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INTRODUÇÃO

Nunca fui um hip hopper. Porém, compactuo com muitas das idéias que são
veiculadas pelo movimento hip hop. O meu primeiro contato com o que depois vim a
descobrir ser o movimento hip hop foi num domingo à tarde, quando eu e minha
noiva (atualmente minha esposa) voltávamos de uma cachoeira no distrito de
Andorinhas, situada no município de Magé. Ao voltarmos do passeio, passamos por
um automóvel onde se ouvia a música “Fim de Semana no Parque” dos Racionais
MCs, que na época eu nem sabia quem eram. A música impressionou-me pelo som
e muito mais pela letra. Ela falava da diferença entre a vida dos moleques da favela
e a vida dos chamados “filhinhos de papai”, ou seja, os “playboys”. Ela também
descrevia, de certa forma, o ambiente da favela, os escassos investimentos no lazer
e também a proximidade que o jovem da periferia tem com a marginalidade.
Algum tempo depois, no ano de 1998, tive o meu segundo e decisivo encontro
com o rap. Decisivo, pois foi fundamental para que escolhesse o rap como um dos
meus estilos de música preferidos. Fui viajar com vários amigos para Barra de São
João, situada na Região dos Lagos, a fim de passarmos o carnaval. Um amigo meu
que dirigia o carro que nos transportava nos falou que tinha um som muito legal e
queria que nós ouvíssemos. Ele já sabia do interesse por parte de alguns de nós por
questões sociais.
Muitos dos que estavam no carro já tinham de alguma forma se envolvido em
trabalhos sociais, tanto na Associação de Moradores do nosso bairro, como também
em um curso de pré-vestibular comunitário . Então nós fomos quase que a viagem
inteira ouvindo novamente a música “Fim de Semana no Parque” e “Homem na
Estrada”, ambas dos Racionais. O interessante é que todos que estavam no carro
ficaram quase que em silêncio, extremamente impressionados com os relatos que
nos chegavam através daquela voz, de timbre forte, mas precisamente cheia de
“atitude”. Começamos a perceber que não era somente uma voz, mas sim uma série
de denúncias e também relatos de situações que eram vividas por pessoas da
periferia, mais precisamente pessoas que habitavam favelas, que não eram muito
diferentes da nossa realidade.
Fiquei também muito impressionado, pois naquele ano de 1998, apesar de
ser um período de carnaval, os carros que estavam em Barra de São João na
maioria das vezes tocavam músicas dos Racionais, especialmente “Fim de Semana
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no Parque” e “Homem na Estrada. Eu fiquei intrigado, porque muitos carros eram de


marcas caras e o perfil dos jovens que dirigiam era o dos chamados “playboys”. O
que chamou a atenção foi que eles pareciam gostar das músicas de um grupo que
os tinham como principais alvos de suas críticas. A princípio, uma enorme
contradição.
Logo que pude, fui atrás do CD dos Racionais, passei a procurá-lo em várias
lojas especializadas e, para meu espanto, era muito difícil encontrá-lo. Com muita
sorte, encontrei uma loja próxima do meu bairro que tinha um CD que era uma
coletânea dos Racionais. A partir daí, comecei a interessar-me por artigos que
falavam de rap e a procurar outros trabalhos, como livros que me dessem uma idéia
melhor sobre os temas que eram tratados nos mesmos.
De certa forma, acabei por trabalhar com uma idéia estigmatizada dos
rappers, pois na minha ignorância achava impressionante como jovens oriundos de
favelas podiam construir um discurso tão politizado e de grande riqueza musical.
Talvez fosse o meu lado preconceituoso agindo, porém isto não me impediu de
aproximar-me do tema. Ao contrário, aguçou-me a curiosidade.
Provavelmente, o fascínio por esse tipo de música e a impressão que me
marcou desde o início tiveram grande influência na escolha do tema para a
monografia de conclusão do meu curso de graduação em história. Acredito que a
escolha pelo tema do hip hop foi, de certa forma, uma resposta aos meus próprios
anseios, já que por um “desvio” de percurso eu e minha família não fomos morar em
uma favela. Sendo assim, acredito que, de forma inconsciente, o tema foi escolhido
por se tratar de um resgate do que seria minha própria história, opção movida, de
certa maneira, pela paixão.
A biografia de Mano Brown, figura principal do Racionais MCs, está
intimamente ligada à minha própria história de vida. Eu também sou filho de um
homem branco com uma mulher negra, que não teve que lutar em São Paulo, como
dona Ana , mãe de Brown, mas sim na cidade do Rio de Janeiro. Tarefa árdua, mas
cumprida com zelo e dignidade. Também outro fator é que o bairro em que resido,
mais precisamente o Jardim Catarina, situado no município de São Gonçalo, de
certo modo se assemelha ao Capão Redondo e Parque Santo Antônio, periferia da
cidade de São Paulo presente nas músicas do grupo. Os investimentos públicos
são muito escassos, a maioria das ruas não é asfaltada e ainda temos que conviver
com as chamadas “valas negras”, que são exibidas a céu aberto. E também tive de
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viver situações em que vários conhecidos foram mortos, por se envolverem com o
tráfico, e talvez por terem uma ambição que os fazia trilhar a vida do crime para que
pudessem vir a ter os tênis, as bermudas e camisetas “de marca”, com a ilusão de
que através do crime poderiam conquistar alguns bens de consumo e também de
conseguir um certo status.
Neste trabalho, analisaremos as entrevistas concedidas por Mano Brown e as
letras das músicas dos Racionais MCs, enfatizando a trajetória do seu líder. Sem
perder de vista que uma biografia não é um relato sucessivo de fatos da vida de uma
pessoa, mas sim episódios que são, de certa forma, priorizados por ela, como nos
ensina Bourdieu, no artigo intitulado “Ilusão Biográfica”. Esta proposta de Bourdieu
nos revela que o sujeito que é biografado, quando relata sua própria história, tenta
formar uma cadeia de informações que a torne inteligível, de maneira que possa
tornar-se uma narrativa que produza uma significação.
Portanto, não devemos com isso acreditar que o que nos é revelado numa
biografia é algo que venha a constituir-se numa verdade absoluta, mas sim um
conjunto de fatos que podem nos elucidar as escolhas realizadas por este sujeito.
Pois, independentemente das contradições que possa conter, para o historiador, o
relato auto biografo será sempre um instrumento de investigação que poderá
esclarecer as questões propostas.
Sem dúvida os historiadores das “pequenas” realidades sociais nos falam de
pequenas coisas que ocupam o lugar que outras orientações historiográficas
reservavam a pessoas e fatos monumentais, de como a História se revela, até
abruptamente, na situação e na biografia das pessoas comuns. O inesperado deixa
suas marcas, o homem comum, sem deixar de ser comum, ocupa na historiografia o
lugar que até há algum tempo era reservado aos heróis reais ou postiços, por
monumentalizações que a realidade desmente.
Ao refletirmos sobre a relevância da história dos de baixo nos perguntamos
qual sua importância histórica. Podemos nos debruçar a respeito da afirmativa de
que “a história se faz de grandes homens”. Ou seja, a motivação existente até hoje
de uma manutenção do poder forja esta afirmativa, uma história baseada na
construção de monumentos. Por mais que a história dos comuns não seja uma
novidade, ainda não está paralela à história das elites. E podemos perceber que
estudando os comuns podemos mexer nesta estrutura hierárquica, contribuindo
assim que a história não seja feita somente pelas classes dominantes, mas sim que
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possa ser contada a partir do referencial das camadas subalternas. É exatamente


