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Título: Ringue

Autora: Matilde Campilho

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Alêtheia Editores

Fevereiro de 2018
CONTEÚDO
SEND ME A LEAF

ALGARVIA

NOTAS SOBRE FOTOGRAFIA

COLMEIA (O MEL)

POEMAMÉRICA

RADIO BENJAMIN

CHAPÉU DE PALHA

STRAND

LUGAR NA PLATEIA

PISTA DE GELO

I CAN GATHER ALL THE NEWS I NEED FROM THE WEATHER REPORT

TODOS OS SANTOS

ZERO CRIME & NO FEAR

FOGO

RETRATOS

HEUTE QUER DIZER HOJE (VIENA, NOVEMBRO DE 2017)

DIÁRIO DUPLO
SEND ME A LEAF
Send me a leaf, but from a little tree
That grows no nearer your house
Than half an hour away. For then
You will have to walk, you will get strong and I
Shall thank you for the pretty leaf.
(Bertolt Brecht, traduzido do inglês por David Constantine. Poema publicado na revista The New Yorker em Agosto de 2014)

Nalguns dias (terça, domingo, quinta, às vezes é tudo a mesma coisa) a única possibilidade
é um poema pequeno. Tão pequeno que atravessa as gargantas e os desfiladeiros, vai parar
na clareira e chora. Lá na clareira é tudo mudo, tudo sem notícias, sem romance, sem perda
nem coincidência, sem epidemias nem o transtorno dos planetas em retrocesso. Schicke mir
ein blatt, Send me a leaf, Mande-me uma folha. Há sempre um desenho que se perde na
tradução, mas como de costume há sempre um desenho que se ganha no caminho.
Principalmente no caminho das pedras. Brecht, tão jovenzinho, apareceu aos pulos de
dentro da página da revista americana. Agradeço a ironia, e sei que daqui a meia hora
estaremos em casa. Olhe: quando os dias são de desfiladeiro, o grande sossego é saber que
estamos sempre a meia hora de casa. Porque aos tropeções ninguém cai devagar.
ALGARVIA
Porque é você
quem sabe
me olhar assim
Com os dois olhos
Mesmo quando eu
insisto num olho
aberto e outro
bastante fechado
É você quem abre
as portas da manhã
quando eu começo
Só começo
a insistir
na caminhada
que já se sabe
atravessará
certamente
a escuridão
Vem você e
me lembra
da luminosidade
que nos trouxe
ao mundo táctil
Descendemos
da explosão
É isso que você diz
Mesmo quando
você não diz nada
Nós descendemos
da luzinha vagarosa
que primeiro
foi estrela
e depois poeira
e depois ideia
e depois genoma
e depois já se sabe
estrela outra vez
Porque é você
talvez só você
quem sabe
que é a mistura
entre tudo isto
que de vez em quando
fere meu olho esquerdo
Há demasiado brilho
meu bem demasiado
Somos o fruto
da arrebentação cósmica
e é por causa disso
que eu franzo o rosto
e franzo a voz e
de vez em quando
eu franzo o tórax
Às vezes eu ainda
escuto o grande bang
e então eu fecho tudo
Mas vem você e abre
as janelas da manhã
a lente da câmera
a mão de cinco dedos
como se a mão humana
fosse o sinal da estrela
E aí que você me lembra
muito devagar
da palavra — sim
Nós descendemos
da arrebentação sim
Nós somos
feitos de luz sim
Estamos destinados
ao relento sim
Então mais vale
aproveitar
o big bang sim
Você me lembra
Misture luz relento
& arrebentação
E venha dar mergulhos
no grande mar azul
Que não é mais
que o reflexo
da luzinha vagarosa
que primeiro
foi estrela
e depois poeira
e depois ideia
e depois genoma
e depois já se sabe
estrela outra vez
Por ser você
quem sabe
me olhar assim
com cara de estrela
na frente de outra
Hoje eu não quero
papo com a escuridão
nem com a luz estourada
Hoje eu levo os dois
olhos abertos
E mergulho devagar
no azul-estrela
de um dia novo.
NOTAS SOBRE FOTOGRAFIA
Afortunadamente a minha câmera avariou. Logo no meio do Verão, coisa boa.
Agora não há mais aquela vontade meio incoerente, que vem sempre não sei bem
de onde, de fechar certos momentos numa chapa só. Fechar para quê? Estamos
no meio da estação certa e bom mesmo é abrir os acontecimentos até ao vértice
