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INTRODUÇÃO
Nunca fui um hip hopper. Porém, compactuo com muitas das idéias que são
veiculadas pelo movimento hip hop. O meu primeiro contato com o que depois vim a
descobrir ser o movimento hip hop foi num domingo à tarde, quando eu e minha
noiva (atualmente minha esposa) voltávamos de uma cachoeira no distrito de
Andorinhas, situada no município de Magé. Ao voltarmos do passeio, passamos por
um automóvel onde se ouvia a música “Fim de Semana no Parque” dos Racionais
MCs, que na época eu nem sabia quem eram. A música impressionou-me pelo som
e muito mais pela letra. Ela falava da diferença entre a vida dos moleques da favela
e a vida dos chamados “filhinhos de papai”, ou seja, os “playboys”. Ela também
descrevia, de certa forma, o ambiente da favela, os escassos investimentos no lazer
e também a proximidade que o jovem da periferia tem com a marginalidade.
Algum tempo depois, no ano de 1998, tive o meu segundo e decisivo encontro
com o rap. Decisivo, pois foi fundamental para que escolhesse o rap como um dos
meus estilos de música preferidos. Fui viajar com vários amigos para Barra de São
João, situada na Região dos Lagos, a fim de passarmos o carnaval. Um amigo meu
que dirigia o carro que nos transportava nos falou que tinha um som muito legal e
queria que nós ouvíssemos. Ele já sabia do interesse por parte de alguns de nós por
questões sociais.
Muitos dos que estavam no carro já tinham de alguma forma se envolvido em
trabalhos sociais, tanto na Associação de Moradores do nosso bairro, como também
em um curso de pré-vestibular comunitário . Então nós fomos quase que a viagem
inteira ouvindo novamente a música “Fim de Semana no Parque” e “Homem na
Estrada”, ambas dos Racionais. O interessante é que todos que estavam no carro
ficaram quase que em silêncio, extremamente impressionados com os relatos que
nos chegavam através daquela voz, de timbre forte, mas precisamente cheia de
“atitude”. Começamos a perceber que não era somente uma voz, mas sim uma série
de denúncias e também relatos de situações que eram vividas por pessoas da
periferia, mais precisamente pessoas que habitavam favelas, que não eram muito
diferentes da nossa realidade.
Fiquei também muito impressionado, pois naquele ano de 1998, apesar de
ser um período de carnaval, os carros que estavam em Barra de São João na
maioria das vezes tocavam músicas dos Racionais, especialmente “Fim de Semana
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viver situações em que vários conhecidos foram mortos, por se envolverem com o
tráfico, e talvez por terem uma ambição que os fazia trilhar a vida do crime para que
pudessem vir a ter os tênis, as bermudas e camisetas “de marca”, com a ilusão de
que através do crime poderiam conquistar alguns bens de consumo e também de
conseguir um certo status.
Neste trabalho, analisaremos as entrevistas concedidas por Mano Brown e as
letras das músicas dos Racionais MCs, enfatizando a trajetória do seu líder. Sem
perder de vista que uma biografia não é um relato sucessivo de fatos da vida de uma
pessoa, mas sim episódios que são, de certa forma, priorizados por ela, como nos
ensina Bourdieu, no artigo intitulado “Ilusão Biográfica”. Esta proposta de Bourdieu
nos revela que o sujeito que é biografado, quando relata sua própria história, tenta
formar uma cadeia de informações que a torne inteligível, de maneira que possa
tornar-se uma narrativa que produza uma significação.
Portanto, não devemos com isso acreditar que o que nos é revelado numa
biografia é algo que venha a constituir-se numa verdade absoluta, mas sim um
conjunto de fatos que podem nos elucidar as escolhas realizadas por este sujeito.
Pois, independentemente das contradições que possa conter, para o historiador, o
relato auto biografo será sempre um instrumento de investigação que poderá
esclarecer as questões propostas.