esta a nossa intenção, tornar notória a vontade e o direito de uma minoria que em
número é maioria, e que deve ser assistida e respeitada, fazendo parte da
sociedade como agente da história, e não apenas como “figurantes”.
A biografia de Mano Brown não é simplesmente a história de um homem
comum, mas sim a de um homem que se mostra politizado e que, de certa maneira,
possibilita dar voz a outros comuns. Como aconteceu no decorrer da história, em
outros momentos, com outros homens, que foram agentes de um movimento. A
escolha do material a ser estudado sofre a influência dessa reflexão. Como chegar a
respostas para nossas argumentações? A própria biografia do Mano Brown só pode
ser pensada a partir de questionamentos que foram feitos anteriormente. A partir da
escolha das perguntas que foram realizadas é que pudemos então “criar” o material
pertinente ao estudo da sua biografia. Com isso, reafirmamos a realidade de que a
história é viva e a todo tempo pode ser reelaborada. E que o material escolhido é
uma possível escolha entre outras.
Como falar a todos? A resposta de Brown foi a arte. À resposta a sua vontade
de movimentar toda a comunidade periférica foi o encontro coletivo, acontecendo
através do rap e em maior âmbito do hip hop. Talvez a história se repita, pois Brown
agiu como outros comuns agiram em muitos momentos históricos: mobilizando toda
a comunidade em rituais festivos coletivos. Tentando mobilizar e informar a toda
comunidade pobre da periferia.
Existe uma inteligência própria aos comuns, e esta inteligência é percebida
em Brown, o que faz dele um ícone do movimento. Se preocupando com os fatos
que levam o jovem ao crime. Procurando estabelecer um elo com estes jovens da
periferia no sentido de evitar que isto aconteça, que trilhem o caminho do crime e
sejam vítimas desta violência
É interessante a questão do reconhecimento, através do vestuário e a
hostilidade, as roupas e atitudes são símbolos de uma forma de rebelião, uma
“revolução através de palavras” que parecem trazer nobreza e liberdade ao
movimento hip hop.
Não podemos nos esquecer que falar da história dos comuns é uma
possibilidade de se produzir uma transformação da sociedade a partir das mudanças
de paradigmas realizadas por meio desses estudos. Talvez a contribuição para um
novo olhar sobre a periferia.
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No primeiro capítulo, estaremos trabalhando com alguns dados sobre o


movimento hip hop. Tentaremos produzir um breve relato histórico sobre o
movimento, buscando contemplar dados que possam criar uma maior familiaridade
com o tema. É importante ressaltarmos que os dados muitas das vezes são
divergentes, e são encontrados datas e nomes diferentes sobre o mesmo relato.
Porém, mesmo com essas divergências, os dados parecem se encontrar em vários
momentos, nos proporcionando uma certa visibilidade do assunto. Nesse mesmo
capítulo será discutido como o movimento tenta ser revelador da própria história e
como procura levar ao jovem da periferia a discussão da sua própria realidade.
Também buscaremos demonstrar como o hip hop tenta influenciar a formação
de uma identidade social para os jovens da periferia. Baseados no conceito de Da
Matta sobre identidade social, onde ele procura explicitar valores, atitudes e
sistemas e idéias que permitem a criação de nossa identidade social: aquilo que nos
torna o que somos. Sendo assim, nossa identidade é parte do que acreditamos e
valorizamos. Para isso, o hip hop tenta discutir os valores e também as inverdades
que são propagadas pelas elites, contribuindo assim para que esse jovem possa,
num movimento inverso, constitua seus próprios valores, que venham a dignificá-lo
e, portanto, formar sua identidade social.
A partir do segundo capítulo, tentaremos tratar da biografia de Mano Bronw.
Tentaremos identificar como Brown tem o objetivo, através do seu discurso e das
letras da sua música, ser uma espécie de referência para os jovens da periferia. Por
fim, procuraremos, também dar conta da hipótese de ser Mano Brown uma figura de
extrema relevância para o movimento hip hop. Para isso, trabalharemos
principalmente com o conceito gramsciano de “intelectual orgânico”, que parte do
pressuposto de que para ser um “intelectual orgânico” o indivíduo tem de emergir do
seio da própria classe e que, além disto, ele tem de, no campo das idéias fazer com
que o grupo ou classe tome consciência de si e passe a lutar por seus interesses.
Ainda no segundo capítulo, faremos um pequeno histórico do grupo Racionais
MCs, porque a história do grupo está intimamente ligada à própria história de vida de
Mano Brown e, sendo assim, se aproxima da história dos jovens da periferia. Os
membros do grupo, como Brown, são oriundos dessa mesma periferia e seus
discursos são extremamente importantes para que possamos conhecer essa
realidade. Do mesmo modo que Brown, as angústias que descrevem nas músicas
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são vividas por eles próprios. Com isso, tornando-se reais denunciadores, de certa
forma legitimados, frente a essa mesma periferia, da sua própria realidade.
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CAPÍTULO I – HIP HOP E RAP

O Hip Hop ao que parece, foi gestado na década de 1970 nos guetos dos
Estados Unidos, entre jovens negros e hispânicos. O termo, que significa balançar
os quadris, foi criado pelo negro Afrika Bambaataa, por volta do ano de 1968. Era
um convite à festa, à diversão. Com a intenção de apaziguar os confrontos entre
gangues no bairro do Bronx, em Nova Iorque, Afrika Bambaataa teria proposto que,
ao invés de se matarem, disputassem suas diferenças numa dança chamada break.
No início da década de 1970 o Disc Jockey (DJ) jamaicano Kool Herc
começou realizar festas nas ruas. Uma prática que já era realizada na Jamaica.
Esses bailes já ocorriam na ilha desde a década de 1960, quando os “toasters”,
autênticos Mestres de Cerimônias, comentavam em suas intervenções os problemas
políticos jamaicanos, a violência das favelas de Kingston e também temas polêmicos
como drogas e sexo.
Outro DJ que tem bastante responsabilidade na continuidade das festas, nos
Estados Unidos foi Grandmaster Flash, que desenvolveu as principais técnicas de
utilização dos aparelhos de som como instrumento, através de um canto falado,
denominado rap.
Já no Brasil, o Hip Hop tem seu início a década de 1980, quando na Rua 24
de Maio, na cidade São Paulo, se reuniam as equipes de baile e vários dançarinos
de break. Posteriormente, foram perseguidos pela polícia e por lojistas da região,
tendo então que se deslocar para a Rua São Bento. São dados como percursores
do movimento no Brasil Nelson Triunfo, que representa o break, e Thaíde e DJ Hum,
representando o rap. Um período depois, houve uma separação entre os rappers
( cantores de rap ) e os b. boys ( dançarinos de break). Os primeiros continuaram na
São Bento e os outros foram para a Praça Roosevelt.
O Hip Hop tem três principais manifestações: o break (dança repleta de
movimentos acrobáticos ) o rap ( uma música marcada por um ritmo e uma melodia
bastante singulares) e o grafite (expressão realizada nas artes plásticas). No Hip
Hop se retrata o universo dos jovens da periferia, que são muitas vezes excluídos
de projetos educacionais do Estado e também são excluídos das melhorais sociais,
tanto no lazer quanto na saúde. Eles tem, através do Hip Hop, uma chance de lutar
por melhorias sociais e também de se organizar a fim de exigir o seu próprio espaço,
onde possam dançar, ouvir sua própria música. São jovens que passam a ter a
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possibilidade de tomar consciência do mundo desigual em que vivem. Esses jovens