de um círculo longo, mesmo porque toda a gente sabe que nenhuma
circunferência é dotada de vértice. Se não tem vértice não tem final. A minha
câmera avariou porque não era descartável, e tudo o que quer ficar em
permanência deve quebrar nalgum momento. Veja bem, tudo muda o tempo
todo, mesmo aqueles gestos eternos do tipo: romance, família, movimento
doméstico, vida selvagem, paixão ou até desprezo. Tudo num ponto se
transforma, aí jaz a eternidade. É no processo da mutação que uma mulher
cresce, e eu cá não deixo de ser eu só porque ainda este ano achei meus dois
primeiros cabelos brancos. Conversa longa, deixemos isso para mais tarde. A
minha máquina avariou e portanto nas últimas semanas eu habito o relento até à
exaustão. O mar está encrespado e eu não o fixo. O céu de fim de tarde tem
andado magnífico e eu não o fixo. Recentemente ganhei uma batalha que pôs
meu pulso à prova e nem isso eu fixei. Guardo tudo, não fixo nada. E já agora, já
que estamos nisto, voltei ao velho trabalho da recoleção. Sem a minha própria
câmera eu posso treinar bem melhor meu velho olho. Achei por exemplo uma
foto encarquilhada do mergulho noturno, arcaico, que todos damos de vez em
quando. Aqui ou no Texas, em Hyderabad ou em Marraquexe. Uma vez vi
Hyderabad da janela do avião, era a mesma lua. Era o mesmo menino da
fotografia encarquilhada. E era o mesmo amor — vulgar e mágico, estranho e
estúpido, nada absurdo, glorioso e sempre em transformação como uma bolinha
de pingue-pongue a bater nos vértices. Do círculo, pois claro. Bendita a hora do
amor, bendita a hora do Verão, bendita a hora em que se escavacou a câmera
contemporânea. Bendita eternidade que não quer saber de nós para nada, e quer.
COLMEIA (O MEL)
Somos tão jovens ainda
mas ao mesmo tempo agora
a nossa pele não é mais a mesma
Atravessámos os grandes lagos
com grandes pisadas noturnas,
grandes fogos no lugar do coração,
grandes olhos grandes graves
Palavras que mais tarde abandonámos
sobre as placas de gelo branco
Fomos o princípio da transumância
Os reizinhos perseguindo as vacas
sobre a areia de uma praia clara
Chegámos sempre perto da cor primordial
Nunca perdemos de vista os bichos
Jogámos bowling na cordilheira
E uma vez até comemos do fruto
da terra & do trabalho do homem
Somos jovens agora e as cidades
governam nossa linha de passe
Nos desviamos dos automóveis
precisamente na hora agá
Pedimos comida em take-away
e conversamos muito com os pássaros
Estamos jovens mas um pouco menos
jovens, um pouco menos firmes,
um pouco menos sol e aço e flor
O nosso corpo nos carrega pelas ruas
à procura de um animal de pelo claro
Fomos os garotos do fogo-fátuo
Seremos os homens da idiotia
Ou não, talvez não:
Há uma praia à nossa espera, um ringue
de patinagem guardado só para nós
Há um deus antiquíssimo atrás da porta
E ele está de sapatos nas mãos
espreitando a fenda em nossas vidas
Contando pelos dedos a escuridão
e esperando a brecha certa
para que possa entrar e revelar
o passado o futuro o presente
O mundo do bom desporto
O planeta das aprendizagens primárias
Somos jovens meu irmão
Oh dear oh dear we’re holdin’ on
Ainda há tempo para envelhecer.
POEMAMÉRICA
Mas de qualquer forma
eu não poderia desistir
da América
Já que a América
do Norte em que acredito
Ela já existia
muito antes
do primeiro touchdown
que o meu corpo fez
sobre a arena de Newark
Avistei uma América
muito tempo antes
da dolorosa e perigosa
confusão que brotou
do vento levantado
entre bandeiras azuis
& bandeiras vermelhas
Eu cresci dentro das linhas
de uma canção que dizia
I’ve got nothing to do today
but smile Da-n-da-da-n-da-
-n-da-da and here I am
The only living boy era eu
Ao meu lado estavam
Lawrence com cara de
Dove sta amoré
Aqui jaz o amor
Amora jazz amor
Ou Adrienne com cara