Sem dúvida os historiadores das “pequenas” realidades sociais nos falam de
pequenas coisas que ocupam o lugar que outras orientações historiográficas
reservavam a pessoas e fatos monumentais, de como a História se revela, até
abruptamente, na situação e na biografia das pessoas comuns. O inesperado deixa
suas marcas, o homem comum, sem deixar de ser comum, ocupa na historiografia o
lugar que até há algum tempo era reservado aos heróis reais ou postiços, por
monumentalizações que a realidade desmente.
Ao refletirmos sobre a relevância da história dos de baixo nos perguntamos
qual sua importância histórica. Podemos nos debruçar a respeito da afirmativa de
que “a história se faz de grandes homens”. Ou seja, a motivação existente até hoje
de uma manutenção do poder forja esta afirmativa, uma história baseada na
construção de monumentos. Por mais que a história dos comuns não seja uma
novidade, ainda não está paralela à história das elites. E podemos perceber que
estudando os comuns podemos mexer nesta estrutura hierárquica, contribuindo
assim que a história não seja feita somente pelas classes dominantes, mas sim que
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são vividas por eles próprios. Com isso, tornando-se reais denunciadores, de certa
forma legitimados, frente a essa mesma periferia, da sua própria realidade.
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O Hip Hop ao que parece, foi gestado na década de 1970 nos guetos dos
Estados Unidos, entre jovens negros e hispânicos. O termo, que significa balançar
os quadris, foi criado pelo negro Afrika Bambaataa, por volta do ano de 1968. Era
um convite à festa, à diversão. Com a intenção de apaziguar os confrontos entre
gangues no bairro do Bronx, em Nova Iorque, Afrika Bambaataa teria proposto que,
ao invés de se matarem, disputassem suas diferenças numa dança chamada break.
No início da década de 1970 o Disc Jockey (DJ) jamaicano Kool Herc
começou realizar festas nas ruas. Uma prática que já era realizada na Jamaica.
Esses bailes já ocorriam na ilha desde a década de 1960, quando os “toasters”,
autênticos Mestres de Cerimônias, comentavam em suas intervenções os problemas
políticos jamaicanos, a violência das favelas de Kingston e também temas polêmicos
como drogas e sexo.
Outro DJ que tem bastante responsabilidade na continuidade das festas, nos
Estados Unidos foi Grandmaster Flash, que desenvolveu as principais técnicas de
utilização dos aparelhos de som como instrumento, através de um canto falado,
denominado rap.
Já no Brasil, o Hip Hop tem seu início a década de 1980, quando na Rua 24
de Maio, na cidade São Paulo, se reuniam as equipes de baile e vários dançarinos
de break. Posteriormente, foram perseguidos pela polícia e por lojistas da região,
tendo então que se deslocar para a Rua São Bento. São dados como percursores
do movimento no Brasil Nelson Triunfo, que representa o break, e Thaíde e DJ Hum,
representando o rap. Um período depois, houve uma separação entre os rappers
( cantores de rap ) e os b. boys ( dançarinos de break). Os primeiros continuaram na
São Bento e os outros foram para a Praça Roosevelt.
O Hip Hop tem três principais manifestações: o break (dança repleta de
movimentos acrobáticos ) o rap ( uma música marcada por um ritmo e uma melodia
bastante singulares) e o grafite (expressão realizada nas artes plásticas). No Hip
Hop se retrata o universo dos jovens da periferia, que são muitas vezes excluídos
de projetos educacionais do Estado e também são excluídos das melhorais sociais,
tanto no lazer quanto na saúde. Eles tem, através do Hip Hop, uma chance de lutar
por melhorias sociais e também de se organizar a fim de exigir o seu próprio espaço,
onde possam dançar, ouvir sua própria música. São jovens que passam a ter a
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“Na periferia, todos se encontram na rua, nos bailes, e a posse surge daí,
reunindo dois ou três grupos de rap. É um jeito de trocar idéia sobre
música, arte e os problemas da periferia, de estudar nossas origens – a
afro-descendência - que a escola não ensina. Também é uma união para
lutar por espaço na sociedade, exigir locais para nossos ensaios e
apresentações”(AMARAL, 1998: p. 4-5).