buscam, com o Hip Hop, uma forma de resistir e de gritar por mais justiça social.
Nas suas formas de apresentação artística, música, dança e desenho, essa
juventude pobre e marginalizada encontrou um meio de clamar por inclusão social e
cidadania. Mostrando, assim, que podem ser sujeitos da transformação dessa
sociedade que se mostra cada vez mais excludente e individualista, que não dá
atenção para uma juventude que faz parte da construção desse país.
Através do Hip Hop, esse jovem, que na maioria das vezes é estigmatizado,
encontra uma forma de resistência e luta. Uma forma de dar voz e corpo às suas
inquietações e angústias. Com uma atitude hip hopper, esses jovens passam a se
identificar com um grupo, usando para isso símbolos visuais que os distinguem de
outros grupos existentes na sociedade. Eles costumam usar bombetas( bonés ),
jacos( jaquetas), calças largas e tênis de cadarços grossos. São jovens que
demonstram atitudes, que exigem respeito e reconhecimento, talvez assim,
mudando a visão preconceituosa sobre o jovem da favela como um marginal. Para o
senso comum, o simples fato de uma pessoa ser uma favelada, que geralmente é
um termo pejorativo, já requer que esta mesma pessoa seja um bandido. Os jovens
que participam do movimento hip hop não querem ser vistos como pobres coitados,
mas sim buscam o reconhecimento do seu valor e passam a questionar a
sociedade como um todo: nos aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos.
Eles deixam de ser simples coadjuvantes das mudanças políticas e sociais,
passando a sujeitos ativos do seu próprio processo de transformação.
Em 1989, no período de ascensão do Hip Hop, a cidade de São Paulo era
governada por uma prefeita petista: Luiza Erundina. Isto, ao que parece, ajuda a
divulgação do movimento Hip Hop e a organização de grupos de rap. No mesmo
ano é organizado o Movimento Hip Hop Organizado – MH2O, por iniciativa e
sugestão de Milton Salles, uma figura importante do Hip Hop e que é um dos
principais colaboradores para o surgimento do grupo Racionais MCs.
O MH2O tem uma a função importante na definição das posses e gangues.
Nos Estados Unidos, as gangues eram geralmente formadas com intuito de
combaterem entre si e, geralmente, através do uso da violência. No Brasil,
diferentemente, as gangues, posses ou associações culturais ( denominação esta
que alguns preferem por não carregar a marca de serem comparadas com as
gangues ou posses dos Estados Unidos) são criadas com intuito de fortalecer o
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movimento e são locais onde os seus participantes se reúnem para discutir as


diretrizes do hip hop e também para divulgar informações que possam orientar e
conscientizar os jovens pobres e negros da periferia. Como relata Marcelinho,
participante da posse Associação Cultural Negroatividades, numa entrevista a
Marina Amaral:

“Na periferia, todos se encontram na rua, nos bailes, e a posse surge daí,
reunindo dois ou três grupos de rap. É um jeito de trocar idéia sobre
música, arte e os problemas da periferia, de estudar nossas origens – a
afro-descendência - que a escola não ensina. Também é uma união para
lutar por espaço na sociedade, exigir locais para nossos ensaios e
apresentações”(AMARAL, 1998: p. 4-5).

Ele coloca, talvez, uma das principais funções das posses, que seria um local
onde os jovens constróem suas posições políticas, a fim de combater alguns males
que são por eles enfrentados, como o sedutor caminho da marginalidade, o estigma
de serem fracassados, o álcool e o desemprego. Esses jovens passam a discutir
problemas cotidianos que atingem a periferia para tentarem uma forma, ao que
parece, de interferir nessa realidade. A juventude que freqüenta uma posse ou
gangue geralmente está interessada não somente em discutir os seus problemas,
mas também em pressionar politicamente para que o governo, seja ele municipal ou
estadual, venha a cumprir suas obrigações junto às comunidades. Eles reivindicam
espaço para lazer, mas também objetivam conhecer suas próprias origens, para
assim encontrarem seu espaço de luta dentro da sociedade. Para muitos deles, não
basta somente criticar, mas sim elaborar propostas que sejam capazes de dar
soluções às mazelas sociais que são reservadas à periferia.
A participação em atividades proporcionadas pelas posses, ao que tudo
indica, impede que esses jovens tenham a ilusão de tentar um atalho pelo caminho
das drogas e do crime. Através da discussão que realizam nas posses, esses jovens
passam a agir de forma pragmática na sociedade em que vivem e passam a ser
uma espécie de interventores na conscientização de outros jovens. O que fica
evidenciado nas falas de outros dois integrantes da Negroatividades, Preto Ba e Edy
Robson, respectivamente.

“Aqui é importante porque a gente tem união, está conhecendo novos


grupos, tem mais informação. De repente vem e cata um livro, tem novas
figuras, a gente se inspira. Tem moleque aqui com onze anos de idade e
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tem uma idéia forte. Nós precisamos de mais moleque assim, que não fume
um crack , pra gente ir estruturando a nossa periferia”
[...]
“Aqui, cada esquina tem um boteco. A bebida destrói um pai de família mas
tem a mídia a favor, fazendo aqueles anúncios bonitos sem mostrar o mal
que faz. A gente contra-ataca”.(AMARAL, 1998: p. 5)

O movimento Hip Hop é um dos maiores movimentos artísticos e cultural das


últimas décadas. Além de buscar um espaço no cenário cultural do país, apresenta
propostas que vão desde uma mudança no comportamento social dos jovens da
periferia até a exigência de melhores padrões de vida para esses mesmos jovens.
Através do hip hop, o jovem passa a questionar valores que até então lhes eram
impostos e passam utilizar-se de uma linguagem artística composta pela dança,
desenho e música que lhes proporciona exercitar a parte mais poderosa do corpo
humano: o cérebro. O rap, por ser um veículo de massa, é uma das formas de
maior amplitude na divulgação deste movimento. Como identificam Micael
Herschmann e Ivana Bentes:

“... a música cantada por esses jovens dentro de um novo contexto, mais
amplo, em que as “culturas das favelas” aparecem não simplesmente como
subprodutos da violência social do país, mas como uma produção e um
discurso capazes não só de espelhar a realidade “dura” dessas localidades,
mas que também, de alguma forma, exprimem a reivindicação da ampliação
da cidadania ao segmento social que habita essas áreas urbanas. “
(BENTES e HERSCHMANN, 2002: p.?)

