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1 PSICOLOGIA DA CULTURA J

o objeto do desejo.
A identificaçfo do dono da
cabeça no candomblé *

MONIQUE AUGRAS * *
ANGELA MARIA CORREA ***

1. Os livros; 2. No terreiro; 3. Os tipos;


4. As técnicas; 5. A identificação; 6. A
experimentação.

As autoras propõem-se verificar se a descrição do temperamento dos orixás do candom-


blé representa uma espécie de tipologia intuitiva. Os 'estudos já clássicos do candomblé
mostram que é possível derivar tipos específicos e coerentes de personalidade, a partir
dos relatos míticos que contam a história dos orixás. A observação da vida de um
terreiro de nação Queto, realizada no Rio de Janeiro, permite descrever o processo de
identificação do "dono da cabeça" de cada um dos filhos de santo como um equiva-
lente mítico de psicodiagnóstico. A comparação entre os resultados do exame psicoló-
gico clássico realizado em cada um dos fllhos de santo e os traços de personalidade
esperados a partir da identidade mítica de cada um pennite verificar a viabilidade da
hipótese de trabalho. Faz.se necessário, contudo, ampliar as investigações para alcançar
resultados conclusivos. As dificuldades inerentes a esse tipo de pesquisa, levada adiante
na perspectiva da fenomenologia da experiência religiosa, são por demais específicas
para serem desprezadas.

O presente trabalho apóia-se numa investigação que foi realizada de junho de 1974
a novembro de 1975, em terreiro de nação Queto, na cidade do Rio de Janeiro, no
quadro de uma pesquisa de cunho antropológico e psicológico, para obtenção do
grau de mestre em psicologia pela PUC/RJ. Propõe uma nova integração dos dados
então recolhidos, que foram parcialmente utilizados para a feitura da tese. As
autoras deste estudo são, respectivamente, a então mestranda, que daí por diante
será especificamente designada pelo nome de investigadora, já que lhe coube reali-

* Trabalho apresentado. ao III Congresso Latin(}oAmericano de Rorschach e Técnicas 'Pr(}o


jetivas, Bahia, setembro de 1978.
** Psicóloga do ISOP e.Professora de Pós-Gradução da PUC/RJ.
*** Mestre em psicologia pela PUC/RJ.

Arq. bras. Psic., Rio de Janeiro. 31 (1): 37-52, jan./mar. 1979


zar todo o trabalho de campo; e a então orientadora da tese, que se dedicou mais
aos aspectos teóricos e metodológicos do trabalho; tendo, ambas, elaborado em
conjunto a presente comunicação.
O objetivo da tese era verificar em que medida a descrição dos orixás que
compõem o candomblé corresponderia a uma tipologia intuitiva, sendo que a
identificação do orixá "dono da cabeça" de cada uma das fIlhas ou dos filhos do
terreiro poderia então valer como uma descrição de traços de personalidade.
Os mitos da religião nagô descrevem os orixás como donos de temperamen-
tos bem marcantes, desenhando configurações de traços nitidamente individuali-
zados e inconfundíveis. Seria possível então, considerar a hipótese de uma corres-
pondência entre o temperamento do orixá e a personalidade dos seus fIlhos. A
identificação do .dono da cabeça corresponderia, mutatis mutandis, a uma espécie
de diagnóstico de personali$de, que utilizaria um referencial mítico em vez do
respaldo teórico oferecido pela psicologia acadêmica?
Se assim for, todo o relacionamento do fIlho com o seu santo poderia vir a
ser descrito como um processo de encontro consigo próprio, expresso pelos meios
propiciados pelo grupo cultural e social a que pertence. Em particular, esse enfo-
que permitiria afastar a desconfiança que ainda em nossos dias pesa sobre o
"estado de santo". Histeria para os seguidores do modelo patológico, hoje bem
ultrapassado, ou alienação para os adeptos de certos modelos políticos, hoje no
furor da moda, nem sempre o comportamento de santo tem recebido o respeito
que merece como manifestação de uma realidade cultural e religiosa. Na perspec-
tiva da fenomenologia da experiência mística, a posse pelo orixá representaria uma
modalidade de encontro com a estranheza que reside no âmago do ser, que,
conforme a sua própria ideologia, o observador chamará de alteridade ou de
transcendência, pouco importa. Nesse sentido, a identificação com o orixá seria
uma modalidade de ajustamento pessoal e social, elaborada mediante padrões
culturais.
Mas é preciso experimentação, para não ficarmos em puro nível de espe-
culação. Parece-nos que há um campo quase inexplorado para o psicólogo, campo
esse que consistiria em investigar as relações que o iniciado estabelece com o dono
da sua cabeça. O nosso primeiro passo foi, portanto, verificar se os orixás, de fato,
poderiam representar uma tipologia intuitiva, e de que maneira tal tipologia seria
vivenciada no mundo do candomblé.
A investigação tinha portanto de abordar os seguintes pontos:

1. Como são descritos os orixás pelos mitos encontrados na literatura especiali-


zada? Apresentam à análise mais profunda as mesmas características que lhes são
popularmente atribuídas?
2. Como são descritos os orixás no terreiro investigado? Chegam a representar
configurações de personalidade bem definidas?
3. É possível derivar, de 1 e 2, quadros representativos dos traços de personali-
dade de cada orixá?