Ele coloca, talvez, uma das principais funções das posses, que seria um local
onde os jovens constróem suas posições políticas, a fim de combater alguns males
que são por eles enfrentados, como o sedutor caminho da marginalidade, o estigma
de serem fracassados, o álcool e o desemprego. Esses jovens passam a discutir
problemas cotidianos que atingem a periferia para tentarem uma forma, ao que
parece, de interferir nessa realidade. A juventude que freqüenta uma posse ou
gangue geralmente está interessada não somente em discutir os seus problemas,
mas também em pressionar politicamente para que o governo, seja ele municipal ou
estadual, venha a cumprir suas obrigações junto às comunidades. Eles reivindicam
espaço para lazer, mas também objetivam conhecer suas próprias origens, para
assim encontrarem seu espaço de luta dentro da sociedade. Para muitos deles, não
basta somente criticar, mas sim elaborar propostas que sejam capazes de dar
soluções às mazelas sociais que são reservadas à periferia.
A participação em atividades proporcionadas pelas posses, ao que tudo
indica, impede que esses jovens tenham a ilusão de tentar um atalho pelo caminho
das drogas e do crime. Através da discussão que realizam nas posses, esses jovens
passam a agir de forma pragmática na sociedade em que vivem e passam a ser
uma espécie de interventores na conscientização de outros jovens. O que fica
evidenciado nas falas de outros dois integrantes da Negroatividades, Preto Ba e Edy
Robson, respectivamente.
tem uma idéia forte. Nós precisamos de mais moleque assim, que não fume
um crack , pra gente ir estruturando a nossa periferia”
[...]
“Aqui, cada esquina tem um boteco. A bebida destrói um pai de família mas
tem a mídia a favor, fazendo aqueles anúncios bonitos sem mostrar o mal
que faz. A gente contra-ataca”.(AMARAL, 1998: p. 5)
“... a música cantada por esses jovens dentro de um novo contexto, mais
amplo, em que as “culturas das favelas” aparecem não simplesmente como
subprodutos da violência social do país, mas como uma produção e um
discurso capazes não só de espelhar a realidade “dura” dessas localidades,
mas que também, de alguma forma, exprimem a reivindicação da ampliação
da cidadania ao segmento social que habita essas áreas urbanas. “
(BENTES e HERSCHMANN, 2002: p.?)
Através do rap, esses jovens passam a clamar por uma inclusão social e por
serem abrangidos por benefícios do Estado, como: ruas asfaltadas, melhores
escolas públicas, geração de empregos, investimentos no lazer, etc.
Com o rap também há um resgate cultural de valores negros, que fazem com
que os jovens possam vislumbrar a formação da sua etnia. Lembrando os feitos de
figuras históricas extremamente importantes para a causa negra, como Martin Luther
King, Malcom X, Zumbi e outros, os rappers proporcionam a esses jovens
conhecimento de sua própria história, entendida como resgate cultural da origem
negra, formando laços de identificação com lutas por dignidade, liberdade e justiça.
Os rappers, através da sua arte, tentam criar uma espécie de identidade
social para esse jovem, negro da periferia. Uma identidade que passa pela
valorização do ser negro. Com letras que freqüentemente estão repletas de gírias e
palavrões, que são as expressões utilizadas por essa juventude periférica.
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O hip hop, além de levar diversão, ele também tem uma carga que é
fortemente informativa. Além de dançar, de curtir o rap, o jovem se informa, criando
laços de pertencimento em um grupo. Assim, o hip hop tenta contribuir para que
esse jovem possa localizar-se no mundo, para que possa perceber as lutas que terá
que travar para buscar um reconhecimento.