Através do rap, esses jovens passam a clamar por uma inclusão social e por
serem abrangidos por benefícios do Estado, como: ruas asfaltadas, melhores
escolas públicas, geração de empregos, investimentos no lazer, etc.
Com o rap também há um resgate cultural de valores negros, que fazem com
que os jovens possam vislumbrar a formação da sua etnia. Lembrando os feitos de
figuras históricas extremamente importantes para a causa negra, como Martin Luther
King, Malcom X, Zumbi e outros, os rappers proporcionam a esses jovens
conhecimento de sua própria história, entendida como resgate cultural da origem
negra, formando laços de identificação com lutas por dignidade, liberdade e justiça.
Os rappers, através da sua arte, tentam criar uma espécie de identidade
social para esse jovem, negro da periferia. Uma identidade que passa pela
valorização do ser negro. Com letras que freqüentemente estão repletas de gírias e
palavrões, que são as expressões utilizadas por essa juventude periférica.
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É importante ressaltar que a linguagem utilizada no rap possui duas leituras


altamente diferenciadas: se por um lado, para alguns, funciona como reforço para
que seja julgado de forma errônea e preconceituosa, compreendida como sendo
“música de bandido”, por outro se torna um veículo de aproximação, diminuindo
assim a distância de comunicação entre os rappers e os jovens da periferia. Ao
analisarmos esse fato podemos perceber que, essa linguagem se faz necessária e
muito coerente, pois no mundo em que vivem é dessa forma que se comunicam.
Além do mais, já se sentem marginalizados de muitas outra maneiras. Portanto, não
seria conveniente que a sua forma de expressão fosse também marginalizada. É
importante que sua própria linguagem seja utilizada para informá-los, a fim de que
nutram uma auto-valorização e não um menosprezo por suas formas de
comunicação. Essa linguagem ajuda no sentido que, ao ouvir o rap, o jovem tem a
chance de entender sua mensagem e de raciocinar sobre os problemas que são
relatados na música.
Os raps, na sua maioria, são constituídos de elementos que formam uma
identificação coletiva. Há uma preocupação em divulgar esses elementos como meio
de constituição de uma coletividade. Um reconhecimento de grupo ou classe, que
possa contribuir para a formação cultural e também para o desenvolvimento de
sentimento de pertencimento a esse mesmo grupo.Vejamos o que diz Carlos
Rodrigues Brandão:

“Projetos coletivos de vida e de destino das pessoas e de um povo, a


simbologia dos inúmeros valores religiosos e profanos da cultura, os
mecanismos familiares e grupais de socialização da criança e do
adolescente transferem do todo para cada ser do grupo, desde o
comecinho de sua vida no grupo, uma identidade grupal. Uma identidade
que é dele, como uma pessoa, mas que é também, fatalmente, a do grupo,
através dele” ( BRANDÃO, 1986: p.42)

O hip hop, além de levar diversão, ele também tem uma carga que é
fortemente informativa. Além de dançar, de curtir o rap, o jovem se informa, criando
laços de pertencimento em um grupo. Assim, o hip hop tenta contribuir para que
esse jovem possa localizar-se no mundo, para que possa perceber as lutas que terá
que travar para buscar um reconhecimento.
A proposta de identidade social que o hip hop expressa no rap objetiva situar
o jovem na sociedade, para que não venha a ser uma simples “marionete” na mão
das elites que dominam o poder político e econômico, mas sim que seja mais um a
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estar nessa batalha que é cotidiana. A necessidade de ter seus próprios desejos e
de batalhar para realizá-los. O rap não diz que o jovem não possa ter, porém ele
tenta tirar a ilusão de que para ser melhor você precisa ter. Essa identidade, que os
hip hoppers tentam ajudar a construir, faz com que esse jovem possa ter elementos
que o definam perante a sociedade, a fim de que possa produzir formas de resistir à
sedução da mídia no sentido de ser obrigado a ter, pela simples ótica do consumo e
de tentar ser alguém que na maioria das vezes não precisa ser. Observemos o que
Carlos Brandão nos fornece sobre o que são identidades:

“... as identidades são representações inevitavelmente marcadas pelo


confronto com o outro; por se ter de estar em contacto, por ser obrigado a
se opor, a dominar ou ser dominado, a tornar-se mais, ou menos livre, a
poder ou não construir por conta própria o seu mundo de símbolos e, no
seu interior, aqueles que qualificam e identificam a pessoa, o grupo, a
minoria, a raça, o povo.” (BRANDÃO, 1986: p.42)

O jovem atualmente é bombardeado pela mídia com a idéia de consumo, ou


seja, para ser alguém ele precisa ter. Numa sociedade que se mostra cada vez mais
consumista, os jovens são colocados frente a falsas necessidades de se ter. As
propagandas estão sempre a produzir estereótipos de beleza, de capacidades e de
valores culturais. Muitas vezes, passa-se a idéia que não possuir é ser um
fracassado, um derrotado. O indivíduo que não tem é tido como um perdedor,
alguém que não foi capaz de conseguir destacar-se . O rap, com uma espécie de
contradiscurso, vem na contramão e tenta desmitificar essas idéias. Ele tem como
objetivo elevar a auto-estima nesse jovem. Como nos lembra Marco Frenette, ao
falar do Movimento Hip Hop em São Paulo:

“... a abrangência e a seriedade do movimento Hip Hop em São Paulo, que


a partir da música, da dança e do desenho faz com que inúmeros jovens da
periferia se toquem que a vida pode ser muito do que se drogar e Ter uma
semi-automática como sonho de consumo. Há mais de uma década que os
hip hoppers (grifo do autor) paulistas ensinam, usando um discurso com
gosto de evangelização social, que a auto-estima e o respeito pelo irmão
valem mais do que qualquer tiro de ‘farinha’ ou de ‘oitão’. Falam também de
paz, vida saudável, educação e valorização do preto” (FRENETTE, 1998: p.
10).

O hip hop coloca para o jovem da periferia que, as falsas idéias de consumo
são uma armadilha e que ele deve buscar não ser seduzido por esses desejos de
consumo. Os hip hoppers denunciam que os jovens por causa desse desejo
consumista, costumam pegar um atalho através do tráfico ou do roubo, para
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conseguir o que querem. Não se deixar conduzir pelo sistema, ser um “guerreiro”,
buscar uma saída são alguns dos desafios propostos pelo hip hop. O jovem, apesar
das dificuldades e do abandono, tem de ser um “guerreiro” e não se deixar dominar
por esse sistema que reserva para ele o álcool, drogas, desemprego, baixa auto-
estima, etc.
O hip hop tem como uma das suas principais funções a de denunciar as
mazelas sociais. Em muitos casos, ele relata os problemas recorrentes à periferia.
Os cenários descritos pelo rap são de uma periferia que é destituída de melhorias
realizadas pelo Estado. As condições básicas de vida que são garantidas pela
Constituição não são realizadas nesta periferia. São locais com escassos
investimentos em lazer, saneamento básico, educação e saúde. As pessoas, em sua
maioria, sentem-se abandonadas pelo Estado, que geralmente se faz presente
através da polícia. Esta mesma polícia que é considerada pelos rappers como
preconceituosa e racista é a que leva o Estado para as favelas e zonas periféricas
com requintes de violência e repressão.
É importante analisar a situação em que o jovem da periferia se encontra,
como por exemplo, a alienação social ( confinação a um estrato social inferior) , a
alienação política ( exclusão em face dos mecanimos de mando), a cultural (o
“desenraizamento”, a aculturação) e até mesmo a alienação psicológica (processo
pelo qual o indivíduo é privado de referências para construção de sua
personalidade) . Não queremos dizer que todo jovem da periferia se encontra nessa
situação, porém podemos perceber que sua cidadania não é exercida amplamente.
O hip hop se torna uma possibilidade para este desenvolvimento,
conscientizando e estimulando a consciência. O hip hop procura agir em função de
superar essa alienação, daí a propagação do hip hop.
É possível, historicamente, comprovar que, mesmo apesar de todos os
mecanismos de dominação e exploração, homens e mulheres podem vir a ser
agentes de sua própria história cultural. Nesse sentido, em meio às políticas de
controle e às práticas culturais, são possíveis as transformações. Isso acontece
porque a história é viva. A cultura e a sociedade também. Sempre são somadas à
situação vigente de dominação as características e valores de camadas que
desejam deixar sua classificação de dominados.
Ao estimular a formação de consciência e clamar aos jovens que transformem
suas realidades, o hip hop através da informação e conseqüentemente educação
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está atento a isto. A esta possibilidade de redefinir e recriar significados, sentidos e


