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Departamento de Filosofia
Vladimir Safatle
Reler Marx hoje
Aula 1
As ideias e a prática
1
“Die Philosophen haben die Welt nur verschinden interpretiert: es kömmt drauf an, sie zu verändern”
(MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; “Teses sobre Feuerbach”, In: A ideologia alemã, Civilização
Brasileira, p. 29.
próprio discurso de Marx. Afinal, que tipo de textos são estes que leremos durante um
semestre? O capital, O 18 do brumário de Luis Bonaparte ainda são textos de
filosofia ou são textos de um outro regime discursivo, mais próximo da intervenção
política e da análise econômica? Marcuse afirmava: “todos os conceitos filosóficos da
teoria marxista são categorias econômicas e sociais, enquanto que todas as categorias
econômicas e sociais de Hegel [a figura por excelência do discurso filosófico, ao
mesmo no contexto alemão do século XIX] são conceitos filosóficos. Mesmo os
primeiros trabalhos de Marx não são filosóficos. Eles expressam a negação da
filosofia, embora o façam em linguagem filosófica”2.
Mas estaria Marcuse totalmente certo? Expressar a negação da filosofia em
linguagem filosófica não seria ainda, de certa forma, fazer filosofia? E não
deveríamos dizer o mesmo desta operação peculiar que consiste em encontrar
expressão de problemas filosóficos em categorias econômicas e sociais? Ou seja, ao
ler Marx encontraremos textos de quem já teria deixado para trás a filosofia, de quem
sai a pregar o abandono da filosofia no interior de uma crítica geral da ideologia, ou
são eles uma certa forma de “realizar a filosofia”?
Partamos então de uma hipótese. Ela será testada no decorrer do curso, servirá
de guia para nossas leituras e aos poucos mostrará sua pertinência ou não. A hipótese
se enuncia da seguinte maneira: talvez, para ler Marx hoje, devamos compreender
como seus textos não representam exatamente um abandono, mas uma realização
insurrecional da filosofia. “Insurrecional” por ser uma forma de realização que obriga
a situação atual que configura o mundo presente a se transformar, a devir outro
(verändern) permitindo a realização de uma emancipação que, como espero mostrar
no interior deste curso, é muito mais complexa do que estamos normalmente
dispostos a aceitar. Pois tal emancipação é incompreensível sem o recurso a
considerações filosóficas sobre a “essência humana” que estarão claramente presentes
no jovem Marx e que, contrariamente ao que acreditam alguns, nunca serão
abandonadas.
Recordemos rapidamente o contexto intelectual no qual Marx se encontra ao
escrever suas Teses sobre Feuerbach. Estamos em 1845-46. Desde a morte de Hegel,
em 1831, o pensamento alemão se vê assombrado pelo tema do fim da filosofia, o que
neste contexto significa, de forma mais específica, assombrado pela necessidade de
sair das “abstrações” hegelianas e suas reconciliações pretensamente conservadoras
2
MARCUSE, Herbert; Razão e revolução, Paz e Terra, p. 239
por serem aparentemente formais. Pós-hegelianos como Kierkegaard, Feuerbach,
Stirner, Marx tem em comum ao menos a crença de que deveríamos abandonar o
discurso filosófico (representado aqui pelo sistema hegeliano) a fim de caminhar em
direção à compreensão concreta dos processos e indivíduos. Que tal caminho se dê
pela recuperação da religião revelada como modelo de libertação do indivíduo
(Kierkegaard3), pela afirmação do indivíduo como única existência real (Stirner) ou
pela denúncia da teologia ainda presente na filosofia a fim de reinstalar o pensamento
em um modelo peculiar de materialismo empirista (Feuerbach), o que temos é a
enunciação de uma tarefa, que Marx fará sua, de abandono ou realização da filosofia
através do retorno às condições concretas. É ela que lhe levará, por exemplo, a criticar
de forma acerba o espiritualismo do idealismo próprio a jovens hegelianos como
Edgar e Bruno Bauer, Carl Reinhardt, Franz Szeliga, entre outros.
Este campo do pós-hegelianismo é o campo de Marx. Ele se divide claramente
sobre o tema do caminho a seguir diante do reconhecimento hegeliano de que, nos
“tempos modernos”, o Espírito “perdeu” a imediatez de sua vida substancial, ou seja,
nada lhe aparece mais como substancialmente fundamentado em um poder, de
natureza religiosa, capaz de unificar as várias esferas sociais de valores 4. Divide-se
assim o campo dos pós-hegelianismo em dois (a direita e a esquerda) levando em
conta inicialmente o problema do destino da experiência religiosa e suas expectativas
de unificação e reconciliação: “Da religião cristã, a direita (Goeschel, Gabler, Bruno
Bauer) adota positivamente, de acordo com a distinção hegeliana entre o ‘conteúdo’ e
a ‘forma’, o conteúdo, enquanto que a esquerda submetia à sua crítica tanto a forma
da representação religiosa quanto seu conteúdo”5, de onde se segue a necessidade da
guinada materialista aberta por Feuerbach e seguida por Marx.
Neste contexto, Marx irá expor a singularidade de sua via ao escrever, em suas
Teses sobre Feuerbach que não se sai da filosofia através da recuperação de um
materialismo no qual a realidade é apreendida apenas sob a forma do objeto ou da
3
Lembremos de Marcuse falando sobre Kierkegaard: “A verdade se situa na ação, e só pode ser
experimentada através da ação. A existência do próprio indivíduo é a única realidade que pode ser
efetivamente compreendida e o indivíduo existente, ele mesmo, é o único sujeito executor desta
compreensão” (MARCUSE, Razão e revolução, Paz e Terra, p. 244)
4
Daí uma afirmação como: “[Nos tempos modernos] Não somente está perdida para ele [o Espírito]
sua vida essencial, está também consciente desta perda e da finitude que é seu conteúdo. [Como o filho
pródigo], rejeitando os restos da comida, confessando sua abjeção e maldizendo-a, o espírito agora
exige da filosofia não tantoo saber do que ele é, quanto resgatar por meio dela aquela densidade e
substancialidade do ser ” (HEGEL, GWF; Fenomenologia do Espírito, Petróplis, p. 24
5
LÖWITH, Karl; De Hegel à Nietzsche, Gallimard, p. 73
intuição (Anschauung), como quer Feuerbach, nem (e este será um tema maior de A
ideologia alemã) através da elevação do indivíduo à condição de perspectiva concreta
insuperável, como quer Stirner. O materialismo é a via de afastamento da filosofia,
mas trata-se de qualificá-lo melhor, de defini-lo como perspectiva que nos permite
apreender a realidade como “atividade humana sensível” (sinnlich menschlische
Tätigkeit)6. Um peculiar “materialismo sem matéria”, para falar com Balibar, pois um
materialismo da atividade. É este conceito-chave de “atividade” que permitirá a Marx
afirmar:
6
O que não deixa de ressoar Kant lembrando que as determinações particulares da sensibilidade só
podem aceder à condição de objeto através da aplicação do esquema transcendental da imaginação
como “conceito sensível de um objeto” (sinnliche Begriff eines Gegenstandes) (KANT, Immanuel,
Crítica da razão pura, Calouste Gulbenkian, A146/ B186)
7
MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 27
respeito de suas análises sobre os desdobramentos da revoltas de junho de 1848 com
suas “paródias” de transformações. Isto nos coloca uma questão maior: haveria então
uma definição diferencial do movimento propriamente revolucionário? A posteridade
de Marx mostrará como esta questão era, de fato, muito mais complicada do que
poderia parecer.
Neste contexto, vale a pena indicar inicialmente um caminho provisório
operando um certo salto de algumas décadas a fim de lembrar de uma conhecida
passagem do posfácio da segunda edição de O Capital. Tentemos lê-la tendo nossa
última tese sobre Feuerbach ressoando ao fundo:
9
O que Balibar compreendeu bem ao afirmar: “A prática revolucionária da qual nos fala as “Teses”
não deve realizar um programa, um plano de reorganização da sociedade, ele deve ainda menos
depender de uma visão de futuro proposta pelas teorias filosóficas e sociológicas (como estas dos
filantropos do século XVIII e do início do XIX). Ela deve coincidir com ‘o movimento real que
aniquila o estado de coisas existente’, como Marx não tardará a escrever na Ideologia alemã ao
explicar que se trata da única definição materialista do comunismo” (BALIBAR, Etienne; La
philosophie de Marx, La découverte, 2014, p. 59).
10
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 59
Por isto, há algo aqui que não deve desaparecer de vista. Pois é evidente como,
neste momento decisivo, Marx se vê obrigado a reconhecer uma relação profunda de
filiação e transmissão. Ele dirá: devemos virar a dialética hegeliana de cabeça para
baixo, mas há de se reconhecer que as formas gerais do movimento responsáveis pela
compreensão correta da processualidade do existente já estão todas configuradas na
filosofia de Hegel. Mais, ainda. Marx assume que tais formas estarão presentes em
seu próprio texto. Proposição aparentemente surpreendente pois como é possível
separar a estrutura lógica de um pensamento que pensa o movimento e a
transformação, como separar sua maneira de apreender a gênese processual das
formas e das normatividades que se querem ontologicamente asseguradas, e sua
impotência em funcionar de forma “crítica e revolucionária”? Como retirar o cerne
racional de seu invólucro místico, ou seja, liberar a dialética da natureza apressada de
suas sínteses, como se tal pressa não estivesse, de certa forma, inscrita no interior da
estrutura lógico-formal da dialética? Pois, se não se trata de criticá-la no plano lógico,
nem, por consequência, de criticá-la no plano ontológico, então como seria possível
organizar uma auto-crítica da dialética que, de forma paradoxal, é a própria realização
insurrecional da dialética?
Mesmo que tais questões sejam difíceis de responder, não só para Marx como
para sua posteridade, elas mostram algo de decisivo na relação entre teoria e praxis
dentro da experiência intelectual inaugurada por Marx, a saber, a praxis é uma
realização insurrecional da teoria, de uma certa teoria que se realiza ao ser virada de
cabeça para baixo. Podemos mesmo dizer que a praxis é a dialética em seu ponto
insurrecional, o que nos deixa com uma questão maior, a saber, o que devemos
entender por “dialética” neste contexto. Dialética é o mesmo movimento que
encontramos em Hegel, que encontraremos em Adorno, em Lukàcs, que será criticado
por Althusser, desprezado por filósofos tão diferentes entre si quanto Bertrand Russell
e Gilles Deleuze, entre tantos outros? Responder esta pergunta será um dos objetivos
centrais deste curso e o eixo que nos guiará no primeiro módulo de nosso curso.
Nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que se submeter. A religião,
pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente
subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não
podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode
sustentar o seu livre e público exame11.
Esta época que questiona tudo que procura validade para além do tribunal do exame
público (öffentliche Prüfung) da razão, da capacidade de dar e oferecer razões tendo
em vista a identificação do melhor argumento, é a época da crítica, que destrona a
era da metafísica. Esta crítica tem duas características fundamentais: a) ela
esclarece os conhecimentos que podem alcançar validade independentemente de
toda experiência, ou seja, ela afirma-se através de uma estratégia transcendental
na busca do que pode ser absolutamente necessário; b) ela é definição dos limites
que estruturam o campo dos usos legítimos de cada faculdade do conhecimento.
Daí sua definição do problema da crítica como: “o que podem e até onde podem
o entendimento e a razão conhecer, independentemente da experiência” 12. Ou
seja, há em Kant uma reflexão sobre os limites do conhecer como exigência a priori
para o esclarecimento das condições de possibilidade de toda experiência racional, ou
seja, de toda experiência pensada como constituição de representações de objetos.
Desta forma, Kant pode substituir o conceito tradicional de erro (o erro como
11
KANT, Immanuel; Crítica da razão pura, Calouste Gulbenkian, A XII
12
Idem, A XVII
resultado de equivoco provocado por um determinismo externo) pelo conceito de
ilusão produzida pelo uso ilegítimo das faculdades.
A segunda versão encontramos em Hegel e consiste em definir a crítica como
exposição do sistema de erros da consciência. Hegel chega a dar um nome próprio à
tal exposição do sistema de erros da consciência em sua experiência do mundo, a
saber, fenomenologia. Aceitar o primado de tal perspectiva fenomenológica implica,
ao menos para Hegel, abandonar a estratégia transcendental, própria a Kant, de
definição das condições a priori de possibilidade da experiência. Em seu lugar, entra
em cena uma reflexão sobre a gênese histórica daquilo que aparece à consciência
como limite de toda experiência possível. Descrição da gênese que é, ao mesmo
tempo, crítica de suas expectativas de validade universal. Se Hegel jogava tanto com
o trocadilho alemão entre ir ao fundamento (zu Grund gehen) e perecer (zugrunde
gehen) é porque se tratava de deixar evidente como a crítica mostra que o verdadeiro
esclarecimento do fundamento equivale à dissolução do fundado. Neste sentido, a
crítica se transforma em uma crítica imanente na qual é questão de descrever a
maneira com que a consciência é ultrapassada pela experiência ao tentar ir em
direção ao fundamento de seu próprio saber, tendo assim, de fato, a experiência
das limitações de suas próprias representações. Neste sentido, a crítica não é
apenas esclarecimento dos limites, mas ultrapassagem dos mesmos.
A terceira versão encontramos em Marx e consiste em uma radicalização
materialista dessa compreensão da crítica como exposição da gênese histórica do que
aparece à consciência como limite de toda experiência possível, exposição da gênese
que visa demonstrar a precariedade das expectativas de validade da situação atual.
Marx compreende que a ultrapassagem produzida pela crítica hegeliana ainda
peca por ser formal, ou seja, por não se realizar em uma transformação material
do mundo, mas em uma mudança de perspectiva do pensamento que ocorre na
abstração da consciência-de-si.
Colabora para esta leitura de Marx um diagnóstico de época a respeito do
atraso da situação alemã e sua dificuldade de transformação social. O jovem Marx
insistia como depois da crítica iluminista à religião, cabia à filosofia desmascarar a
auto-alienação humana em suas formas não-sagradas. Como ele dirá, “a crítica do céu
se converte na crítica da terra, a crítica da religião na crítica do direito, a crítica da
teologia na crítica da política”13. Forma de radicalizar a proposição kantiana a respeito
da época moderna como a época da crítica.
No entanto, na Alemanha retardatária em relação aos processos de inserção
nas dinâmicas do liberalismo econômico e da sociedade burguesa, assombrada pelo
descompasso entre efetividade nacional e ideia em compasso de igualdade com outras
nações centrais, isto não poderia ocorrer. No caso alemão, a filosofia não teria
passado à crítica da terra, ela não teria gerado uma revolução como no caso francês no
qual a filosofia iluminista será uma das bases do processo revolucionário, mas servido
à construção de uma mitologia que servia apenas para justificar intelectualmente a
natureza do atraso social14. Ou seja, teríamos um caso exemplar do que, entre nós,
chamaríamos de “ideias fora de lugar”. Os alemães seriam contemporâneos filosóficos
do presente sem serem contemporâneos históricos da realidade atual. Daí porque
Marx dirá que, enquanto as outras nações do mundo viveram sua pré-história na
mitologia, a Alemanha teria vivido sua pré-história exatamente na filosofia, que seria
o verdadeiro nome da mitologia alemã. Assim, por exemplo, através da filosofia
alemã do direito e do Estado, a Alemanha procurou ligar sua história onírica às
condições presentes. Pois os alemães teriam simplesmente pensado o que os outros
fizeram, sendo por isto obrigados a acertar o descompasso entre ideia e efetividade a
partir de conciliações meramente formais, participando, por exemplo, de todas as
ilusões do regime constitucional sem compartilhar suas realidades. Por isto, Marx tem
de insistir que: “todas as formas e todos os produtos da consciência não serão
destruídos por obra da crítica espiritual (...) mas tão somente podem ser dissolvidas
com a derrocada prática das relações sociais reais, das quais emanam essas quimeras
idealistas”15.
Tal diagnóstico de época é um dos elementos que levará Marx a propor uma
guinada materialista na perspectiva hegeliana, compreendendo a estratégia de
reconstrução da gênese histórica do processo de formação da consciência
preferencialmente a partir da gênese dos processos de reprodução material da vida que
13
MARX, Karl; Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel
14
Lembremos, por exemplo, de uma afirmação como: “A situação da Alemanha no final do século
passado espelha-se completamente na Crítica da razão prática de Kant. Enquanto a burguesia francesa
se impulsionou, através da mais colossal das revoluções que a história jamais conheceu, ao poder, e
conquistou o continente europeu, enquanto a burguesia inglesa revolucionou a indústria e submeteu
comercialmente a India e todo o resto do mundo, os impotentes burgueses alemães alcançaram apenas
chegar à ‘boa vontade’” (MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 219)
15
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 62
encontram sua melhor descrição naquilo que o século XIX entendia por “economia
política”, ou seja, o estudo do que os estados-nação não podem negligenciar a fim de
produzir a riqueza comum no interior da lógica do sistema capitalista.
Marx vê como profundamente sintomático o fato da economia política ser, na
Alemanha, uma “ciência estrangeira”, já que lhe faltava o “terreno vivo” 16 das
relações capitalistas de produção. Esta ausência da economia política aparecia para
Marx como expressão da incapacidade alemã em tematizar como os processos de
racionalização social e o estabelecimento de formas de vida eram indissociáveis da
racionalidade interna às exigências de reconstrução da vida social, de modificação do
espaço, do tempo, do trabalho, da relação à si, à família, ao Estado, à sociedade civil
produzidas pelo advento do capitalismo como modo de produção. Não escapa a
Marx o fato da racionalização da sociedade a partir dos princípios da economia
política ser, ao mesmo tempo, uma conformação do mundo e uma transformação
dos sujeitos (o que Foucault entendeu claramente mais de um século depois com
seu curso O nascimento da biopolítica).
Neste sentido, lembremos como o termo “economia política”, criado para
inverter a crença aristotélica do primado da vida política sobre a oiko nomos, sobre as
leis da produção que rege a esfera familiar, não será apenas uma análise das riquezas,
mas a descrição da racionalidade dos processos sociais de produção que não podem
mais ser compreendidos sem fazer apelo a uma organização capaz de produzir
processos que, mesmo sendo feito pelas mãos dos homens, aparecem como pairando
por sobre a cabeça dos homens17. Como se estivéssemos diante de: “uma certa força
que regula a humanidade para além de sua intencionalidade, uma força que divide e
reconfigura seres humanos; uma entidade genérico-religiosa”18.
No entanto, Marx não está interessado em simplesmente abandonar a filosofia
para passar à exposição da natureza “transcendental” dos conceitos centrais da
economia política. Trata-se de produzir uma crítica da economia política no sentido
hegeliano do termo, ou seja, não apenas denunciando sua historicidade, mas
16
MARX, Karl; O Capital – volume I, op. cit., p. 84
17
Como nos lembrará Foucault: “A partir de Adam Smith, o tempo da economia não será mais este,
cíclico, dos empobrecimentos e enriquecimentos, não será também o tempo do crescimento linear de
políticas hábeis que, ao aumentar levemente sempre as espécies de circulação aceleram a produção
mais rápido que a elevação de preços; ele será o tempo interior de uma organização que cresce segundo
sua própria necessidade e se desenvolve segundo leis autóctones – o tempo do capital e do regime de
produção” (FOUCAULT, Michel; Les mots et les choses, Gallimard, p. 238)
18
KARATANI, Kojin; Transcritique: on Kant and Marx, MIT Press, p. 5
principalmente mostrando como a efetivação da racionalidade de seus conceitos
produz necessariamente a ultrapassagem de seus próprios limites, fazendo com que a
força normativa de seus próprios conceitos entrem necessariamente em crise, ou seja,
expondo movimentos que só podem produzir um processo profundamente
contraditório que implicará na dissolução das próprias regras e conceitos da economia
política. Mais uma vez, o esclarecimento do fundamento equivale à dissolução do
fundado.
Se Marx parasse por aqui teríamos, basicamente, uma guinada materialista da
perspectiva crítica que se desenvolveu no interior do chamado “idealismo alemão”.
Guinada que terminaria necessariamente em uma “teoria das crises” da racionalidade
econômica. Mas Marx, como vimos, não se contenta em ser o expositor de uma
teoria da necessidade das crises no interior das sociedades capitalistas. Ele quer,
principalmente, pensar o ponto no qual a perspectiva crítica se transforma em
ação revolucionária. Esta é a maior de suas realizações. Ela se concretiza a partir
do momento que Marx nomear esse processo que indica uma contradição real no
interior da racionalidade da economia política e que impulsiona a sociedade a
uma transformação capaz de deixar para trás o mundo descrito pela economia
política. Um nome que todos nós conhecemos, a saber, “proletariado”, uma
classe produzida pela conjunção entre universalização do sistema capitalista de
trocas e despossessão generalizada, completa alienação cada vez mais universal.
A crítica da economia política é, em Marx, a reflexão sobre o processo de
constituição do proletariado como ponto de contradição real da racionalidade
econômica própria ao capitalismo.
Mas notemos com mais vagar o que Marx realmente tem em mente ao nomear
esse processo que indica uma contradição real no interior da racionalidade da
economia política. Marx não é responsável pela criação do termo “proletário”. Na
verdade, nós o encontramos naem Roma antiga. Segundo a Constituição Romana,
proletário é a última das seis classes censitárias, classe composta por aqueles
caracterizados por, embora sendo livres, não terem propriedade alguma ou por
não terem propriedades suficientes para serem contados como cidadãos com
direito a voto e obrigações militares. Sua única possessão é a capacidade de
procriar e ter filhos. Reduzidos assim à condição biopolítica a mais elementar, à
condição de reprodutor da população, os proletários representam o que não se
conta. Daí uma colocação importante de Jacques Rancière: “Em latim, proletarii
significa “pessoa prolífica” – pessoa que faz crianças, que meramente vive e
reproduz sem nome, sem ser contada como fazendo parte da ordem simbólica da
cidade” 19.
É no bojo da Revolução Francesa, e principalmente depois da Revolução de
1830, que o termo será paulatinamente acrescido de conotação política, agora para
descrever os que só possuem seu salário diário pago de acordo com a necessidade
básica de auto-conservação, sejam camponeses ou operários, e que devem ser objetos
de ações políticas feitas em nome da justiça social. Neste sentido, os proletários são
apenas o nome de um ponto de sofrimento social intolerável, um “significante central
do espetáculo passivo da pobreza”20. Assim, mais do que cunhar o uso social do
termo, o feito de Marx encontra-se em vincular o conceito de proletariado a uma
teoria da revolução ou, antes, a uma teoria das lutas de classe que é a expressão da
“história da guerra civil mais ou menos oculta na sociedade existente” 21. Daí porque
Marx falará, a respeito dos saint-simonistas e de outros socialistas “crítico-utópicos”:
“Os fundadores desses sistemas compreendem bem o antagonismo de classes, assim
como a ação dos elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não
percebem no proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político
que lhes seja peculiar”22.
