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Latusa Digital – ano 1 – N° 6 – junho de 2004

Nada sobre o sexo!*

Tânia Coelho dos Santos**

A câmera desliza seu olhar sobre os aparelhos de um hospital onde se registra


em vídeo uma campanha pela doação de órgãos para transplante. A atriz
principal deste filme, dentro do filme, é Manoela. Uma inesperada inversão de
perspectiva: agora é a realidade que imita a ficção e o hospital precisará de
seu consentimento para doar o coração do filho atropelado e morto. Esteban o
adolescente apaixonado pela atriz principal da peça “Um bonde chamado
desejo” é o narrador de “Tudo sobre minha mãe”. A ruptura trágica desse laço
entre Manoela e Esteban vai lançá-la na realização do maior sonho do filho, o
de conhecer seu pai. Ela parte à procura do ex-marido e pai do menino. A
surpreendente narrativa desse périplo nos descortina um passado no qual a
solitária enfermeira e mãe foi uma prostituta. Seu parceiro e sua melhor amiga
são Lola e Agrado, dois travestis.

O filme de Pedro Almodóvar não nos poupa do desconforto ante o real da


fragmentação do corpo pelo discurso da ciência. Ele nos confronta com o
dilacerante mal-estar de Manoela que segue enlouquecida o coração do filho
que vai bater noutra cidade, noutro corpo. Agrado, a amiga travesti, arranca
risadas de uma platéia anônima quando contabiliza diante dela a estreita
relação de custo/benefício entre o silicone adquirido em numerosas cirurgias

*
Escrito a partir da minha intervenção na atividade da EBP-Rio: Psicanálise e cinema em
2/4/2004. Apresentação do filme “Todo sobre mi madre” de Pedro Almodóvar. Debatedores:
Marcus André Vieira e Tania Coelho dos Santos. Coordenação: Ângela Batista com a colaboração
de: Maria Angela Maia, Fernando Coutinho e Elza Marques Lisboa de Freitas.
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Analista praticante – AP. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação
Mundial de Psicanálise (AMP).

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plásticas e as formas femininas alcançadas. Será um milagre da ciência que o
pai de Esteban seja um travesti?

As mulheres neste filme não vivem à beira de um ataque de nervos. Também


os homens não se exaurem mais em enganá-las, em proporcionar, a todas, as
palavras de amor que elas tanto querem ouvir. Basta comparar “Tudo sobre
minha mãe” e “Mulheres à beira de um ataque de nervos” e percebemos que o
filme “Tudo sobre minha mãe” é também “Nada sobre Sexo”. Não há uma
única cena de amor entre um homem e uma mulher. A inexistência da relação
sexual, nesta época em que vivemos, não tem mais a forma da guerra dos
sexos. Reina a indiferença ou a relação à parcialidade do órgão. Vamos rever
as cenas mais picantes. Um homem tenta obter à força o consentimento sexual
de um travesti. Uma conversa entre mulheres arranca a confissão coletiva de
que elas adoram pronunciar a palavra pau. Um homem tenta obter de um
travesti a satisfação passiva do sexo oral e obtém em resposta a
desconcertante inversão de sua demanda: mas por que não é você que deve
me chupar? Uma jovem atriz homossexual insiste em ver e tocar o órgão
genital de um travesti. Em todas as cenas a obscenidade, a agressividade e a
perversão sexual são o índice de um profundo desencanto com o amor.
“Sempre confiei na bondade de desconhecidos”, repete a personagem principal
de “Um bonde chamado desejo”, que na vida real é homossexual.

Quanto ao amor, não é mais o esforço de se fazer amar pelos homens que
caracteriza as mulheres. O amor entre mulheres, que vai da relação de ajuda
mútua, passa pelo encanto com as crianças e não exclui a parceria
homossexual, toma o lugar de importância outrora concedido à relação com os
homens. Como diz Manoela, “nós mulheres fazemos qualquer coisa por amor,
inclusive somos todas um pouco lésbicas”. Homossexualidade, maternidade e
desencanto. Serão elas hoje menos mulheres e mais mães?