de 1964: uma fotografia
a cores: tu montando
um camelo perto
da Grande Pirâmide
Ou William Carlos
com cara de tanta cois
com cara de tanta coisa
a depender de um
red wheel barrow
Ou ainda Gwendolyn
com a brilhante cara
de We Real Cool
Há uma América
que está sempre
do nosso lado
E eu posso garantir
que ela nada tem a ver
com o rosto político
Mas com a cara apalache
de uma cordilheira
talvez sim
Não eu não poderia
desistir da América
natural e muito menos
da América néon
Porque sempre
que eu fiquei triste
havia um luminoso
Season’s Greetings
a cintilar sobre Paris
e quando eu digo
Paris eu digo Texas
Quando eu digo
Da-n-da-da-n-da-
-n-da-da eu digo amor
E quando eu digo
amor eu digo aquele
gigante satélite que
o Lou construiu
só para nós
É sobre ele que
me empoleiro agora
quando eu sinto saudade
do Donut Pub americano
que eu frequentava
todas as manhãs
na América do Norte
E isso foi antes
do aparecimento
de qualquer triste império
E isso foi ontem
Ou provavelmente hoje
Porque toda a América
acontece na minha cabeça
e na verdade o único
imperador em que acredito
is the emperor of ice-cream.
RADIO BENJAMIN
E celebraríamos o mundo de qualquer forma, mesmo que para nossa triste sorte fôssemos os
herdeiros de uma civilização em queda, em derrocada. Mesmo assim prestaríamos atenção
ao vértice fluorescente que existe ainda escondido num dos lados da sorte. Somos herdeiros
de uma terra em chamas e a nossa descendência será feita de uma outra massa. Restar-nos-à
a memória e portanto é ela que devemos mastigar, ruminar, exercitar até à hora de dormir.
Todos os dias até à hora de dormir. No futuro, certos apontamentos nos ajudarão certamente
a reconstruir tudo, apontamentos como: os sonhos de W. Benjamin, o cheiro do café forte, a
possibilidade de um roubo consentido, o grande azul aos nossos pés. São quase seis da tarde
de mais um último dia de Verão, e em cada dia final de uma estação nos é concedido um
desejo. Portanto eu peço: que na hora de dormir, durmamos bem. Seja qual for o
apontamento que cada um escolha para mastigar e para depois levar mais longe: que
durmamos todos bem. O sono, a celebração.
CHAPÉU DE PALHA
Fazes-me lembrar
um filme do rohmer
ou o toldo vermelho
do joaquim manuel
Quando penso em ti
eu esqueço o lixo
que de manhã faz barulho
à minha porta
Pareces-te com o tempo
das amendoeiras
Tens tudo a ver com
a escadaria semi-invisível
que o mágico escavou
no rochedo atlântico
Sim tu pareces o Verão
Às vezes quando entras
quase dá para ouvir o ruído
do motor de um jipe
Um lada niva por exemplo
(de cor azul azul)
a assapar entre a poeira
e os eucaliptos
sempre em direção à praia
Fazes lembrar a alegria
de um risco na parede
desenhado a carvão
pela criança da manhã
É no verde dos teus olhos
que eu treino a disciplina
de uma explosão sossegada
que se vai revelando devagar
ao ritmo das estações concretas
E já agora também é no amarelo
dos teus olhos que eu descanso
da guerrilha do mundo moderno
Aquele que nos fez esquecer
a gargalhada de David
quando derrotou o gigante
(mas olha há sempre um riso
ecoando lento na caverna)
Estamos aqui para vencer a dor
E teu rosto diário faz lembrar
a vitória do tempo sobre o tempo
Porque afinal de contas tu
te pareces muito com a promessa
de uma fé vagarosa & livre
Pareces a coragem, pareces a paz
Pareces mesmo a madrugada egípcia
sobre a qual voa um passarinho.
STRAND
Algumas vezes
mesmo quando faz sol
e pouco vento e
os reflexos das coisas
desenham objetos
multiformes sobre as
calçadas extraordinárias
da minha cidade
Mesmo assim às vezes
em certos sábados
eu dou por mim trepando
muito devagar o escadote
da memória ou da imagem
Levanto um dedo indicador
e de repente meu corpo
está junto à estante stereo
Vinte e sete centímetros
acima do chão americano