A operação de Marx consistiu em colocar-se à escuta dos movimentos
concretos de seu tempo, das explosões sociais que paralisavam as fábricas e a
produção, isto a fim de ver em tais explosões a expressão imediata de um mesmo
movimento de constituição de sujeitos políticos emergentes capazes de colocar em
marcha uma negatividade dialética que tem a força de desabar mundos. Marx será o
primeiro a perceber que “proletário” não nomeia apenas o ponto máximo de
despossessão econômica daqueles que não tem mais nada a não ser sua força de
trabalho. O termo não é apenas a descrição sociológica de uma classe de
trabalhadores. Ele é a condição ontológica (como veremos, o termo não está aqui
por acaso) de toda ação revolucionária possível. Muitas vezes, nomear não é
descrever, mas é produzir uma realidade outra. Ao nomear alguém, posso levar
19
RANCIÈRE, Jacques; “Politics, identification and subjectivation” in: RAJCHMAN, John; The
identity in question, Nova York: Routledge, 1995, p. 67
20
STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the lumpemproletariat” In:
Representations, vol 0, n. 31, p. 84
21
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Manifesto Comunista, São Paulo: Boitempo, p. 50
22
Idem, p. 66
aquele que nomeio a se ver, a partir de agora, a partir do nome, mudando sua
consciência a respeito de quem ele é e do que ele é capaz de fazer. Chamamos tais
processos de nomeação transformadora de “atos de fala perlocucionários”. Algo
disto estava em operação em Marx, seu uso do termo “proletariado” é um uso
perlocucionário. Daí sua forma de atuação, na qual a escrita analítica se mistura ao
esforço sobrehumano de acompanhar os fatos do mundo, de escrever como um
jornalista, de estar envolvido na organização prática dos trabalhadores em
associações, partidos e Internacionais, de conclamar através de manifestos. Como se a
realização insurrecional da filosofia terminasse necessariamente por uma mudança
daqueles a quem ela se endereça, até porque, a filosofia dos jovens hegelianos foi
expulsa da universidade alemã23. Ela se endereçará agora a todos os que se
reconhecem como ontologicamente despossuídos24.
Estrutura do curso
23
Lembremos que Feuerbach teve que renunciar a seu posto na Universidade de Erlangen, devido a
seus escritos. Ruge perdeu sua cadeira na universidade de Halle. Bruno Bauer também foi destituído de
sua cadeira. Marx fracassa em seu projeto de conseguir uma cátedra na Universidade de Bonn e ganha
sua vida como jornalista e como amigo de Engels. Schopenhauer se retira à vida privada, da mesma
forma de Nietzsche, ao se afastar da universidade de Bâle. Kierkegaard era rentista.
24
Pois há de se lembrar que: “assim como a massa proletária é fundamentalmente ‘despossuida’
(eigentumlos), ela é fundamentalmente ‘desprovida de ilusões’ a respeito da realidade (illusionslos),
fundamentalmente exterior ao mundo da ideologia cujas abstrações e representações ideais da relação
social não existem para ela” (BALIBAR, Etienne; La philosophie de Marx, op. cit., p. 101)
1871, com a Comuna de Paris. Estas duas datas irão influenciar de forma decisiva
tanto a produção teórica quanto as tarefas intelectuais de Marx. Até 1848, Marx vê a
revolução como uma iminência inescapável, como um fantasma que assombra a
Europa e que está prestes à se incorporar em um corpo político renovado. O tom
anunciador do Manifesto Comunista, de 1847, é claro neste sentido e conhecido de
todos.
Ao mesmo tempo, o trabalho teórico de Marx tem como eixo principal o
debate (especialmente com Feuerbach, Hegel, os jovens hegelianos e Proudhon) a
respeito da necessidade de uma guinada materialista da dialética. A importância da
economia política já se coloca de forma clara desde o encontro entre Marx e Engels
em 1843. No entanto, seus trabalhos são, basicamente, polêmicas que visam
apresentar sua maneira original de unificar materialismo e dialética ao inscrever
o movimento próprio à negatividade dialética em toda forma de produção
histórica. Ou seja, definindo as condições de um “materialismo sem matéria” ou,
se quisermos, de um “materialismo do movimento”. Ao mesmo tempo, Marx
constitui, principalmente a partir de A ideologia alemã, uma filosofia da história que
lhe servirá de base tanto para as figuras das passagens dos modos de produção quanto
para a defesa de que as contradições do modo de produção capitalista produzem uma
passagem iminente ao comunismo a partir do momento que tais contradições estão
completamente desenvolvidas.
Gostaria de discutir este primeiro momento do pensamento de Marx a partir da
leitura de dois textos fundamentais, a saber, os Manuscritos econômico-filosóficos e A
ideologia alemã, em especial sua primeira parte dedicada à Feuerbach. Ao final desta
apresentação, espero poder realizar os seguintes objetivos:
25
MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 32
Como dissera na primeira aula, era comum uma certa direção que via no
retorno à existência uma tarefa maior da filosofia pós-hegeliana. Admitia-se que: “a
ontologia de Hegel desconhecia relações diretas à existência e à observação reais” 26.
No entanto, que esta desqualificação da existência seja uma consequência necessária
da filosofia hegeliana, eis algo que talvez não seja de todo seguro. Mas no nosso
contexto, isto é secundário. Importante é lembrar como a via marxista para a
recuperação do primado da existência passa pela releitura do materialismo e pela
aceitação de tal diagnóstico ligado à necessidade de um retorno às condições de
existência real.
De fato, Marx compreende o materialismo e seu desencantamento em relação
à metafísica e à religião como o grande saldo do iluminismo. Como ele dirá, em A
sagrada família:
Não é preciso ter grande perspicácia para dar-se conta do nexo necessário que
as doutrinas materialistas sobre a bondade originária e a capacidade intelectiva
igual dos homens, sobre a força onipotente da experiência, do hábito, da
26
LÖWITH, Karl; De Hegel à Nietzsche, Paris: Gallimard, p. 152
27
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A sagrada família, p. 144
educação, da influência das circunstâncias sobre os homens, do alto
significado da indústria, do direito ao gozo etc. guardam com o socialismo e o
comunismo. Se o homem forma todos seus conhecimentos, suas sensações etc.
do mundo sensível e da experiência dentro deste mundo, o que importa,
portanto, é organizar o mundo do espírito de tal modo que o homem faça aí a
experiência, e assimile aí o hábito daquilo que é humano de verdade, que se
experimente a si mesmo enquanto homem28.
Se o homem forma seus conhecimentos e seu ser no mundo sensível, como quer o
materialismo, então o que importa é modificar o mundo sensível para que o
homem possa sair de sua condição de alienação, impedir que o mundo sensível se
cristalize em uma situação meta-estável. No que o recurso à atividade de
transformação social pregada pelo socialismo e pelo comunismo advém
consequência necessária. Mas aqui fica uma questão, a saber, de qual
materialismo estamos falando? O que Marx entende exatamente por
materialismo? Estas perguntas que nos remetem, necessariamente, à seus primeiros
escritos filosóficos, em especial sua tese de doutorado sobre Demócrito e Epicuro.
Gostaria de defender com vocês a hipótese de que sua tese de doutorado revela-se um
texto importante na medida em que ele adianta certas características do materialismo
marxista em sua maturidade.
Marx e Epicuro
Das várias questões apresentadas pela tese, e pela defesa feita por Marx
de Epicuro e de suas críticas a Demócrito, gostaria de chamar a atenção para um
ponto fundamental por nos explicitar o que Marx entende exatamente por
“materialismo”. Há dois aspectos interconectados que chamam a atenção de
Marx na filosofia de Epicuro, a quem ele louva como sendo o maior
representante do “iluminismo grego”. São eles, o seu reconhecimento do acaso e
a importância dada à experiência do tempo.
Durante toda a tese, Marx insiste que Demócrito estaria no fundamento de
uma longa tradição para a qual o acaso é apenas resultado de um conhecimento
imperfeito das causas. Da mesma forma, o tempo não teria nem importância nem seria
28
Idem, p. 149
necessário a seu sistema. Excluído do mundo das essências e da eternidade dos
átomos, o tempo em Demócrito seria transferido à consciência do sujeito que filosofa,
sem referir-se ao mundo em si. Assim, Demócrito fala de automaton para descrever o
determinismo da regularidade cósmica de todo ser e de todo devir. Sua afirmação da
realidade do átomo e do vazio fornece um eixo para o distanciamento do mundo
sensível. Em Demócrito, ao menos segundo Marx, o atomismo é a expressão objetiva
da investigação empírica da natureza como um todo. Por isto, seus conceitos devem
permanecer categorias abstratas, e não um princípio ativo. Certamente não é este
materialismo proto-mecanicista que interessa a Marx.
Já em Epicuro, encontramos a afirmação da irredutibilidade da perspectiva do
mundo sensível no interior do conhecimento: “Se recusas todas as sensações, não
terás mais possibilidade de recorrer a nenhum critério para julgar as que, entre elas,
consideras falsas”29. Os objetos produzem continuamente eflúvios (eidema) que
atingem a sensibilidade de forma mais forte ou mais fraca. Ou seja, a sensações não
são desqualificadas em totalidade como conhecimento imperfeito: “cingindo-se bem
aos fenômenos, podem fazer-se induções a respeito do que nos é invisível” 30. Marx vê
neste materialismo que reconhece na dinâmica própria aos fenômenos a possibilidade
de orientar-se em direção à verdade, uma maneira de admitir as noções de acaso e
temporalidade. De fato, este materialismo que admite a irredutibilidade das noções de
acaso e temporalidade será o primeiro passo para o desenvolvimento de uma
concepção dialética de materialismo que encontrará sua melhor formulação cinco
anos depois, com A ideologia alemã31.
O atomismo de Epicuro admite que o movimento dos átomos obedece a
regularidades derivadas de seu peso e trajetória de queda no vazio. No entanto, tais
movimentos ainda obedecem a um desvio, a uma declinação (clinâmen), ou seja,
uma espécie de movimento lateral aleatório. Lucrécio, discípulo de Epicuro, fala de
átomos que: “se desviam um pouco do seu trajeto, num momento não determinado e
29
EPICURO; “Antologia de textos”, In: Os Pensadores vol. V, Abril Cultural: São Paulo, 1973, p. 22
30
Idem,
31
“Marx mostra que Demócrito conhecia somente uma necessidade estritamente mecânica e, portanto,
negava o acaso, ao passo que a filosofia epicuriana continha os elementos iniciais de uma concepção
dialética do acaso, que abria ao homem o caminho para a liberdade. Igualmente nítida era a
contraposição na questão do tempo. Na filosofia natural de Demócrito, o tempo não tinha nenhuma
significação; para Epicuro, ao contrário, o tempo era ‘a mudança do finito na medida em que é posto
como alteração’; era ‘tanto a forma real, que separa o fenômeno da essência e põe o fenômeno como
fenômeno, quanto o que reconduz o fenômeno à essência’ (Diferença, p. 42)” (LUKACS, Gyorg; O
jovem Marx e outros escritos de filosofia, Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 2009, p. 129)
num lugar incerto” (incerto tempore ferme incertisque locis spatio)32. Esta declinação
sem tempo nem lugar fixos permite explicar como a criação se dá através do choque
de átomos, incorporando para isto o acaso no interior da determinação do
processo de criação das formas do mundo 33. Marx chegará a definir a declinação
como “a negação imediata” de um movimento próprio à linha reta que
apareceria como “a cadeia do destino”, o que dá ao átomo a condição de matéria
sob a forma da autonomia e da singularidade.
Esta negação imediata, compreendida como uma contradição entre
necessidade e contingência inscrita no próprio conceito de átomo, abre espaço
àquilo que neste momento Marx chama de “singularidade abstrata” cuja
afirmação se dá através do afastamento de toda realidade limitadora. Uma
negação que Marx não teme em transpor para o próprio comportamento
humano, já que física e moral na filosofia epicurista seguem os mesmos
princípios. Esta negação que encontra sua primeira expressão no movimento dos
átomos aparece como assunção do homem para si mesmo, enquanto seu único
objeto real, o que exige quebrar no homem: “toda existência relativa” através da
repulsão.
Marx encontra na teoria epicuriana dos meteoros a expressão mais bem
acabada desta autonomia. Contrariamente aos átomos, os meteoros não estariam
submetidos à gravidade, pois teriam o centro de gravidade em si mesmos. Por
isto, seus movimentos não podem mais ser descritos a partir de uma causa única,
mas por causas múltiplas em número indeterminado. Ao olhar para os céus, o
homem não encontra mais a necessidade absoluta dos corpos celestes. Ele
encontra a singularidade concreta de uma declinação contínua.
Neste sentido, Marx está de acordo com Lucrécio, que utiliza a noção de
declinação para introduzir também a liberdade, já que é através da
aleatoriedade de um movimento sem causa determinada que teríamos a
expressão da vontade. Daí porque ele se pergunta, se todo o movimento se ligasse a
um anterior e dele nascesse:
32
LUCRECIO; Da natureza, II, 294
33
“Quando os corpos se deslocam verticalmente para baixo através do vazio, devido ao seu próprio
peso, se desviam um pouco do seu trajecto, num momento não determinado e num lugar incerto,
apenas o suficiente para se dizer que houve uma oscilação no seu percurso. Porque se não se
desviassem, tudo cairia para baixo como as gotas de chuva, através do vazio profundo, e não se
produziriam entre eles nem choques nem golpes, e assim a natureza nunca teria criado coisa alguma”
(LUCRECIO, idem, II, 216-224)
donde viria esta livre vontade nos seres vivos pelas terras, pela qual
avançamos para onde o prazer conduz cada um, variando também os
movimentos, não num tempo determinado, nem num lugar determinado, mas
onde a nossa própria mente determina?34.
Em um atomismo estrito, a causa das ações não difere das causas do mundo físico.
Mas como não se trata de eliminar a indeterminação própria à liberdade, faz-se
necessário que haja uma outra causa do movimento, para além dos choques e da
gravidade. Desta forma, Marx pode afirmar que o princípio da filosofia de
Epicuro é a liberdade da consciência de si, mesmo que esta só seja concebida
ainda sob a forma da singularidade.
Tais colocações são importantes para Marx encontrar um materialismo livre
das perspectivas próprias a um determinismo estrito, que só seria capaz de descrever
processos mecânicos. Ele procura, ao contrário, um materialismo capaz de dar espaço
à liberdade e à indeterminação, tanto no mundo físico quanto no mundo dos homens.
Pois o materialismo de Epicuro, por não eliminar o acaso, é abertura a um mundo no
qual o oposto do que é possível também é possível.
Por outro lado, Epicuro insiste como o tempo é um certo acidente ligado ao
movimento e ao repouso, à afecção e à não afecção. “Na verdade, ninguém tem a
ideia do tempo em si próprio, separado do movimento das coisas e do seu plácido
repouso”, dirá Lucrécio35. Se não há uma substancialidade do tempo para além do
movimento das coisas, se não há uma forma pura do tempo, então a experiência do
tempo é inseparável do próprio movimento das coisas. A forma do tempo muda a
partir das múltiplas formas de movimento das coisas. As coisas impõe ao tempo
mudanças em sua forma, implicando assim uma modificação nas condições de
experiência até então vigentes.
Lembremos como Epicuro define o tempo, segundo Marx, como “a forma
absoluta dos fenômenos”. Sua definição determina o tempo como “o acidente dos
acidentes”. Sendo o acidente a modificação da substância, o tempo só poderia ser
a modificação refletindo-se a si mesma, a mudança como mudança fornecida à
percepção sensível. Desta forma: “a sensibilidade humana é o tempo
34
Idem, II, 255-260
35
Idem, I, 464
corporificado (verkörperte Zeit) , a reflexão existente do mundo sensível em si
mesmo”36. Ela é o meio no qual as operações da natureza vem a se refletir. De
onde se segue que o tempo não é uma condição subjetiva da experiência, mas um
meio através do qual o mundo se reflete na sensibilidade humana. A
temporalidade das coisas e sua manifestação nos sentidos é uma e mesma coisa.
Desta forma, vemos como o recurso de Marx ao materialismo antigo visa
encontrar, em Epicuro, “uma ciência natural da consciência de si” 37 diferente do
simples estudo empírico da natureza. Falta ainda, no entanto mostrar como tal
materialismo é animado por uma modalidade de movimento que prefigura a reflexão
dialética, ou seja, mostrar como estamos diante do primeiro passo para uma guinada
materialista da dialética. Isto só será possível através de duas estratégias. O
primeiro consiste em criticar a pretensa incapacidade hegeliana a sair do
horizonte do movimento do conceito e de sua auto-identidade. Ou seja, trata-se
de indicar o que poderíamos chamar de “déficit materialista” de Hegel através da
crítica a seus modelos de síntese.
Segundo, trata-se de se apoiar, provisoriamente, na crítica materialista
feita por Feuerbach a fim de, em um segundo momento, criticar também o
materialismo de Feuerbach por não ser capaz de dar conta da experiência
material do movimento já presente no horizonte das preocupações de Marx
desde sua teses de doutorado. Veremos o primeiro ponto nesta aula e o segundo na
aula que vem.
A crítica ao déficit materialista de Hegel será uma das tarefas filosóficas mais
importantes do jovem Marx. Como vimos na aula passada, tal tarefa é animada
inicialmente por um diagnóstico de época vinculado à consciência do atraso social da
Alemanha. Retomemos este ponto.
Vimos na aula passada quecomo o jovem Marx insistia como depois da crítica
iluminista à religião, cabia à filosofia desmascarar a auto-alienação humana em suas
formas não-sagradas. Como ele dirá, “a crítica do céu se converte na crítica da terra, a
36
MARX, Karl; Differenz der democritischen und epikureischen Naturphilosophie, p. 296
37
Idem, p. 308
crítica da religião na crítica do direito, a crítica da teologia na crítica da política” 38. No
entanto, na Alemanha retardatária em relação aos processos de inserção nas dinâmicas
do liberalismo econômico e da sociedade burguesa, assombrada pelo descompasso
entre efetividade nacional e ideia em compasso de igualdade com outras nações
centrais, isto não poderia ocorrer. No caso alemão, a filosofia não teria passado à
crítica da terra, ela não teria gerado uma revolução como no caso francês no qual a
filosofia iluminista será uma das bases do processo revolucionário, mas servido à
construção de uma mitologia que servia apenas para justificar intelectualmente a
natureza do atraso social39. Ou seja, teríamos um caso exemplar do que, entre nós,
chamaríamos de “ideias fora de lugar”. Os alemães seriam contemporâneos filosóficos
do presente sem serem contemporâneos históricos da realidade atual. Daí porque
Marx dirá que, enquanto as outras nações do mundo viveram sua pré-história na
mitologia, a Alemanha teria vivido sua pré-história exatamente na filosofia, que seria
o verdadeiro nome da mitologia alemã. Assim, por exemplo, através da filosofia
alemã do direito e do Estado, a Alemanha procurou ligar sua história onírica às
condições presentes. Pois os alemães teriam simplesmente pensado o que os outros
fizeram, sendo por isto obrigados a acertar o descompasso entre ideia e efetividade a
partir de conciliações meramente formais, participando, por exemplo, de todas as
ilusões do regime constitucional sem compartilhar suas realidades.
É tendo este contexto histórico em mente que Marx aborda a dialética
hegeliana. Neste sentido, não é por acaso que o eixo privilegiado de abordagem do
jovem Marx seja a filosofia do direito de Hegel, em especial a seção dedicada ao
Estado (entre os parágrafos 261 e 313). Fazia parte de uma interpretação corrente à
época a noção de que a publicação dos Princípios da Filosofia do Direito, por Hegel
em 1822 representava o alinhamento de sua filosofia à condição de justificação da
monarquia prussiana de Frederico II. Marx procura assim mostrar como a teoria
hegeliana do Estado e sua justificativa da racionalidade da monarquia
constitucional era a expressão mais bem acabada de um problema que diz
respeito a todo seu sistema e que se refere à maneira com que o real é
38
MARX, Karl; Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel
39
Lembremos, por exemplo, de uma afirmação como: “A situação da Alemanha no final do século
passado espelha-se completamente na Crítica da razão prática de Kant. Enquanto a burguesia francesa
se impulsionou, através da mais colossal das revoluções que a história jamais conheceu, ao poder, e
conquistou o continente europeu, enquanto a burguesia inglesa revolucionou a indústria e submeteu
comercialmente a India e todo o resto do mundo, os impotentes burgueses alemães alcançaram apenas
chegar à ‘boa vontade’” (MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 219)
compreendido como racional. A frase Hegel era: “o que é racional é real e o que
é real é racional” (Was vernünftig ist, das ist wirklich; und was wirklich ist, das ist
vernünftig)40.
Há duas formas de ler esta frase canônica. Primeiro, insistindo na dissociação
necessária entre Wirklichkeit e Realität, o que equivaleria em afirmar que o real no
interior do qual a filosofia encontra sua racionalidade não se confunde com o curso
atual do mundo. Haveria uma latência da existência através da qual passa um real que
não se esgota nas determinações postas da realidade atual. É a capacidade de
reconhecer tal real que permite à filosofia compreender o que é racional.
Segundo, afirmando que apenas o que se conforma à normatividade
previamente determinada da razão pode aspirar realidade. No entanto, se tais
normatividades tem uma semelhança insidiosa com a realidade atualmente posta é
porque, ao menos neste caso, o real se confundiria com o atualmente existente, o que
implicaria na tentativa de racionalizar e fazer passar por absolutamente necessário
aquilo que era fruto da contingência do desenvolvimento histórico. É esta segunda
leitura que guia o jovem Marx. Tal crítica está posta claramente na seguinte
afirmação:
40
HEGEL, G.W.F.; Grundlinien der Philosophie des Rechts, Frankfurt: Suhrkamp, p. 24
41
MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 38
(da Ideia): uma clara mistificação” 42. Mistificação significa aqui uma certa inversão
na qual a consequência passa à condição de causa, o predicado passa à condição de
sujeito, o contingente esconde sua condição de contingente e se coloca sob a forma
imediata do necessário.
Ora, mas o verdadeiro problema não está apenas no fato de partirmos da ideia
para depois medirmos a realidade a partir de sua adequação àquilo que se colocou
como ontologicamente necessário. De fato, com isto eliminamos a possibilidade de
compreender como singularidades se desenvolvem em processos temporais marcados
por contingências que se afirmam enquanto tais. Mas há ainda um segundo
movimento nesta relação de subsunção entre conceito e objeto. Pois percebam como,
se as determinações lógico-metafísicas expressassem o que ainda não se configurou
como determinações do Estado, então estaríamos diante de uma filosofia capaz de
abalar o sistema de justificação do mundo institucional. Neste sentido, a Ideia
guardaria a força do que ainda não se realizou, garantindo a perpetuação de um
movimento de transformação da efetividade.
No entanto, não é isto que ocorre na dialética hegeliana, ao menos segundo o
jovem Marx. Pois a Ideia é produzida à semelhança da efetividade, as determinações
do Estado atual são mistificadas como expressão da necessidade do Espírito e postas
como determinações absolutas. Ou seja, não é apenas a ideia que subordina a
existência. A existência define previamente as potencialidades internas à própria
ideia. A existência aparece assim como o terreno insuperável da necessidade. Um
exemplo deste processo é quando Marx afirma, a respeito do monarca hegeliano:
A crítica não poderia ser mais clara. A compreender a realidade atual como o
racional, Hegel acaba por transformar o racional no mero predicado da realidade
atual. A vontade aparece como aquilo que o monarca expressa, ao invés do monarca
42
Idem, p. 36
43
Idem, p. 45
aparecer como aquele que deve lutar para se conformar à vontade. Uma perspectiva
materialista simplesmente mostraria como “vontade” é o nome que damos para a
decisão do monarca, sem tentar transformar a decisão do monarca em um axioma
metafísico. Assim: “uma existência empírica é tomada de maneira acrítica como a
verdade real da Ideia”44 e é neste ponto que se encontra o maior problema.
Esta configuração da Ideia a partir da realidade atual pede, no entanto, uma
terceira operação fundamental. Ela diz respeito à maneira com que a negatividade
própria ao movimento do conceito será inscrita na própria realidade atual a fim de ser
desativada. Como estamos falando de um pensamento dialético, para que a realidade
atual possa configurar o conceito, faz-se necessário que a própria realidade saiba
integrar uma negatividade que será desativada em sua força de transformação.