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4. Quais são OS processos e métodos utilizados para identificar o orixá dono da
Clbeça? Qual é o papel da técnica, e da intuição?,
5. Como as pessoas descrevem o "temperamento" do seu orixá? BXiste alguma
oonsciência de identificação, ou não?
6. Submetendo filhos e filhas de santo a exame psicológico, será possível
encontrar correlações oom o "tipo" dos seus santos respectivos?

1. Os livros

A resposta à primeira indagação requeria o estudo da literatura especializada. A


bibliografia fundamental foi toda ela passl!da em revista, mas, ainda que se encon-
trem descrições dos orixás nas primeiras obras escritas sobre religiões afrobrasi-
leiras, é somente ao chegar aos livros de Roger Bastide e Pierre Verger que se
delineiam quadros nítid"os. Na época da .investigação, não fora ainda publicado o
livro de Juana Elbein dos Santos, que hoje constitui um marco decisivo para o
oonhecimento do mundo mítico do candomblé.
A partir de Bastide e Verger, é possível formar dos orixás do candomblé
uma imagem bastante complexa, de características múltiplas, e conhecer algumas
de suas possíveis origens míticas. No caso de Exu, por exemplo, sincretizado com
o diabo por alguns autores, Roger Bastide destaca seu papel de mensageiro entre
os quatro oompartimentos do mundo. Esta função explicaria assim o padê: Exu
leva o convite para que os orixás venham participar da festa - e não mais o desejo
de afastá-lo para que não atrapalhe as cerimônias como aparece por exemplo em
Edison Càmeiro. O autor destaca seu caráter de divindade dos caminhos, dos
inícios e das aberturas. Observa-se, no caso da literatura sobre Exu, uma evolução
de personagem perigoso e maléfico, que ainda caracteriza esia divindad~ na
umbanda, para o papel fundamental de mensageiro: onde bem ou mal dependem
da meJ?sagem transportada e não daquele que a leva. Roger Bastide explica o caráter
malévolo atribuído a Exu como oonseqüência de 'seu papel na magia fartamente
usada contra os senhores de escravos. No entanto,' apesar de divergências deste
tipo entre diferentes autores, é possível traçar um conjunto de características
oomumente aceitas para a maioria dos orixás.
De grande utilidade foram os orikis (cânticos de louvor que contam os
atributos e feitos de um orixá) transcritos por Pierre Verger. No caso de Exu ficam
daros dois aspectos predominantes. Um deles, a violência ("Ele bate. com raiva em
qualquer árvore e a faz cair", "Bate nos portadores de oferendas que não fazem
boas oferendas", "Amarra uma pedra na carga de quem tem um fardo leve"), pode
ser contornado com homenagens e súplicas ("Rogo para não amarrar Uma pedra
no meu fardo", "Exu, não me faça mal, faça mal ao filho de outro"). O segundo
aspecto que se destaca do!! orikis é o espírito brincalhão ("Vai com uma peneira

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para comprar óleo no mercado", "Ele é como o barbudo que fica seis meses na
casa do tintureiro. O tintureiro não pode nem tingir sua barba nem ir jantar").
Essa característica, diga-se de passagem, é comum entre os deuses que presidem à
comunicação: em muitos aspectos, o Hermes grego é ~ambém um trickster.
Paralelamente à literatura especializada, no levantamento das características
de cada orixá pode-se recorrer à observação das danças rituais. A dança de cada
orixá representa freqüentemente a ilustração coreográfica da letra do cântico que
a acompanha. Descreve-se, portanto um comportamento específico a partir do
qual é possível fazer inferências sobre a personalidade do orixá. Um caso bastante
ilustrativo é o do banho de Oxum em que se destaca toda sua sensualidade,.
vaidade e riqueza, à medida que ela se olha no espelho enquanto passeia pelas
margens do rio, e mais tarde despoja-se de seus ornamentos para entrar na água. As
vestimentas e" atributos dos orixás também nos fornecem dados neste sentido. É o
caso do abebé de Oxum, ilustrativo ao mesmo tempo da vaidade e de seu caráter
de orixá da fertilidade (forma de cabaça).
Somados os resultados do levantamento bibliográfico, da observação de
rituais e das entrevistas com babalorixás foi possível alcançar um razoável grau de
coerência dentro da descrição dos traços de cada orixá, coerência esta que se
manteve em linhas gerais na comparação com o diagnóstico popular.
. E curioso observár que pessoas ligadas ao candomblé desde as mais leves
tinturas sobre o assunto se prontificam à primeira vista a aventurar uma opinião
.sobre o orixá protetor de cada pessoa. Esta opinião popular reflete bastante aque-
las características que gozam de relativo consenso entre autores especializados e
babalorixás. Em determinadas pessoas, certas características de personalidade
ressaltam tanto que esta identificação alcança alguma unanimidade. Em outros
casos os palpites são os mais disparatados. Nota-se, no entanto, que eles não são
dados ao acaso mas sim baseados em algum conhecimento das histórias dos orixás
e de suas características. Observa-se que quanto maiores conhecimentos a pessoa
adquire dentro do candomblé, quanto mais ela sobe dentro da hierarquia do
terreiro, menos ela se aventura a este tipo de palpite. Chegamos assim ao baba-
lorixá, que só arriscará uma defmição depois de um contato bastante prolongado
com o consulente e várias horas de jogo de búzios. Quando o objetivo é "raspar o
santo", esta precaução é ainda maior, podendo ser solicitada a ajuda de um baba-
laô.
Tal femômeno -não é observável apenas nos terreiros. Basta lembrar a fúria
diagnosticadora que se apodera de tantos calouros de psicologia e que aos poucos
se vai aplacando, à medida que os estudantes adquirem os conhecimentos da sua
especialidade!
A identificação do orixá por pessoa não-habilitada, ao mesmo tempo que
assume certo caráter de estereotipia e de precariedade, serve para ressaltar, pelo
seu próprio esquematismo, os grandes traços que são peculiares a cada orixá. Nesse
sentido, a tradição popular funcionaria quase como uma caricatura da tipologia
mítica: os traços são por demais acusados, mas não deixam de apresentar nítida