A proposta de identidade social que o hip hop expressa no rap objetiva situar
o jovem na sociedade, para que não venha a ser uma simples “marionete” na mão
das elites que dominam o poder político e econômico, mas sim que seja mais um a
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estar nessa batalha que é cotidiana. A necessidade de ter seus próprios desejos e
de batalhar para realizá-los. O rap não diz que o jovem não possa ter, porém ele
tenta tirar a ilusão de que para ser melhor você precisa ter. Essa identidade, que os
hip hoppers tentam ajudar a construir, faz com que esse jovem possa ter elementos
que o definam perante a sociedade, a fim de que possa produzir formas de resistir à
sedução da mídia no sentido de ser obrigado a ter, pela simples ótica do consumo e
de tentar ser alguém que na maioria das vezes não precisa ser. Observemos o que
Carlos Brandão nos fornece sobre o que são identidades:
O hip hop coloca para o jovem da periferia que, as falsas idéias de consumo
são uma armadilha e que ele deve buscar não ser seduzido por esses desejos de
consumo. Os hip hoppers denunciam que os jovens por causa desse desejo
consumista, costumam pegar um atalho através do tráfico ou do roubo, para
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conseguir o que querem. Não se deixar conduzir pelo sistema, ser um “guerreiro”,
buscar uma saída são alguns dos desafios propostos pelo hip hop. O jovem, apesar
das dificuldades e do abandono, tem de ser um “guerreiro” e não se deixar dominar
por esse sistema que reserva para ele o álcool, drogas, desemprego, baixa auto-
estima, etc.
O hip hop tem como uma das suas principais funções a de denunciar as
mazelas sociais. Em muitos casos, ele relata os problemas recorrentes à periferia.
Os cenários descritos pelo rap são de uma periferia que é destituída de melhorias
realizadas pelo Estado. As condições básicas de vida que são garantidas pela
Constituição não são realizadas nesta periferia. São locais com escassos
investimentos em lazer, saneamento básico, educação e saúde. As pessoas, em sua
maioria, sentem-se abandonadas pelo Estado, que geralmente se faz presente
através da polícia. Esta mesma polícia que é considerada pelos rappers como
preconceituosa e racista é a que leva o Estado para as favelas e zonas periféricas
com requintes de violência e repressão.
É importante analisar a situação em que o jovem da periferia se encontra,
como por exemplo, a alienação social ( confinação a um estrato social inferior) , a
alienação política ( exclusão em face dos mecanimos de mando), a cultural (o
“desenraizamento”, a aculturação) e até mesmo a alienação psicológica (processo
pelo qual o indivíduo é privado de referências para construção de sua
personalidade) . Não queremos dizer que todo jovem da periferia se encontra nessa
situação, porém podemos perceber que sua cidadania não é exercida amplamente.
O hip hop se torna uma possibilidade para este desenvolvimento,
conscientizando e estimulando a consciência. O hip hop procura agir em função de
superar essa alienação, daí a propagação do hip hop.
É possível, historicamente, comprovar que, mesmo apesar de todos os
mecanismos de dominação e exploração, homens e mulheres podem vir a ser
agentes de sua própria história cultural. Nesse sentido, em meio às políticas de
controle e às práticas culturais, são possíveis as transformações. Isso acontece
porque a história é viva. A cultura e a sociedade também. Sempre são somadas à
situação vigente de dominação as características e valores de camadas que
desejam deixar sua classificação de dominados.
Ao estimular a formação de consciência e clamar aos jovens que transformem
suas realidades, o hip hop através da informação e conseqüentemente educação
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“Mais esses jovens, muitos já homens e mulheres feitos, com família para
criar, aprenderam na pele que a tal assinatura da princesa Isabel, em 1888,
não mudou tanta coisa no país quanto se quer fazer crer.