Veremos este ponto mais a frente quando for questão da relação entre
sociedade civil e Estado. Mas, por enquanto, lembremos como esta inversão entre
sujeito e predicado, esta forma mistificada de deduzir a gênese da suposta necessidade
do último termo tem, para Marx, consequências políticas evidentes. Lembremos, por
exemplo, de uma afirmação decisiva como:
Neste ponto, podemos entender uma das questões centrais postas por Marx
contra Hegel. Hegel, e este é um dos seus maiores méritos ao menos para Marx, foi
o primeiro a compreender a dissociação necessária entre sociedade civil e Estado.
No entanto, no interior de sua dialética, a tensão entre sociedade civil e Estado
não se desdobra da maneira como deveria, ou seja, através de uma superação do
Estado.
Segundo Hegel, a distinção entre sociedade civil e Estado é uma característica
maior do mundo moderno. Isto a ponto de certas teorias modernas do Estado (como
as teorias liberais) compreenderem o Estado apenas como a estrutura institucional
cuja função é garantir e assegurar o bom funcionamento da sociedade civil a partir de
seus princípios de defesa dos indivíduos e seus interesses. No entanto, Hegel insistirá
que a vida ética exige uma tensão fundamental entre Estado e sociedade civil. Neste
sentido, tentemos esboçar o que Hegel compreende exatamente por “sociedade civil”
(Bürgeliche Gesellschaft) e como se dá a relação complexa e decisiva entre sociedade
civil e Estado. Partamos, para isto, de sua primeira definição:
A pessoa concreta , que como particular é fim para si, é, como um todo de
necessidades e de uma mistura entre necessidade natural e arbítrio (Willkür), o
princípio primeiro da sociedade civil – mas trata-se da pessoa particular como
essencialmente em relação com outra particularidade, de maneira que cada
46
Idem, p. 50
47
Idem, p. 50
uma é mediada, se fazer valer e se satisfaz através da outra e, da mesma forma,
apenas através da forma da universalidade, do outro princípio48.
50
Idem, p. 42
51
Idem, p. 123
Reler Marx hoje
Aula 3
Na aula de hoje, gostaria de retomar o último tema que tratamos na aula passada, a
saber, a o problema da relação entre sociedade civil e Estado a partir da filosofia
hegeliana. Gostaria de desenvolver este tópico de maneira mais sistemática
introduzindo questões apresentadas em um importante texto publicado um ano depois
da escrita da Crítica da Filosofia do direito de Hegel, a saber, Sobre a questão
judaica, de 1844. Isto deve ocupar nossa aula. Na aula que vem, gostaria de iniciar
nossa leitura dos Manuscritos Econômico-Filosóficos através do comentário do seu
Caderno 1, este dedicado à crítica do salário, do trabalho alienado e da propriedade
privada, além de ser dedicado também a uma reflexão inicial sobre a estrutura do
capital.
A pessoa concreta , que como particular é fim para si, é, como um todo de
necessidades e de um mistura entre necessidade natural e arbítrio (Willkür), o
princípio primeiro da sociedade civil – mas trata-se da pessoa particular como
essencialmente em relação com outra particularidade, de maneira que cada
uma é mediada, se fazer valer e se satisfaz através da outra e, da mesma forma,
apenas através da forma da universalidade, do outro princípio52.
Mas Marx compreende passagens desta natureza insistindo que este duplo
momento do extremo da singularidade que sabe e quer para si e do extremo da
universalidade que sabe e quer o universal não estão em relação de contradição. Eles
57
MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 123
58
Idem, p. 42
59
HEGEL, G.W.F.; Filosofia do direito, par. 264
estão, na verdade, em relação de duplicação. Pois a singularidade dos indivíduos que
compõe a sociedade civil foi desde o início configurada principalmente a partir de
uma forma da vontade compreendida como “interesse”, como individualidade baseada
nas noções de propriedade e posse. Não apenas propriedade de bens, mas
propriedades individuais (minha própria religião, minha própria etnia, minha
própria...). O que o Estado faz é, na verdade, dar forma jurídica, expor a matriz
disciplinar de um princípio de determinação que opera de forma imanente na
sociedade civil compreendida a partir da forma do livre-mercado. Este princípio é a
propriedade.
Por esta razão, se Hegel pode superar a contradição entre sociedade civil e
Estado no interior do Estado é porque os modos de relação do Estado à sociedade
civil já são a expressão daquilo que a própria sociedade civil é em si. Em si, a
sociedade civil moderna seria o processo de transformação das singularidades na
abstração geral própria à indivíduos proprietários e possessivos. Ela é assim porque o
processos de exteriorização dos sujeitos é fundamentalmente mediado por um
trabalho cuja estrutura social é ser fonte de produção de abstrações.
Levando isto em conta, tudo se passa como se Marx lembrasse a Hegel que a
contradição entre sociedade civil e Estado, pensada sob a forma da contradição entre
individualidade e universalidade, é uma falsa contradição. A verdadeira contradição
está em outro lugar, a saber, na própria estrutura interna da sociedade civil. Trata-se
da contradição que expressa como o movimento de determinação da sociedade civil
produz o seu contrário, a saber, não-indivíduos, que Hegel chama de ralé e que Marx
chamará de proletariado. Neste sentido, a negatividade interna à sociedade civil não
poderá ser internalizada pelo Estado, mas produzir uma superação do Estado através
de uma prática revolucionária. Como veremos mais à frente, será por esta via que
Marx trafegará.
Neste ponto, lembremos como Marx, por operar com um conceito de liberdade
para o qual a definição das condições sociais de sua efetivação é um problema interno
à própria definição do conceito, deve poder descrever as situações nas quais o
funcionamento da vida social não fornece mais os pressupostos para a realização as
aspirações da autonomia individual. Um pressuposto fundamental está relacionado ao
funcionamento da esfera econômica com suas dinâmicas ligadas ao trabalho, base da
constituição daquilo que Hegel entendia por sociedade civil. Podemos dizer isto
porque problemas de redistribuição e de alienação na esfera econômica do trabalho
são um setor decisivo de problemas mais gerais de reconhecimento social.
Neste sentido, por exemplo, processos de pauperização não serão vistos
apenas como problemas de “justiça social”, mas sim como problemas de condições de
efetivação da liberdade. Pois não é possível ser livre sendo miserável. Livres escolhas
são radicalmente limitadas na pobreza e, por conseqüência, na subserviência social.
Posso ter a ilusão de que, mesmo com restrições, continuo a pensar livremente, a
deliberar a partir de meu livre-arbítrio individual. Um pouco como o estóico Epiteto,
que dizia ser livre mesmo sendo escravo. No entanto, uma liberdade que se reduziu à
condição de puro pensamento é simplesmente inefetiva, isto no sentido dela
determinar em muito pouco as motivações para o nosso agir.
A questão judaica
É neste contexto que ganha importância um dos primeiros textos publicados por
Marx, a saber, Sobre a questão judaica. Trata-se de um texto publicado nos Anais
franco-alemães visando o texto A questão judaica, de Bruno Bauer. Ele deve ser lido
como uma espécie de complemento às críticas de Marx sobre a possibilidade de
confundir a emancipação humana como emancipação política enquanto cidadão do
Estado.
Marx parte da proposta de Bruno Bauer, para quem a emancipação política
dos judeus deveria ser feita à condição do abandono de sua religião, pois: “Enquanto
o Estado for cristão e o judeu judaico, ambos serão igualmente incapazes tanto de
conceder quanto de receber a emancipação” 60. Nosso Estado ainda é cristão, por isto
não faz sentido esperar emancipação política no seu interior, da mesma forma como
não faria sentido esperar emancipação política de quem conserva a centralidade de seu
envolvimento religioso. Bruno Bauer exige, pois, que os judeus renunciem ao
judaísmo e que o homem em geral renuncie à religião para tornar-se emancipado
como cidadão.
Marx não concorda com a solução apresentada por Bauer. Pois ao invés de se
perguntar se os judeus tem o direito à emancipação política, há de se perguntar se a
emancipação política tem o direito de exigir dos judeus a supressão do judaísmo e de
exigir do homem a supressão da religião? Ou seja, o primeiro ponto a destacar aqui é
60
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, p. 34
a maneira com que Marx lembra que não se coloca uma questão sobre se uma
comunidade específica tem o direito à emancipação política. De certa forma, a
questão é desprovida de sentido por naturalizar os pressupostos no qual ela se assenta.
A própria forma de colocar a questão esconde o verdadeiro problema, a saber, se a
emancipação política atualmente configurada é, de fato, uma emancipação humana.
Neste sentido, há de se lembrar que, pensada a emancipação política como cidadania:
“a presença da religião não contradiz a plenificação do Estado”61. Pois a emancipação
política que conhecemos até agora, através da constituição de um Estado de tolerância
religiosa, é uma emancipação que, ao menos aos olhos de Marx, merece ser
profundamente criticada.
Esta situação específica é uma ocasião para Marx lembrar como a forma geral
de superação das contradições entre liberdade e restrição no interior do Estado
moderno consiste em conservar as restrições através da constituição de modelos
formais de liberdade que escondem novas formas de alienação. Assim:
A liberdade, para Marx, passa pela liberação do sujeito de sua condição de indivíduo
que se relaciona a outro indivíduo tal como dois terrenos separados pelo poste da
cerca. O que deixa clara como a propriedade não é apenas um problema econômico,
mas um problema disciplinar de modos de relação à si.
Gattungsleben
Esta caracterização do homem como “ser sem espécie definida”, “ser sem medida
adequada”, de onde se segue sua possibilidade de produzir segundo a medida de
65
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49.
66
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]
qualquer espécie, abre a possibilidade para uma indiferença genérica em relação à
determinação própria a toda espécie nas suas relações de transformação do meio-
ambiente, o que lhe leva a encontrar a medida inerente ao próprio objeto 67. Liberado
da condição de ser apenas objeto para-um-outro, o objeto pode ser expressão daquilo
que, no sujeito, não se reduz à condição de ser para-um-outro. Daí porque encontrar a
medida inerente ao objeto é, ao mesmo tempo, superar a alienação do sujeito. E o que,
no sujeito, não se reduz a tal condição de ser para-um-outro, é o que nele não se
configura sob a forma de espécie alguma, não tem imagem de espécie alguma pois é
sua “vida do gênero” (Gattungsleben) que se objetifica no objeto trabalhado. O termo
vem de Feuerbach que, ao procurar estabelecer distinções entre humanidade e
animalidade, dirá que:
De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo – por isto ele tem
sentimento de si – mas não como gênero – por isto, falta-lhe a consciência,
cujo nome deriva de saber. Onde existe consciência existe também a faculdade
para a ciência. A ciência é a consciência dos gêneros. Na vida, lidamos com
indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser para o qual seu
próprio gênero, sua quididade, torna-se objeto , pode ter por objeto outras
coisas ou seres de acordo com a natureza essencial deles 68
67
Não será a última vez que Marx usará a potência de indeterminação do sujeito para construir um
espaço de reconhecimento não-alienado. De certa forma, tal “ser sem espécie definida” adianta, do
ponto de vista ontológico, a “classe dos desprovidos de classe” na qual Marx encontrará o proletariado,
como veremos de maneira mais articulada na terceira parte deste livro.
68
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, Petrópolis: Vozes, 2007, p. 35
produção, ou seja, seu “ser social” genérico e historicamente determinado. Se assim
fosse, a afirmação da vida do gênero não seria nada mais que uma apropriação
reflexiva da universalidade situada de minhas condições históricas, assim como da
substância comum às relações intersubjetivas que me constituíram e que se expressa
silenciosamente nos objetos que trabalho. O que nos levaria a uma especularidade
muito bem descrita involuntariamente por Feuerbach ao falar, não por acaso, da
especificidade da Gattungsleben humana:
70
Desenvolvi melhor esta ideia, a propósito da leitura adorniana de Hegel, em SAFATLE, Vladimir:
“Os deslocamentos da dialética” In: ADORNO, Theodor; Três estudos sobre Hegel, São Paulo: Unesp,
2013
Reler Marx Hoje
Aula 4
Marx começa seus Manuscritos com uma crítica ao trabalho assalariado. Este
começo tem razões claras vinculadas à centralidade da categoria de trabalho. Sabemos
como, no interior da filosofia social moderna, o trabalho nunca foi apenas uma
questão de produção de riqueza e de valor. Ao menos desde Hegel, ele é
compreendido como uma estrutura fundamental de reconhecimento social, mas não
foram poucos aqueles que colocaram radicalmente em questão a possibilidade do
trabalho ser um modelo de ação que não se reduziria à simples expressão de sujeição
disciplinar à lógica utilitarista que nos aprisiona indefinidamente à racionalidade
instrumental.
No entanto, no interior da tradição dialética da qual Marx faz parte, o trabalho
aparece como algo mais do que a simples reiteração de processos disciplinares que
nos levariam, necessariamente, a modelos cada vez mais evidentes de reificação
social e de sofrimento psíquico. Para além da estrutura disciplinar da autonomia, o
trabalho já aparece para autores como Hegel na condição de modelo fundamental de
expressão subjetiva no interior de realidades sociais intersubjetivamente partilhadas,
isto a ponto de elevá-lo (juntamente com o desejo e a linguagem) a condição de um
dos eixos de constituição daquilo que podemos entender por “forma de vida”.
Podemos nos perguntar se tal aposta no trabalho como processo emancipatório de
reconhecimento era, de fato, possível e necessária ou não passava da expressão dos
equívocos de filosofias tão fascinadas pelas dinâmicas de transformação que tendiam
a negligenciar como atividades socialmente avalizadas funcionam fundamentalmente
como processos de reiteração de sujeições?
Espoliação e monopólio
De fato, que o salário seja expressão da espoliação econômica, eis algo que
Marx defende ao lembrar como o processo de valorização do Capital pressupõe
salários habituais compatíveis com uma mera existência animal, como cavalos que
recebem apenas o suficiente para poder trabalhar. A produção da riqueza econômica
não se traduz em aumento paulatino e constante dos salários. Marx compreende este
aparente paradoxo a partir da dinâmica monopolista inerente ao desenvolvimento do
capitalismo:
74
MARX, Karl; Manuscritos…, pp. 26-27
sociedade é a finalidade da economia nacional”75 e que a situação mais rica da
sociedade é miséria estacionária para os trabalhadores.
Para entender o raciocínio marxista do enriquecimento da sociedade como
miséria estacionária para os trabalhadores, devemos lembrar da diferença entre
pobreza absoluta e pobreza relativa. Quando a produção total se eleva, aumentam
também as necessidades, demandas e exigências, o que significa que a pobreza
absoluta pode diminuir enquanto a relativa aumentar:
Isto explica porque, quanto mais o trabalhador produz, menos tem para
consumir. A pobreza relativa implica diminuição gradativa do que consigo consumir
em relação às exigências renovadas do meu sistema de interesse. Desta forma, fica
claro como Marx compreende a figura do trabalho assalariado como a perpetuação de
uma forma de espoliação. Neste sentido, poderia parecer que uma saída consistiria na
adoção de políticas de aumento substancial dos salários, como queria Proudhom com
sua tentativa de organizar as lutas sociais a partir da pauta do aumento ou mesmo da
igualdade dos salários. Para Marx, o problema central não é apenas os baixos salários,
mas a redução do trabalho à forma da mercadoria que se vende, de qualidade que se
abstrai. Ou seja, sua crítica não é apenas à espoliação econômica, mas é uma crítica
do trabalho assalariado enquanto tal, ou seja, uma crítica à ideia de trabalho em vigor
nas sociedades modernas. Isto fica claro quando Marx disser, em uma afirmação de
grande importância: “o trabalho – não apenas nas condições atuais, mas também na
medida em que, em geral, sua finalidade é a mera ampliação da riqueza – é
pernicioso, funesto”77.
75
Idem, p. 28
76
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 31
77
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 30
Esta colocação é importante por nos lembrar que a dominação no trabalho não
está ligada apenas à impossibilidade dos produtores imediatos disporem de sua
própria produção e dos produtos por eles gerados. Não se trata apenas de uma questão
de apropriação e dominação consciente, através da “cooperação histórico-universal
dos indivíduos”; apropriação destes “poderes que, nascidos da ação de alguns homens
sobre os outros, até agora se impunham sobre eles, e os dominavam na condição de
potências absolutamente estranhas”78. Pois, se não nos perguntarmos sobre a extensão
real de tal domínio, correremos o risco de deixar dois problemas intocados, a saber, o
fato da produção do valor ) a “mera ampliação da riqueza”), como forma de riqueza e
de determinação de objetos, permanecer no centro das estruturas de dominação
abstrata79 e, principalmente (mas isto veremos só na próxima aula), o fato da relação
sujeito/objeto continuar a ser pensada sob a forma do próprio (como expressão da
consciência, seja ela falsa ou histórico-universal) e da propriedade (seja ela individual
ou comunal, injusta ou justamente distribuída).
O problema relativo à reflexão do trabalho acaba por definir-se como um
problema de “redistribuição de propriedade”, redistribuição do que se dispõe diante de
mim como aquilo que tem, na sua identidade para comigo, sua verdadeira essência.
Neste sentido, é difícil não aceitar que “o sujeito histórico seria nesse caso uma versão
coletiva do sujeito burguês, constituindo-se e constituindo o mundo por meio do
‘trabalho’”80. Por isto, ao menos dentro de tal perspectiva, não faria sentido falar do
trabalho como categoria de contraposição ao capitalismo, já que ele estaria
organicamente vinculado às estruturas disciplinares de formação da natureza utilitária
das relações próprias à individualidade liberal e seus direitos de propriedade,
expressando apenas amplos processos de reificação.
78
MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 61
79
Cf. POSTONE, idem, p. 151
80
Idem, p. 99
exteriorização (Entäusserung) do sujeito sob a forma de um objeto. Lembremos, a
este respeito, da famosa comparação de Karl Marx:
Como lembra Habermas, por meio destas afirmações Marx eleva o trabalho
não apenas a uma categoria antropológica fundamental, mas a uma categoria da teoria
do conhecimento, já que a compreensão dos objetos como objetos trabalhados permite
o desvelamento da natureza histórico-social das estruturas normativas da experiência.
Marx partilha com Hegel a noção de que a modalidade de síntese responsável pela
constituição dos objetos da experiência não seria produção de uma subjetividade
transcendental, mas de uma subjetividade empírica às voltas com os modos de
reprodução material da vida82. Tal ampliação da função da categoria de trabalho é
paga, entre outras coisas, com a necessidade de uma distinção ontológica entre
expressão subjetiva e comportamento natural. Habermas sintetiza bem tal distinção ao
afirmar que “Marx não apreende a natureza sob a categoria de um outro sujeito, mas
apreende o sujeito sob a categoria de uma outra natureza” 83. Já a definição de Marx
segundo a qual “toda produção é apropriação (Aneignung) da natureza pelo indivíduo
no interior de e mediada por uma determinada forma de sociedade” 84 é clara em suas
distinções ontológicas. Apropriar-se é relacionar-se com o que não me é próprio e, por
mais que formas sociais definam modalidades historicamente determinadas de
81
MARX, Karl; O Capital, vol. I, São Paulo: Boitempo, 2013, p. 327
82
Ver, a este respeito, Habermas, 1976, p. 60.
83
HABERMAS, Jürgen; Connaissance et intérêt, Paris: Gallimard, 1976, p. 60
84
MARX, Karl; Grundrisse, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 43
apropriação com suas consequências específicas, há de se insistir novamente que a
dinâmica da apropriação pressupõe um modo estrutural de pensar a ação de produção
como absorção do que se coloca como inicialmente estranho, redução do estranho ao
familiar, que já traz consequências decisivas para a orientação normativa da crítica
social.
Marx descreve em vários momentos tal apropriação como um “metabolismo”
(Stoffwechsel)85 através do qual “a totalidade da natureza é socialmente mediada e,
inversamente, a sociedade é mediada através da natureza pensada como componente
da realidade total”86. Neste metabolismo, as modificações ocorrem a partir da
passagem da potência ao ato, na qual o trabalhador “desenvolve as potências que na
natureza jazem latentes”87 , convertendo “valores de uso apenas possíveis (mögliche)”
em valores de uso reais (wirkliche). Tal processo, compreendido como a passagem do
possível ao real, é o que deve ser melhor definido. Como vimos, Marx parece
inicialmente dizer que o trabalho distingue-se de toda outra atividade por ser
exteriorização de uma idealidade, mas há de se definir melhor o que devemos
entender por “ideal” neste contexto. Pois se “ideal” significar simplesmente a
transformação da natureza a partir de uma ação dirigida por uma finalidade
previamente determinada ou sua conformação a uma forma previamente presente
como representação ideal, como o texto de Marx parece inicialmente nos fazer
acreditar, então será difícil não perceber nesta atividade algo que dificilmente pode
ser chamado de “processo”. A passagem do possível ao real, operada pelo trabalho
social, não passaria de mera exteriorização de uma finalidade abstrata.
Se este fosse o caso, tal modo de determinação do trabalho nos impediria, em
última instância, de distingui-lo do comportamento natural. Todo organismo biológico
tem a capacidade de se orientar e operar escolhas a partir de uma finalidade que serve
de norma de avaliação. O filósofo da biologia Georges Canguilhem é preciso neste
sentido. Sendo a vida uma “atividade de oposição à inércia e à indiferença” 88, toda
individualidade biológica diferencia e escolhe a partir de normas. Toda
85
Por exemplo: “o processo de trabalho é inicialmente um processo entre o homem e a natureza, um
processo no qual, através de sua própria ação, ele media, regula e controla seu metabolismo com a
natureza” (MARX, Karl; Das Kapital I, op.cit., p. 129)
86
SCHMIDT, Alfred; The concept of nature in Marx, Londres: Verso, 2014, p. 79
87
MARX, idem, p. 129
88
CANGUILHEM, Georges; Etudes d’histoire et philosophie des sciences, Paris: Vrin, 1983, p. 208
individualidade biológica age a partir de um “ideal” com forte potencial normativo,
valorativo e, não devemos esquecer, transformador do meio-ambiente.
Se quisermos dar alguma realidade à dicotomia afirmada por Marx, talvez
devamos voltar a uma importante afirmação presente nos Manuscritos, segundo a
qual:
91
Impossível não ler de maneira dialética a compreensão precisa de Agamben a respeito desta
dinâmica entre potência e ato: “Se uma potência de não ser pertence originalmente a toda potência, será
verdadeiramente potente só quem, no momento da passagem ao ato, não anular simplesmente sua
potência de não, nem deixá-la para trás em relação ao ato, mas a fizer passar integralmente no ato como
tal, isto é, poderá não-não passar ao ato”, pois “a passagem ao ato não anula nem esgota a potência,
mas esta se conserva no ato como tal e, particularmente em sua forma eminente de potência de não (ser
ou fazer)” (AGAMBEM, Giorgio; A potência do pensamento: ensaios e conferências, Belo Horizonte:
Autêntica, 2015, p. 253).
92
HEGEL, G.W. F.; Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 132
trabalhado. Pois faz parte de toda defesa absorver algo do medo contra o qual ela foi
erigida.
Neste sentido, podemos a partir disto tentar complexificar nossa noção de
trabalho alienado. Normalmente, entendemos por trabalho alienado aquela
modalidade de atividade laboral na qual não me reconheço no que produzo, já que as
decisões que direcionam a forma da produção foram tomadas por um outro. Desta
forma, trabalho como um outro, como se estivesse animado pelo desejo de um outro.