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semelhança com o modelo. O seu esquema tis mo talvez tenha a qualidade de
chamar a atenção sobre certos aspectos que de outro modo teriam passado desper-
cebidos. Pode-se- concluir, portanto, que é possível encontrar, tanto na bibliografia
acadêmica como na avaliação ingênua, descrições de traços que diferenciam niti-
damente os orixás entre si sob o aspecto do temperamento.
Como tudo isso funciona então na prática diária do candomblé?

2. N o terreiro

A investigação, para ser válida, tinha de obedecer a uma série de requisitos:


escolha de uma amostra representativa, técnicas específicas de observação, con-
trole do maior número possível de variáveis. Por outro lado, a pesquisa estava
limitada no tempo, ou seja, a investigadora dispunha de um máximo de dezoito
meses para, além de realizar a observação, sistematizá-la e redigir a dissertação de
Irestrado. e preciso reconhecer que a maior dificuldade encontrada residiu na
quase impossibilidade de atender ao mesmo tempo, às exigências metodológicas e
às pressões da situação.
De modo particular, uma investigação realizada em campo requer que se
mantenha constante o equilíbrio entre as necessidades do observador e a realidade
do observado. Numa área tão específica, e, pela sua própria natureza, tão cercada·
de tabus e de precauções mágicas como essa do comportamento religioso, surgem
problemas que vão gerando urna série de empecilhos â atuação do pesquisador. Por
estarem tais problemas intimamente relacionados com o assunto da pesquisa, pode
ser útil descrevê-los, para os eventuais pesquisadores desse campo.
Em primeiro lugar, a investigação tinha de ser efetuada no Rio de Janeiro,
área em que mil influências atuam conjuntamente, com o predomínio cada vez
maior da umbanda em todos os terreiros de cultos afro-brasileiros. Na umbanda, as
características das entidades não são tão especificamente delineadas como no
candomblé tradicional. Sendo urna religião em mudança, ou melhor, em fase de
elaboração, as entidades que compõem o seu panteílo - que, além disso, silo
centenas - não apresentam feições nítidas. Do ponto de vista da bibliografia, do
também escassos os trabalhos sérios, e bem poucos co"nvergem. Mas, por que não
confessar? A escolha do objeto da pesquisa muito revela do próprio pesquisador,
e as autoras nio têm como negar o seu fascínio pelo mundo do candomblé ..
Levou tempo para descobrir ~ terreiro que parecesse mais fiel às raízes afri-
canas. O passo mais demorado talvez tenha sido conseguir a permissfo do pai de
santo para que o seu terreiro fosse palco de uma investigação, e seus fllhos fossem
entrevistados e testados por uma pessoa estranha e de intenções para ele duvido-
sas. No início da pesquisa, os temas afro-brasileiros não estavam ainda tanto na
moda como hoje, e a lembrança dos estudos que relacionavam estado de santo e
psicopatologia ainda era muito viva.