Eles apanham da polícia como os escravos apanham dos feitores; são
considerados inferiores, sem “boa aparência”, quando procuram emprego,
numa terra onde “negro bom tem alma branca” e “preta é pra foder, branca
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A escolha da biografia de Mano Brown foi feita pelo motivo de que ele, ao
compor suas letras de rap, conta uma história que é sua, ou que já foi vivenciada por
ele no seu cotidiano. Pedro Paulo Soares nasceu no dia 22 de abril de 1970, na
Zona Sul de São Paulo. Filho de uma negra com um branco, mais um sobrevivente,
como ele mesmo diz, assim como outros moleques da quebrada (que residem nas
redondezas), não possui muitos estudos. Estudou somente até a 7ª série.
Criado no Capão Redondo, uma zona extremamente pobre da periferia de
São Paulo, Mano Brown teve e tem a chance de ver como muitos de seus amigos e
conhecidos foram e são atirados a vida do crime. Geralmente o seu destino é o
presídio ou a morte violenta.
Ele busca contar, através do seu rap, uma história do real, de acordo com os
seus termos, na qual conta e mostra a cara da periferia. Mano Brown denuncia as
dificuldades cotidianas vividas por quem, como ele, foi deixado de lado pelo Estado.
Mano Brown tem como uma de suas formas de ação denunciar a responsabilidade
do Estado na produção da miséria. O mesmo Estado que na maioria das vezes nega
cidadania, acentua a exclusão social, contribui para construção de um sistema em
que as comunidades periféricas não têm lugar. No Brasil esta divisão não igualitária
tem raízes históricas: de um lado, senhores, proprietários, doutores. De outro índios,
escravos, trabalhadores, pobres, etc. Como podemos perceber nos trechos de
“Negro Drama”:
[...]
[...]
hei, senhor de engenho sei bem quem você é/sozinho cê não guenta,
sozinho cê num guenta/cê disse que era bom e a favela ouviu/wisk
red bull tênis nike fuzil/admito, seus carro é bonito, é, e eu não sei
fazer/internet, vídeo cassete, os carro loko/atrasado eu to um pouco,
sim to, eu acho/só que tem que...seu jogo é sujo e eu não me
encaixo”( Trechos de “Negro Drama”- Racionais MC’s. CD Nada
como um dia após o outro dia)
“O pobre não fala, pobre cumpre lei. O pobre não toma, ele pede, se
humilha. E o rap não pede nada. O rap vai falando, falando um montão.
Então, pros caras, isso aí é tipo uma revolta, uma conspiração dos pobres,
dos presos, dos pretos, dos favelados.” (KALILI, 1998: p. 18).
Outro fato interessante é que Mano Brown não se coloca como o detentor da
verdade, mas da “sua verdade”. Ele deixa claro que suas músicas retratam o que ele
acha importante, portanto ela divulga as suas apreensões. Ele não se coloca como
alguém que sabe da verdade, mas como uma pessoa que tem uma opinião. Ao
responder a pergunta sobre o conteúdo das suas letras de música, ele afirma:
Embora Brown não queira ser visto como ídolo, há sempre uma preocupação
de sua parte em ser um exemplo e com isso mostrar para os moleques que vivem
na quebrada, como ele mesmo diz, que se pode ter uma vida longe das drogas e do
caminho errado. As letras lançam um apelo para que os jovens procurem um
caminho que não os leve a criminalidade. Na verdade, o que Brown faz é um apelo,
assim como fica claro neste trecho de um dos seus raps:
“...no extremo sul da zona sul tá tudo errado/aqui vale muito pouco a sua
vida/nossa lei é falha violenta e suicida/(se diz) que me diz que não se
revela/parágrafo primeiro na lei da favela/legal assustador é quando se
descobre/que tudo dá em nada e que só morre o pobre/a gente vive se
matando irmão por quê?/não me olhe assim eu sou igual a você/descanse o
seu gatilho descanse o seu gatilho/entre no trem da malandragem o meu
rap é o trilho/vou dizer/procure a sua paz/pra todas a famílias ai que
perderam pessoas importante morô meu!/não se acostume com esse
cotidiano violento/que essa não é a sua vida essa não é a minha vida morô
mano!/procure a sua paz/cheguei aos 27 sou um vencedor tá ligado
mano!/aí procure a sua eu vou atrás da minha fórmula mágica da paz!/aí
manda um toque na quebrada lá Cohab adventista e pá
rapaziada!/malandragem de verdade é viver se liga/aqui quem fala é Mano
Brown mais um sobrevivente27 anos contrariando a estatística morô meu!