a condição de passividade perante a vida e sociedade. Pois, precisamos a todo
momento sermos conscientes desta condição somos parte e agente de uma
sociedade.
Uma das questões referenciais discutidas no hip hop é a questão da
resistência negra. Discuti dentro desta questão a oposição dos rappers a alguns
negros que não se preocupam com sua condição e, mais do que isso, são
fortemente preconceituosos com seus “irmãos”. Na fala de Mano Brown, sãos os
chamados “zé povinho”, pessoas que se permitem ser subjugadas e que parecem
acreditar que o lugar do negro na sociedade é o de ser subalterno e de servir aos
brancos.
A resistência à dominação implica, antes de tudo, conhecer e entender a si
mesmos e a sociedade em que estamos inseridos. Trata-se de entender como,
quando, de que formas, com que significados, em busca de que objetivo a
dominação acontece. É também entender como ela interage, transforma e produz o
devir específico de cada sociedade. A resistência pregada pelo hip hop só pode ser
entendida quando se desvendam suas relações com a sociedade dominante, com
sua capacidade de interferir no desenrolar concreto do processo histórico.
A percepção de que o hip hop significa bem mais que uma questão de
“transformação aparente”, mas também, e fundamentalmente, a questão da
extensão dos direitos civis aos jovens da periferia. As limitações ao exercício de
direitos impostos pela pobreza e pelo racismo só podem ser percebidas quando
estes mesmos jovens se manifestam de maneira a demonstrar as mudanças, tanto
no seu próprio discurso quanto nas suas atitudes.
O hip hop tenta desconstruir a idéia de que no Brasil há uma democracia
racial. O movimento não tenta somente evidenciar, para o jovem da periferia, os
valores negros, mas sim denunciar as desigualdades históricas e sociais produzidas
pelo preconceito contra os negros. Como afirma Spensy Pimentel, quando nos fala
das desigualdades existentes em relação aos jovens da periferia:

“Mais esses jovens, muitos já homens e mulheres feitos, com família para
criar, aprenderam na pele que a tal assinatura da princesa Isabel, em 1888,
não mudou tanta coisa no país quanto se quer fazer crer.
Eles apanham da polícia como os escravos apanham dos feitores; são
considerados inferiores, sem “boa aparência”, quando procuram emprego,
numa terra onde “negro bom tem alma branca” e “preta é pra foder, branca
18

pra casar”; muitos moram amontoados em barracos que tristemente ainda


lembram as antigas senzalas. “ (PIMENTEL, 1998: p. 12).

Ao que parece o hip hop, através do rap, não é somente um mecanismo de


denúncia. Antes de mais nada, trata-se de um elemento constituidor da consciência
coletiva dos jovens da periferia. Ele busca produzir neste jovem um conhecimento
que sirva para que se possa construir cidadãos com acesso à cultura e cientes do
espaço que lhes cabe na sociedade. Mas o movimento hip hop, não quer produzir
cidadãos que sejam subservientes, porém sim cidadãos que possam exercer
plenamente seus direitos, numa sociedade que claramente produz desigualdades
sociais. E que geralmente somente cumpre suas obrigações, através de muito
embate. Ou seja, muita luta.
19

CAPÍTULO II- BROWN E OS RACIONAIS

“...Crime, futebol, música/ Caralho, eu também não consegui fugir


disso ai/ Sou mais um/ Forest gump é nada,/ Eu prefiro contar uma
história real/ Vou contar a minha"/tá aí o filme, uma negra e uma
criança nos braços solitária na floresta de concreto e aço/ veja olhe
outra vez um rosto na multidão/a multidão é um monstro sem rosto e
coração/(...)O bastardo, mais um filho pardo sem pai/ (...)Hei bacana
quem te fez tão bom assim?/ O que cê vê o que cê faz o que cê fez
por mim?/ Eu recebi seu ticket, quer dizer kit/De esgoto a céu aberto
e parede maderite/ De vergonha eu não morri, to firmão, eis me
aqui/(...)eu sou humano homem duro no gueto o brown, oba/ Aquele
loko que não pode errar/ Aquele que você odeia(...).”(Trechos de
“Negro Drama”- Racionais MC’s. CD Nada como um dia após o outro
dia)

A escolha da biografia de Mano Brown foi feita pelo motivo de que ele, ao
compor suas letras de rap, conta uma história que é sua, ou que já foi vivenciada por
ele no seu cotidiano. Pedro Paulo Soares nasceu no dia 22 de abril de 1970, na
Zona Sul de São Paulo. Filho de uma negra com um branco, mais um sobrevivente,
como ele mesmo diz, assim como outros moleques da quebrada (que residem nas
redondezas), não possui muitos estudos. Estudou somente até a 7ª série.
Criado no Capão Redondo, uma zona extremamente pobre da periferia de
São Paulo, Mano Brown teve e tem a chance de ver como muitos de seus amigos e
conhecidos foram e são atirados a vida do crime. Geralmente o seu destino é o
presídio ou a morte violenta.
Ele busca contar, através do seu rap, uma história do real, de acordo com os
seus termos, na qual conta e mostra a cara da periferia. Mano Brown denuncia as
dificuldades cotidianas vividas por quem, como ele, foi deixado de lado pelo Estado.
Mano Brown tem como uma de suas formas de ação denunciar a responsabilidade
do Estado na produção da miséria. O mesmo Estado que na maioria das vezes nega
cidadania, acentua a exclusão social, contribui para construção de um sistema em
que as comunidades periféricas não têm lugar. No Brasil esta divisão não igualitária
tem raízes históricas: de um lado, senhores, proprietários, doutores. De outro índios,
escravos, trabalhadores, pobres, etc. Como podemos perceber nos trechos de
“Negro Drama”:

“periferia vielas cortiços/você deve tá pensando o que você tem a ver


com isso/desde de o início, por ouro e prata/olha quem morre então,
veja você quem mata
20

[...]

me ver pobre preso ou morto já é cultural/histórias, registro


escritos/não é conto nem fábula, lenda ou mito

[...]

hei, senhor de engenho sei bem quem você é/sozinho cê não guenta,
sozinho cê num guenta/cê disse que era bom e a favela ouviu/wisk
red bull tênis nike fuzil/admito, seus carro é bonito, é, e eu não sei
fazer/internet, vídeo cassete, os carro loko/atrasado eu to um pouco,
sim to, eu acho/só que tem que...seu jogo é sujo e eu não me
encaixo”( Trechos de “Negro Drama”- Racionais MC’s. CD Nada
como um dia após o outro dia)