Como dirá o jovem Marx:
93
MARX, Karl; Manuscritos, p. 83
94
LUKÀCS, Gyorg; História e consciência de classe, op. cit., p. 171
95
Idem, p. 317
para encontrar, em operação no interior do trabalho social com suas relações de
interação, a mesma forma de subsunção do diverso da sensibilidade em
representações que animava a atividade teórica.
Melhor seria lembrar como o trabalho alienado é, ao contrário, exatamente
aquele no qual aceitamos uma leitura literal da ideia de Marx, segundo a qual “no
final do processo de trabalho, vemos um resultado que desde o início estava na
representação do trabalhador, presente como ideal”. Pois, neste caso, a imaginação
do trabalhador é apenas a faculdade humana da planificação, do esquematismo prévio,
um pouco como o sujeito kantiano com seu esquematismo transcendental capaz de
determinar previamente a forma geral do que há a ser representado. Este trabalho já é
o trabalho industrial da fábrica, que só produz objetos que são exemplares
intercambiáveis da ideia. Neste trabalho, a expressão tem uma estrutura especular, já
que o homem encontra, no objeto, apenas o ideal que ele próprio previamente
projetou. Mas não é possível, para um pensamento materialista, aceitar que, no
processo de trabalho, o resultado final já estava determinado no início como
representação. Pois isto implicaria aceitar que a passagem à existência, que aquilo que
no idealismo alemão chamava-se “posição”, nada acrescentaria à determinação
categorial96; como se da determinação à existência não houvesse processo. Se assim
fosse, nunca poderíamos entender como, no interior do processo de trabalho,
categorias são reconstruídas a partir de negações determinadas produzidas pelo
“metabolismo” da atividade humana com seus objetos. Não poderíamos compreender
como o início, mesmo quando formalmente idêntico, é semanticamente outro.
96
Para uma boa discussão a este respeito a partir da afirmação kantiana de que cem táleres reais não
contém mais do que já está presente em cem táleres possíveis, ver FAUSTO, Ruy; Marx: logique et
politique, op cit.
Reler Marx Hoje
Aula 5
Vejamos o que significa atividade livre neste contexto. Por um lado, é produzir para
além da normatividade imposta pelo necessidade do corpo físico. Por outro lado, é
104
MARX, Karl; Manuscritos, p. 84
105
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]
produzir para além das determinações diferenciais da espécie. Por isto, a vida do
gênero é vida que se reproduz livre da necessidade física imediata, que produz
segundo a medida não só de qualquer espécie, mas também de uma espécie qualquer,
de uma natureza pensada como potência livre das formas. É por isto, que o ser
humano pode formar segundo as leis da beleza.
Tal perspectiva talvez faça justiça de forma mais adequada à dimensão estética
da reflexão marxista sobre o trabalho. De fato, podemos dizer que é como portador
da vida do gênero que o sujeito trabalha segundo “as leis da beleza”. Pois as leis da
beleza não são estas que fundam as formas humanas em uma arché, um pouco como a
afirmação de Feuerbach parece nos levar a acreditar. Esta leitura seria
necessariamente conservadora a respeito das questões próprias à forma estética e
radicalmente defasadas mesmo diante do estado da crítica na estética romântica tardia
à época de Marx. Mais correto seria afirmar que as leis da beleza são estas que se
quebram diante da expressão do gênio, temática fundamental da estética romântica.
Não por acaso, a raiz latina da palavra alemã Gattung é o latim genus e o grego
génos. Genus partilha com genius a raiz gen que indica engendrar, produzir.
Giorgio Agamben tem um pequeno texto sobre o conceito de gênio que pode
auxiliar nas consequências desta estética da produção que animou o jovem Marx e,
como gostaria de defender, pressuposta mesmo na obra do Marx da maturidade.
Agamben lembra que os latinos chamavam genius ao deus ao qual todo homem é
confiado sob tutela na hora do nascimento. Resultado da afinidade etimológica entre
gênio e gerar. Por isto, genius era, de uma certa forma, a divinização da pessoa, o
princípio que rege e exprime toda sua existência. No entanto, Agamben faz questão de
insistir a respeito de um ponto de grande importância para nós:
Mas esse deus muito íntimo e pessoal é também o que há de mais impessoal
em nós, a personalização do que, em nós, nos supera e excede. “Genius” é a
nossa vida, enquanto não foi por nós originada, mas nos deu origem. Se ele
parece identificar-se conosco, é só para desvelar-se, logo depois, como algo
mais do que nós mesmos, para nos mostrar que nós mesmos somos mais e
menos do que nós mesmos. Compreender a concepção de homem implícita em
Genius equivale a compreender que o homem não é apenas Eu e consciência
individual, mas que, desde o nascimento até a morte, ele convive com um
elemento impessoal e pré-individual106.
A este respeito lembremos de uma distinção importante do jovem Marx sobre duas
formas de comunismo. O primeiro é o comunismo primitivo, que Marx chama de
“comunismo rude” e se aproxima das estruturas arcaicas de propriedade comunal. O
segundo é: “a figuração necessária e o princípio enérgico do futuro próximo” 109 capaz
de fornecer aquilo que Marx chama de uma superação positiva da propriedade
privada.
Sobre o primeiro, Marx o descreve como uma generalização de todas as
relações sociais sob a forma das relações de propriedade: “o domínio da propriedade
material é tão grande frente a ele que ele quer aniquilar tudo que não é capaz de ser
possuído por todos como propriedade privada”110. Na verdade, a relação por
propriedade permanece sendo a relação da comunidade com o mundo das coisas,
mesmo que no lugar da propriedade privada tenhamos agora a propriedade comunal.
Uma propriedade comunal que pressupõe um certo retorno à simplicidade que é, para
Marx, apenas expressão da negação abstrata do mundo inteiro da cultura.
Marx chega a afirmar que a comunidade das mulheres, no qual a mulher
advém uma propriedade comunitária e comum, seria o segredo deste comunismo
rude:
uma maneira importante de lembrar que, na produção estética, o sujeito encontra o fracasso da
objetivação de sua intenção primeira, condição constitutiva para a própria realização da obra de arte.
108
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. XIV
109
MARX, Karl; Manuscritos…, p. 114
110
Idem, p. 103
Da mesma forma que a mulher sai do casamento [uma forma de propriedade
privada exclusiva] e entra na prostituição universal, também o mundo inteira
da riqueza, isto é, da essência objetiva do homem, caminha da relação de
casamento exclusivo com o proprietário privado em direção à relação de
prostituição universal com a comunidade. Este comunismo – que por toda a
parte nega a personalidade do homem – é precisamente apenas a expressão
consequente da propriedade privada, que por sua vez é esta negação111.
Desta forma, fica claro como, para Marx, não se trata de passar da propriedade
privada à propriedade comunal, mas de abandonar os modelos de relação
(intersubjetiva, entre sujeito e objeto) sob a forma da possessão. Assim, aparece uma
distinção importante entre apropriação (Aneigung) e possessão (besitzen) que abre à
compreensão para a verdadeira superação da propriedade produzida pelo comunismo.
No comunismo, as apropriações não são possessões e creio que este é um ponto
fundamental, a saber, compreender o que são apropriações que não se deixam pensar
como possessões, ou seja, estabelecimento de afinidades miméticas com o que não se
determina como minha possessão.
Assim, se no comunismo é possível falar de uma “verdadeira ressurreição da
natureza, do naturalismo realizado do homem e do humanismo da natureza levado a
efeito”112 é porque, no comunismo de Marx, a natureza não é mais compreendida
como o que se submete à relações de posse, nem mesmo de posse coletiva. No
comunismo, circulam objetos que não são a confirmação do individualismo
possessivo, objetos são produzidos que não são resultantes do interesse individual,
que não são marcados pelo sentido do ter e pela submissão do objeto à funcionalidade
da utilidade. Lembremos a este respeito como “interesse” é a realização de uma
síntese entre as paixões e o cálculo, é a submissão da esfera das paixões à forma do
que pode ser calculado, do que pode ser pensado sob o prisma utilitário.
Ao falar desta apropriação que não é possessão, que não é submissão aos
princípios utilitários, Marx afirma:
111
MARX, Karl; Manuscrito …, p. 104
112
Idem, p, 107
A apropriação sensível da essência e da vida humanas, do ser humano
objetivo, da obra humana para e pelo homem, não poder se apreendida apenas
no sentido da fruição imediata, unilateral, não somente no sentido da posse, no
sentido do ter. O homem se apropria da sua essência multilateral de uma
maneira multilateral, portanto como um homem total. Cada uma de suas
relações humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar,
intuir, perceber, querer, ser ativo, amar, enfim todos os órgãos da sua
individualidade, assim como os órgãos que são imediatamente em sua forma
como órgãos comunitários, são no seu comportamento objetivo ou no seu
comportamento para com o objeto a apropriação do mesmo, a apropriação da
realidade humana; seu comportamento para com o objeto é o acionamento da
realidade humana (por isso ela é precisamente tão múltipla quanto múltiplos
são as determinações essenciais e atividades humanas), eficiência humana e
sofrimento humano, pois o sofrimento, humanamente, apreendido, é uma auto-
fruição do ser humano113.
114
Idem, p. 110
115
Idem, p. 112
116
Idem, p. 112
Reler Marx hoje
Aula 6
De fato, Marx começa seu texto deixando claro a natureza polêmica de suas
asserções. Sua crítica de Hegel é, inicialmente, maneira de definir o sistema de
relações com os chamados jovens hegelianos (Bruno e Edgar Bauer, Carl Reichardt,
Franz Szeliga, entre outros). Estes filósofos não ficaram para a posteridade, a não ser
como alvos da crítica de Marx, principalmente em A sagrada família. No entanto, sua
importância para Marx é clara, por eles representarem o eixo maior da ideologia
alemã. Marx percebe que a posteridade hegeliana tende a caminhar em direção a um
espiritualismo ou a um idealismo especulativo que no lugar do ser humano individual
e concreto coloca a consciência-de-si ou o Espirito. Desta forma, os processos
efetivos se dissolvem em sua força de abrir caminhos que não sejam a mera
confirmação da estrutura prévia da ideia. Ao contrário, eles se tornam uma forma
peculiar de confirmação da ideia. Uma questão fundamental para alguém que
compreende o atraso alemão como fruto do peso de conciliações formais entre ideia e
efetividade. Confirmações que serve apenas para justificar as inadequações da
efetividade como forma distorcida de incorporação da negatividade da ideia.
Em A sagrada família, Marx insistirá que o idealismo especulativo dos jovens
hegelianos parte da abstração para expressar uma conexão mística entre fenômenos.
Ele descreve tal inversão, através da qual a ideia desrealiza os fenômenos, da seguinte
forma:
118
MARX, Karl; Manuscritos, p. 124
Quando retornas da abstração, do ser intelectivo sobrenatural “a fruta” às
frutas naturais, o que tu fazes é, ao contrário, atribuir às frutas naturais um
significado sobrenatural, transformando-as em puras abstrações. Teu interesse
fundamental é, no final das contas, provar a unidade “da fruta” em todas essas
suas manifestações vitais, a maçã, a pera, a amêndoa, quer dizer, a conexão
mística entre “a fruta”, como, por exemplo, a passa progride de sua existência
de passa à sua existência de amêndoa, o valor das frutas profanas não mais
consiste, por isso, em suas características naturais, mas sim em sua
característica especulativa, através da qual ela assume um lugar determinado
no processo vital da “fruta absoluta”119.
O conceito de experiência
121
HEGEL, Fenomenologia I, p. 36
Insistamos pois em dois pontos. Primeiro, a fenomenologia implica
inicialmente na aceitação da perspectiva de um certo primado da consciência.
Trata-se fundamentalmente de descrever o que aparece (Erscheinung – termo que
pode ser traduzido tanto por “fenômeno” quanto por “o que aparece”) à
consciência a partir das posições que ela adota diante da efetividade, posições que
trazem em seu interior conteúdos determinados de experiência enquanto conteúdos
de modos de vida em suas dimensões morais, cognitivas, estéticas, etc. Assim, se a
fenomenologia poderá ser definida por Hegel como “ciência da experiência da
consciência” (este era, por sinal, o título originário do livro que aparece na
primeira edição de 1807), é porque ela é a exposição das configurações dos campos
de experiência da consciência a partir do eixo da formação da consciência para o
saber, ou ainda, para a filosofia.
122
HEGEL, Enciclopédia, par. 415
abandono da centralidade da noção de consciência, de seus modos de percepção e
reflexão, em prol do advento do Espírito (que não é espécie alguma de
“consciência absolutizada”). O que este Espírito é, até que ponto estamos a
descrever uma entidade metafísica ou apenas a apropriação reflexiva das condições
gerais de gênese da experiência, eis um ponto que será objeto de muita polêmica
para a posteridade dialética.
Esta passagem, assim como a própria compreensão do que Hegel quer dizer
por “Espírito”, podem ser melhor compreendidos se levarmos em conta o que
Hegel procura desenvolver no parágrafo 28:
123
HEGEL, Fenomenologia I, p. 35-36
Como não devemos compreender este trecho? Primeiro, é fato que Hegel
pressupõe um certo paralelismo ente ontogênese e filogênese. Pois a substância dos
indivíduos concretos é um espírito do mundo que, a primeira vista, parece absorver
um processo racional de formação que já se desenvolveu na história. De fato, a
consciência deve compreender que o presente não é o único modo de presença e
que se trata, fundamentalmente, de compreender uma noção de presença não mais
dependente da visibilidade do que se dá como imagem no presente.
Uma leitura tradicional diria então que caberia ao indivíduo apenas rememorar este
processo, estas “plataformas de um caminho já aplainado” apropriando-se de um
espírito que age no indivíduo, mas à sua revelia. A verdadeira experiência seria, no
fundo, uma rememoração de formas já trabalhas pelo desenvolvimento histórico do
espírito. Neste momento, o indivíduo deixaria de orientar seu agir e seu julgamento
como consciência individual para orientar-se como encarnação de um espírito do
mundo que vê sua ação como posição de uma história universal que funciona como
elemento privilegiado de mediação. O indivíduo singular transformar-se em
consciência do espírito de seu tempo. O que só poderia significar uma
absolutização do sujeito que deixa de ser apenas eu individual para ser aquele
capaz de narrar a história universal e ocupar sua perspectiva privilegiada de
avaliação. E aí que chegaríamos se levássemos ao pé da letra afirmações de
comentadores como Jean Hyppolite, para quem: “A história do mundo se realizou;
é preciso somente que o indivíduo singular a reencontre em si mesmo (...) A
Fenomenologia é o desenvolvimento concreto e explícito da cultura do indivíduo, a
elevação de seu eu finito ao eu absoluto, mas essa elevação não é possível senão ao
utilizar os momento da história do mundo que são imanentes a essa consciência
individual”124. Enfim, tudo se passaria como se a experiência da consciência fosse
rememoração e esta, por sua vez, fosse historicização capaz de nos levar a
compreender como o passado determina nosso agir e nossos padrões atuais de
racionalidade. Como se a palavra que traz o Saber Absoluto fosse: “No fundo, eu
sempre soube”.
124
HIPPOLYTE, Gênese e estrutura, pp. 56-57
Rememoração ou revolução
O objeto é por isso mesmo um negativo que supera a si mesmo, uma nulidade.
Essa nulidade do mesmo não tem para a consciência uma significação apenas
negativa, mas positiva, pois aquela nulidade do objeto é justamente a auto-
confirmação da não-objetividade de sua própria abstração126.
125
MARX, Karl; Manuscritos, p. 129
126
Idem, p. 129
confirmação do Espírito. Ou seja, o pensar é apenas a reconfirmação da existência
pelo pensar sob a forma da necessidade:
Ou seja, esta superação, esta negação que conserva, aparece à Marx como a
forma possível de reconciliação de uma consciência teórica que deixa os objetos
permanecerem na efetividade ao invés de produzir uma ação capaz de negar sua
presença efetiva e sensível. Eles permanecem na efetividade, no entanto, sob a forma
de espectros cuja realidade é fornecida pela sua remissão possível ao conceito. Moral,
família, sociedade civil, direito privado não tem realidade em si, embora permaneçam
na efetividade. Eles são apenas momentos de efetivação da ideia, eles são as
figurações incompletas da ideia e sua realidade será vista apenas sob o signo da
incompletude. Mas tal incompletude não levará a uma modificação na ordem do
existente. Ela levará apenas a uma abertura a uma transcendência negativa que se
incarna na definição da essência como ser-pensado. A verdadeira existência religiosa,
por exemplo, será a existência filosófico-religiosa, a verdadeira existência política
será a existência filosófico-jurídica, a verdadeira existência humana será a existência
filosófica. As consequências não poderia ser diferentes:
129
MARCUSE, Herbert; Materialismo histórico e existência, p. 122
130
SCHILLER, Friedrich; A educação estética do homem,
131
FAUSTO, Ruy; Marx: lógica e política – volume III, p. 157
O capitalista industrial também goza, sem dúvida. De modo algum ele volta à
simplicidade da necessidade, mas o seu gozo é coisa acessória, repouso,
subordinado à produção, e com isto gozo calculado, e assim ele mesmo
econômico, pois ele lança o seu gozo nos custos do capital, e seu gozo só pode
lhe custar tanto, que o que ele lhe consumiu velha a ser reposto com lucro
através da reprodução do capital. O gozo é assim subordinado ao capital, o
indivíduo que goza ao indivíduo que capitaliza, enquanto antes havia o
contrário132.
No entanto, a realização destas formas de relação na qual o gozo não será mais
subordinado ao capital, subordinado ao cálculo, exigem, como vimos anteriormente, a
negação da propriedade privada e do individualismo possessivo. Marx compreende
que tal negação não se dará como superação das formas sociais que constituem o
horizonte das sociedades modernas. Ela se dará através da instauração de formas que
nascem da atividade dos que não eram contados como sujeitos por tais formas sociais.
Por isto, não se trata de pensar regimes de negação que conservam, mas de pensar
formas de negação na qual as contradições reais produzem sujeitos impredicados. Por
isto, sua dialética deverá ser necessariamente uma teoria das revoluções.
132
MARX, Karl; Manuscritos, p. 148 [tradução completamente modificada, já que o original é
imprestável]
Reler Marx hoje
Aula 7
133
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A Ideologia alemã, p. 37
O conceito de “ideologia”, no entanto, não será retomado por Marx, ao menos
de maneira explícita após 1852. Alguns comentadores insistirão que sua problemática
será absorvida pelo conceito de “fetichismo”, que seu uso generalizado e extensivo
não é possível, já que ele necessita de uma limitação metodológica. A crítica da
ideologia é feita tendo em vista a verdade de uma ciência da história cuja
fundamentação não admite a crítica a todo e qualquer sistema de ideias. A
compreensão da gênese material das ideias não é sem admitir a existência de
“pressuposições reais” que precisarão ser conservadas por Marx. É certo que Marx e
Engels não estão dispostos a denunciar todo e qualquer sistema de ideias como
expressão de “universalidades abstratas” que mascarariam a perspectiva irredutível
dos indivíduos como única existência concreta. Não é um acaso que quase dois terços
do primeiro livro de A ideologia alemã seja a crítica a Max Stiner, representante de tal
nominalismo estrito.
Daí o segundo aspecto fundamental de A ideologia alemã, a saber, a
apresentação sistemática da especificidade do materialismo de Marx e Engels. O
debate com Feuerbach na primeira parte do livro é o momento decisivo para a crítica
de um materialismo empirista em prol de um verdadeiro “materialismo histórico” que
será elemento constitutivo do horizonte do marxismo. Este materialismo histórico
parte das modificações dos regimes de produção, da análise de seus antagonismos
internos para fundamentar a história como perspectiva crítica.
Por fim, esta dinâmica histórica será lida a partir da emergência necessária de
um sujeito político capaz de colocar em operação o que Marx entende por práxis
realmente revolucionária, a saber, o proletariado. Gostaria de, nas aulas dedicadas a
este módulo, discutir cada um destes três aspectos, sendo que na aula de hoje gostaria
de começar pelo fim, ou seja, pela discussão sobre a emergência do proletariado.
Genealogia do proletariado
134
RANCIÈRE, Jacques; “Politics, identification and subjectivation” in: RAJCHMAN, John; The
identity in question, Nova York: Routledge, 1995, p. 67
135
STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the lumpemproletariat” In:
Representations, vol 0, n. 31, p. 84
136
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Manifesto Comunista, São Paulo: Boitempo, p. 50
137
Idem, p. 66
a formação da sociedade como associação de indivíduos, mas parar de pensar a vida
social a partir da elevação do indivíduo como célula elementar, esta guerra não será a
expressão da dinâmica concorrencial entre indivíduos desprovidos de relações
naturais entre si. Ela será uma guerra de classes no interior da qual uma das classes
aparece como o conjunto daqueles que nada mais dispõem. Por isto, uma guerra que
só pode levar não a vitória de uma classe sobre outra, mas à destruição do princípio
que constitui as classes, a saber, o trabalho e a propriedade como atributo fundamental
dos indivíduos. O que explica porque Marx deverá ser claro:
138
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 98
139
Idem, Manifesto Comunista, p. 43
140
Idem, p. 45
141
Idem, p. 51
própria “produção da vida” vigente até agora com suas relações entre sujeitos, entre
sociedade e natureza, entre o sujeito e si mesmo.
Tal auto-negação é impulsionada pela produção do excesso. A burguesia
produz crises descritas como “epidemias de superprodução” que destroem grande
parte das forças produtivas já criadas: “A sociedade possui civilização em excesso,
meios de subsistência em excesso, indústria em excesso, comércio em excesso”. Um
excesso que: “lança na desordem a sociedade inteira e ameaça a existência da
propriedade burguesa”. Pois tal excesso de produção, de comércio, de civilização leva
a uma desvalorização tendencial da produção, uma intensificação dos regimes de
trabalho e um aumento da pobreza relativa que só pode ser superada através ou da
destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas ou pela conquista de
novos mercados, pela exploração mais intensa dos antigos. Ela leva uma estrutura
monopolista que só pode significar a abolição da propriedade privada “para nove
décimos da sociedade”. No entanto, tal desordem produzida pela burguesia e sua
escalada global não é apenas o anúncio da destruição. Ela é a produção involuntária
de novas relações que tem em seu germe a forma de outro mundo:
143
MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 58
144
MARK, Karl; Manifest der Kommunistischen Partei in
http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-engels/1848/manifest/1-bourprol.htm
145
MARX, Karl; O 18 brumário de Luis Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 91
146
Ver, por exemplo, THOBURN, Nicholas; “Difference in Marx: the lumpenproletariat and the
proletarian unamable”; Economy and Society Volume 31 Number 3 August 2002: 434–460
147
Como vemos, por exemplo, em STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the
lumpemproletariat” In: Representations, vol 0, n. 31, p. 84 e LACLAU, Ernesto; La razón populista,
op. cit.
Tal como acontece com o conceito de proletariado, o conceito de
lumpemproletariado não descreve imediatamente um agente econômico, mas um tipo
de sujeito político, ou antes, uma espécie de anti-sujeito político. Lembremos da
estranha extensão que o termo toma no 18 do brumário:
Difícil não ler esta série descrita por Marx com seus literatos e amoladores de tesoura
sem se lembrar da Enciclopédia fantástica de Borges. Pois o que totaliza esta série não
é a suposta analogia entre seus elementos a partir do desenraizamento social. A este
respeito, lembremos como em Luta de classe na França, Marx chega a descrever a
própria aristocracia financeira como “o renascimento do lumpemproletariado nos
cumes da sociedade burguesa”. Há um lumpemproletariado no baixo nível do estrato
social e no alto nível, sendo os do alto nível perfeitamente enraizados à escroqueria
funcional do capitalismo financeiro.