e à minha frente o abismo
Aquele transformador abismo
onde crescem e se reproduzem
as cabeças multiformes
Meu corpo está de novo
na frente do corpo essencial
O corpo que nos ajudará
a ultrapassar o começo
deste século esfarrapado
Quero dizer, às vezes
Mesmo quando é sábado
e o meu país é o mais manso
e mais solar deste continente
que mergulha devagar
na escuridão do retrocesso
Eu regresso à livraria americana
esqueço a política americana
ou a feroz decisão americana
E me coloco de pé na frente
de O’Hara, Berger, Stein,
Bolaño, Carson, Amichai,
Didion, Arendt ou até O. Paz
Há muita luz a vir da estante
Pátria nenhuma a sobressair
Há aquela ideia enciclopédica
de Diderot que diz que devemos
reunir todo o conhecimento
acumulado da superfície desta terra
Para assim demonstrar o sistema geral
às pessoas com quem vivemos
E também para transmiti-lo
àqueles que aqui ficarão
muito depois de nós
Para que o trabalho de séculos
e séculos não se torne inútil
nos séculos seguintes
Para que os nossos descendentes
sejam mais instruídos, mais
virtuosos e mais alegres
Sim, talvez este texto
seja demasiado longo
Ou este século demasiado duro
Talvez faça demasiado sol
sobre o meu corpo que insiste
no exercício da memória
Mas em certos sábados
desta época de transição
eu acho mesmo que
a força atlética mais eficaz
É aquela que nos leva
a percorrer com atenção
uma boa parte da literatura
Que nos antecede, que nos
é contemporânea, e cujo corpo
se deitará sobre o nosso corpo
quando todos os nossos corpos
forem finalmente a cinza branca
de uma antiga e ultrapassada era.
LUGAR NA PLATEIA
Um certo gosto por salas vazias, por teatros antecipados, por ondas ou chuvas em
suspensão. Tudo quieto parado quase gelado e fixo, sabe? Beleza, imóvel beleza. Um
determinado amor à solidão, e a solidão é sempre melhor de roupa branca. Joguinho: a
solidão é sempre a melhor roupa branca. Uma paixão pela promessa, pelo barulho que as
bicicletas fazem lá fora logo de manhã, pelo clarão ou por figuras esculpidas no osso e na
enzima. E como diria o Carlinhos: Você é o Grito que Ninguém Ouviu no Teatro. Mas antes
Você é a Palmeira, Você Telúrico, Você Telúrico, Você Te-Telúrico, a Noite Passou em
Você, e os Recalques se Sublimando. Ou como explicaria o poeta inglês que eu nunca li:
você o small dark dot, feito de átomos e embargos e motes desgastados. Você concebido a
partir dos restos das flores, dos frutos, dos little traces of skin que datam de tão longe
quanto o corpo escamoso de um dinossauro. Você o filho de uma toada de guitarra como
aquela do Luiz Bonfá ao fim do dia. Ah. Você sem medo, morrendo de medo, você de sal e
de areia e de infâmia e de vez em quando bastante festivo. Você fruto de um século
estranho como de resto são todos, pergunte ao delírio de Brás Cubas. A você, claro, são
concedidos os detalhes. Tudo são pequenas válvulas dinâmicas que fazem homens e
mulheres — você é só um pontinho mínimo nesta vasta arena cósmica. E na arena você
brinca de um certo gosto por salas vazias, por teatros antecipados, por ondas ou chuvas em
suspensão. Mas no fim você é sempre gago, porque felizmente você vem praticando a
gaguez desde o começo. É de garganta meio presa que você sempre enfrenta um ponto de
luz dentro de uma sala escura dentro de uma pracinha dentro de um estádio dentro de uma
cafeteria dentro do jardim dentro de um corpo tão humano quanto o seu. Você, que gosta da
vida mais do que de sorvetes e até de árvores, você sempre levanta os olhos para o alto
quando a coisa pede seriedade. Tudo o que pede seriedade pede alegria. Tudo o que pede
alegria pede amor. Tudo o que pede amor pede memória. E tudo o que pede memória pede
vida. Você tem um certo gosto por salas vazias, por teatros antecipados, por ondas ou