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Uma pessoa da família da investigadora, já freqüentadora do terreiro! estabe-
leceu o contato inicial e assegurou o pai de santo da pureza das intenções da
pesquisa. A realização da mesma não dependia exclusivamente da boa vontade
pessoal do pai de santo. O ingresso no espaço sagrado tem de ser autorizado pelas
próprias forças que o regem. Os orixás tinham de ser consultados. Felizmente os
búzios deram um parecer favorável.
Este evidentemente é o passo fundamental, sem o qual é ocioso pensar-se em
realizar qualquer tipo de investigação: para penetrar nos degraus do sagrado, é
preciso engajar-se, dar de si para receber. Assim é que mais tarde, no meio dos
trabalhos da pesquisa propriamente dita, o pai de santo comunicou à investigadora
que se fizera necessário realizar um bór; para continuar adequadamente a tarefa.
Trata-se de uma cerimônia por meio da qual se transmite força à cabeça da pessoa
que a ela se submete. Após os rituais, pergunta-se aos orixás se a oferenda foi bem
acei ta. Se não a fosse, não teria sido possível prosseguir a pesquisa. O bári é, de
certa forma, um grau de participação no terreiro maior do que o de um simples
curioso, que garante uma relativa ascendência do pai de santo sobre a pessoa, e
estabelece um primeiro vínculo entre o indivíduo e o terreiro. Se a pesquisa tivesse
se prolongado por mais tempo, é provável que um grau maior de comprometi-
mento tivesse sido exigido.
Uma vez apoiada pela benevolência dos orixás a seu respeito, a pesquisa teve
de defrontar-se com outro problema, de natureza operacional. Para obter as infor-
mações essenciais acerca do funcionamento do terreiro, das técnicas de identifi-
cação do orixá que precedem à iniciação, e principalmente da maneira como o pai
de santo vê a relação entre o temperamento de cada orixá e a personalidade de
cada um dos seus filhos, era preciso realizar uma série de entrevistas com o
babalorixá. Em que horário?
O pai de santo preside as atividades cotidianas do terreiro, organiza as festas,
atende as pessoas que o procuram para consultas urgentes, harmoniza o relacio-
namento entre os seus filhos, e tem também de encontrar tempo para cuidá de
sua vida profana. Marcar hora não adianta. O remédio é ir cedo para o terreiro e
esperar até que o momento propício apareça. Nisso se vão horas, e dias. Vai-se
também o prazo estipulado para a entrega dos resultados da pesquisa.
Conseguida a oportunidade da entrevista, apareceu mais uma dific\lldade,'a
de obter informações completas. O segredo cerca grande parte dos rituais e tem
seus fundamentos em mitos relativos aos orixás. Os esclarecimentos só podem ser
transmitidos gradativamente, à medida que a pessoa passa a ter uma participação
maior dentro do terreiro, e assim mesmo só vão até certo ponto.
É possível também que o próprio pai de sánto nem sempre domine a totali-
dade dos conhecimentos. O carisma e a capacidade de liderança que parecem
elementos fundamentais para a criação e manutenção de um terreiro que funcione
ordenadamente não acompanham necessariamente um conhecimento profundo
dos fundamentos dos rituais. Inversamente, foi encontrado um oluô com extensos

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conhecimentos, mas que desempenhava um papel marginal dentro do terreiro por
faltar-lhe a qualidade da liderança.
Nessa situação, desfizeram-se as fantasias das autoras a respeito de um con-
junto bem estruturado de traços de personalidade descritivo de cada orixá, que
seria ensinado às filhas de santo nas aulas que precedem a iniciação e que serviria
de base ao babalaô quando determina o santo a ser raspado. Isto permite explicar,
em parte a divergência de informações encontradas na literatura, embora haja uma
certa concordância genérica a respeito de cada orixá.
Após as entrevistas com o babalorixá, era necessário examinar os seus filhos.
O obstáculo mais difícil de ser transposto, e que foi superadQ apenas em parte, foi
encontrar filhos de santo disponíveis para se prestarem aos exames planejados, que
'mcluíam entrevista e psicodiagnóstico de Rorschach.
Quando se encontra presente no terreiro, o filho de santo está geralmente
empenhado em alguma atividade relevante, que não pode ser interrompida.
Somando-se o problema da aceitação individual dos exames, a disponibilidade do
pai de santo para fazer as apresentações, ,e mais a exigüidade do prazo de reali-
zação da pesquisa, que ia diminuindo cada vez mais, somente foi possível levar a
cabo os exames de 15 pessoas. Nem todas tinham o mesmo grau hierárquico:
incluíam desde iaôs com um mês de iniciadas até ialorixás donas de terreiro há
muito tempo.
Nem todas tinham sido iniciadas naquele terreiro, e a identificação do seu
orixá tinha sido feita por diversos babalaôs. Algumas filhas de determinados orixás
haviam sido raspadas sob a proteção de outros, considerados mais benéficos. Esse
aspecto veio dificultar sobremaneira a verificação das hipóteses de trabalho. No
entanto, chegou-se a um conjunto de resultados que, embora não conclusivos por
conta dos percalços do caminho, não deixam de apontar para perspectivas enco-
rajadoras.
As informações sobre as características dos orixás colhidas junto ao pai de
santo não permitiram compor um quadro coerente das características dos mesmos.
Na opinião da investigadora, a imprecisão das respostas talvez fosse devido a um
conhecimento não muito profundo dos mitos e do significado dos rituais. Quem
forneceu o maior acervo de informações foi um oluô que freqüentava o terreiro
por ser amigo do babalorixá. Era uma pessoa muito pobre e que vivia do dinheiro
arrecadado com a venda de fios de contas para as pessoas que freqüentavam o
terreiro. Jogava também búzios. Quando havia preparativos para a saída de um
"barco" de ioôs ele ajudava o babalorixá na determinação dos santos que deviam
ser raspados. Ao contrário do pai de santo, parecia possuir conhecimentos apro-
fundados de nagô, que falava fluentemente, bem como dos mitos ligados à adivi-
nhação. Foi possível colher junto a ele uma curiosa versão sobre o aparecimento
dos orixás a partir dos odus (configurações nos jogos de adivinhação) em que se
destacaram vários aspectos da personalidade das divindades do panteão ioruba.