O que os une é, na verdade, uma certa concepção de improdutividade, uma
diferenciação entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, mas diferenciação
concebida do ponto de vista da produtividade dialética da história. Pois o
lumpemproletariado é uma massa desestruturada cuja negatividade não se coloca
como contradição em relação às condições do estado atual da vida. Neste sentido, ele
é a representação social da categoria de negatividade improdutiva. Por isto, trata-se de
uma massa heterogênea que pode ganhar homogeneidade desde que encontre um
termo unificador que lhe dará estabilidade no interior da situação política existente.
Tal termo, no 18 do brumário, não é outro que Napoleão III, “o chefe do
lumpemproletariado”. Aquele que dá homogeneidade a tal heterogeneidade social, a
148
MARX, Karl; O 18 do brumário, op. cit., p. 91
história mesma repetida como farsa e que deve se confessar enquanto farsa para poder
se manter.
No entanto, há de se insistir como o modelo de estabilização produzido por
Napoleão III é uma espécie de estabilização na anomia. Através de Napoleão III, a
heterogeneidade do lumpemproletariado permanece radicalmente passiva, permanece
como ação anti-política, pois acomoda-se à gestão do desenraizamento social, seus
crimes romantizados não se transformam em ação de transformação alguma. Na
verdade, essa desestruturação e indefinição anômica do lumpemproletariado é própria
de quem ainda conserva a esperança de retorno da ordem, ou que não é capaz de
conceber nada fora de uma ordem que ele mesmo sabe estar completamente
comprometida. O que faz suas ações políticas serem apenas “paródias” de
transformações, “comédias”, ou ainda, “mascaradas”: todos termos usados por Marx
no 18 de brumário para falar de revoluções que são, na verdade, tentativas de
estabilização no caos. O lumpemproletariado representa uma negatividade que não
pode ser integrada no processo dialético porque ele representa o congelamento da
negatividade em uma espécie de cinismo social.
Já o caso do proletariado é marcado pela ausência de qualquer expectativa de
retorno. O proletariado é uma heterogeneidade social que simplesmente não pode ser
integrada sem que sua condição passiva se transforme em atividade revolucionária.
Por isto, ao ser desprovido de propriedade, de nacionalidade, de laços com modos de
vida tradicionais e de confiança em normatividades sociais estabelecidas, ele pode
transformar seu desamparo em força política de transformação radical das formas de
vida. Para tanto devemos compreender que a afirmação da condição proletária não se
confunde com alguma forma de demanda de reconhecimento de formas de vida
desrespeitadas, claramente organizadas em suas particularidades. Ao contrário, a
afirmação de tal condição proletária gera a classe destes sujeitos sem predicados
descritos da seguinte forma em A ideologia alemã:
151
Lembremos de uma boa síntese feita por Postone: “O objetivo da produção no capitalismo não são
os bens materiais produzidos nem os efeitos reflexivos da atividade do trabalho sobre o produtor, é o
valor ou, mais precisamente, o mais-valor. Mas, valor é um objetivo puramente quantitativo, não
existe diferença qualitativa entre o valor do trigo e das armas. Valor é puramente quantitativo porque,
como forma de riqueza, ele é um meio objetivado: ele é a objetivação do trabalho abstrato – do trabalho
como meio objetivo de aquisição de bens que não produziu” (POSTONE, Moishe; idem, p. 210)
152
A respeito deste trecho de Marx, Fausto dirá que “a mobilidade do trabalhador não realiza o
universal que é ao mesmo tempo singular, o universal não é outra coisa aqui que uma sucessão de
singularidades ou de particularidades” (FAUSTO, Ruy; Marx: logique et politique, Paris: Publisud,
1986, p. 114). De fato, mas poderíamos ainda nos perguntar sobre que tipo de determinação deve ter
uma universalidade que é ao mesmo tempo singular. Em que condições a universalidade é posta no
campo das singularidades? Insistiria que a universalidade que se singulariza implica, neste caso, recusa
a determinar o singular como uma determinação completa, sendo que a incompletude de sua
determinação é forma de indicar a integração do indeterminado enquanto seu momento próprio. Neste
sentido, é verdade que tal determinação só é incompleta para o entendimento, mas seu gênero de
posição nada tem a ver com as determinações já determinadas como possíveis. Tentarei indicar o
desdobramento deste tempo através de certa leitura do que podemos entender por “vida do gênero” em
Marx.
Neste ponto, podemos compreender melhor a importância de sublinhar que o
elemento decisivo na produção do valor é a submissão do objeto à condição do
próprio. Sua intercambialidade absoluta, resultante de um modo de determinação que
privilegia a instrumentalidade do mensurável, do quantificável e do calculável é a
afirmação maior de que as coisas agora submetem-se por completo à condição do
“próprio”. Elas são a expressão do que os indivíduos podem determinar como sua
propriedade, prontas a serem comparadas e avaliadas com outras propriedades,
prontas para circularem em um circuito de velocidades sem fricções, dominadas na
familiaridade do que conhece o tamanho e o limite, representadas sob a forma
juridicamente determinada do que pode ser descrito no interior de um contrato. Mas o
trabalho livre só pode ser a produção do impróprio. Um impróprio que não é
propriedade comunal, mas circulação do que não tem relações especulares com o
sujeito, por isto o trabalho nunca poderia ser possessão da natureza, dominação das
coisas pelas pessoas. Ele é expressão do que circula fora da utilidade suposta pela
pessoa.
Apropriar-se
153
MARX, Karl; A ideologia alemã, op.cit., p. 98
154
MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel – introdução, São Paulo: Boitempo, 2005, p.
156
155
Sobre este ponto da filosofia hegeliana, tomo a liberdade de remeter ao meu SAFATLE, Vladimir;
Grande hotel abismo: para uma reconstrução da teoria do reconhecimento, São Paulo: Martins Fontes,
2012.
político é o aparecimento de um “sujeito como vazio”156 que não é, em absoluto,
privado de determinações práticas. Essa manifestação de um vazio em relação às
determinações identitárias atuais leva-nos a compreender que o reconhecimento de si
só é possível à condição de uma crítica profunda de toda tentativa de reinstaurar
identidades imediatas entre sujeito e seus predicados.
Se este for o caso, então poderemos dizer que a luta de classes em Marx não é
simplesmente um conflito moral motivado pela defesa das condições materiais para a
estima simétrica entre sujeitos dispostos a se fazerem reconhecer a partir da
perspectiva da integralidade de suas personalidades, como quer alguns como Axel
Honneth. A abolição da propriedade privada deve acompanhar necessariamente a
abolição de uma economia psíquica baseada na afirmação da personalidade como
categoria identitária. Insistamos neste ponto lembrando de um importante trecho do
Manifesto Comunista:
156
BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, Paris: PUF,
2011, p. 260. Trata-se de uma ideia presente também em Jacques Rancière, para quem: “os proletários
não são nem os trabalhadores manuais nem as classes trabalhadoras. Eles são a classe dos não-
contados, que só existe na própria declaração através da qual eles se contam a si mesmos como os que
não são contados” (RANCIÈRE, Jacques; La mésentente: politique et philosophie, Paris: Galilée, 1995,
p. 63).
157
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich: Manifesto Comunista, op. cit., p. 50
compreendida como mera expressão de formas de luta contra a injustiça econômica,
já que ela é também modelo de crítica à tentativa de transformar a individualidade em
horizonte final para todo e qualquer processo de reconhecimento social. O que não
poderia ser diferente se lembrarmos que, ao menos no interior da tradição dialética,
“pessoa” é uma categoria derivada historicamente do direito romano de propriedade
(dominus), uma categoria que, por ainda guardar os traços de sua origem, era vista já
por filósofos como Hegel como “expressão de desprezo”158 devido à sua natureza
meramente abstrata e formal advinda da absolutização das relações de propriedade 159.
Encontramos claramente em Marx esta crítica já presente em Hegel. Lembremos mais
uma vez como Marx insistirá, por exemplo, que a noção de liberdade pressuposta pela
Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1793, era calcada em larga
medida na absolutização do indivíduo proprietário. Daí uma colocação como:
A coisa toda seria muito simples se houvesse apenas a infelicidade da luta que
opõe ricos e pobres. A solução do problema foi encontrada muito cedo. Basta
suprimir a causa da dissensão, ou seja, a desigualdade de riquezas, dando a
cada um uma parte igual de terra. O mal é mais profundo. Da mesma forma
que o povo não é realmente o povo, mas os pobres, os pobres por sua vez não
são realmente os pobres. Eles são apenas o reino da ausência de qualidade, a
efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio de ‘liberdade’, a
propriedade imprópria, o título do litígio. Ele são eles mesmos a união
distorcida do próprio que não é realmente próprio e do comum que não é
realmente comum162.
sujeito hegeliano. Assim, por ironia suprema da história, algo do conceito hegeliano de sujeito acaba
por voltar à cena através da influência surda em operação nos textos de ex-alunos deste anti-hegeliano
por excelência, a saber, Louis Althusser.
162
RANCIÈRE, Jacques; Le mésentente: politque et philosophie, Paris: Galiée, 1995, p. 34
163
Como nos lembra LACLAU, Ernesto; La razón populista, op. cit., p. 308
Reler Marx hoje
Aula 8
A câmara obscura
É neste contexto que aparece a figura da ideologia como uma câmara obscura
capaz de inverter a relação entre a condição e o condicionado, entre o produtor e o
produto, entre o sujeito e o predicado. Lembremos da afirmação de Marx e Engels:
A consciência não pode ser jamais algo diferente do que o ser consciente e o
ser dos homens é um processo de vida real. Se em toda a ideologia os homens
e suas relações aparecem invertidos como em uma câmara obscura, este
fenômeno provém igualmente de seu processo histórico de vida, assim como a
inversão dos objetos ao se projetarem sobre a retina provém de seu processo
diretamente físico164.
Este trecho expõe ideias centrais da teoria da ideologia de Marx e Engels. Primeiro, a
compreensão de que a consciência não se determina a partir de uma estratégia
transcendental de fundamentação das condições prévias de possibilidade de toda
164
Idem, p. 48
experiência. Antes, seu ser é o processo real de vida. No que já fica claro que Marx
nunca abandonará a distinção necessária entre ideologia e processo real. O advento da
ideologia, por sua vez, é descrito da mesma forma que Feuerbach descrevia a
formação da religião, a saber, os homens e suas relações se invertiam e apareciam
como relações dos mitos entre si.
De fato, alienação, ideologia, fetichismo: todos esses termos tem em comum,
ao menos em Marx, a submissão a uma dinâmica de inversões. Em todos esses casos,
vemos processos nos quais produtos humanos ganham autonomia em relação aos
seres humanos. No entanto, esta autonomia cria uma ordem que impede os próprios
seres humanos de exteriorizarem sua condição de ser do gênero, assim como os
impede de produzir uma totalidade verdadeira. Esta autonomia é, na verdade, forma
de sujeição, ela é uma maneira do homem ser dominado por aquilo que ele próprio
produziu. Por isto, Marx e Engels precisam dizer:
166
Idem, p. 219
É tanto mais fácil para o burguês provar a identidade de suas relações
mercantis e individuais, ou ate mesmo das genericamentes humanas, a partir
de sua língua, uma vez que essa mesma língua é um produto da burguesia e
por isso, tanto na realidade quanto na língua, as relações de regateio foram
tornadas o fundamento de todas as outras. Por exemplo, propriété propriedade
e característica, property propriedade e peculiaridade, “próprio” em sentido
mercantilista e em sentido individual, valeur, value, valor - commerce,
intercâmbio comercial – échange, exchange, troca e assim por diante, termos
que são usados tanto para relações comerciais quanto para características e
relações entre indivíduos como tais167.
Ou seja, a língua tem uma história, ela expressa um sistema de ideias que
estabelece os limites e modos de experiência a partir da naturalização dos princípios
de relações mercantis. De onde se segue este jogo de indistinção generalizada entre
relações comerciais e relações entre indivíduos e de onde se segue também a
compreensão dos indivíduos modernos como produtos da internalização de dinâmicas
comerciais. Uma crítica da ideologia mobilizará a história para desvelar a
sedimentação de categorias, a naturalização de pressupostos.
Mas esta história não será uma “coleção de fatos mortos”, mas uma história
das materialidades, dos processos materiais de produção. Por isto, para não ser
ideologia, a “história da humanidade” (pois haverá uma história universal da
humanidade para Marx) deve ser elaborada em conexão à história da indústria e do
intercâmbio, história dos regimes de produção e de troca. Mas, por sua vez, esta
história dos regimes de produção e de troca não será a descrição de sistemas meta-
estáveis. Um regime de produção é sempre atravessado por instabilidades descrita sob
a forma de contradições. Seu desenvolvimento é também a história de sua destruição e
é este movimento contraditório de realização através da destruição de si que dará à
história sua dialética. Uma dialética na qual encontramos formas gerais de
movimento, o conceito produtivo de contradição, a crítica da identidade e suas
operações de negação determinada.
Para nós, que vimos como as grandes “metanarrativas” históricas, com seus
conflitos que se dirigiriam à revolução, foram denunciadas como as construções
ideológicas por excelência. Este é um tema presente, por exemplo, em Jean-François
167
idem, p. 260
Lyotard em seu A condição pós-moderna. Mas é certo que Marx não pode admitir tal
crítica pois ela, a seu ver, retira do horizonte prático toda possibilidade de
emancipação real. Por isto, a compreensão da gênese material das ideias não ocorre
sem admitir a existência de “pressuposições reais” que precisarão ser conservadas por
Marx e que guiam seu conceito de história. Isto explica, volto a insistir, porque Marx
e Engels não estão dispostos a denunciar todo e qualquer sistema de ideias como
expressão de “universalidades abstratas” que mascarariam a perspectiva irredutível
dos indivíduos como única existência concreta. O que significa que a crítica da
ideologia não é, ao menos em Marx, imediatamente uma crítica dos universais, muito
menos a assunção de um historicismo generalizado que poderia beirar o relativismo.
Em Marx, em última instância, a ideologia se contrapõe à dialética, à compreensão
dialética da dinâmicas dos processos materiais. Esta dialética define o campo do real.
Não é um acaso que quase dois terços do primeiro livro de A ideologia alemã
seja a crítica a Max Stiner, representante de tal nominalismo estrito. Stiner é o
primeiro a afirmar que não apenas as ideias morais, religiosas, metafísicas são algo
que Marx chamaria de “ideologia”, mas também universais como “povo”, “classe”,
“revolução”, “proletariado” e todo e qualquer conceito que elimina a realidade
singular dos indivíduos e suas propriedades. De certa forma, Stiner é uma espécie de
precursor da crítica pós-moderna aos universais. O mínimo que podemos dizer é que
esta crítica não é aquela colocada em circulação por Marx. Pois mais do que uma
crítica totalizante dos universais, Marx está disposto a fazer uma crítica dos
individuais.
Produção, divisão
170
Idem, p. 48
em condições de se emancipar do mundo e de se entregar à criação da teoria
“pura”, da teologia “pura”, da filosofia “pura”, da moral “pura”, etc171.
Retomemos mais uma vez um debate sobre a estrutura da crítica no idealismo alemão,
isto a fim de reintroduzir nossa discussão sobre o conceito de ideologia. O
pensamento de Marx é, acima de tudo, um pensamento que procura colocar em
operação uma forma renovada de crítica. Lembremos mais uma vez aqui das
mutações do conceito de crítica no interior do idealismo alemão. Grosso modo,
podemos dizer que conhecemos três inflexões fundamentais do conceito de crítica no
pensamento alemão do final do século XVIII e século XIX. A primeira é fornecida
por Kant, que anunciará um verdadeiro programa ao afirmar:
Nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que se submeter. A religião,
pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente
subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não
podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode
sustentar o seu livre e público exame173.
Esta época que questiona tudo que procura validade para além do tribunal do exame
público (öffentliche Prüfung) da razão, da capacidade de dar e oferecer razões tendo
em vista a identificação do melhor argumento, é a época da crítica, que destrona a era
da metafísica. Esta crítica tem duas características fundamentais: a) ela esclarece os
conhecimentos que podem alcançar validade independentemente de toda experiência,
ou seja, ela afirma-se através de uma estratégia transcendental na busca do que pode
ser absolutamente necessário; b) ela é definição dos limites que estruturam o campo
dos usos legítimos de cada faculdade do conhecimento. Daí sua definição do
problema da crítica como: “o que podem e até onde podem o entendimento e a razão
conhecer, independentemente da experiência”174. Ou seja, há em Kant uma reflexão
sobre os limites do conhecer como exigência a priori para o esclarecimento das
condições de possibilidade de toda experiência racional, ou seja, de toda experiência
pensada como constituição de representações de objetos.
173
KANT, Immanuel; Crítica da razão pura, Calouste Gulbenkian, A XII
174
Idem, A XVII
A segunda versão encontramos em Hegel e consiste em definir a crítica como
exposição do sistema de erros da consciência. Hegel chega a dar um nome próprio à
tal exposição do sistema de erros da consciência em sua experiência do mundo, a
saber, fenomenologia. Aceitar o primado de tal perspectiva fenomenológica implica,
ao menos para Hegel, abandonar a estratégia transcendental, própria a Kant, de
definição das condições a priori de possibilidade da experiência. Em seu lugar, entra
em cena uma reflexão sobre a gênese histórica daquilo que aparece à consciência
como limite de toda experiência possível. Descrição da gênese que é, ao mesmo
tempo, crítica de suas expectativas de validade universal. Se Hegel jogava tanto com
o trocadilho alemão entre ir ao fundamento (zu Grund gehen) e perecer (zugrunde
gehen) é porque se tratava de deixar evidente como a crítica mostra que o verdadeiro
esclarecimento do fundamento equivale à dissolução do fundado. Neste sentido, a
crítica se transforma em uma crítica imanente na qual é questão de descrever a
maneira com que a consciência é ultrapassada pela experiência ao tentar ir em direção
ao fundamento de seu próprio saber, tendo assim, de fato, a experiência das limitações
de suas próprias representações. Neste sentido, a crítica não é apenas esclarecimento
dos limites, mas ultrapassagem dos mesmos.
A terceira versão encontramos em Marx e consiste em uma radicalização
materialista dessa compreensão da crítica como exposição da gênese histórica do que
aparece à consciência como limite de toda experiência possível, exposição da gênese
que visa demonstrar a precariedade das expectativas de validade da situação atual.
Marx compreende que a ultrapassagem produzida pela crítica hegeliana ainda peca
por ser formal, ou seja, por não se realizar em uma transformação material do mundo,
mas resume-se a ser uma mudança de perspectiva do pensamento que ocorre na
abstração da consciência-de-si. Em Marx, a crítica é uma forma de abrir espaço à
emergência de um sujeito político capaz de transformar materialmente o mundo. Para
tanto, a ele deve ser, inicialmente, uma reflexão sobre as estruturas das crises,
reflexão sobre a maneira com que formas de vida entram em crise. Mas o pensamento
de Marx não é apenas uma teoria das crises. Ele é também uma teoria das revoluções,
ou seja, ele é uma descrição da forma com que crises levam à emergência de sujeitos
com forte potencial revolucionário.
Neste sentido, se a crítica em Kant produziu uma noção de transcendental
como condição para uma fundamentação ahistórica do saber, se a crítica em Hegel
produziu uma fenomenologia como condição para o advento de um saber absoluto, a
crítica em Marx produzirá uma perspectiva capaz de fundamentar a compreensão
tanto da precariedade da situação atual de reprodução material da vida quanto da
necessidade de um sujeito cuja ação é portadora de transformações profundas. Tal
perspectiva é o que entendemos atualmente por “materialismo histórico”. Tentemos
pois entender melhor o que pode ser este materialismo histórico ou, se quisermos,
essa concepção materialista da história.
Ideologia e real
A consciência não pode ser jamais algo diferente do que o ser consciente e o
ser dos homens é um processo de vida real. Se em toda a ideologia os homens
e suas relações aparecem invertidos como em uma câmara obscura, este
fenômeno provém igualmente de seu processo histórico de vida, assim como a
inversão dos objetos ao se projetarem sobre a retina provém de seu processo
diretamente físico175.
Temos duas ideias importantes aqui. Primeiro, a ideologia como uma inversão
semelhante ao fenômeno físico de produção da imagem em uma câmara escura. Esta
inversão é entre o sujeito e o predicado, entre a causa e o efeito, o condicionante e o
condicionado. O que é predicado se transforma em sujeito, o que é sujeito aparece no
lugar do predicado. O que é efeito se transforma em causa, o que é causa aparece na
posição de efeito. Mas isto ocorre porque o sujeito é marcado por uma contradição
fundamental que ele procura resolver projetando-se em um ideal. Marx utiliza o
exemplo da família enquanto instituição marcada por contradições que
Segundo, o que se contrapõe à ideologia é o “processo de vida real”, ou seja, a
ideologia está para o imaginário assim como os processos da vida estão para o real176.
175
Idem, p. 48
176
Como bem viu Paul Ricoeur: “o conceito de ideologia que Marx utiliza no texto se opõe não à
ciência, mas à realidade (…) Em A ideologia alemã, o ideológico é o imaginário enquanto oposto ao
real. Por conseguinte, a definição dfo conceito de ideologia depende daquilo que é a realidade – classe
ou indivíduo – com a qual ela contrasta” (RICOEUR, Paul; Ideologia e utopia, p. 93)
Marx e Engels utilizam em vários momentos de A ideologia alemã noções
como “processos de vida real”, “linguagem da vida real”, “indivíduos reais”, isto para
salientar como há uma dimensão da experiência que não se representa (Vorstellung)
em um sistema de ideias, mas que se apresenta (Darstellung) em uma exteriorização
efetiva. A linguagem da vida real não é uma representação ideológica da vida, mas
uma apresentação da vida em sua dinâmica própria. Sem esta assunção arriscada e
prenhe de consequências de uma espécie de expressão imanente do real, a crítica de
Marx e Engels perde seu fundamento.
Em Marx, o campo do real é a história. Mas percebamos inicialmente o que
isto implica. Contrariamente ao materialismo do século XVIII, o real não é a empiria,
não é o que se abre a nós através da imediaticidade dos sentidos. Real não são os
objetos tais como se apresentam imediatamente à nós, não é a matéria como dado
primeiro e informado, mas os processos que constituem o que se apresenta à nós com
a aparência da imediaticidade. Esses processos são descritos através de um regime de
discurso que conhecemos por história. Daí porque Marx dirá:
178
MARX, Karl; Grundrisse, p. 54
179
ENGELS, Odilo; GÜNTHER, Horst, MEIER, Christian e KOSELLECK, Reinhart; O conceito de
história, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 41
180
Como dirá Koselleck: “Assim, ao longo de cerca de 2000 anos, a história teve o papel de uma
escola, na qual se podia aprender a ser sábio e prudente sem incorrer em grande erro” (KOSELLECK,
Reinherdt; Futuro Passado, Rio do Janeiro: Contraponto, 2006, p. 42)
181
Idem, p. 43
Mas a partir do Iluminismo e, principalmente, da Revolução Francesa, tal
continuum explode. A experiência de um tempo radicalmente novo ligado à
Revolução pressupõe a possibilidade da ordem política poder ser profundamente
reconfigurada. Neste espaço aberto, orientar-se na ordem política não implica mais
agir a partir do reconhecimento de exemplos vindos do passado, mas implica o
conhecimento de causas que determinam o presente como depositário da latência do
que ainda não se realizou. Haveria um processo em marcha, cada vez mais acelerado,
que empurra o tempo para frente em direção a uma realização sem referência com o
que até agora foi feito. Haveria um projeto que parece indicar a possibilidade de
encarnar na ordem política o que a filosofia iluminista tinha tematizado através da
noção de “progresso”. O tempo entra assim em regime de progressão, de inquietude e
é dele que, a partir de agora, irá tratar a historia. Por isto, a história não será mais o
espaço de uma reprodução do passado no presente, mas de uma construção que nos
remete ao que poderíamos chamar de corpo social por vir, ou seja, corpo social que
promete uma unidade semanticamente distinta daquela que se impõe na atualidade.