A cada cena de sua própria vida temos a chance de vislumbrar como a


maioria dos jovens de periferia se sentem diante das dificuldades que lhes são
postas, pela falta de oportunidades e também pelos escassos investimentos que são
feitos em suas comunidades. Mano Brown critica, através do rap, o tratamento que é
reservado à periferia: violência policial, baixo investimento no lazer, poucos recursos
a educação, falta de saneamento básico etc. Brown é uma testemunha da realidade
de grande parte dos jovens da periferia de São Paulo, por isso muitas vezes é
reconhecido por estes como um legítimo divulgador das suas angústias.
Brown ao escrever suas letras busca a dar voz a periferia, pois em sua
opinião o rap é um veículo que traduz as aspirações de quem não tem chances de
se rebelar contra as opressões sociais, como defende numa entrevista :

“O pobre não fala, pobre cumpre lei. O pobre não toma, ele pede, se
humilha. E o rap não pede nada. O rap vai falando, falando um montão.
Então, pros caras, isso aí é tipo uma revolta, uma conspiração dos pobres,
dos presos, dos pretos, dos favelados.” (KALILI, 1998: p. 18).

Outro fato interessante é que Mano Brown não se coloca como o detentor da
verdade, mas da “sua verdade”. Ele deixa claro que suas músicas retratam o que ele
acha importante, portanto ela divulga as suas apreensões. Ele não se coloca como
alguém que sabe da verdade, mas como uma pessoa que tem uma opinião. Ao
responder a pergunta sobre o conteúdo das suas letras de música, ele afirma:

“É a minha verdade, né, mano? É a minha verdade, cada um tem a sua, é


do jeito que eu enxergo.” (KALILI, 1998: p. 16).
21

Embora Brown não queira ser visto como ídolo, há sempre uma preocupação
de sua parte em ser um exemplo e com isso mostrar para os moleques que vivem
na quebrada, como ele mesmo diz, que se pode ter uma vida longe das drogas e do
caminho errado. As letras lançam um apelo para que os jovens procurem um
caminho que não os leve a criminalidade. Na verdade, o que Brown faz é um apelo,
assim como fica claro neste trecho de um dos seus raps:

“...no extremo sul da zona sul tá tudo errado/aqui vale muito pouco a sua
vida/nossa lei é falha violenta e suicida/(se diz) que me diz que não se
revela/parágrafo primeiro na lei da favela/legal assustador é quando se
descobre/que tudo dá em nada e que só morre o pobre/a gente vive se
matando irmão por quê?/não me olhe assim eu sou igual a você/descanse o
seu gatilho descanse o seu gatilho/entre no trem da malandragem o meu
rap é o trilho/vou dizer/procure a sua paz/pra todas a famílias ai que
perderam pessoas importante morô meu!/não se acostume com esse
cotidiano violento/que essa não é a sua vida essa não é a minha vida morô
mano!/procure a sua paz/cheguei aos 27 sou um vencedor tá ligado
mano!/aí procure a sua eu vou atrás da minha fórmula mágica da paz!/aí
manda um toque na quebrada lá Cohab adventista e pá
rapaziada!/malandragem de verdade é viver se liga/aqui quem fala é Mano
Brown mais um sobrevivente27 anos contrariando a estatística morô meu!
procure a sua paz procure a sua!você pode encontrar a sua paz o seu
paraíso! você pode encontrar o seu inferno! eu prefiro a paz” (Trecho de
“Fórmula Mágica da Paz” – Racionais MCs. CD Sobrevivendo no Inferno)

Há uma preocupação latente em dar um exemplo, em mostrar que uma outra


realidade é possível, apesar das dificuldades. Daí, talvez, a preocupação de cantar a
realidade como se mostra para ele. Desta forma, Brown sente-se capaz de mostrar a
garotada como é duro entrar para vida do crime, uma vida que na grande maioria
das vezes cria ilusões e acaba em morte. Procura demonstrar como a escolha pelo
hip hop, é uma possibilidade de vida melhor para eles.
Mano Brown se mostra sempre muito atento ao exemplo que deve dar para
os jovens da periferia, daí está sempre preocupado com seu discurso e com sua
postura, pois sabe que estes podem influenciar e fazer com que essas pessoas não
venham mais a acreditar nas suas propostas. Isto fica claro na suas resposta ao ser
questionado sobre o motivo de ser um exemplo.

“... Eu falo minha verdade, morô? Se o pessoal pegar a parte de boa do


Brown e servir como exemplo de vida, é bom. (..) Eu tenho que ser exemplo
para o meu filho, para os moleques da quebrada aqui perto...”(KALILI, 1998:
p. 17)
22

O líder dos Racionais MCs sabe que sua trajetória é importante para os
jovens da periferia, por isso tenta manter uma postura condizente com seu discurso
na música, pois isso lhe dá legitimidade para ser a voz destes excluídos. Como ele
mesmo coloca, é um sobrevivente, um louco que não pode errar.
Como o próprio Mano Brown diz, ele é “o efeito colateral” que o sistema fez,
portanto, produto da injustiça social que impera no país. Para ele as mazelas
sociais é que fazem com que o crime se apodere da periferia. Se houvesse mais
investimentos em educação, saneamento básico e lazer, provavelmente o jovem da
periferia não trilharia a vida do crime. O seu próprio trabalho é resultado desta
injustiça, pois se não fosse assim o seu rap não seria um mecanismo de denúncia
da desigualdade social que impera no país. O Estado, na maioria das vezes em que
se faz presente na periferia, o faz através da repressão policial. Como afirma Mano
Brown ao responder o repórter Sérgio Kalili, a respeito dos Racionais serem
odiados pela polícia e adorados pelos marginalizados:

“Eu vejo a injustiça. Falo como vejo as coisas. A polícia é preconceituosa.


Preto não pode ter as coisas, tem que ficar provando de onde veio, de onde
comprou, mostrar notas fiscais...” (KALILI, 1998: p. 32).

A contrário da idéia que muitas vezes é veiculada pela mídia e pelo senso
comum, Mano Brown não é um criminoso e tão pouco faz apologia às drogas. Como
fica claro neste trecho:

“Não sou defensor de preso, não sou defensor de criminoso, não sou
a favor de estuprador, não sou a favor de droga, mas a maioria dos
caras que tão dentro da cadeia é um preso político, mano é cara que
tá preso porque sempre foi pobre, porque não teve outra saída, tá
ligado? Se tivesse um salário digno, não ia roubar. Se o salário fosse
quinhentos contos, que é o mínimo que dá pra viver, o cara não ia
roubar.

[...]

Porque o Brasil tem um contraste: tem o cara muito pobre a aqui e o


muito rico lá.
[...]