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3. Os tipos

A partir dos mitos encontrados na literatura, acrescidos das descrições que pude-
ram ser obtidas junto ao babalaô e aos freqüentadores do terreiro estudado,
conclui-se que o panteão compõe algo parecido com uma tipologia.
Essa tipologia não é simples. Cada orixá se desdobra em vários subtipos: o
comportamento esperado de Oxaguiã não é o mesmo de Oxalufã. No entanto, os
mitos relativos a cada orixá desenham configurações específicas, e pode ser ten-
tada uma tradução, em termos psicológicos, da descrição de cada temperamento.
Como ilustração, pode-se dar alguns exemplos:
Exu parece ser malicioso, brincalhão, com forte agressividade dirigida para
fora, coragem e iniciativa, inteligente e com agudo espírito crítico, com vivência
nitidamente extratensiva e muito boa capacidade de relacionamento.
O temperamento de Ogum parece caracterizar-se pela violência; extre-
mamente agressivo e impulsivo, o seu controle é fraco e a afetividade, explosiva.
Omolu também seria agressivo, mas controlado, e eventualmente tenderia a
dirigir sobre si a agressividade. O relacionamento não parece muito fácil. A afeti~­
dade é madura. Seria possível encontrar uma certa disforia, com ansiedade e
preocupação com o esquema corporal.
O temperamento de Oxóssi não é tão nitidamente delineado. Os mitos
descrevem-no como alguém dominado pela afetividade, prudente, desconfiado,
mas com bom relacionamento; o seu potencial agressivo parece sublimado.
Ossaim parece ser-lhe semelhante, só que mais introvertido e com certa
dificuldade de relacionamento.
Xangô é sem dúvida um orixá de traços bem marcantes. Inteligente, com
boa capacidade de organização e planejamento, muito criativo, com afetividade
lábil, egocêntrica, e intenso interesse sexual; o grande potencial agressivo é con-
trolado de modo intelectual e utilizado para atingir fins específicos; o relacio-
namento é distante e difícil.
Iansã é um tipo semelhante a Xangô, intelectualizado, agressivo e domi-
nador; a afetividade oscila entre a impulsividade e o controle rígido; o relacio-
namento interpessoal não parece ser fácil.
Oxum é sempre descrita como sensual e narcisista, com necessidade de afeto,
manifestando muito boa capacidade de relacionamento, inteligência intuitiva e
prática.
~ difícil encontrar uma descrição do temperamento de Iemanjá. Como
figura de Grande Mãe, ela é vista em termos de virtualidades, de tendências ainda
não individualizadas. Há urna certa agressividade, que se exprime de modo velado
e indireto. A afetividade parece madura, controlada, e o relacionamento, fácil.
Oxalá é, por definição, criador e aperfeiçoador; a sua afetividade é madura,
com certo. controle intelectual. É bastante teimoso e oposicionista, manifestando
um predomínio das tendências auto-agressivas.

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Resta saber se os fIlhos de santo apresentam tais características, ou se as
mesmas se manifestam exclusivamente durante o estado de posse.

4. As técnicas

A medida que vai sendo necessário um grau crescente de comprometimento da


pessoa com o seu orixá e com a vida do terreiro, a identifIcação segura de sua
divindade protetora torna-se mais importante. Os laços entre a pessoa e o orixá
estreitam-se por meio de oferendas e de cerimônias, que têm entre seus efeitos
ref9rçar a proteção da divindade. Neste sentido, se a identifIcação do orixá estiver
errada, um outro receberá as oferendas que lhe são destinadas, sendo os efeitos
desastrosos. O orixá ofende-se e passa a perseguir o ftlho, em vez de protegê-lo. Em
termos de personalidade, talvez fosse possível dizer que o estreitamento dos laços
entre wna pessoa e um modelo de personalidade que corresponde a seus traços
reais teria um efeito de integração progressiva. Por outro lado, tentar forçar uma
aproximação com um modelo cujos traços não lhe correspondem terá um efeito
mais desagregado r dO'que positivo.
A identifIcação do orixá não se faz aleatoriamente. Este trabalho deverá ser
feito por pessoas especializadas e através de métodos específicos. A primeira
forma de identificação, a mais simples, corresponde à possessão, que pode ocorrer
durante uma festa do terreiro. Neste caso, sabe-se de que orixá se trata, já que o
transe ocorre quando estão sendo entoados cânticos a ele destinados.
Nem sempre, no entanto, a divindade se manifesta de forma tão clara e às
vezes a iniciação é urgente, por motivos de saúde ou outro tipo de problema.
Recorre-se então aos métodos específIcos de adivinhação. O mais simples deles, e
que pode ser utilizado tanto pelo babalorixá como por um de seus assistentes, é o
das nozes de cola (obi, ou orobó), divididas em quatro pedaços. Os pedaços são
jogados no chão e a resposta é lida da seguinte maneira:

1. os quatro pedaços caem com a parte interna dirigida para cima - a resposta
dos deuses à pergunta feita é "sim";
2. se três fragmentos caem com a parte interna voltada para cima, a resposta é
"não";
3. se dóis pedaços têm a parte interna voltada para cima a resposta é favorável;
4. um único fragmento tem a parte interna voltada para cima - a resposta é
desfavorá vel.