Notemos simplesmente que será a partir deste momento que poderemos falar
de “a história” como autônoma e autoativa, e não apenas “história de ...”. Esta
autonomia expõe que a história não será mais apenas a narrativa de ações de sujeitos
(como a história de César) ou de objetos determinados (como a história do Brasil). Ela
será um “metaconceito”182 que descreve o processo de temporalização da experiência,
com causas e consequências próprias ao desdobramento temporal, com uma
velocidade própria. A história como discurso com aspirações científicas pode se
constituir, assim pode aparecer um “tempo especificamente histórico”183.
É neste contexto que Marx se move. Ele procura compreender a história a
partir de um vetor que não é mais a reprodução contínua das formas passadas, mas a
construção incessante de novas formas. Isto exige que a história mundial seja
completamente redescrita a partir de um vetor duplo. Estes serão os dois vetores
fundamentais do materialismo histórico de Marx, a saber, os conceitos de “modo de
produção” e de “luta de classes”. Por um lado, a história em sua versão materialista se
organiza a partir de uma sequência de modos de produção. “A história é história das
forças de produção em desenvolvimento”184. Por outro, estes modos de produção são
182
ENGELS e alli, idem, p. 122
183
KOSELLECK, Reinhart; Futuro passado: contribuição á semântica dos tempos históricos, Rio de
Janeiro: Contraponto, 2006, p. 54
184
Idem, p. 100
animados por contradições que produzem uma sequência inumerável de lutas e
conflitos. Como em Hobbes, a vida social é um guerra. Esta guerra é ininterrupta, às
vezes aberta, às vezes iminente. No entanto, trata-se de uma guerra que se organiza a
partir de um modo geral de conflito descrito como “luta de classe”. Daí esta colocação
famosa de Marx e Engels:
A história de toda sociedade existente até hoje tem sido a história das lutas de
classe. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre de
corporação e companheiro, em uma palavra, opressor e oprimido, em
constante oposição, tem vivido uma guerra ininterrupta, ora disfarçada, ora
aberta, que terminou sempre pela reconstituição revolucionária de toda a
sociedade ou pela destruição das classes em conflito185.
Os modos de produção
Marx define a análise das condição materiais de produção como base real à qual a
ideologia se contrapõe. Tais condições se organizam em modos de produção que
funcionam como verdadeiros cortes epistemológicos a desconstituir formas de vida
antigas e reinstaurar novas. Os modos de produção articulam, em uma certa
185
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Manifesto comunista, p. 35
continuidade, bases econômicas, formas de consciência social e superestruturas
jurídico-políticas. Ou seja, elas determinam, em uma relação de mútua implicação,
regimes de produção e circulação de bens, regimes de governo e figuras da
consciência. Este último ponto nos lembra, entre outras coisas, como: “a produção
produz não apenas um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto” 186.
Ou seja, não estamos a tratar de sujeitos dotados de normatividades imanentes, como
necessidades naturais, modos de ser naturalmente determinados, divisões e diferenças
organicamente marcadas. Estamos a tratar de sujeitos que se subjetivam, que
constituem sua vida interior e seus modos de ser, através das determinações dos
regimes de reprodução material.
Notem que a base econômica fornece um modo de determinação que Engels
descreveu uma vez como “determinação em última instância”. Ou seja, não se trata de
um mero determinismo econômico, já que, mesmo tendo uma dominância fundada na
base econômica, isto segundo os pressupostos de Marx e Engels, os outros processos
presentes em um modo determinado de produção, normalmente designados como
“superestrutura”, podem reagir à base e influenciá-la. Mesmo não tendo uma
horizontalidade, afirmar que a economia determina apenas em última instância
significa reconhecer uma relação mais complexa de mútua causalidade.
Estes regimes de reprodução, por sua vez, são organizados a partir de uma
contradição fundamental que define a forma geral do movimento da história. Esta
contradição se passa entre o que Marx nomeia “forças produtivas” e “relações sociais
de produção”. Por forças produtivas entende-se todas as forças utilizadas para o
metabolismo com a natureza, seja sob a forma da dominação ou do controle da
natureza. Temos aqui basicamente uma combinação entre trabalho humano e meios de
trabalho (instrumentos, tecnologia, terra etc.). Já relações sociais de produção (como a
escravismo, o trabalho assalariado, a dominação feudal) são formas de organização do
processo produtivos, de suas relações de propriedade e de suas relações de
apropriação. É a isto que Marx e Engels aludem ao afirmarem: “Todas as colisões da
história nascem, portanto, segundo nossa concepção, da contradição entre as forças
produtivas e as formas de intercâmbio”187.
Marx insiste que essas relações entre forças e formas tem estabilizações
meramente locais. O desenvolvimento das forças produtivas, com seu
186
MARX, Karl; Grundrisse, p. 47
187
MARX, Karl; A ideologia alemã, p. 102
desenvolvimento técnico e o desenvolvimento da força de trabalho vai até um ponto
em que as relações sociais de produção entram em crise. Elas entram em crise por um
processo duplo. Primeiro, as forças produtivas se desenvolvem criando um excesso de
produção, um excesso de atividade que não pode mais ser regulado no interior das
relações de produção. Ou seja, uma relação de produção bem sucedida é aquela que
produz um excesso tal que coloca todo o sistema em crise.
Por exemplo, segundo Marx e Engels a burguesia produz crises descritas como
“epidemias de superprodução” que destroem grande parte das forças produtivas já
criadas: “A sociedade possui civilização em excesso, meios de subsistência em
excesso, indústria em excesso, comércio em excesso”. Um excesso que: “lança na
desordem a sociedade inteira e ameaça a existência da propriedade burguesa”. Pois tal
excesso de produção, de comércio, de civilização leva a uma desvalorização
tendencial da produção que só pode ser superada através ou da destruição violenta de
grande quantidade de forças produtivas ou pela conquista de novos mercados, pela
exploração mais intensa dos antigos. Ela leva uma estrutura monopolista que só pode
significar a abolição da propriedade privada “para nove décimos da sociedade”. Note-
se um ponto importante. Por ser impulsionada pela produção do excesso, a burguesia
é produtora necessária de desordem, ela nunca consegue ser adequada a seu próprio
conceito.
Mas aqui entra um segundo ponto. Pois através do excesso, as relações de
propriedade vigentes e os modos de organização do processo produtivo não
conseguem mais dar conta de suas próprias determinações normativas, produzindo um
sistema contínuo de contradições. Ou seja, as sociedades entram em crise por não
serem capazes de realizar aquilo que elas mesmas prometem. Por exemplo:
A cada dia, fica mais claro que as relações de produção no interior das quais a
burguesia se mede não tem um caráter único, um caráter simples, mas um
caráter de duplicidade; pois nas mesmas relações nas quais a riqueza se
produz, a miséria também se produz também, nas mesmas relações nas quais
há desenvolvimento de forças produtivas, há uma força produtora de
repressão, que tais relações só produzem a riqueza burguesa ao aniquilar
continuamente a riqueza dos membros integrantes desta classe, produzindo um
proletariado cada vez mais crescente188.
188
MARX, Karl; Miséria da filosofia, p. 177
Estas crises produzem um processo que, ao menos segundo Marx e Engels,
obedece um certo progresso. As crises caminham em direção à consolidação de um
sujeito político capaz de apreender a totalidade das forças produtivas: “o que
corresponde ao desenvolvimento dos indivíduos como indivíduos totais e à
eliminação de tudo o que há neles de natural, de espontaneamente gerado” 189,
repetindo aqui o topos hegeliano da crítica à imediaticidade das representações
naturais da consciência. Esse desenvolvimento, no entanto, não se acha subordinado a
um plano de conjunto. As diversas fases anteriores não são jamais superadas
completamente, mas podem se arrastar por séculos ao lado dos interesses vitoriosos.
No entanto, isto não modifica o fato delas obedecerem um vetor único que se
desdobra em várias velocidades distintas.
Assim, uma sociedade vinculada, por exemplo, ao modo de produção asiático
precisa necessariamente caminhar em direção ao capitalismo. Marx chega mesmo a
fazer a defesa do imperialismo inglês na colonização da Índia, afirmando, e neste
ponto o peso dos pressupostos da filosofia hegeliana da história é evidente, que a
Índia, exemplo maior da permanência deste modo asiático de produção, estaria até
então fora da história:
Assim pois, a Índia não podia deixar de escapar ao seu destino de ser
conquistada e toda história passada, supondo que tenha existido tal história, é a
sucessão das conquistas sofridas por ela. A sociedade hindu carece por
completo de história, ou pelo menos de história conhecida. O que chamam de
história da Índia não é mais que a história dos sucessivos invasores que
fundaram seus impérios sobre a base passiva desta sociedade imutável que não
lhes oferecia nenhuma resistência. Não se trata, portanto de se a Inglaterra
tinha ou não direito de conquistar a Índia, senão de se preferimos uma Índia
conquistada pelos turcos, pelos persas, ou pelos russos a uma Índia
conquistada pelos britânicos190.
Por isto, a colonização britânica é vista como uma aceleração da história em direção à
constituição necessária de uma história universal que, pelas mãos inconscientes da
189
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, p. 96
190
MARX, Karl; The British Rule in India, New York Tribune, 1853
burguesia inglesa, fornecerá as condição para a generalização universal do processo
revolucionário:
191
Idem
A relação comunitária em que entram os indivíduos de uma classe, relação
condicionada por seus interesses comuns frente a um terceiro, era sempre uma
comunidade a qual pertenciam esses indivíduos somente na condição de
indivíduos médios, somente enquanto viviam dentro das condições de
existência de sua classe, uma relação que não os unia como indivíduos mas
como membros de uma classe. Na comunidade dos proletários
revolucionários, ao contrário, que tomam sob seu controle seus condições de
existência e a de todos os membros da sociedade, ocorre justamente o oposto;
tomam parte dela os indivíduos como indivíduos192.
192
Idem, p. 102
193
Idem, p. 95
perspectiva de classe em operação. Neste momento, uma outra história começa: uma
história do homem.
Reler Marx hoje
Aula 10
194
KOSELLECK, Reinhart; Futuro passado, p. 24
Neste sentido, uma das maiores produções do século XVIII foi uma certa
aceleração da história, não mais em direção a sua suspensão, mas em direção a sua
realização como abertura de possíveis até então impossíveis. A experiência de um
tempo radicalmente novo ligado à Revolução pressupõe a possibilidade da ordem
político poder ser profundamente reconfigurada. Neste espaço aberto, orientar-se na
ordem política, como dissera na última aula, não implica mais agir a partir do
reconhecimento de exemplos vindos do passado, mas implica o conhecimento de
causas que determinam o presente como depositário da latência do que ainda não se
realizou. Haveria um processo em marcha que empurra o tempo para frente em
direção a uma realização sem referência com o que até agora foi feito. Haveria um
projeto que parece indicar a possibilidade de encarnar na ordem política o que a
filosofia iluminista tinha tematizado através da noção de “progresso”. O tempo entra
assim em regime de progressão e é dela que, a partir de agora, irá tratar a historia. Por
isto, a história não será mais o espaço de uma reprodução do passado no presente,
mas de uma construção que pode inicialmente parecer começar no passado em
direção ao presente.
Mas esta “história” é profundamente assombrada pela perspectiva de
revoluções, o que pode provocar riscos como: “o tempo que assim se acelera a si
mesmo rouba ao presente a possibilidade de se experimentar como presente,
perdendo-se em um futuro no qual o presente, tornado impossível de se vivenciar, tem
que ser recuperado por meio da filosofia da história” 195. Esta filosofia da história pode
transformar a experiência revolucionária em horizonte teleológico do político. Nesta
perspectiva, por trás da aparência de abertura ao acontecimento sustentada pela
esperança na revolução e sua força de projeção temporalizada, pulsa uma fuga
contínua em direção à suspensão do tempo, uma sustentação contínua de expectativas
feitas apenas para fornecerem um horizonte de transcendência negativa que não pode
se encarnar. Pois, aqui, revolução é algo que se espera. Mas a espera da revolução tem
a característica de ser expressão maior de um tempo histórico pressionado pela
expectativa e animado pelas interversões incessantes entre esperança e medo. Neste
sentido, não foram poucos que lembraram como, no interior da experiência moderna,
a revolução adquire: “um sentido transcendental, tornando-se um princípio regulador
tanto para o conhecimento quanto para a ação de todos os homens envolvidos na
195
Idem, p. 37
revolução”196. Isto quer dizer: ela se transforma em condição de possibilidade para a
produção de sentido do tempo histórico em geral, sendo apenas isto, a saber, uma
condição categorial de possibilidade para a produção de sentido e, consequentemente
da experiência histórica, por descrever a forma geral do tempo em movimento de
aceleração e repetição. Mas por ser forma geral, ela não poderá em momento algum
ser encarnação de um tempo concreto. É esta impossibilidade de encarnação que lhe
dá o caráter de uma transcendência negativa.
Um conceito transcendental é expressão da determinação categorial de
predicados em geral. Ele não define previamente quais objetos lhe convém, qual a
extensão de seu uso, mas definirá quais as condições para que algo seja um objeto,
que predicados algo pode portar. Nesta definição, decide-se previamente a extensão
da forma do que há a ser experimentado, pois a determinação categorial
transcendental ignorará acontecimentos que exigiriam mudanças na estrutura geral da
predicação, que imporiam uma gênese de novas categorias. Tal determinação formal
acaba por se transformar, assim, na expressão da impossibilidade de todo e qualquer
processo no qual a experiência produza categorias estranhas àquelas que pareciam
previamente condicioná-la. Experiências que, do ponto de vista das condições de
possibilidade temporalmente situadas no presente, produzem necessariamente
acontecimentos impredicáveis. É isto que levou várias correntes da filosofia
contemporânea a criticar o próprio conceito de história enquanto espaço de exposição
de uma metafísica da verdade.
No entanto, nada afetado pela esperança com seu sistema de projeções pode
operar com o desamparo que acontecimentos impredicáveis produzem. Pois a
impredicação é o que mostra a inanidade de toda expectativa, não no sentido de
mostrar seu equívoco de previsão, mas seu erro categorial. A temporalidade concreta
dos acontecimentos é impredicável pois sem referência com o horizonte de
expectativas da consciência histórica, por isto ela é expressão de um tempo
desamparado, marcado exatamente pela contingência. Talvez isto explique porque,
por exemplo, várias tentativas de encarnação da Revolução, com sua maiúscula de
rigor, no processo revolucionário concreto, ou seja, várias tentativas de encarnação da
força insurgente da esperança em políticas de governo serão indissociáveis de uma
certa imunização produzida pela necessidade de apelar à circulação social do medo,
compondo com ele uma dualidade afetiva indissociável. Ela se transforma em prova
196
Idem, p. 69
do corolário: “não haverá esperança sem medo”. Medo que expressa a
impossibilidade da encarnação, pois expressão do desvio e da traição sempre à
espreita contra o corpo social produzido pela esperança. Medo do retorno do tempo e
dos atores que já deveriam estar mortos. O corpo social por vir da esperança não se
sustenta, por isto, sem a necessidade de imunização constante, sem a necessidade de
ações violentas periódicas de “regeneração do corpo social” (BODEI, Idem, p. 426),
em suma, sem a transmutação contínua da esperança em medo. A história das grandes
revoluções, seja a francesa com seu “grande medo”197, seja a russa com seus
“expurgos”, apenas para ficar em dois dos melhores exemplos, nos mostra isto bem.
Contra esta passagem incessante nos opostos complementares da esperança e
do medo, muitos acreditaram dever retirar a política de toda dimensão do porvir,
produzindo um esfriamento das paixões através da recusa de qualquer ruptura
desestabilizadora profunda de nossos conceitos já em circulação de democracia.
Como se o tempo histórico das revoluções fosse uma simples aporia tão bem descrita
por Hegel quando, ao falar da passagem da insurreição e da mobilização ao governo
no jacobinismo, lembrava: “o [simples] fato de ser governo o torna facção e
culpado”198; resultado necessário de um liberdade que não é capaz de superar seu
primeiro impulso negativo.
Mas talvez seja possível liberar a política transformadora de toda atividade de
projeção temporal, dando-lhe um temporalidade concreta. Neste sentido, gostaria de
fornecer uma interpretação ao problema da revolução em Marx que possa responder a
acusação de que sua filosofia da história seria animada por uma “metanarrativa” que
parece fundir a multiplicidade das identidades coletivas em uma unidade compacta.
Esta monarquia financeira resistiu até 1848 quando, sob o impacto de uma
insatisfação de massa devido a uma série de crises econômicas, caiu em 24 de
fevereiro depois de combates sangrentos e barricadas em Paris. Esta primeira
revolução contava com a burguesia e com o proletariado liderados, entre outros, pelos
socialistas Louis Blanc, Auguste Blanqui. Os primeiros meses da revolução viram a
colisão entre o proletariado, a pequena-burguesia republicana e a burguesia moderada.
Em 23 e 24 de abril, realizam-se eleições para a Assembleia Constituinte. O Partido
da ordem, representando a burguesia moderada e os monarquistas, ganha a maioria
absoluta. Começa então a tentativa de impor uma série de leis que iam contra os
interesses dos socialistas. Com isto, uma novas revoltas operárias explodem em maio
e junho sob o lema: “Queremos uma República democrática e social”. A reação
governista será brutal: decretação do estado de sítio, 1500 insurretos mortos, 12000
presos e 4000 deportados para a Argélia.
Promulgada a Constituição em novembro, eleições presidenciais foram
convocadas para dezembro de 1848. Dois candidatos se apresentam: Cavaignac,
responsável direto pela repressão à insurreição operária de junho, e Luís Bonaparte,
sobrinho de Napoleão. Será Luís Bonaparte que vencerá, recebendo os votos tanto
199
MARX, Karl; Lutas de classe na França, p. 37
dos operários, que detestavam Cavaignac, quanto dos conservadores. Em 1851, ele
dará um auto-golpe proclamando o Segundo Império e coroando-se imperador sob o
nome de Napoleão III. Através de dois plebiscitos, o golpe de estado e seu
coroamento foram ratificados. Ele ficará no poder até 1870, quando a França perder a
Guerra Franco-prussiana.
A derrota da 1848, em especial das insurreições de junho, será um fato
decisivo para Marx. Lembremos que o Manifesto Comunista é publicado pela
primeira vez exatamente em fevereiro de 1848. Ou seja, quando Marx e Engels falam
que um “fantasma ronda a Europa”, eles realmente acreditavam em uma revolução
mundial iminente. Os descaminhos de 1848 marcarão Marx de forma decisiva. Eles
mostrarão a Marx como é possível transformar uma revolução iminente em paródia,
como o tempo de transformação pode ser aprisionado em um processo que será, na
verdade, uma forma astuta de restauração. Nesta reflexão, Marx irá perceber que a
radicalização dos conflitos sociais não levam, necessariamente, à revolução. Ela pode
ficar aprisionada por décadas em um falso movimento
203
Idem, p. 27
204
SILBERTIN-BLANC, Guillaume; Pensée politique en temps inactuels, p. 64
linha ascendente. Não é apenas o heroísmo da Roma antiga que é convocado a fim de
permitir à burguesia alucinar seu próprio papel histórico. São também as promessas
quebradas à plebe, os tribunos assassinados, as revoltas sufocadas, em suma, o que
ficou na histórica como derrota a espera de outra oportunidade e é isto que impulsiona
a Revolução em linha ascendente. Pois ressuscitar os mortos é aproximar-se de outro
tempo, não é apenas trazer os mortos para o presente, mas também presentificar o
tempo do passado em sua integralidade. O tempo da Revolução é uma temporalidade
outra; é, para usar um conceito hegeliano, um “presente absoluto”. Há um outro
tempo a assombrar o presente e ele só deixará de assombrá-lo quando não houver
mais presente tal como até agora houve. Pois as rupturas nos modos de produção que
as Revolução proletárias procuram realizar são modificações que, como bem lembra
Balibar, modificam: “a base econômica, as superestruturas jurídicas e políticas, as
formas da consciência social”205. Neste contexto, “formas da consciência social”
significa o modo de determinação dos sujeitos e de sua experiência espaço-temporal.
As configurações de sujeitos vão juntamente com os modos de produção.
No entanto, Marx fala que: “não é do passado, mas unicamente do futuro, que
a revolução social do século XIX pode colher sua poesia” 206. A princípio, parece que
Marx está a dizer que não se trata mais de recorrer a memórias históricas para
travestir burgueses de césares, insensibilizando a sociedade em relação ao real
conteúdo dos processos de transformação social. Como Marx insistirá, ao invés da
fraseologia histórica superar o verdadeiro conteúdo do processo revolucionário, era o
conteúdo que deveria enfim superar a fraseologia. No entanto, talvez Marx fale que é
apenas do futuro que a revolução poderá colher sua poesia porque não há figuras no
passado que possam dar forma à subjetividade política revolucionária pois o que uma
revolução faz ressoar é exatamente aquilo que, no interior do passado, ficou sem
forma e figura, aquilo que ficou sem lugar. A poesia da revolução é a poesia do que
não se inscreveu no tempo da história. Neste sentido, tem razão Walter Benjamin
quando afirma: “O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre
vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é por isso
um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a
acontecimentos que podem estar dele separados por milênios”207. Ou seja, a revolução
205
BALIBAR, Etienne; “Concepts fondamentaux du matérialisme historique”, In: ALTHUSSER,
Louis (org.); Lire le Capital, p. 424
206
MARX, Karl; 18 de brumário, p. 28
207
BENJAMIN, Walter; Sobre o conceito de história, p. 232
é este processo que reconstrói o tempo a partir da capacidade de “extrair uma época
determinada do curso homogêneo da história”208. Tal extração pode, inclusive,
paralisar o tempo em uma configuração saturada de tensões que se cristaliza como
uma mônada. Assim, o tempo pode paralisar-se em uma saturação contínua, fazendo
com que os múltiplos instantes na história sejam o mesmo instante em repetição, até
que tal pressões de tensões produza a emergência de um novo sujeito.
Por exemplo, sabemos como Marx dirá que as revoluções do século XVIII são
intensas e tem vida curta, enquanto as revoluções do século XIX (1830, 1848) estão
em constante auto-crítica, parecem interromper sua marcha para começar tudo de
novo, para zombar da debilidade de suas primeiras tentativas. Elas “recuam
repetidamente ante a enormidade ainda difusa de seus próprios objetivos até que se
produza a situação que inviabiliza qualquer retorno”209. O que significa tais recuos e
interrupções? Podemos dizer que eles são os processos que paulatinamente produzem
o sujeito revolucionário através da consciência de sua ausência completa de lugar.
Marx, por exemplo, lembra como é recorrente este processo no qual o proletariado
abre mão de revolucionar o velho mundo para se lançar a: “experimentos doutrinários,
bancas de câmbio e associações de trabalhadores” 210. Como se o proletariado
acreditasse que os problemas sociais que enfrenta poderão ser resolvidos através da
conservação reajustada dos modos atuais de produção, dos modos atuais de narrativa
e de dramatização política. Ao fazer isto, eles só poderão produzir uma repetição
histórica como paródia da revolução. Repetição como aprisionamento em um tempo
morto no qual o que retorna, retorna sob a forma da impotência social.