Então, enquanto a coisa for desse jeito aí, o crime não vai acabar. O
tráfico não vai acabar, os viciados, então, não vai acabar, porque a
frustração só aumenta. E quando tem muita frustração só aumenta. E
quando tem muita frustração, sonho que não foi realizado, os caras
entram na droga, entram no álcool.”(KALILI, 1998: p. 18)
23

Ele defende que somente coloca em sua música “os baratos” que chegam ao
seu conhecimento. Isto fica claro a partir de uma análise de suas letras e também da
sua postura como rapper. A partir do estereótipo criado em suas roupas, suas
tatuagens e a cor da sua pele e sua postura altiva e com ar de enfrentamento, Mano
Brown sofre um prejulgamento que na maioria das vezes está carregado de
preconceitos. Esta opinião geralmente não é emitida por quem realmente deseja
conhecer suas letras, seu trabalho, mas sim por pessoas que a partir do senso
comum criam idéias errôneas sobre as mensagens que são propostas nas letras dos
seus raps. Essas pessoas consideram que rap é sinônimo de música para bandido,
um tipo de música que é feita por bandidos e para bandidos.
Mano Brown é um rapper e lança mão deste mecanismo que ao escrever e
cantar suas músicas o possibilita ser um divulgador das suas idéias. Ele não é
somente o “efeito colateral” ou “o fruto do negro drama”, mas sim um personagem
que surge dentro da própria classe e que tenta travar uma batalha no campo das
idéias, tentando levar consciência ao povo pobre e negro, na sua maioria, da
periferia.
Em suas letras há uma busca de fazer com que o jovem negro saiba sobre
sua origem e tenha conhecimento da sua exploração. Há em algumas letras a
tentativa de fazer com que este jovem crie laços de identificação e assim possa
desenvolver sua auto-estima e também um senso crítico O jovem marginalizado
necessita saber argumentar, defender suas idéias, nesta tomada de consciência
incentivada pelo rap, o jovem se depara também com suas limitações causadas pela
falta de expressão. Brown dá voz à periferia, para que esta queira falar, ao se
reconhecerem nele, percebem que seus interesses são dignos de atenção,
precisam ser reivindicados, a fim de que alguma mudança ocorra. Existe uma luta
contra o descaso, causador de sofrimentos e mortes.
Os rappers do movimento Hip Hop têm em si a responsabilidade de propagar
as idéias do movimento, não se limitam somente a denunciar os descasos, mas sim
também a identificar os problemas que são recorrentes à periferia. Isso é observado
por Micael Herschmann e Ivana Bentes no seguinte trecho:

“Os rappers poderiam ser considerados como uma espécie de porta-vozes


das periferias e favelas: após a crise das vanguardas artísticas e intelectuais
nos anos 70, emergiram como novos intelectuais locais, orgânicos, no bojo
de uma cultura popular ou minoritária(...).”(BENTES e HERSCHMANN,
2002: p.?)
24

Mano Brown deixa claro que seu trabalho tem conseqüências e, portanto, ao
divulgar suas idéias sempre utiliza a noção de responsabilidade. Ele demonstra
saber que a sua postura e atitudes são exemplos para integrantes do movimento Hip
Hop, assim como é importante para os “moleques da quebrada”. Percebe-se isso no
seu discurso, como fica demonstrado ao responder sobre ser um ídolo da periferia:

“Ídolo não é referência, né mano? Ídolo é outro barato. Ídolo é tipo, Romário,
Ronaldinho... Eu sou referência. Hoje os caras lembram de mim como o
cara da favela que canta os bagulhos da favela, como o Bezerra da Silva o
é.”( KALILI, 1998: p. 19)

Quando Mano Brown se coloca como referência deixa claro que sabe da sua
responsabilidade, sabe da sua importância. Sabe que suas atitudes são vistas e
percebidas por várias pessoas que o tem como um exemplo. Não somente um
exemplo, mas talvez até como orgulho, pois demonstra que se consegue sobreviver
com todas as dificuldades que são apresentadas no dia a dia: proximidade com a
marginalidade, o desemprego, a falta de oportunidades. Isto pode ser notado
quando analisamos as respostas que são dadas por detentos do Carandiru ao
serem questionados sobre o que pensam de Brown:

“- Ele canta a realidade. – Adilson de Assis Lima, vinte anos tráfico.”

[...]

“- Brown é um cara humilde e sabe como é o sofrimento desse lado de cá”


Ulisses Adriano, vinte e um ano, condenado por assalto.

[...]

“- Admiro Mano Brown como exemplo de pessoa que tá vencendo. Apesar


de tá no meio da marginalidade, ele escolheu o lado bom, não o lado ruim,
como eu.” Elias Eduardo da Silva, condenado por duplo homicídio( KALILI,
1998: p. 32)

Ao escrever sobre as mazelas sociais Mano Brown leva para o cenário


público as discussões que não são contempladas pela grande mídia. Ele acaba por
denunciar as várias formas de violência que ocorrem no cotidiano das comunidades
periféricas: violência policial, violência de homens frustrados, que se embebedam e
espacam suas próprias famílias, e toda a violência que sofrem pela falta de
investimentos públicos.
25

O rapper Mano Brown é criado dentro do seio do Hip Hop, de certa forma ele
é forjado e posto como um dos líderes deste mesmo movimento. Podemos perceber
que ele possui atributos que o posicionam como um “intelectual orgânico”, ao
analisarmos o conceito desenvolvido por Antonio Gramsci. Para Gramsci os
intelectuais orgânicos são criados a partir dos interesses e no interior da própria
classe. Como afirma Paolo Nosella sobre Gramsci:

” esses orgânicos conferem homogeneidade, eficiência, consciência ao


grupo humano a serviço do qual trabalham, a nível econômico social e
político” (NOSELLA, 1991: p.112).

Como ator desse processo de conscientização, Mano Brown toma essa


função como uma obrigação sua, é uma guerra que tem de ser travada todos os
dias, tirar a molecada do caminho ruim, não deixar que sejam vítimas do sistema,
que sejam tragadas pela vida errada proporcionada pelo tráfico.
Também é possível identificar a função do intelectual, no texto que segue de
Alberto Tosi, quando assinala:

“Eles definem os parâmetros pelos quais os homens concebem o mundo em


que vivem, veêm a divisão do poder e de riqueza da sua sociedade, e
também de finem se os homens percebem como justa ou injusta essa
situação”(RODRIGUES, 2001: p. 90)

Em seus raps, Mano Brown expõe situações que descrevem a divisão do


poder e como isso cria uma desigualdade social, definindo parâmetros que
identificam a divisão desse mesmo poder, ou seja a divisão de classe. Ele questiona
o porque do seu povo, como ele mesmo diz, sempre ter como herança a miséria, a
falta de oportunidades. Brown tem a força de quem incomoda pela veracidade dos
seus argumentos, que acabam por denunciar as contradições sociais do país,
enquanto uns poucos esbanjam, outros muitos não possuem o bastante para se ter
uma vida digna. Para a favela somente são deixados os restos. Isto é demonstrado
nos trechos abaixo:

“olha meu povo nas favelas e vai perceber/daqui eu vejo uma caranga do
ano/toda equipada e um tiozinho guiando/com seus filhos ao lado estão indo
ao parque/eufóricos brinquedos eletrônicos/automaticamente eu imagino/a
molecada lá da área como é que tá/provavelmente correndo pra lá e pra
cá/jogando bola descalços nas ruas de terra/é brincam do jeito que
dá/gritando palavrão é o jeito deles/eles não tem video-game às vezes nem
televisão/mas todos eles tem em são cosme e são damião/a única
26

proteção”( Trecho de “Fim de Semana no Parque – Racionais MCs. CD


Racionais MC’s)

“minha vida não tem tanto valor/quanto seu celular seu computador”(Trecho
de “Diário de um Detento” – Racionais MCs. CD Racionais MC’s)