A grande contra-indicação desta técnica é a limitação das respostas: afIr-


mativa ou negativa. Nenhuma outra informação é acrescentada pela divindade
consultada.
O segundo método, o mais difundido no Brasil, é o edilogum, os búzios de
Exu. Apesar de ser utilizado pelo babalaô, também o babalorixá e algumas fIlhas

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de Oxum podem ter acess~ a ele. Os 16 búzios geralmente usados (podem ser 32
em alguns casos) devem ser africanos e apresentam uma das faces quebradas, de
forma a ter um lado aberto e outro fechado. O adivinho sacode-os nas mãos,
lança-os e lê a "palavra" formada. Esta leitura supõe um conhecimento profundo
dos mitos relacionados aos orixás que correspondem a cada jogada. A resposta
depende da aplicação do mito à pergunta que foi feita.
De utilização privativa pelo babalaô é o opelê, ou colar de Ifá. Ele é <:pm-
posto de oito metades de nozes de cola, presas a uma correntinha de ferro que se
joga sobre a mesa, de modo a cair formando um U.cuja abertura fica colocada
diante do adivinho. As duas extremidades do U são de sexo diferente. Esta dife-
rença está representada por um pequeno nó para o sexo masculino e uma pequena
franja para o sexo feminino. As metades de noz, ao caírem, formam então 16
palavras ou odus. O babalaô interpreta a resposta de acordo com seus conhecimen-
tos.
Vemos assim que a determinação do orixá depende em grande parte da
interpretação que o adivinho faz a partir das técnicas específicas, uma vez que a
ele cabe aplicar o mito à pergunta feita. Podemos assim supor que a sua interpre-
tação se baseie não apenas em seus conhecimentos mas em sua capacidade intui-
tiva para determinar o orixá protetor de cada pessoa. A observação do filho de
santo, de seu comportamento, permite-lhe fazer inferências sobre seus possíveis
traços de personalidade, os quais, cotejados com seu conhecimento sobre as carac-
terísticas dos orixás, lhe permitem fazer urna avaliação mágica de cada pessoa.
Dentro deste enfoque, poderíamos comparar o babalaô ao psicólogo, que à
m:dida que cresce em experiência passa a utilizar sua intuição como instrumento
fundamentíll de diagnóstico. As técnicas de adivinhação poderiam ser aproximadas
dos testes psicológicos, fornecendo importantes dados que, no entanto, por si só
não são suficientes: eles dependem dos conhecimentos teóricos e da experiência
do diagnosticador para serem realmente eficientes.

5. A identificação

Entre as quinze pessoas entrevistadas, a consciência da identificação entre sua


própria personalidade e as características de seu orixá foi quase uma constante.
Uma única entrevistada negou esta semelhança. Tratava-se de uma fIlha de Ossaim
segundo a qual "cada um tem seu jeito". Esta relação é descrita de maneiras
variáveis. Para alguns "o orixá é uma vibração da natureza que age sobre seus
fIlhos" ou "os fluidos e os traços de personalidade do orixá são transmitidos a seus
protegidos quando eles nascem. No entanto o indivíduo tem também caracterís-
ticas próprias". Outros consideram que "a gente sempre pega um pouquinho".
Quase todas as pessoas consideraram esta identificação como inata e não devida à
iniciação, que serviria apenas para acentuar as características comuns. Uma das

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-
entrevistadas descreveu a iniciação como uma luz que tenta passar através de um
vidro stgo. Quando o vidro é limpo a luz pode passar melhor.
Ao falar de seu orixá protetor, as pessoas procuram realçar seu poder e
força, características que indiretamente viriam valorizar seus filhos. Geralmente é
possível observar descrições semelhantes entre os filhos de um mesmo orixá. Na
maioria dos casos, estas características são também coerentes com as descrições da
literatura especializada e com aquelas comumente aceitas como próprias daquela
divindade. No caso de Omolu foi destacada sua pertinácia: "quando quer alguma
coisa luta até conseguir", "tem um temperamento positivo e decidido". Quanto a
Xangô o traço dominante foi o seu caráter justiceiro e seu temperamento forte:
"quando se irrita é justiceiro e castiga severamente a pessoa". Uma filha de
Iemanjá descreveu-a como uma vibração de calma e tranqüilidade que vem nas
ondas do mar. Iansã é descrita por uma de suas filhas como "maravilhosa, alegre,
decidida, forte, guerreira, que impõe", "persuasiva, inteligente e muito viva".
As ftlhas de Oxum destacam sua tendência a chorar facilmente, sua grande
sensibilidade. Outras características a ela atribuídas foram a vaidade, sua ambição
e gosto por coisas caras e postos de destaque (é a dona do ouro). Em Oxalufã
ressaltou-se a bondade e calma, apesar de castigar aqueles que "mexem com seus
filhos".