Assim, por exemplo, incapaz de assumir sua condição de completa
despossessão o proletariado francês em 1848 deixou-se apreender pelo imaginário
burguês da Revolução Francesa. Esperando pela repetição de Napoleão, ele terá que
se contentar com um Napoleão caricaturado, até que assuma sua condição de
expressão de um sujeito político sem figura e que, por isto, não pode mais se
representar sob a forma dos antigos atores. Enquanto isto não acontecer, sobe à cena
do político estes que não acreditam que poesia alguma virá do futuro porque são
movidos pela nostalgia de uma antiga ordem ou pela acomodação complacente à
desordem do presente. Movidos por uma negatividade improdutiva, sua espera por
208
idem, p. 231
209
MARX, Karl; O 18 de brumário, p. 30
210
Idem, p. 35
transformações será, no fundo, espera por uma restauração. Vimos na aula passada
como tal anti-sujeito político é o que Marx chama de “lumpemproletariado”. Volto a
insistir, o lumpemproletariado é composto por todos os desenraizados que não são
capazes de se engajar em um processo de contradição com a situação normal. Sua
negatividade não chega à contradição. Neste sentido, o conceito de
lumpemproletariado traduz, acima de tudo, uma posição política diante de um
processo revolucionário.
Dentro deste processo, há de se sublinhar como ele se estabiliza através do
deslocamento do poder para uma caricatura, a saber, Napoleão III. Vendo-se na
incapacidade de unificar o poder em suas mãos, a burguesia francesa permite a
produção de uma espécie de dominação estatal que paira acima das classes. A figura
da estabilização através de um personagem que representa apenas o próprio vazio do
poder, que permite a coesão do estado por não exigir mais convicção alguma em
relação ao estado.
Neste sentido, podemos dizer que uma revolução é, acima de tudo, o processo
de emergência de novos sujeitos políticos. Esta emergência é a condição para que o
acontecimento contingente possa se transformar em necessidade. Sem tal emergência
acontecimentos se seguirão um após o outro sem que nenhuma sequência de
transformações se inicie. No entanto, tais sujeitos são produzidos por acontecimentos.
Daí porque todo acontecimento ocorre, ao menos duas vezes. A repetição do
acontecimento é levada a cabo por outros sujeitos.
Reler Marx hoje
Aula 11
213
Ver BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, p. 364
214
BALIBAR, Etienne; La philosophie de Marx, p. 79
Alemanha devido à sua posição no processo de acumulação capitalista, mas ela se
desenvolveria ao ritmo de uma revolução mundial.
Por outro lado, Marx e Engels rejeitam a tese, muito difundida no movimento
operário da época, de uma transformação pela educação. Neste sentido, as Teses
sobre Feuerbach são exemplares na sua pergunta: “quem afinal irá educar os
educadores?” e na sua confrontação entre a mudança pela educação e a prática
revolucionária. Por isto, esta fração comunista não “educa” a massa proletária. A
princípio, ela expressa “o movimento histórico que se desenvolve diante dos nossos
olhos”, ela nomeia o que ocorre através de um nome próprio. Tal colocação é, mais
uma vez, fruto da crença de Marx e Engels em uma expressão imanente do real que
não pode se reduzir a um discurso ideológico. Expressão imanente baseada nas
noções de contradição, de antagonismo, assim como de um diagnóstico que eleva a
alienação a condição de sofrimento social fundamental nas sociedades modernas
ocidentais e a exteriorização do ser do gênero a condição de seu horizonte de
superação.
Lembremos ainda que o processo de abolição da sociedade de classes levaria o
proletariado a ações como: a centralização dos instrumentos de produção nas mãos do
Estado com a consequente abolição da propriedade privada, a criação de imposto
progressivo, o fim do direito de herança, a centralização do crédito nos bancos do
Estado, a educação gratuita para todas as crianças e a abolição gradual da distinção
entre cidade e campo. Estes são os pontos fundamentais defendidos no Manifesto
Comunista.
O fracasso da revolução
No entanto, com a Revolução de 1848, Marx se depara com algo que ele não
esperava no Manifesto Comunista, a saber, o fracasso da revolução que parecia tão
iminente, com a consequente adesão de uma parte do socialismo francês ao
bonapartismo, com a passividade operária diante do golpe de Estado de Luís
Bonaparte. Esta experiência histórica é tão importante que, a partir de 1852, Marx só
voltará a publicar um livro em 1859, a saber, Para a crítica da economia política. É a
partir do fracasso da revolução que Marx se volta de maneira mais sistemática à
crítica da economia política. Como se fosse questão de procurar, na estrutura da
racionalidade da vida social moderna e de seus modos de reprodução material da vida,
as causas fundamentais para o bloqueio da assunção do proletariado a condição de
sujeito revolucionário.
Marx irá então se colocar a questão: como se perde uma revolução? Qual a
operação que não leva a uma revolução, mas a uma “parodia” de transformação, a
uma “mascarada”, a um falso movimento. Esta discussão é fundamental por nos
mostrar como, no interior da teoria política de Marx, haverá a distinção entre uma
verdadeira revolução e uma transformação meramente aparente. Isto a ponto de
podermos dizer que o capitalismo será então um espaço de produção contínua de
transformações aparentes que visam evitar uma transformação real.
Inicialmente, Marx fala em diversas ocasiões que a revolução de fevereiro de
1848, que derrubou a monarquia de Luís Filipe, ocorreu “cedo demais”. Ou seja, não
havia um processo proletário amadurecido. A revolução foi impulsionada pela crise
econômica com sua “devastação do comércio e da indústria” 215 que tornou a tirania da
aristocracia financeira ainda mais insuportável. Ela ainda se serviu da divisão da
burguesia entre a aristocracia financeira, ligada à monarquia que vigora na França
entre 1830 e 1848, e a burguesia industrial, que sofrerá diretamente com a crise e
encontra-se distante do centro de decisões do poder. Por isto, entre fevereiro e julho
de 1848, mês das revoltas populares e das barricadas em Paris, o movimento ocorreu
de forma retroativa. Tudo se passa como se as condições necessárias para a revolução
proletária fossem se desenvolver depois da queda da monarquia. Este processo
retroativo não é, no entanto, a fonte do fracasso da revolução. A respeito das causas
do fracasso, lembremos das palavras de Marx:
Eis aí toda a dificuldade que Marx descobre: quando estão diante de situações
de crise que podem produzir revoluções em si mesmos e no mundo, os sujeitos
resolvem conjurar temerosamente a ajuda de espíritos do passado, tomam
emprestados seus nomes e palavras de ordem. Eles parecem assim não serem capaz de
ocupar as novas cenas da história mundial, a não ser vestindo-se de conflitos passados
não produzindo com isto um “nome próprio e original” a respeito de sua própria
situação.
Mas notemos como este nome próprio é, necessariamente, um nome anterior.
Nos sirvamos de um belo exemplo de Alain Badiou e lembremos do nome
“Spartacus” como nome próprio de um processo revolucionário. Este sujeito político
217
Idem, pp. 25-26
“transita de mundo em mundo”218 encarnando-se na forma da revolta de escravos em
Roma, no “Spartacus negro” que marca a revolução dos escravos no Haiti e nos
revolucionários alemães liderados por Rosa Luxemburgo. Este sujeito transindividual
e transhistórico permite a dramatização das lutas atuais a partir das lutas passadas,
fazendo as lutas atuais explodirem seus contextos locais. Tal explosão aparece a Marx
como condição geral dos processos históricos. Assim, ao falar da Revolução Francesa,
ele dirá:
Um significante vazio
Retorno ao lumpemproletariado
221
MARX, Karl; O 18 do brumário, op. cit., p. 91
Difícil não ler esta série descrita por Marx com seus literatos e amoladores de tesoura
sem se lembrar da Enciclopédia fantástica de Borges. É importante insistir em seu
caráter totalmente heteróclito para não acreditarmos que estamos diante de uma classe
sociológica. O lumpeproletariado não é uma classe sociológica que descreveria
aqueles em situação econômica abaixo do proletariado. Trata-se de uma categoria
política móvel. Pois o que totaliza esta série não é a suposta analogia entre seus
elementos a partir do desenraizamento social. A este respeito, lembremos como em
Luta de classe na França, Marx chega a descrever a própria aristocracia financeira
como “o renascimento do lumpemproletariado nos cumes da sociedade burguesa”. Há
um lumpemproletariado no baixo nível do estrato social e no alto nível, sendo os do
alto nível perfeitamente enraizados à escroqueria funcional do capitalismo financeiro.
Como dissera anteriormente, o que os une é, na verdade, uma certa concepção
de improdutividade, uma diferenciação entre trabalho produtivo e trabalho
improdutivo, mas diferenciação concebida do ponto de vista da produtividade
dialética da história. Pois o lumpemproletariado é uma massa desestruturada cuja
negatividade não se coloca como contradição em relação às condições do estado atual
da vida. Neste sentido, ele é a representação social da categoria de negatividade
improdutiva, uma negatividade que, por não chegar à contradição, não se transforma
em praxis revolcuionária. Por isto, trata-se de uma massa heterogênea que pode
ganhar homogeneidade desde que encontre um termo unificador que lhe dará
estabilidade no interior da situação política existente. Tal termo, no 18 do brumário,
não é outro que Napoleão III, “o chefe do lumpemproletariado”. Aquele que dá
homogeneidade a tal heterogeneidade social, a história mesma repetida como farsa e
que deve se confessar enquanto farsa para poder se manter.
No entanto, há de se insistir como o modelo de estabilização produzido por
Napoleão III é uma espécie de estabilização na anomia. Através de Napoleão III, a
heterogeneidade do lumpemproletariado permanece radicalmente passiva, permanece
como ação anti-política, pois acomoda-se à gestão do desenraizamento social. Seus
crimes romantizados não se transformam em ação de transformação alguma, eles são
apenas a estetização da revolta. Na verdade, essa desestruturação e indefinição
anômica do lumpemproletariado é própria de quem ainda conserva a esperança de
retorno da ordem, ou que não é capaz de conceber nada fora de uma ordem que ele
mesmo sabe estar completamente comprometida. O que faz suas ações políticas serem
apenas “paródias” de transformações, “comédias”, ou ainda, “mascaradas”. O
lumpemproletariado representa uma negatividade que não pode ser integrada no
processo dialético porque ele representa o congelamento da negatividade em uma
espécie de cinismo social.
Mas aqui entramos um ponto fundamental que diz respeito ao modelo de
experiência de governo que um regime assentado no lumpemproletariado precisa
implementar. Para que Luís Bonaparte possa aparecer como o chefe do
lumpenproletariado ele precisa permitir a manifestação do ressentimento contra uma
Lei que, em larga medida, fora compreendida como a repressão imposta pelo mais
forte. Ou seja, faz-se necessário que a crítica à Lei se transforme em ressentimento. E
que maneira melhor de manifestar o ressentimento em relação à Lei, manifestar a
negatividade em relação aos valores encarnados pela Lei que através da adesão ao
governo de um notório fora da Lei. Para o lumpemproletariado, Luís Bonaparte é a
negação à Lei sob a forma da Lei, como se estivesse a dizer: “Só o roubo pode salvar
a propriedade, só o perjúrio pode salvar a religião, só a bastardia, a família, só a
desordem, a ordem!”222.
A colocação de Marx é absolutamente central. Bonaparte leva a cabo um
governo no interior do qual a adesão social é construída através da negação
generalizada da Lei, mas sob o manto da ordem. Isto implica, ao menos, reduzir as
demandas revolucionárias a uma espécie de fraseologia que expressa a “degradação
ideológica do corpo de ideias histórico-filosóficas”223 da filosofia do progresso. É esta
peculiar negação que conserva através da redução das ideias à condição repetição oca
que fornece ao governo uma estabilidade no caos. Lembremos do que Marx fala de
Luís Bonaparte:
224
Idem, p. 154
Reler Marx hoje
Aula 12
Por ser burguesa, isto é, por entender a ordem capitalista como a forma última
e absoluta da produção social, em vez de um estágio historicamente transitório
de desenvolvimento, a economia política só pode continuar a ser uma ciência
enquanto a luta de classes permanecer latente ou manifestar-se apenas
isoladamente225.
A gênese do fetichismo
226
Termo que vem do latim niger (negro) e que designava a região africana, povoada por negros,
entre a bacia do Nilo superior e o Oceano Atlântico.
o que seria exterior às sociedades modernas (De Brosses, Comte. Mas agora eles o
utilizam para descrever o interior do processo de determinação do valor em nossas
sociedades. Tendo estas questões em vista, lembremos da definição inicial de De
Brosses:
Estes fetiches divinos não são outra coisa que o primeiro objeto material que
cada nação ou cada particular tem o prazer de escolher e de consagrá-lo em
cerimônia por seus sacerdotes: é uma árvore, uma montanha, o mar, um
pedaço de madeira, um rabo de leão, um seixo, uma concha, sal, um peixe,
uma planta, uma flor, um animal de certa espécie; enfim, tudo o que se possa
imaginar de parecido227.
Era desta forma que Charles De Brosses procurava caracterizar o que ele entendia por
“fetichismo”: o culto supersticioso de um objeto arbitrariamente escolhido devido a
alguma qualidade diferencial que agradaria o crente. Nesta definição, encontrava-se a
materialização da incompreensão dos colonizadores europeus diante da complexidade
dos sistemas simbólicos dos “povos primitivos”. Por ser “arbitrário” e “contingente”,
o objeto cultuado era apenas a expressão imediata da projeção antropomórfica de
crenças e vontades, ou seja, a forma mais elementar de superstição produzida por
associações indevidas de idéias. Eles sequer poderiam ser analisados como alegorias
ou símbolos, já que estaríamos em uma espécie de “grau zero da capacidade de
representação”228.
Esta noção de “fetiche” já estava presente nas reflexões do século XVII e
XVIII a respeito das práticas religiosas dos africanos, a quem a ideologia colonial
procurava impor uma “mentalidade primitiva”. De fato, o termo nasce do impacto das
Grandes Navegações no imaginário europeu. Vendo a maneira com que objetos
inanimados e animais eram compreendidos como dotados de forças sobrenaturais por
tribos africanas, os navegantes portugueses descreveram tais objetos como fetissos.
Ao se perguntar sobre o que significaria exatamente o termo português fetisso, De
Brosse falará de “coisa encantada, divina” devido a sua pretensa derivação da raiz
latina fatum (destino, oráculo), fanum (lugar consagrado) e fari (falar, dizer),
deixando de lado a raiz latina derivada de factio (modo de fazer), facticius (artificial,
227
DE BROSSES, Charles, Du culte des dieux fétiches ..., op. cit., p. 15
228
IACONO, Alfonso; Le fétichisme: histoire d’um concept, Paris : PUF, 1992, p. 51
falso), que era a correta. Erro providencial pois retirou a reflexão sobre o fetiche das
vias de uma indagação sobre o artifício que se apresenta enquanto tal para colocá-la
na direção de problemas ligados à imanência da crença229. No entanto, é esta via mais
próxima do sentido original da palavra que Freud irá recuperar.
Se De Brosses não foi o responsável pela constituição do termo “fetiche”, ele
foi aquele que, através da criação do neologismo “fetichismo”, forneceu as condições
fundamentais para a transformação de uma reflexão sobre práticas de culto de tribos
africanas em dispositivo de descrição do pensamento primitivo em geral pois
independente de questões vinculadas a localização geográfica ou temporal. Estratégia
maior para a consolidação da maneira com que a consciência nascente da
modernidade poderá estabelecer suas fronteiras.
Em seu livro, De Brosses apresenta uma longa compilação de relatos de
viagens da Oceania, Américas, Brasil, África, a fim de mostrar a presença do mesmo
sistema fetichista de crenças. Seu intuito principal é deixar clara a inexistência de
diferença estrutural entre tais práticas e aquelas que encontraríamos na religião da
Grécia antiga e do Egito. O que não poderia ser diferente, já que se trata de apresentar
uma teoria evolucionista do progresso social e do pensamento capaz de justificar a
partilha entre sociedades modernas e pré-modernas presentes no mesmo momento
histórico. As sociedades fetichistas teriam permanecido em um estágio inicial de
desenvolvimento, em uma infância perpétua, em um “estado natural bruto e
selvagem”230 já que o fetichismo seria, como dirá Diderot em carta a De Brosses, “a
religião primeira, geral e universal”231. Este esquema será levado ao seu maior
desenvolvimento pelas mãos de Augusto Comte e sua teoria dos três estados do
espírito humano (o teológico, o metafísico e o positivismo; sendo que o fetichismo
seria a primeira fase do estado teológico, seguido pelo politeísmo e pelo
monoteísmo)232.
Duas características maiores definiriam esta infância própria ao fetichismo:
um modo de pensar projetivo animado pelo medo e pela ignorância, assim como a
229
A este respeito, ver AGAMBEN, Giorgio; Estâncias, Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2007
230
DE BROSSES, idem, p. 95
231
Cf. DAVID, Michèle, Lettres inédites de Diderot et de Hume écrites de 1755 à 1763 au président
de Brosses, In : Revue Philosophique, n. 2, abril-junho 1966.
232
Sobre a relação Comte-De Brosses, ver Idem, La notion de fétichisme chez Auguste comte et l’
oeuvre du Président De Brosses “Origines des dieux fétiches », In : Revue d’ histoire des réligions,
vol, 171, n. 2, 1967, pp. 207-221. Sobre a noçao de fetichismo em Comte, ver CANGUILHEM,
Georges ; Histoire des réligions et histoire des sciences dans la théorie du fétichisme d’ Auguste
Comte, In : Etudes d´histoire et philosophie des sciences, Paris : Vrin, 2002
incapacidade de operar com simbolizações e abstrações233. A primeira característica
mostra o fetichismo como modo elementar de defesa contra um afeto: o medo diante
do caráter imprevisível dos fenômenos naturais. Projetar qualidades humanas em
objetos naturais aparece como móbile de um pensamento assombrado pelo medo,
pensamento que ainda não se tornou “senhor da natureza” através do desvelamento da
estrutura causal dos fenômenos.
Por outro lado, De Brosses compreende “o progresso natural das idéias
humanas” através de um movimento de abstração que consiste em: “passar dos
objetos sensíveis aos conhecimentos abstratos”234. As sociedades fetichistas seriam
estranhas a formas de pensamento que se abstraem das determinações sensíveis
imediatas a fim de construir conceitos e símbolos genéricos. Ou seja, elas
desconheceriam o pensamento conceitual, tomando por atributo imediato da coisa
particular o que é próprio de sua espécie, gênero, ou da estrutural causal da qual ela
faz parte. Por isto, De Brosses deve insistir a todo momento que o fetiche não é uma
forma de representação, como é o caso da imagem de um santo católico ou do ouro
(que os índios cubanos teriam compreendido como o “fetiche dos espanhóis” –
adiantando em alguns séculos Marx), já que o pensamento primitivo seria marcado
pela “ausência de desdobramento entre o representante e o representado”235. Ele é um
pensamento imerso nas ilusões do imediato, estranho a alegorias, sem qualquer
capacidade de transcendência; um pouco como uma criança que toma metáforas ao pé
da letra por pretensamente desconhecer os usos figurados da linguagem236.
Por sua vez, a potência da representação só seria própria a religiões derivadas
do judaísmo, como o cristianismo e o islamismo. Pois a crítica judaica às
representações do divino teria impulsionado a constituição de uma sensibilidade que
não confunde o que aparece com o que é, o fenômeno com a essência. Daí porque De
Brosses pode afirmar que: “Para os selvagens, os nomes Deus e Espírito não
significam em absoluto o que eles querem dizer entre nós” 237. É devido a tal estrutura
233
A psicologia social continuará, por muito tempo, a definir o pensamento irracional como aquele
preso às amarras da projeção e da incapacidade de operar com abstrações. Ver, por exemplo, a maneira
com que Gustave Le Bon definia os móbiles da psicologia das massas, no final do século XIX, em LE
BON, Gustave; Psychologie des foules, Paris; PUF, 1947
234
DE BROSSES, ibidem, p. 101
235
IACONO, ibidem, p. 54
236
No entanto, notemos que o mais correto seria falar não em incapacidade de abstração, mas em
naturalização de processos de abstração feitos de maneira inconsciente. O “primitivo” que eleva o
dente de leão à condição de fetiche naturaliza a força enquanto atributo próprio à totalidade
conceitualizada do animal. Ele toma, assim, a parte pelo todo.
237
DE BROSSES, ibidem, p. 103
de projeções e a incapacidade de passar dos objetos sensíveis aos conhecimentos
abstratos que De Brosses resumirá a situação de ignorância própria ao pensamento
primitivo através de uma frase que não deixa de ressoar a maneira com que Marx
descreverá o desconhecimento ideológico: “Eles não sabem o que vêem”238.
Marx e o fetichismo
238
idem, p. 134
239
Ver BÖHME, Hartmut; Fetichismus und Kultur, op. cit., pp. 311-315.
240
MARX, Karl; O capital ...
Não devemos compreender “mercadoria”, neste contexto, como todo e
qualquer produto humano que possa ser trocado. A mercadoria a respeito da qual
Marx se refere é aquele objeto cuja única finalidade econômica é permitir um
processo de auto-valorização do Capital (este processo através do qual uma
quantidade D de dinheiro produz um quantidade D´ maior de dinheiro). Ela é produto
que, ao ser trocado por dinheiro, permite ao dinheiro anteriormente aplicado se
valorizar. Neste sentido, a característica fundamental do capitalismo, para Marx, é
organizar toda a economia e a vida social tendo em vista tal processo incessante de
valorização. Um pouco como se, no capitalismo, o processo produtivo fosse, no
fundo, uma espécie de momento do processo especulativo. É a isto que Marx alude ao
afirmar que, na mercadoria, o valor de troca é o modo de expressão ou a forma
fenomenal necessária do valor, isto a despeito do valor de uso, ou seja, do caráter útil
da coisa para o seu comprador.
Podemos então dizer que, ao produzirem mercadorias, os sujeitos produzem
necessariamente valores de troca. Mas o que afinal eles fazem ao produzirem valores
de troca? Marx diz inicialmente que eles devem agir como quem dissolve todas as
características sensíveis dos objetos trabalhados. Mas chega a falar que: “o próprio
corpo da mercadoria é um valor de uso ou um bem”241. Tudo se passa como se o corpo
(Körper) do objeto fosse abstraído, isto para se tornar puro suporte de valores
abstratos de troca. Desta forma, o corpo da mercadoria se conforma a uma
“objetividade fantasmática” (gespenstige Gegenständlichkeit) representada pela pura
quantidade do valor de troca. Este corpo advém expressão daquilo que Marx chama
de “forma-equivalente”, o que nada mais é do que a possibilidade de todo corpo
equivaler a outro, de todo corpo passar no outro ou, se quisermos, de todo corpo
dissolver-se no outro. Esta reversibilidade absoluta dos corpos pode ser vista como
uma espécie de resultado ideal do fetichismo. Assim, o corpo dos objetos, suas
características sensíveis devem ser negadas para que um determinado valor possa ser,
não apenas atribuído, mas “encarnado”. Esta encarnação é conformação a uma
idealidade (o fetiche) que se transforma, como dizia Marx, em uma “coisa sensível
suprasensível”.
Giorgio Agamben, em texto recente, mostrou como esta negação do corpo da
mercadoria seria a manifestação mais bem acabada de uma situação fundamental dos
objetos no capitalismo : eles estão separados de si mesmos; “todas as coisas são
241
Idem, p. 114
exibidas na sua separação de si mesmas”. Dizer que as coisas estão separadas de si
mesmas significa, neste contexto, dizer que elas estão submetidas a um princípio que
lhes é estranho, como vemos em afirmações como:
a mercadoria é valor de uso: trigo, linho, diamante, máquina etc., mas como
mercadoria ela não é, ao mesmo tempo, valor de uso. Fosse ela valor de uso
para seu possuidor, isto é, fosse ela imediatamente meio para a satisfação de
suas próprias necessidades, não seria mercadoria (...) Toda mercadoria deve
obter sua existência como valor de troca através de alienação de seu valor de
uso, isto é, de sua existência originária242.