procure a sua paz procure a sua!você pode encontrar a sua paz o seu
paraíso! você pode encontrar o seu inferno! eu prefiro a paz” (Trecho de
“Fórmula Mágica da Paz” – Racionais MCs. CD Sobrevivendo no Inferno)
O líder dos Racionais MCs sabe que sua trajetória é importante para os
jovens da periferia, por isso tenta manter uma postura condizente com seu discurso
na música, pois isso lhe dá legitimidade para ser a voz destes excluídos. Como ele
mesmo coloca, é um sobrevivente, um louco que não pode errar.
Como o próprio Mano Brown diz, ele é “o efeito colateral” que o sistema fez,
portanto, produto da injustiça social que impera no país. Para ele as mazelas
sociais é que fazem com que o crime se apodere da periferia. Se houvesse mais
investimentos em educação, saneamento básico e lazer, provavelmente o jovem da
periferia não trilharia a vida do crime. O seu próprio trabalho é resultado desta
injustiça, pois se não fosse assim o seu rap não seria um mecanismo de denúncia
da desigualdade social que impera no país. O Estado, na maioria das vezes em que
se faz presente na periferia, o faz através da repressão policial. Como afirma Mano
Brown ao responder o repórter Sérgio Kalili, a respeito dos Racionais serem
odiados pela polícia e adorados pelos marginalizados:
A contrário da idéia que muitas vezes é veiculada pela mídia e pelo senso
comum, Mano Brown não é um criminoso e tão pouco faz apologia às drogas. Como
fica claro neste trecho:
“Não sou defensor de preso, não sou defensor de criminoso, não sou
a favor de estuprador, não sou a favor de droga, mas a maioria dos
caras que tão dentro da cadeia é um preso político, mano é cara que
tá preso porque sempre foi pobre, porque não teve outra saída, tá
ligado? Se tivesse um salário digno, não ia roubar. Se o salário fosse
quinhentos contos, que é o mínimo que dá pra viver, o cara não ia
roubar.
[...]
Então, enquanto a coisa for desse jeito aí, o crime não vai acabar. O
tráfico não vai acabar, os viciados, então, não vai acabar, porque a
frustração só aumenta. E quando tem muita frustração só aumenta. E
quando tem muita frustração, sonho que não foi realizado, os caras
entram na droga, entram no álcool.”(KALILI, 1998: p. 18)
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Ele defende que somente coloca em sua música “os baratos” que chegam ao
seu conhecimento. Isto fica claro a partir de uma análise de suas letras e também da
sua postura como rapper. A partir do estereótipo criado em suas roupas, suas
tatuagens e a cor da sua pele e sua postura altiva e com ar de enfrentamento, Mano
Brown sofre um prejulgamento que na maioria das vezes está carregado de
preconceitos. Esta opinião geralmente não é emitida por quem realmente deseja
conhecer suas letras, seu trabalho, mas sim por pessoas que a partir do senso
comum criam idéias errôneas sobre as mensagens que são propostas nas letras dos
seus raps. Essas pessoas consideram que rap é sinônimo de música para bandido,
um tipo de música que é feita por bandidos e para bandidos.