6. A experimentação

Na tentativa de encontrar eventuais correlações entre os traços de personalidade


dos filhos de santo e o temperamento do respectivo orixá, o grupo foi submetido a
exame psicológico incluindo uma entrevista detalhada e o psicodiagnóstico de
Rorschach.
Já foi comentada a limitação do estudo a um número restrito de pessoas.
Além do mais, o grupo dividia-se em: 3 filhos de Omolu, 4 de Xangô, 1 de Ossaim,
1 de Iemanjá, 1 de Iansã, 4 de Oxum e 1 de Oxalá (veja quadro 1).
Não seria possível, portanto, pensar em estabelecer correlações no sentido
técnico da palavra. A exigüidade de cada subgrupo fala por si. O que se pôde fazer
foi agrupar de um lado os traços encontrados no Rorschach, bem como o que foi
observado na entrevista, para os fIlhos de cada um dos orixás encontrados; e
comparar termo a termo os traços observados com os traços esperados a partir da
tipologia mítica.
Apesar das limitações do estudo, o que se verificou foi a concordância dos
traços observados com os esperados, na maioria dos casos (Quadro 2). É curioso
observar que, no caso de fIlho único de determinado orixá (Oxalá, Iemanjá e
Iansã, particularmente) os traços praticamente se superpunham. Assim é que os
traços esperados para um fIlha de Oxalá, tais como criatividade, minuciosidade,
facilidade de relacionamento, agressividade controlada com tendências auto-
punitivas, foram encontrados no Rorschach (G+, K elevado) (Dd elevado)(H% ele-

Objeto do desejo 47
Quadro 1

Idade Orixá
Idade da Posição Motivação dono da Segundo Terceiro Natural de Profissão Estado
iniciação hierárq uica cabeça
orixá orixá civil
--- --'--- --- -- -- ------ -------- ~----
---

1 - Pedro 66 anos 18 anos oluô e pabi conselho de Omulu Iansã Bahia vendedor de guias solteiro
um babalorixá
2 - Carmem 37 anos 31 anos ialorixá saúde Obaluaê Tempo Itália prendas domésticas casada
3 - Jussara 47 anos 47 anos iaô saúde Obaluaê Rio prendas domésticas casada
4 Marta 39 anos 4 anos ialorixá saúde Ossaim Oxóssi Rio prendas domésticas viúva
5 - Laura 25 anos 7 anos ialorixá não sabe Xangô Bahia ajuda o babalorixá solteira
6 - Fernando 28 anos 19 anos iaô saúde Xangô Oxum Ogum Maranhão fune. da ERCT solteiro
7 - Sérgio 30 anos 30 anos iaô jogo de búzios Xangô Rio economista casado
8 - Nair 13 anos 13 anos iaô saúde Xangô Oxalá Oxóssi R. G. Norte estudante solteira
9 - Mônica 33 anos 32 anos iaô saúde Oxum Pernambuco ajuda o babalorixá solteira
10 - Renata 19 anos 19 anos iaô problemas em Oxum Oxalá Xangô Rio estudante solteira
geral
11 - Joelma 24 anos 24 anos iaô ~~tristeza" Oxum Iansã Xangô Rio prendas domésticas casada
12 - Dora 23 anos 23 anos iaô saúde Oxum Rio datilógrafa solteira
13 - Isabel 23 anos 23 anos iaô azar e saúde lemanjá Rio estudante solteira
14 Cláudia 28 anos 27 anos iaô busca de trans- lansã Xangô São Paulo estudante de psico- solteira
cendentalidade logia
15 - Maria Rita 66 anos 66 anos iaô saúde Oxalá Nanã Minas Gerais prendas domésticas viúva
Quadro 2