O que dizer dos papéis masculinos, em tempos de “Tudo sobre minha mãe”? O
tema quase surrado do declínio da função paterna ganha aqui roupa nova.
Para além do pai carente, humilhado, doente, submetido à tirania da mulher,

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impotente ou fraco agora temos que enfrentar também o pai esclerosado,
vítima do milagre da ciência que o condena a uma velhice indigna,
prolongando a vida para transformá-lo em ridículo cyborg, autômato vivo e
completamente acéfalo. Ele passeia como um cego com seu cachorro e repete,
reduzido a um formulário ambulante, cacoete da sociedade da escala de
avaliação e de medida, as mesmas perguntas para todas as mulheres: Como
você se chama? Quanto você mede?

É chocante, sem dúvida mais é muito pouco. O avanço da ciência nos faculta
uma outra face do pai ainda mais decadente. O pai gay, pai travesti, pai com
peitos siliconados. O que é o que é? Um travesti é uma mulher com um falo ou
é um homem com peitos? Como do sublime ao ridículo há um passo, lembro a
cena tocante em que Lola, o travesti que na verdade se chama Esteban, toma
conhecimento de que Manoela estava grávida quando o deixou. Quer conhecer
o filho, vê-lo uma vez só, ainda que de longe. Ele chora numa cena belíssima
que o retrata como uma espécie de Madona travesti, ao saber que o filho está
morto. É..., os brutos também amam. A gente só não sabe mais o que esperar
das identificações sexuais. Prossigamos nessa direção. Lola é ainda o pai de
um segundo Esteban, filho de Rosa a enfermeira grávida que sonha substituir
as freiras mortas pelas guerrilhas latino-americanas. Ela não quer viver e vai
morrer de Aids depois de dar à luz a uma criança soropositiva. Adotado por
Manoela, o segundo Esteban sobrevive e se torna um desafio, um milagre que
desperta o interesse da ciência. Desta vez é a ciência que quer aprender com a
vida. O milagre do amor de mãe é topologicamente idêntico ao milagre do
amor do príncipe encantado pela Bela Adormecida que tivemos a ocasião de
ver redespertá-la em outro filme de Almodóvar, o “Fale com Ela”.

O amor de mãe é único índice do real nesse admirável mundo novo, onde a
foraclusão do Nome do Pai fragmenta os corpos e deslocaliza o gozo; onde os
seres humanos destacados das identificações geracionais e sexuais procuram
elevar seus absurdos pactos imaginários à potência da lei simbólica. Esforço
inútil, o desses cyborgs, apressadamente improvisados, de dar estatuto
simbólico ao imaginário. Essa modalidade canhestra de redução do signficante

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mestre, do dito primeiro, da prerrogativa do simbólico ao pacto intersubjetivo,
vem se impondo entre nós como uma nova moral que não temos o direito de
recusar. Quando declina o papel do Estado de garante da lei simbólica, vemos
a sociedade atônita às voltas com a suplência inglória da lei por meio da
multiplicação dos contratos intersubjetivos. Isso é verdade no que diz respeito
aos Comitês de Ética que se travestem sem nenhum pudor em comitês
científicos e se demonstra nos esforços atuais de regulamentação da profissão
de psicanalista. Isso é ainda mais verdadeiro, no que diz respeito à degradação
cotidiana do valor das insígnias simbólicas, que o novo gosto pós-moderno e
relativista nos impõe. Já não nos indignamos com mais nada, vez que
tendemos a reduzir tudo a semblantes, a máscaras descartáveis e apostamos
todas as nossas fichas no vazio central do sujeito barrado. Engordamos sua
insatisfação, alimentamos com ela o discurso do capitalismo e colhemos um
sujeito ora desidentificado, ora cínico. Ele não tem de que se envergonhar,
nem a que honrar. Nenhuma razão para viver e ainda menos pelo que morrer.
Pedro Almodóvar é um cineasta sério. Em nenhum momento ele banaliza os
índices de uma pós-modernidade relativista que quer expulsar toda a
tragicidade da existência humana. Eu concluo relançando uma conhecida
incitação sadiana: psicanalistas um esforço a mais se não quereis ser pós-
modernos!

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