Mano Brown é um rapper e lança mão deste mecanismo que ao escrever e
cantar suas músicas o possibilita ser um divulgador das suas idéias. Ele não é
somente o “efeito colateral” ou “o fruto do negro drama”, mas sim um personagem
que surge dentro da própria classe e que tenta travar uma batalha no campo das
idéias, tentando levar consciência ao povo pobre e negro, na sua maioria, da
periferia.
Em suas letras há uma busca de fazer com que o jovem negro saiba sobre
sua origem e tenha conhecimento da sua exploração. Há em algumas letras a
tentativa de fazer com que este jovem crie laços de identificação e assim possa
desenvolver sua auto-estima e também um senso crítico O jovem marginalizado
necessita saber argumentar, defender suas idéias, nesta tomada de consciência
incentivada pelo rap, o jovem se depara também com suas limitações causadas pela
falta de expressão. Brown dá voz à periferia, para que esta queira falar, ao se
reconhecerem nele, percebem que seus interesses são dignos de atenção,
precisam ser reivindicados, a fim de que alguma mudança ocorra. Existe uma luta
contra o descaso, causador de sofrimentos e mortes.
Os rappers do movimento Hip Hop têm em si a responsabilidade de propagar
as idéias do movimento, não se limitam somente a denunciar os descasos, mas sim
também a identificar os problemas que são recorrentes à periferia. Isso é observado
por Micael Herschmann e Ivana Bentes no seguinte trecho:
Mano Brown deixa claro que seu trabalho tem conseqüências e, portanto, ao
divulgar suas idéias sempre utiliza a noção de responsabilidade. Ele demonstra
saber que a sua postura e atitudes são exemplos para integrantes do movimento Hip
Hop, assim como é importante para os “moleques da quebrada”. Percebe-se isso no
seu discurso, como fica demonstrado ao responder sobre ser um ídolo da periferia:
“Ídolo não é referência, né mano? Ídolo é outro barato. Ídolo é tipo, Romário,
Ronaldinho... Eu sou referência. Hoje os caras lembram de mim como o
cara da favela que canta os bagulhos da favela, como o Bezerra da Silva o
é.”( KALILI, 1998: p. 19)
Quando Mano Brown se coloca como referência deixa claro que sabe da sua
responsabilidade, sabe da sua importância. Sabe que suas atitudes são vistas e
percebidas por várias pessoas que o tem como um exemplo. Não somente um
exemplo, mas talvez até como orgulho, pois demonstra que se consegue sobreviver
com todas as dificuldades que são apresentadas no dia a dia: proximidade com a
marginalidade, o desemprego, a falta de oportunidades. Isto pode ser notado
quando analisamos as respostas que são dadas por detentos do Carandiru ao
serem questionados sobre o que pensam de Brown:
[...]
[...]
O rapper Mano Brown é criado dentro do seio do Hip Hop, de certa forma ele
é forjado e posto como um dos líderes deste mesmo movimento. Podemos perceber
que ele possui atributos que o posicionam como um “intelectual orgânico”, ao
analisarmos o conceito desenvolvido por Antonio Gramsci. Para Gramsci os
intelectuais orgânicos são criados a partir dos interesses e no interior da própria
classe. Como afirma Paolo Nosella sobre Gramsci:
“olha meu povo nas favelas e vai perceber/daqui eu vejo uma caranga do
ano/toda equipada e um tiozinho guiando/com seus filhos ao lado estão indo
ao parque/eufóricos brinquedos eletrônicos/automaticamente eu imagino/a
molecada lá da área como é que tá/provavelmente correndo pra lá e pra
cá/jogando bola descalços nas ruas de terra/é brincam do jeito que
dá/gritando palavrão é o jeito deles/eles não tem video-game às vezes nem
televisão/mas todos eles tem em são cosme e são damião/a única
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“minha vida não tem tanto valor/quanto seu celular seu computador”(Trecho
de “Diário de um Detento” – Racionais MCs. CD Racionais MC’s)
“Tem que ter letra pra fazer esse rap mais drecionado pra linha política,
como faz o Gog, em Brasília, que eu simpatizo muito porque é marxista.