Omolu Xangô Ossaim Iemanjá Iansã Oxum Oxalá


Psicograma
di I 93
I 92 d6 I 95 I d 7 I 98 94 913 914 99 19 11 19 10 \ 9 12 915

R 12 12 10 17 11 11 10 20 14 20 12 13 20 12 40
G% 42 58 60 59 64 64 90 30 64 85 50 62 35 50 12
D% 58 33 10 24 36 36 70 29 15 50 38 65 50 55
Dd% 8 30 10 31
Dbl% 8 17 7 12
F+% 40 lOO 83 50 86 75 50 66 100 73 78 67 75 100 58
F% 42 50 60 35 64 73 60 75 57 55 55 69 90 75 78
K 2 2 1 2 4 4 2 1 2 5
FC 2 4 1 2 2
CF 1 1 1 1 1 1 3
C 1 2
FE 3 2 2 1 1 1 1 2
EF 1 2 2 1 1 1
E 1
A% 75 67 40 53 64 55 10 60 55 30 50 38 60 50 32
H% 8 8 10 29 27 9 50 20 9 35 33 15 5 17 38
Anat% 8 20 6 27 30 5 27 5 31 15 8
Ban 2 5 4 3 6 7 O 3 7 6 5 5 6 5 4
TV 1:1,5 1:2,5 1:2 2:3 2:1,5 1 :1 2:0 0:2 1 :1 4:6 2:0 1:0,5 1:1,5 2:1 5:1
TP G-º Çl.D.Dd.Dbl G-DDd G.D.Dbl º"D Ç!-D Ç!-Dd G-º Ç!-D Ç!-D Çl-D Ç!-D G-º Ç!-D G.D.Dd
Do.Dbl
vado)(Dbl com F+, Dbl com TVintroversivo). No entanto, não se verificou a espe-
rada afetividade madura e bem controlada.
A filha de Iansã já aparecia na entrevista como um tipo altamente represen-
tativo deste orixá. No Rorschach, todos os traços esperados foram encontrados:
"inteligência e criatividade (G% 85 com numerosas secundárias, 4 K, F+% 73), afetivi-
dade intensa e impulsiva (O FC, 3 CF, 2 C), relacionamento difícil - (H) maior
que H.
Nos orixás que contavam com certo número de fIlhos,houve menos concor-
dância. Algumas características foram constantes, apareceram nos testes de todos.
Talvez essas características fossem especialmente relevantes para o "diagnóstico"
do oluô. Observa-se por exemplo que todos os filhos de Omolu possuem em
comum o mesmo tipo de vivência, tendendo para o coaitativo - em dois deles é
nítida a ansiedade (FE e EF). Os filhos de Xangô são todos do tipo G e se
mostram predominantemente introversivos. Um só deles se revela fortemente
agressivo. As filhas de Oxum n[o apresentaram o narcisismo e a sensualidade espe-
rados, e ainda menos a capacidade de relacionamento.
É preciso atentar para o fato que os filhos de determinados orixás tinham
sido identificados como pertencentes a uma sub divindade específica (para retomar
a expressão de Bastide). A pesquisa não procurou levantar as características de
cada um dos subtipos de orixás, nem sequer em nível teórico. Um trabalho mais
extenso teria de levar isso em conta. Basta dizer que Bastide assinalou a presença
de 3 Oxalá, 4 Oxossi, 7 Ogum, 7 Iemanjá, 9Ians[, 12 Xangô, 14 Omolu, 16 Oxum,
e nada menos que 21 Exu! .
É possível portanto que as diferenças encontradas ao nível individual fossem
também devidas a variações entre subdivindades. Por exemplo, os quatro filhos de
Xangô pertenciam respectivamente a Xangô menino, Xangô Alafin, Xangô Agodô
e Xangô tout court.
Outro aspecto que não foi levado em conta é o do santo secundário de cada
um dos filhos. Dentro da mitologia nagô, cada pessoa é um mundo em pequeno,
que inclui dentro de si todos os orixás. O santo é o "dono da cabeça", mas não é o
único atuante.
Essas considerações objetivam mostrar o quanto é complexo o problema da
identificação no mundo mítico do candomblé. O trabalho realizado convenceu as
autoras da adequação dos seus pressupostos. A descrição dos orixás do candomblé
parece mesmo compor uma tipologia intuitiva, e o trabalho de identificação do
dono da cabeça em muito se assemelha a um processo diagnóstico. Como se viu, as
autoras não conseguiram juntar um acervo de dados suficientes para investigar, de
maneira correta, a maneira pela qual o temperamento do orixá pode corresponder
aos traços de personalidade de seus filhos. Fizeram questão, porém, de vir tes-
temunhar da relevância desse tipo de investigação para os estudiosos da psicologia
religiosa.
Serão necessárias muitas investigações, amplas e demoradas, para se chegar a
alguma compreensão do tipo de relações que o iniciado estabelece com o seu

50 A.B.P. 1/79
onxa. Essa temática interessa ao antropólogo cultural, mas diz respeito a todos
nós, que vivemos dentro de uma realidade cultural tão rica, tão original e tão
impregnada de misticismo como é a cosmovisão brasileira. A compreensão do
processo específico de identificação com o "dono da cabeça" permitiria talvez
esclarecer os mecanismos que dão origem à manifestação do "estado de santo". E
serviria também como um modelo para a compreensão dos meios de que o homem
dispõe para lidar com a sua própria estranheza, isto é, com a sua realidade mais
profunda. "O objeto do desejo, eis o vodu de cada um", dizia um dia um africano
pua um etnólogo. Ou seja, o encontro com aquilo que todos nós almejamos.

Résumé

Les Auteurs de ce travail cherchent à vérifier si la description du tempéramente


des orishas (dieux du candomblé) représente une espece de typalogie intuitive. Les
études déja classiques du candomblé montrent qu 'il est possible de dériver des
types de personalité spécifiques et cohérents, à partir des récits mythiques qui
racontent l'histoire des orishas. L 'observation de la vie d'une communauté de
nation Ketu, faite à Rio de Janeiro, permet de décrire le processus d'identification
du "seigneur de la tête" de chacun des initiés comme un équivalent mythique de
diagnostic psychologique. La comparaison entre les résultats d'un examen
psychologique classique, réalisé avec chacun des initiés sur lesquels a porté cette
étude, et les traits de personalité de son identité mythique permet de considérer
romme viable l'hypothése de travaiL Il est nécessaire cependant d'amplier les
recherches pour a"iver à des résultats concluants. Les difficultés inhérentes à ce
genre d'étude, menée dans le cadre de la phénoménologie de l'expérience
religieuse, sont trop spécifiques paur être sous-estimées.

Bibliografia

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