chuvas em suspensão. E eu, olhe, eu também.
PISTA DE GELO
O poema americano dizia
In a far recess of summer
Monks are playing soccer
O poema austríaco diz
In a close recess of winter
Kids are playing hockey
E o poema português fica
quieto, calado, observando
a destreza dos humanos
que brincam e meditam
sempre mais ou menos
da mesma maneira.
I CAN GATHER ALL THE NEWS I NEED FROM THE
WEATHER REPORT
Quem lê tanta notícia
você perguntou
but not exactly quite
this way
Essa cara triste
ou pelo menos
um bocado exausta
o que é que é?
Você tem lido notícias
certamente você
tem lido sobre o desastre
que aterrou em nossa terra
tangível e informática
Que cara é essa
meu senhor que cara
é essa agora
Será que você esqueceu
o ritmo telúrico
que é movido
à roldana da magia
É sempre com passinhos
que isto tudo se faz
você disse
Passinhos, man
Isto só lá vai com
os passinhos
que a gente dá
sobre a roldana
que já cá estava
antes de nós
e ficará por aqui
depois de nós
Lá lá lá iá
Não me diga
que você esqueceu
o ritmo tropical
anterior aos vice-reis
e anterior às tradições
muito anterior ao lance
imperial e cúpido
Lá lá lá iá
para quê ler a notícia
se você pode decifrar
quase toda a informação
pelos veios das folhinhas
do plátano ou da lúcuma
ou de qualquer árvore
deste nosso planeta terra
Preste atenção à magia
Você é filho da magia
meu senhor recorde
a profecia de Tom Lobo
Deixe pra lá a notícia
e recorde aquele verso
E quem dirá
— seja qual for o desencanto futuro —
que esquecemos a magia,
ou que pudemos atraiçoar
na terra amarga
a macieira, a canção
e o ouro?
Levante o braço
e diga Eu Não!
Seu anel de ouro
é sua genética dignidade
sua canção seu lá lá iá
a macieira é esteira
que te empurra
em cada manhã fria
para a realidade da alegria
Já agora deixa que te diga
Eu aprendi contigo a alegria
costurada ao fio prateado
das manhãs de Inverno
O sol nasce e o sol morre
e o sol sempre volta a nascer
E ao contrário daquilo
que sugere a instrução
do velho Dinka do Nilo:
nós também
Então pra quê ler tanta notícia
Não há razão para se deter
por tanto tempo na frente
dos retratos de homens
armados e derrotados
dos retratos de um inútil
cabelo amarelo-choque
dos retratos da doença
e do terremoto e da praga
Isto é só a transição
meu senhor
Isto aqui é a passagem
de uma terra para outra
Portanto aproveite, man
Deixe que a história
se repita lá lá lá iá
mas só na medida da forma
Você sabe e eu sei
que tudo cai e volta a subir
e cai e volta a subir e cai
e depois ficamos suspensos
Para sempre, meu senhor
para sempre no fio do amor
Não leia tanta notícia
Não dê atenção ao folhetim
Rasgue antes seu eterno sorriso
Aquele que eu conheço desde
o tempo sem tempo e sem dor
E cante. Cante até ver seu corpo
equilibrado entre a roldana eterna
e o fio prateado do bem-querer.
Foi isso que você disse
minha senhora foi isso
Not exactly quite this way
But probably quite this way
E por isso agora eu canto.
TODOS OS SANTOS
O dia dos mortos anuncia
a chuva de que tanto
há tanto tempo precisamos
Uma fina camada de pó
ameaça destacar-se
dos tejadilhos
a qualquer instante
O bobo da corte
oferece ao mundo
a terceira voltinha
no círculo supremo
A criança de sempre
chora a três metros
de minha janela
enquanto observo
os desenhos coloridos
das ruínas de Pompeia
e penso nas tais três
formas de repetição do fogo
Alguém informa a polícia
sobre as calamidades
amorosas que vêm
degradando a pouco
e pouco a nossa cidade
ou quem sabe
os nossos rostos
E eu não posso fazer
nada, minha Senhora
Veja bem é feriado
Serviços mínimos
Já se sabe etc & tal
Apesar de tudo isto
há um forte cheiro
de capim que vem
subindo a galope
pela quarta colina
Eu regresso à velha
camisola vermelha
Como quem reza
a remota novena
Penso nos retratos
e no poder dos retratos