Não gosto de falar muito isso porque parece que estou fazendo uma afronta
pros antigos, pro Racionais, e sei que eles que me puseram nisso, eles vão
pras cabeças, ajudam a tirar aquelas viseiras que estão prejudicando as
idéias das pessoas.” (AMARAL, 1998: p. 5)
O grupo Racionais MCs carrega uma legitimidade, assim como vários grupos
de rap ligados ao movimento Hip Hop, o de não se deixar seduzir pelas grandes
gravadoras, e assim correr o risco de deixar de representar os jovens da periferia.
Deixar de ser autênticos e fazer o jogo mercadológico seria trair o que sempre
propagaram. Isto pode ser observado nos trechos abaixo:
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“seu comercial de tv não me engana/eu não preciso de status nem fama seu
carro e sua grana já não me seduz/e nem a sua puta de olhos azuis”.
(Trecho de “Capítulo 4 Versículo 3” – Racionais MCs. CD Sobrevivendo no
Inferno)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisar as letras e entrevistas concedidas por Brown pude notar que ele
pode ser considerado um “intelectual orgânico” do movimento hip hop, apresentando
uma ideologia descrita nas letras de suas músicas que o tornam evidenciado dentro
do movimento. Ele demonstra características que acabam por qualificá-lo como tal.
Por exemplo, além de ter surgido de dentro da classe trabalhadora ele tem como
atributo ter sido escolhido por esta mesma classe.
Além disso, em seus discursos e também em suas letras de música são
elaboradas situações que podem contribuir para que a classe possa ser elevada a
sua própria função histórica. Através da sua própria história de vida e a de outros
“manos” da periferia, Brown parece criar uma certa representação da realidade
destes jovens fazendo com que tenham a possibilidade de construir
questionamentos a respeito de suas próprias vidas. Brown, com um discurso muitas
vezes considerado duro e agressivo, faz com que seus relatos sejam ouvidos por
quem os admira e também por quem os critica e com isso cria uma discussão a
respeito do lugar do jovem da periferia. Através dos seus raps, Brown busca
subverter a ordem estabelecida, que para ele não é justa, portanto sendo passível
de mudanças.
Mano Brown busca interpretar a realidade vivida por estes jovens da periferia
a partir da sua própria experiência e visão de mundo. Como ele mesmo diz é a sua
“verdade”, ou seja cada um tem a sua verdade. Brown não se qualifica como o
detentor de uma verdade, porém sabe que pela própria força e amplitude que tem
um rap, os seus versos muitas das vezes tornam-se um veículo de informação para
as camadas da periferia.
Ele parece perceber o quanto suas atitudes e opiniões são importantes como
exemplo para a periferia. Brown sabe da sua responsabilidade como um ícone do
movimento hip hop, portanto demonstra estar atento para de certa forma decodificar
as suas apreensões, pois de certa forma, algumas vezes o seu discurso é um dos
poucos canais de conscientização das angústias destes jovens.
Outra constatação é a de que o rap produzido por Brown e pelos Racionais
busca construir uma identidade social, tentando fazer com que o jovem da periferia
possa construir formas de resistência e também melhorar sua auto-estima.
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BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Marina. Mais de 50.000 manos. Caros Amigos. Movimento hip hop – a
periferia mostra seu magnífico rosto novo. Edição especial, São Paulo, Setembro
1998, Ano 1, n º 3, p. 04 - 08.
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Periferia de Brasília, Revista Brasiliense de Pós Graduação em Ciências Sociais,
Edição Temática, ano 2, n.º 1.
KALILI, Sérgio. “Mano Brow é um fenômeno”. Caros Amigos. São Paulo, Janeiro
1998, Ano 1, n.º 10, entrevista p. 31-34.
LINS, Paulo. Cidade de Deus, Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 2ª edição,
2002.