade como a nossa. Somos uma sociedade de tribos e diversidade, mas
sem a admissão de um Sócrates. Ora, mas tambem Atenas, a democracia que não conheceu o
liberalismo, não admitiu Sócrates! Isso pode desautorizar um pouco o uso do termo neoliberal,
por Han, mas não invalida sua ideia.

Han denuncia essa situação não por ser contra a diversidade, mas por entender que nela se
esconde a igualdade de tudo com tudo e, sem o outro, promove o surgimento de uma
subjetividade esvaziada, que não sabe bem seus limites, depressiva, que então reage fazendo
acontecer o terrorismo, ou seja, a causação enquanto projeto de autenticidade. E a palavra
terrorismo, nesse caso, vale em todas as acepções do termo.

Peter Sloterdijk, por sua vez, ao trazer Rousseau e os jesuítas para a cena, também está
interessado no problema da falta de alteridade. Rousseau é o homem que anuncia a existência

2
Han, B C. Transparenzgesellschaft. Berlim: MSB Matthes & Seitz Berlin Verlagsgesellschaft mbH, 2012.
enquanto desoneração completa. Uma vez no Lago Biel 3, o genebrino entra na condição do
homem que devaneia, que sem pensar em nada pode então “sentir” sua existência. Não
penso, logo sou, é a conclusão rousseauniana.4 Rousseau foge de qualquer alteridade para
encontrar-se. Mas não quer se encontrar como eu pensante, e sim como eu que,
completamente desonerado, descompromissado, pode sentir-se existindo. Mas essa
experiência de liberdade, Sloterdijk avisa bem, ainda não é a experiência de liberdade que,
também moderna, vem com os empreendedores, os aventureiros e homens de ação.

Nesse segundo caso, os primeiros homens modernos são antes os jesuítas, os que se preparam
ferreamente na obedicência, na disciplina e na posse de razões, e assim podem se portarem
como sujeitos. São eles que dão as cartas ao mostrarem que possuem justificativas para agir, e
mais, mostrarem também que, se tiverem dúvidas, ainda podem consultar o papa, ou o papa
neles interiorizado. Se o sujeito é, por definição, aquele que passa da teoria à prática, e sabe se
desinibir para tal, então eles são os sujeitos. Além dos mais, também são os sujeitos ao
perceberem que nem todos podem se comportar como eles, e que, então, estes deverão
recorrer a eles, se servir deles. Ora, a Igreja nunca disse outra coisa que não isso: o sacerdote
existe para servir.5 No fundo, sempre souberam os padres que governa quem serve. Passam a
servir muitos, lhes dando razão para a ação, ou justificativa para o que já fizeram. São os
protótipos daqueles que, nos dias de hoje, que são dias da sociedade desonerada e leve,
funcionam como consultores. O casuísmo – combatido por Pascal contra os jesuítas – talvez
seja a origem da consultoria.6

Sloterdijk traça um quadro de nossa época a partir da visão de uma sociedade que faz a “virada
para o indivíduo” junto de uma crescente desoneração, provocada pelo combustível fóssil e,
com este, pela enorme produtividade do trabalho que tirou o homem de sua horizontalidade,
colocando-o cada vez mais numa direção vertical, num trabalho antigravitacional. Nasceu com
isso a “sociedade da abundância” e a possibilidade de se ter uma verdadeira sociedade do
consumo, onde o virtuoso é o filho pródigo. Nessa sociedade gasta-se por dever cívico – isto é
ser moderno.

O homem atual se vê não esvaziado exatamente como Rousseau, que foi ao Lago Biel
voluntariamente para tal. O vazio do homem moderno é devedor das condições de leveza para
as quais foi empurrado, carregado, jogado. O homem moderno acorda sem se preocupar com
doenças, trabalho muscular pesado, riscos de vários tipos – e até mesmo os pobres podem
usufruir disso em nossa sociedade atual, ou ter algo assim como parâmetro, dada a capacidade
enorme de mimo de nossa época. “Os homens modernos se vangloriam de terem inventado a
felicidade”, diz Nietzsche. Ora, agir como sujeito em uma situação asssim põe o homem a
procurar razões em si mesmo e, não raro, nada achar, e então vir buscar a indústria da
consultoria para continuar a se auto-proclamar sujeito. Do coach ao guru midiagogo passando