que nos mantêm sempre
com a mesma idade
Embora nos retratos
com os nossos mortos
isso seja um pouco triste
Nos retratos com os mortos
já estamos a ficar novos demais
Assim como acontece
com as ruínas de Pompeia
de tudo parece permanecer
um pouco só um pouco
Já que a totalidade física,
aquática, elementar
que governa os corpos
durante o tempo deles
Essa nalgum momento
sempre vai embora
Mas a chuva felizmente
(seja pelo feriado, pela
camisola vermelha, seja
pela tristeza que precede
certas calamidades, ou até
pela novena mal colocada)
ela invariavelmente regressa
e vem para cumprir sua
missão: a de lavar os tejadilhos,
molhar os rostos, encharcar
as plantas e as ruínas,
fertilizar o futuro próximo
e fecundar as novíssimas
construções. Nada não,
Senhor Polícia, não
é preciso nada. Nada
me falta, tudo me foi dado
a tempo. O tempo, esse
maluco, ele sempre
vem a tempo.
ZERO CRIME & NO FEAR
Bastaria que lesse Agostinho. Sobre o roubo das peras, etc. Bastaria misturar as ideias do
Santo com tudo o que derramava a cabeça de Bolaño. Pegar naquele ritmo acelerado do
homem do Chile e grafar certas paisagens numa carteirinha de fósforos que de qualquer
forma já anda sempre comigo. Talvez visitar Blanes e a dupla baía de Blanes, dormir por
algum tempo em parques de campismo, decifrar o catalão, ser automobilista quando o
tempo estiver para isso. Ficar uma hora por dia de olho fixo num desenho a carvão. Um que
seja circular e portanto bastante vasto, ilimitado, quase permanente. Ficar outra hora
tentando desvendar a caligrafia de Eduardo Chillida, e dedicar hora e meia a nada de
nada.Dar centenas de minutos às canções. Fugir do desespero que a ideia da morte de minha
mãe traz, e a de meu pai, e a de meu irmão, e a de minha irmã. Aproximar-me devagar da
ideia de minha própria morte e quem sabe passar a temê-la só um pouco. Brincar com as
bagas vermelhas que por acaso trazem gravadas na pele a velha genética do universo,
enfrentar a biblioteca da mesma forma que um nadador do Sul enfrenta o Verão, chegar só
um pouco perto de Alexandria e dos capacetes perdidos de Alexandria. Lembrar António e
o Deus, observar os macacos e a sua gramática, deixar para lá certos agouros. Exercitar
músclos e ligamentos e também glóbulos vermelhos. Prestar bastante atenção a qualquer
vermelho, seja pelo lado do futebol ou pelo lado do furor. Deixar cair a cabeça sobre um
braço pelo menos uma vez por dia e deixar cair o corpo na cama a cada noite, a cada
transição, a cada fascínio, a cada labareda. Oh, permanecer na labareda o tempo todo.
Mesmo durante a vigília. Por falar em sono e quartos, nunca levantar a cabeça da almofada
de forma súbita. É preciso dar tempo à hora mágica do sonho, respeitar o encantamento e as
mensagens encriptadas que nos chegam durante a noite horizontal. Aproveite a escuridão,
rapaz, aproveite o brilho & a escuridão.
FOGO
Eu ia escrever um poema longo
— Mais um, para quê?
Mas a verdade é que eu
queria só falar muito menos
Cada vez menos menos menos
e repetir o remate daquele poema
que diz “51 — Felizes os felizes”.
RETRATOS
Voltemos agora ao trabalho, ao estudo das coisas solitárias. Prestemos atenção outra vez aos
rostos nas fotografias. Os corpos firmes, que parecem quietos mas não estão. Vejamos o sol
de novo. Ensaiemos novas palavras, não por não nos servirem as antigas, não por
desprezarmos cada passinho desta aventura, mas em nome da evolução. Estamos aqui para
seguir em frente. Estamos aqui para ajeitar a estrada deste século e com este século eu quero
dizer loucura mas também quero dizer muita dignidade, quero dizer o avanço amoroso,
quero dizer a consciência de um passado permanente mas nem sempre destrinçado. Estamos
aqui para decifrar os desenhos na caverna, para aceitar a coroa que caiu sobre a cabeça de