Proposição arriscada pois parece nos colocar à procura de uma bizarra naturalidade
essencial das coisas.
No entanto, esta não é, como poderíamos esperar, a perspectiva de Agamben.
Tentemos, por exemplo, compreender o que está por trás da afirmação segundo a
qual, com a transformação dos objetos em suportes de valores de troca, “todo uso se
torna duravelmente impossível” pois no lugar do uso possível (que Agamben
aproxima do “livre jogo com as coisas”) só teríamos o usufruto, o consumo, ou seja, o
uso submetido a uma função utilitária ou ao mero consumo de valores de troca243. Esta
dicotomia entre uso e consumo ou, ainda, esta maneira peculiar de reordenar a
dicotomia entre “valor de uso” e mero consumo de “valor de troca” tem ao menos o
mérito de nos livrar de um certo discurso que vincula o valor de uso à pretensa esfera
das necessidades naturais do homem. A ideia fundamental parece ser aqui insistir que
o “uso”, em Marx, “uso” pensado fundamentalmente como modo de relação entre
sujeito e objeto, deveria ser idealmente aproximado de noções como “livre jogo”,
“meios sem fim”, ou seja, não redução instrumental de objetos e processos. Só através
da mobilização de tais experiências, os sujeito poderiam se reconhecer nos objetos
produzidos, satisfazendo algo que não é mera necessidade bruta, mas um desejo mais
elaborado de reconhecimento social. Não é mero acaso o fato de que a categoria do
“uso” seja reconstruída através do recurso a experiências mais próximas do campo da
fruição estética. Tal recurso parece procurar recuperar algo do paradigma do trabalho
242
MARX, Karl; Para uma crítica da economia política, p. 40
243
AGAMBEN, Giorgio; Profanações, São Paulo: Boitempo, 2007, p. 71.
presente no jovem Marx dos Manuscritos econômico-filosóficos, com sua constituição
a partir da expressão estética244.
Neste sentido, se voltarmos à discussão de Agamben, diremos que “consumo”
só poderá significar uma conformação instrumental de tal ordem guiando a relação
sujeito/objeto que qualquer possibilidade de reconhecimento, no objeto, da
singularidade dos sujeitos consumidores e produtores estaria bloqueada. Pois o
consumo sempre será direcionado a um valor “imaterial” que só se realiza quando o
sujeito é capaz de passar por e anular todas as determinações singulares (o que nos
remete à idéia hegeliana do consumo como infinito ruim). Neste sentido, no consumo,
fetichizamos não os objetos, mas o processo “fantasmagórico” que nos permite
destruir a materialidade de todo objeto singular e de todo sensível em geral. Neste
sentido, podemos mesmo dizer que a crítica iluminista do fetichismo: “implica uma
nova definição do que significava ser europeu: isto é, um sujeito livre da fixação em
objetos, um sujeito que, tendo reconhecido o verdadeiro valor (isto é, de mercado) do
objeto como mercadoria, se fixava, em vez disso, nos valores transcendentais que
transformavam o ouro em navio, os navios em armas, as armas em tabaco, o tabaco
em açúcar, o açúcar em ouro, e tudo isto em um lucro que podia ser contabilizado”.
245
.
A partir disto, podemos pensar algumas conseqüências da afirmação de Marx
segundo a qual, ao agirem como quem vê na mercadoria o puro suporte de valores de
troca, os sujeitos, ao mesmo tempo, agem como se acreditassem que todos os
trabalhos singulares pressupostos pelos objetos produzidos são também equivalentes.
O que vemos em uma afirmação como:
Para medir os valores de troca das mercadorias pelo tempo de trabalho contido
nelas, os diversos trabalhos devem estar reduzidos a trabalho sem diferenças,
uniforme, simples, em suma, a trabalho que é qualitativamente o mesmo e, por
isso, se diferencia apenas quantitativamente246.
244
Sobre o conceito de trabalho no jovem Marx, ver, por exemplo, HABERMAS; Jürgen;
Conhecimento e interesse, Rio de Janeiro: Zahar, 1982
245
STALLYBRASS, Peter; O casaco de Marx : roupas, memória, dor, Belo Horizonte : Autêntica,
2008, p. 45
246
MARX, Karl; Para uma crítica da economia política, p. 33
Pois se as mercadorias podem ser equivalentes é porque os trabalhos que as
produziram também podem ser submetidos a um padrão geral de cálculo. Este ponto é
central para compreender porque, ao produzirem e consumirem valores de troca,
Marx pode dizer que os sujeitos não sabem o que fazem. Agir como se os trabalhos
singulares fossem equivalentes significa transformá-los em puro quantum de trabalho
abstrato, trabalho que não expressa subjetividade alguma, “simples geleia de trabalho
humano indiferenciado”247. Desta forma, a característica alienada do trabalho social é
posta como característica objetiva dos produtos do trabalho 248. Neste sentido, a
maneira com que as coisas são trocadas apenas revelaria a maneira com que as
relações sociais de trabalho são efetivamente vivenciadas. É nisto que Marx pensa ao
enunciar a fórmula canônica do fetichismo da mercadoria: “a relação social entre
homens recebe a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”. Notemos com
isto que, mesmo estando no interior de um mundo de entidades a-qualitativas, de
abstrações, os sujeitos agirão com se estas abstrações fossem reais. Conceito de
“abstração real” que é uma das bases da leitura de Marx. O que nos leva a lembrar da
afirmação de Ruy Fausto: “O que caracteriza o capitalismo é precisamente o fato de
que nele se tem um mundo de entidades a-qualitativas mas que se apresentam como
análogas de viventes. Nele há, de certo modo, abstrações “vivas” 249.
Notemos ainda que o fetichismo da mercadoria expressa uma forma específica
de dominação própria ao capitalismo. Nela, os seres humanos são dominados não
exatamente por outros seres humanos, mas pela própria estrutura de determinação do
valor. Por isto, a relação social de dominação ganha a forma de uma relação entre
coisas. Isto significa que a maneira com que as “coisas” se determinam, a maneira
com que elas se relacionam, impondo um dinâmica de abstração real, irá dominar
seres humanos “livres” (pois vendedores livres de sua própria força de trabalho), pois
transformará o sentido de seus trabalhos, a forma de suas sensibilidades e percepções,
fazendo a atividade de cada indivíduo a mera expressão de um processo de
autovalorização do capital. Daí porque Marx lembrará que não haverá tal fetichismo
247
MARX, Karl; O Capital, p. 116
248
De fato, a leitura que proponho não segue de maneira estrita a divisão entre a “antropologia”
própria às temáticas da alienação do trabalho no jovem Marx e o “estruturalismo” das temáticas do
fetichismo no Marx de maturidade. Divisão que ficou canonizada em ALTHUSSER, Louis; Lire le
Capital, Paris : PUF, 1996. Pois seguir de maneira estrita tal divisão implica perder a capacidade de
compreender como o fetichismo da mercadoria é também: “uma forma alienada de vínculo afetivo a
um objeto do desejo” (BÖHME, Hartmut; ibidem, p. 315)
249
FAUSTO, Ruy; Dialética marxista, dialética hegeliana: a produção capitalista como circulação
simples, São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 168
nas relações medievais entre vassalos e suseranos pois, neste caso, as relações de
dominação já estão explícitas no nível das relações entre pessoas: “Mas é justamente
porque as relações pessoais de dependência constituem a base social dada que os
trabalhos e seus produtos não precisam assumir uma forma fantástica distinta da
realidade”250.
Imagem e reificação
modo racional referente a valores: pela crença consciente no valor – ético, estético, religioso ou
qualquer que seja sua interpretação – absoluto e inerente a determinado comportamento como tal,
independentemente do resultado; 3) de modo afetivo, especialmente emocional, por afetos ou estados
emocionais atuais; 4) de modo tradicional, por costume arraigado” (WEBER, Max; Economia e
sociedade – vol. 1, Brasília : Editora da UnB, 1994, p. 15
253
LUKÁCS, ibidem, p. 194
254
Idem, p. 201
255
Idem, p. 203. Em O nascimento da biopolítica, Michel Foucault lê a noção de homo oeconomicus
pressuposta pelo neo-liberalismo norte-americano, assim como sua noção de “capital humano”, como
não dependendo da generalização da estrutura da forma-mercadoria, mas da “forma-empresa”. Ele
avalia a maneira que todos os processos sociais do indivíduo, da formação à relação familiar, serão
paulatinamente avaliados a partir de uma lógica de investimento própria à empresa. O que o leva a
afirmar que: “O homo oeconomicus é um empresário, e o empresário de si mesmo” (FOUCAULT, O
nascimento da biopolítica, São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 311). Nestes dois modelos (forma-
mercadoria e forma-empresa) vemos o desdobramento das conseqüências da generalização do mesmo
processo de racionalização social que Lukács tinha em vista.
coisas quantitativamente mensuráveis (...) torna-se espaço”256. A unidade dinâmica de
processos fornecida pelo tempo histórico é fragmentada da redução do campo da
experiência a um continuum de “coisas” autônomas, aparentemente desprovidas de
relações. Esta submissão da experiência da temporalidade a um tempo que nada mais
é do que a sucessão mensurável de instantes isolados entre si não deixa de ser eco das
reflexões de Heidegger em Ser e tempo, um livro que claramente influenciou as
considerações de Lukács.
256
Idem, p. 205
Reler Marx hoje
Aula 13
Chegamos ao fim de nosso curso. Como vocês sabem, este curso sobre Marx foi
animado por uma pergunta central, a saber, o que significa reler Marx hoje? Em um
momento no qual nosso país volta a praticar o esporte de caça aos “marxistas” o que
significa reler Marx hoje? Durante décadas a leitura de Marx era peça obrigatória de
toda formação da consciência política e crítica, mas mesmo no espaço universitário
seu pensamento pareceu não dar mais contas dos desafios da crítica social do
presente.
Primeiro, foi a afirmação, presente desde os anos 30 do século passado, de que
seu conceito de proletariado como força revolucionária não tinha mais lugar no
interior de nossas sociedades capitalistas avançadas. O proletariado estaria
profundamente integrado aos modos atuais de reprodução social, principalmente após
a ascensão dos ditos estados do bem-estar social, a classe operária não seria mais
expressão de uma pauperização absoluta, como no interior da grande indústria do
século XIX. Assim, Marx teria errado em relação à capacidade do capitalismo regular
sua própria espoliação. Sua crença de que o desenvolvimento capitalista caminharia
nos passos da pauperização absoluta teria sido um erro.
Segundo, veio a crítica à própria filosofia da história pressuposta nesta
maneira de Marx insistir na iminência de um processo revolucionário universalista
impulsionado pelo ritmo do acirramento das contradições no interior do modo de
produção capitalista global e de suas crises de superprodução. Esta filosofia da
história foi vista, mais de uma vez, como uma metanarrativa animada por uma versão
secularizada de providência e de necessitarismo. Neste sentido, a própria teoria
marxista das crises seria apenas uma incidência de certo messianismo que faz o novo
mundo depender da expectativa de uma crise final. Contra tudo isto, teríamos
aprendido de que falar de uma história mundial seria prova maior de dominação
eurocêntrica. Teríamos, na verdade, descoberto múltiplas histórias irredutíveis umas
às outras, expressões das dinâmicas singulares de sociedades que não estariam
submetidas aos mesmos imperativos de desenvolvimento.
Por fim, temos a crítica de que a política marxista seria, em sua essência,
autoritária e liberticida. Ela desconsideraria a importância das ditas “liberdades
individuais” que fornecem à política a condição de campo para a defesa da
singularidade de modos pessoais de realização de si. Ao contrário, o comunismo que
defendia Marx por meio da violência revolucionária seria um coletivismo forçado
cujos resultados efetivos na história recente só poderiam ser descritos como
catastróficos.
Tenho certeza de que todos vocês conhecem bem tais críticas e sua legião de
defensores. O que tentei fazer com vocês foi mostrar como uma leitura cuidadosa dos
textos de Marx demonstra como tais críticas não se sustentam, ao menos no que diz
respeito ao pensamento do filósofo alemão. Por isto, se puder resumir o que procurei
defender com vocês neste semestre de curso, eu definiria três eixos centrais:
Dito isto, eu gostaria de aproveitar este momento final para reconstruir o que foi
nosso trajeto no interior da experiência intelectual de Marx. Infelizmente, não tivemos
tempo suficiente para abordar esta que é a obra mais expressiva de Marx, a saber, O
capital. Restringi-me a apresentar a vocês dois conceitos centrais na crítica da
economia política de Marx, a saber, fetichismo e mais-valia. Procurei também mostrar
qual o sentido de reconduzir a crítica social ao solo de uma crítica da economia
política, como o fez Marx.
No entanto, a função de um curso como este era, principalmente, fornecer a
vocês as coordenadas do que podemos chamar de: experiência intelectual. No interior
de uma experiência intelectual podemos identificar processos de pensamento, ou seja,
movimentos no interior dos quais elaborações conceituais se confrontam com
acontecimentos criando uma ordem de ideias que não é apenas uma ordem das razões
interna aos jogos entre textos. Experiência intelectual é uma elaboração tensa entre
problemas vindos de tradições com as quais um autor dialoga, acontecimento de seu
tempo que forçam o pensamento e criação conceitual com sua inflexão própria.
Foi tendo tal noção de experiência intelectual em mente que procuramos
abordar vários momentos da obra de Marx. Vimos as elaborações do jovem Marx,
desde sua tese de doutorado sobre Demócrito e Epicuro, passando pela Crítica da
Filosofia do direito de Hegel, Sobre a questão judaica e, principalmente, os
Manuscritos econômicos-filosóficos. Este movimento terminou com o comentário da
primeira parte de A ideologia alemã. Neste trajeto, procurei expor a vocês a relação de
proximidade e distância entre Hegel e Marx a fim de explicitar o que deveríamos
entender por “guinada materialista” da dialética desenvolvida por Marx. Procurei
também apresentar o que poderíamos entender como a “antropologia” presente no
jovem Marx através da discussão sobre os processos sociais de alienação e a função
reguladora do conceito de “ser do gênero”. Por fim, foi questão de abordar a
concepção de materialismo histórico em Marx.
Em um segundo momento, foi questão de analisarmos a teoria da revolução
em Marx através do comentário do 18 de brumário de Luís Bonaparte. O que procurei
fazer foi desenvolver com vocês a centralidade para Marx do conceito de proletariado
enquanto nome de todo e qualquer sujeito político emergente. Marx tem uma teoria da
revolução, não uma teoria do estado comunista. Ele se preocupa com processos de
emergência e insurreição, não exatamente com processos de governo. Por fim, em um
terceiro momento foi questão de abordar algumas questões da crítica da economia
política de Marx, como disse anteriormente.
Lembremos mais uma vez do movimento deste trajeto. A integralidade da
experiência intelectual de Marx é coordenada por um problema central, a saber, quais
as condições sociais necessárias para a emancipação? No seu sentido mais forte, o
pensamento de Marx é, acima de tudo, uma reflexão é uma meditação consequente
sobre processos de emancipação social. Emancipação significa aqui não apenas
autonomia, capacidade de dar para mim mesmo a minha própria lei a fim de constituir
uma vontade livre, como vemos na filosofia moral de Kant. Emancipação não é a
garantia das condições sociais para a realização do livre-arbítrio. Emancipação é, para
Marx, capacidade de exteriorizar o ser do gênero, ser este pensado como fundamento
da essência humana. Neste sentido, emancipação não significa realizar-se como
indivíduo dotado de autonomia e sistemas particulares de interesse, mas abrir-se para
o que em cada sujeito manifesta-se como pura afirmação do gênero. Neste sentido,
podemos dizer que emancipação em Marx é, de certa forma, emancipar-se da
condição de indivíduo. Pois vimos como este gênero humano, em Marx, não é dotado
de disposições normativas gerais. Por isto, eu dissera que o gênero do qual o homem
faz parte é desprovido de toda e qualquer archai. Ele não pode constituir uma
“natureza humana” como sistema de normas a definir a orientação da praxis. Um
gênero desprovido de archai, sem origem nem destino. Esta emancipação que aparece
como exteriorização de um gênero sem espécie definida é, para Marx, a realização
mais adequada da ideia mesma de liberdade, e como tentei defender com vocês
guarda articulações profundas com a noção de negatividade em Hegel. Daí uma
afirmação importante como:
O homem é um ser do gênero, não somente quando prática e teoricamente faz
do gênero, tanto do seu próprio quanto do restante das coisas, o seu objeto,
mas também – e isto é somente uma outra expressão da mesma coisa – quando
se relaciona consigo mesmo como com o gênero vivo, presente, quando se
relaciona consigo mesmo como com um ser universal, e por isso livre257.
A crítica do capitalismo
O capitalista industrial também goza, sem dúvida. De modo algum ele volta à
simplicidade da necessidade, mas o seu gozo é coisa acessória, repouso,
subordinado à produção, e com isto gozo calculado, e assim ele mesmo
econômico, pois ele lança o seu gozo nos custos do capital, e seu gozo só pode
261
POSTONE, Moishe; Tempo, trabalho e dominação social, Sã o Paulo: Boitempo, 2014, p. 150
lhe custar tanto, que o que ele lhe consumiu venha a ser reposto com lucro
através da reprodução do capital. O gozo é assim subordinado ao capital, o
indivíduo que goza ao indivíduo que capitaliza, enquanto antes havia o
contrário262.
Sim, Eric, valeu a pena gozar da pura abstração. Gozar desta soberania simulada
construída através da redução de todos os corpos à segurança da medida que se impõe
como única experiência de sentido. Única, porém pretensamente segura como uma
axiomática. Há afetos que só o capitalismo produz e é deles que o sistema econômico
tira sua força, como esse gozo do cálculo enquanto forma de domínio, da equivalência
enquanto controle. Todos os corpos reduzidos à condição de suportes intercambiáveis
de um processo contínuo de circulação fetichista da equivalência. “Cento e quatro
milhões. Foi isso que você comprou”. Sim, Eric, cada um tem a grandeza que merece.
262
MARX, Karl; Manuscritos, p. 148 [tradução completamente modificada, já que o original é
imprestável]
263
Idem, p. 80
Como vemos, a crítica do capitalismo em Marx é, ao mesmo tempo, crítica da
injustiça social implicada nos processos de espoliação econômica e crítica do modo de
constituição de sujeitos, com seus sofrimentos e suas formas de gozo. Por isto, ela só
pode apontar para uma articulação profunda entre problemas de redistribuição e
problemas de reconhecimento. Esta articulação entre redistribuição e reconhecimento
pede, necessariamente, a possibilidade de uma ação política que aponta não apenas
para a injustiça produzida pelo modo de produção capitalista, mas também para a
patologia social que tal modo de produção perpetua. Por isto, ela só pode se realizar
em uma revolução que seja reinstauração de formas de vida.
O proletariado
“Mas Zeus não foi o arauto delas [as leis enunciadas por Creonte] para mim,
nem essas leis são as ditadas para os homens pela justiça, companheira de
morada dos deuses subterrâneos; e não me pareceu que tuas determinações
tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir as leis
divinas não escritas e imutáveis; não é de hoje nem de ontem, é desde os
tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando
surgiram”.
É no que não é de hoje nem de ontem, no que não conhece a lei do estado
atual, que se encontra nossa imaginação política. Lembremos disto: não basta revolta
e crise, não basta análise e crítica. Uma revolta é uma revolta é uma revolta e este
retorno contínuo sobre si pode produzir apenas cansaço e, por fim, desejo de
restauração. A crítica é a crítica é a crítica e este retorno contínuo sobre si pode
produzir apenas melancolia e, por fim, derrisão aristocrática. Mas quando a revolta e a
crítica são impulsos para a imaginação política, então não há mais tautologias. Marx
acreditava que esta imaginação política só se realizaria quando começássemos a falar
como proletários.
Perguntemos então de onde vem o bloqueio de nossa imaginação política e
veremos que nossa imaginação está bloqueada porque até a forma da nossa crítica usa
a gramática de quem nos sujeita. Nós falamos a linguagem da ordem contra a qual nós
nos batemos. Desde 2013, subimos à cena política para dizer, em larga medida: “Eu
quero o que é meu”, como se o problema todo não estivesse exatamente em falar
exatamente que eu também quero a minha parte, eu também quero a minha
visibilidade no regime de visibilidade atual, eu também quero meu lugar na
axiomática do estado atual. No fundo e mais uma vez, o que se vê é apenas indivíduos
à procura da defesa de suas propriedades. Assim, ao fazer das demandas políticas
demandas de auto-realização individual e coletiva (pois neste ponto não há diferença
alguma entre os dois, o coletivo é apenas um indivíduo ampliado), acabamos por
fortalecer uma ordem que afirmará “como sempre disse, só existem propriedades e
possuidores”. Ao reduzirmos nossas demandas à pressão por reparação fortalecemos
aqueles que tem a institucionalidade que pode nos amparar. Nos dois casos, a
gramática da revolta é a mesma do poder. O que há de diferente é apenas a demanda
para que tal gramática se amplie e seja válida “para mim também”. Como se, no
fundo, todos quisessem ser proprietários do que é “a sua parte”. Esta foi a maior
vitória do neoliberalismo: definir até mesmo a gramática da nossa revolta. Não é de
se admirar que a imaginação política acabe por se bloquear. Melhor seria se fossemos
mais uma vez proletários, ou seja, aqueles que não são e nunca serão proprietários,
porque procuram realizar a promessa de uma apropriação que não é possessão, porque
eles se orientam por um tempo no qual não iremos mais nos perguntar sobre o que é
nosso.
No interior deste horizonte, não é de se estranhar que a prática política acabe
por se reduzir atualmente, em larga medida, ao bloqueio de espaços físicos, ao
fechamento da circulação, à paralisação. Estas são manifestações brutas da indignação
de quem se sente lesado e esquecido e calcula a partir do dano necessário a fazer para
ser visto. Mas a política não é apenas exposição da indignação, embora isto também
lhe seja próprio. Ela é, no seu sentido mais profundo, conquista da opinião pública,
produção de aglutinações através da emergência de um sujeito dotado de imaginação
política capaz de implicar quaisquer.
Neste horizonte, vale a pena lembrar como o comunismo proposto por Marx
não era um estado proletário, muito menos a projeção de uma utopia. As injunções de
Marx a respeito de um governo pós-revolucionário (imposto fortemente progressivo e
gradual, centralização do crédito nos bancos do estado, estatização dos meios de
comunicação e transporte, educação gratuita para todas as crianças em escolas
públicas, abolição gradual da distinção entre campo e cidade, entre outros) não podem
ser tomada por horizonte normativo de um governo comunista. Elas eram apenas as
ações necessárias para uma abolição da economia baseada na propriedade privada
sem que isto representasse, imediatamente, a desregulação de todo o sistema
produtivo. Da mesma forma, a ditadura do proletariado não é a realização do
comunismo e sua emergência do que não tem mais classe. Para além disto,
comunismo era o nome de um processo de derrocada das relações sociais atuais a
partir da potencialidade própria ao advento de um campo comum, uma fala comum.
Comunismo era a retomada da imaginação como motor da criatividade política. Por
isto:
A boa questão que fica para nós é: este movimento foi de fato tentado? Ele foi
de fato compreendido?
264
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 59