3
Sloterdijk, P. StreB und Freiheit. Berlin: Suhrkamp, 2012.
4
Ghiraldelli, P. Para ler Sloterdijk. Rio de Janeiro: Via Vérita, 2017, cap. 7.3.
5
Ghiraldelli, P. O que é a subjetividade moderna a partir do Evangelho de Matheus.
<https://www.academia.edu/30694798/O_que_e_a_subjetividade_moderna_Sloterdijk_a_partir_do_Ev
angelho_de_Matheus>
6
Ghiraldelli, P. Para ler Sloterdijk. Op. cit., cap. 7.2
pelo palestrante de auto-ajuda ou coisa parecida, todos podem dar conselhos para um pseudo-
sujeito se acreditar sujeito.

Na nossa atualidade, então, no projeto de reoneração que cada um escolhe para si mesmo,
podemos ter diferentes complementos para um eu esvaziado ou um eu com completo
desvalorizado. Há na condição de colaborador o ideólogo do tipo do intelectual pré 1968, ou
então o atual consultor de empresas, ou ainda o agente de entretenimento. Nos três casos,
pode-se pensar no homem atual como aquele que se reonera por meio do incentivo ao terror,
da bomba no corpo à agressão na internet, sendo que em ambos os casos o que se busca é o
peso gravitacional que os esportes radicais tiram e recolocam em sucessões de tentativas de
reavivamento de cada um. O importante é não ir como Ícaro indefinidamente para o céu, por
conta da leveza atual e por conta dos inúmeros incentivos exteriores de próteses de sujeitos. O
mal de Ícaro não foi morrer, mas morrer sem se tornar pesado, sem ter saído nos jornais ou na
Internet. Em tudo isso, há sempre o sentido de que se é sujeito, indivíduo autônomo. Sloterdijk
diz bem: em nossa época “é soberano aquele que decide em que armadilha quer cair”. 7

Podemos voltar agora à autenticidade em sua comparação com o excesso de leveza e


consequente busca de reoneração. Apesar dos pressupostos diferentes de ambas as teorias,
parece plausível dizer que o terror, ou seja, o ato pelo qual há um simbolismo de
acontecimento em cena, é o que é comum, e é o que vemos no campo social se queremos
encontrar a subjetividade atual. O jovem precisa “fazer acontecer” de modo a ser autêntico,
por uma via, ou ter peso, “cair na real”, por outra via explicativa. Mas nenhum dos casos
mostra um desenvolvimento que não leve a espasmos – daí a ideia de terror, e não
simplesmente a ideia de façanha. O terror nunca é falso. O terror nunca é leve. Quando o
terror não mata ninguém, mas ocorre como ato que é anunciado, ele já cumpriu seu
desiderato. Não há nada mais próprio que isso, o terror, para qualificar o que ocorre com o
homem atual. O mundo é dos que se mostram autênticos, ou seja autênticos balões, que
explodem lá no alto, podendo recuperar peso e vir incendiar florestas aqui em baixo.

Paulo Ghiraldelli  é professor, filósofo e escritor. Tem doutorado em filosofia pela USP e doutorado em
filosofia da educação pela PUC-SP. Tem mestrado em filosofia pela USP e mestrado em filosofia e história
da educação pela PUC-SP. Tirou sua livre-docência pela UNESP, tornando-se professor titular. Fez pós-
doutorado no setor de medicina social da UERJ, como tema “Corpo – Filosofia e Educação”. É bacharel
em filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (S. Paulo) e é licenciado em Educação Física pela
Escola Superior de Ed. Física de S. Carlos, hoje incorporada pela Universidade Federal de S. Carlos
(UFSCar). Foi pesquisador nos Estados Unidos e na Nova Zelândia. É editor internacional e participante
de publicações relevantes no Brasil e no exterior. Possui mais de 40 livros em filosofia e educação.
Trabalha como escritor e cartunista e tem presença constante na mídia imprensa, falada e televisiva.
Atua junto com Francielle Maria Chies no programa Hora da Coruja, FLIX TV. É professor de filosofia
aposentado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Trabalha atualmente como diretor
e pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA). É professor pesquisador convidado
na Faculdade Paulo VI, da Igreja Católica, em filosofia.

7
Sloterdijk, P. O Palácio de Cristal. Lisboa: Relógio D’Água, 2008, p. 74.

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