todas as mulheres desde muito antes do big big bang bang. Ó, nós estamos aqui também
para fazer justiça à gaguez, para falhar e tentar de novo e que bonito foi vencer de qualquer
maneira. Você viu o ombro do amor brilhar ao sol em qualquer século? Claro que você viu.
Viu a incerteza planar sobre toda a decisão que você julgou ser permanente e não era, viu o
medo lamber as cabeças mais inteligentes, viu o menino às cavalitas de um cometa —
disseram que você era o louco e você sorriu. Você viu o tigre. Voltemos lá ao trabalho e à
mochila a tiracolo, ao rasgão da morte que primeiro mudou tudo mas depois não
exatamente, voltemos à alegria. Tudo é trabalho e construção. Oi, você vive numa época
difícil. Oi, todas as épocas o foram. Mas veja bem, você habita a época que pariu Bob
Dylan e Violeta Parra, as esculturas aquáticas de Brancusi, você passeia pela era que
inventou o zero a zero e vantagem do serviço, o tempo que viu crescer as ervinhas no
canavial, as rugas de George Harrison, a garganta de Sun Ra, o susto de Amy Winehouse, o
colar fenício e a flauta guarani. Eis sua época. Quando a cabeça não lhe servir mais você
ainda tem o coração. Veja bem que sorte a nossa. Oi, você mora na clareira da transição.
Você chora de saudade e de terror, tem um medo horrível dos computadores mas não os
larga nem por um segundo, você cresceu no tempo das árvores e das incómodas lesmas que
ocupavam a sua casa na árvore. Sua caverna, oi, ela ainda está aqui. Modernidade nenhuma
arrasa com o círculo privado. Você tem a mania dos heróis, escorrega no asfalto quando vê
fotografias em branco e negro do tipo aquela de David Bowie a conversar atentamente com
Balthus, você inventa as tais palavras a partir de uma conversa dessas, você escuta os
estilhaços de um starman caindo sobre o seu telhado — e pintada no telhado estava a
imagem daquela menina de pernas abertas olhando um século de uma forma que parecia
indiferente mas não era. Você tem muita sorte. Você voltou ao trabalho e ao estudo das
coisas solitárias. Não temeu o desvio para os heróis porque sabe que isso só é possível
porque você tem bem presente a sua intimidade e o seu palácio amoroso. Você teve uma
sorte danada com a genética, e com genética queremos dizer as costas quentes, ardentes, do
amor. Você sabe os nomes de seus irmãos e eles sabem o seu, sabe apontar as suas paixões
terrenas e elas apontam para você, algumas até são o seu ponto de partida e de chegada, o
nome disso é amor. Você está a salvo. Você não tenha medo, o tempo vem e te atira para
cima as dioptrias, a mancha no pulmão, a verdade na canção de Joni Mitchell, a contratura
na omoplata, a multa na segurança social, o autocarro perdido mas outro tão bem apanhado,
a ternura súbita, a morte súbita, a vontade daquela pequena morte que é tão específica num
outro cor-po que não é o seu, mas quase. Tudo virá a tempo, tudo veio a tempo. Canada,
with your face sketched on it twice. And I’m still on my feet. De vez em quando você bebe
demais, você fuma demais, você toma por refúgio a árvore mais potente da cidade, escuta
uma pequena valsa vienesa e comove-se para além da conta, você sabe que não há conta
fechada, tudo muda o tempo todo e você também mas em certos pontos não. Você tem
muita sorte, às vezes você se vê inundado por tanto amor que parece mesmo que tudo
explodirá, você não tem como não acreditar num deus e não tem nenhuma vergonha disso,
não mais, agora você já não tem vergonha de nada e você assume tudo: a espada, a flor, a
lágrima, o rasgão, o tempo esparso e o regresso da aventura, o medo e a coragem, o amor.
Que toda a teoria se feche com a palavra amor. Meu, que o amor vença. Venceu.
HEUTE QUER DIZER HOJE
(Viena, Novembro de 2017)

Eu vi a cabeça de Samuel Beckett


Mas a cabeça dele não me viu a mim
Eu decifrei as palavras pela grafia
Mas a grafia não decifra jamais
minhas palavras ditas em surdina
Eu pensei que o Inverno nunca mais
viria até ao nosso território milenar
Mas o Inverno afinal estava como
sempre esteve mesmo à nossa porta
Aguardando lento como um leão
aguarda a entrada na savana final
Eu achei mesmo que desta vez
seria tudo muito muito diferente
Não mais nos achariam presos
numa sala iluminada de cinza
Dentro da qual a vida conta sempre
o tempo todo como um ato só
E onde as 4 personagens murmuram
The end is in the beginning and yet
you go on you go on you go on you
Eu vi a cabeça de Samuel e Sigmund
As duas batiam uma na outra como
as nossas cabeças batem nos muros
Fazia um frio tremendo no norte
Eu vi abertas as gargantas
de certos heróis ou personagens
E continentes inteiros as escutavam
Vi minha garganta aberta de verdade
Mas por causa do frio da distância
Por causa talvez da grafia estrangeira
Homem nenhum ouviu meu grito
de amor e dor e de uma certa confusão.
DIÁRIO DUPLO
Aprieto una piedra en la mano hasta convertirla en arena. Aprieto todavía más hasta
convertirla en nada. Escribo sin parar desde hace horas. El sudor cae sobre mi cuaderno.
(Excerto de Cuadernos de Africa, diário africano do pintor Miquel Barceló. Entrada arquivada na secção GAO, MAYO 1988)

Domingo. Julho quase no fim, lua sempre em crescente. At last. Já dava um certo cansaço
aquela escuridão noturna. Que bom que é acordar entre um sonho e outro para descobrir o
fiozinho da luz satélite derramando-se sobre alguns objetos muito mundanos que nos
ajudaram a suportar o dia. Objetos do tipo: água engarrafada, roupa enrugada, mesa de
cabeceira, a pedra que segurámos em vigília por mais de nove horas. Sobre as coisas e sobre
os corpos a luz quieta de uma lua que já vai a meio caminho. Tudo vai agora a meio
caminho, mesmo aquela frase que comecei a escrever há mais de vinte dias. Julho, quase
Agosto. O mês seguinte, se tudo correr como previsto, seguirá marcando pontos na tabela
do suor e do sol. Do sal também, está visto. Queridas imágenes del mundo, escreve o
Barceló um pouco mais à frente no cuaderno. Ou seria mais atrás? Que importa o tempo e
que importam as estações se o que nos compete afinal é empoleirarmo-nos naquele tal
fiozinho cósmico que certamente nos levará até casa. A casa, claro que é o cosmos, claro
que são as estrelas. Pequenos pontos de uma antiga luz que já cá estava antes de nós e à
qual pertencemos sempre. É domingo, o suor ainda cai sobre as páginas e sobre os pulsos,
mas sei que nalgum momento deitarei a cabeça no lençol branco e me renderei ao satélite.
Levo desta vez as instruções de Miquel, os gatafunhos africanos de Miquel. Por enquanto
seguro ainda a pedra, e recordo aquelas linhas: Queridas imágenes del mundo. Alejaos de
mí hasta convertirlos en pequeños puntos, granos que pueda dejar germinar bajo la lengua
y escupir al suelo. Domingo, quase segunda-feira, quase um século passado ou dois séculos
para a frente.

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