“A lei da selva consumir é necessário/ Compre mais, compre mais/


Supere o seu adversário/ O seu status depende da tragédia de
alguém/ É isso, capitalismo selvagem( Trecho de “Mano na Porta do
Bar” – Racionais MCs. CD Racionais MC’s)

Para sabermos sobre a história de Mano Brown devemos percorrer a história


dos Racionais MCs, pois elas estão intimamente ligadas.
No ano de 1988, surge em cena o grupo Racionais MCs , que é composto
por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e Kl Jay. Os dois primeiros são da Zona Sul de
São Paulo e os dois últimos da Zona Norte. A princípio, Mano Brown inicia sua
carreira de rapper junto a Ice Blue, e os dois passam por volta de três anos tentando
divulgar seu trabalho em cima de improvisos nos bailes. Posteriormente, os dois são
apresentados a Ice Blue e Kl Jay, por Milton Salles, formando assim o Racionais
MCs. Eles participam da coletânea “Consciência Black”, sua primeira gravação.
Em 1990, lançam seu primeiro disco solo “Holocausto Urbano”, pelo selo da
Zimbabwe, com músicas que falam do massacre sofrido por populações
marginalizadas nas grandes metrópoles. Sempre combativos em suas letras, os
Racionais buscam denunciar o racismo, principalmente marcado pela repressão
policial, e também a miséria e os descasos do poder público junto à periferia, assim
como fica claro na letra da música “Fim de Semana no Parque”:

“...aqui não vejo nenhum clube poliesportivo/pra molecada freqüentar


nenhum incentivo/o investimento no lazer é muito escasso/o centro
comunitário é um fracasso...”. (Trecho de “Fim de Semana no Parque –
Racionais MCs. CD Racionais MC’s)

Em 1991, abriram o show do Public Enemy ( um dos maiores grupos de rap


norte americano). Isso provalvelmente contribuiu para que o grupo fosse mais
conhecido. A partir do ano de 1992, os integrantes do grupo Racionais MCs
começam a realizar palestras, principalmente nas escolas, nas comunidades,
discutindo temas como: drogas, discriminação racial e violência policial.
Utilizando um discurso repleto de gírias e palavrões (uma linguagem própria
da periferia, como diz Mano Brown: dialeto) os Racionais passam a liderar o cenário
do rap nacional, tornando-se uma referência para outros grupos e mesmo para o
27

movimento Hip Hop. Isto é demonstrado numa entrevista feita a um integrante do


grupo de rap “Profetas da Revolução” e um dos fundadores da Associação Cultural
Negroatividades:

“Tem que ter letra pra fazer esse rap mais drecionado pra linha política,
como faz o Gog, em Brasília, que eu simpatizo muito porque é marxista.
Não gosto de falar muito isso porque parece que estou fazendo uma afronta
pros antigos, pro Racionais, e sei que eles que me puseram nisso, eles vão
pras cabeças, ajudam a tirar aquelas viseiras que estão prejudicando as
idéias das pessoas.” (AMARAL, 1998: p. 5)

O que se mostra também na declaração de Nil, jovem integrante de uma das


posses mais antigas de São Paulo, a Força Ativa, localizada na zona norte de São
Paulo.

“Quando ouvi o Racionais, comecei a colecionar fitas, entrevistas, eu me


identificava com as músicas falando da situação do jovem negro, da
periferia, da injustiça social, da discriminação”( AMARAL, 1998: p. 6)

Os Racionais conseguem, mesmo estando a margem da grande mídia, uma


vendagem de discos impressionante, integrando, junto a outros artistas que
possuem toda um trabalho de divulgação realizado pelas grandes gravadoras, a
galeria dos mais vendidos.

“O primeiro CD dos Racionais MC’s passou das 150 mil cópias e o


segundo bateu a marca de platina dupla, com pelo menos 600 mil
cópias oficiais” (MARINI, PAIVA e NASCIMENTO, 1998: p?).

Assim como nos diz Sérgio Kalili ao comentar as vendagens de discos


do grupo:

“... os Racionais vendem em quatro semanas 200.000 cópias de


Sobrevivendo no Inferno” (KALILI, 1998: p. 30).

O grupo Racionais MCs carrega uma legitimidade, assim como vários grupos
de rap ligados ao movimento Hip Hop, o de não se deixar seduzir pelas grandes
gravadoras, e assim correr o risco de deixar de representar os jovens da periferia.
Deixar de ser autênticos e fazer o jogo mercadológico seria trair o que sempre
propagaram. Isto pode ser observado nos trechos abaixo:
28

“Tô cansado dessa porra/de toda essa bobagem/alcoolismo vingança treta e


malandragem/mãe angustiada filho problemático/famílias destruídas fins de
semana trágicos/o sistema quer isso a molecada tem que aprender/fim de
semana no Parque Ipê”.(Trecho de “Fim de Semana no Parque – Racionais
MCs. CD Racionais MC’s)

“seu comercial de tv não me engana/eu não preciso de status nem fama seu
carro e sua grana já não me seduz/e nem a sua puta de olhos azuis”.
(Trecho de “Capítulo 4 Versículo 3” – Racionais MCs. CD Sobrevivendo no
Inferno)

Como o próprio Mano Brown responde ao ser questionado sobre o porque do


grupo não querer apresentar-se em programas de tv mais assistidos e de maior
repercussão aos domingos.

“Significa o começo da derrota dos rebeldes. O começo da derrota. Acho


que nós estamos começando a ganhar uma batalha pequena de uma guerra
gigante. Quando você começa a sair fora do sistema em que os caras
colocaram você, o controle remoto, tudo tá no domínio dos caras, da
televisão, eles têm o domínio sobre tudo, tudo que está no mundo da
música tá ligado?(...)O Racionais não pode trair, tá ligado? Tem muita gente
que conta com a nossa rebeldia. “ (KALILI, 1998: p. 18)

O grupo tem demonstrado ter a consciência da importância da sua atitude


perante um público, que não cansam de repetir que preferem que sejam os jovens
da periferia, o qual acredita nesta rebeldia. O Racionais, até o presente momento,
tem se mostrado digno, pois costuma agir conforme prega em suas letras, criando
assim um universo onde jovens pobres e na maioria negros podem se espelhar e
buscar um caminho longe das drogas e como eles mesmo dizem, das tretas.
Há sempre um esforço em mostrar para estes jovens que precisam de atitude
para enfrentar os desafios que lhe são postos no mundo. Há uma latente
necessidade de que este jovem tome o rumo da sua própria vida, que este jovem
tenha uma auto-estima e não se deixe abater pelas dificuldades, que busquem e
encontrem sua “fórmula mágica da paz”.
Quando se fala em rap, exclusivamente o ligado ao movimento Hip Hop, na
maioria das vezes o Racionais é citado. O grupo é uma referência, pois com suas
letras conseguiram penetrar na grande mídia, mesmo sem, de certa forma, fazer
concessões para isso.
Nos anos 1990, há a explosão do hip hop no Brasil, surgindo neste cenário
outros grupos que, como os Racionais MCs, fizeram soar vozes que anunciavam
29

ainda mais radicalmente a mensagem de inconformismo do Hip Hop. Os seus


integrantes reclamam e denunciam uma realidade vividas por eles próprios, o que os
aproxima ainda mais do público a que querem atingir. Eles representam uma das
vozes da periferia e trazem a tona problemas, como nos colocam Ivana Bentes e
Micael Herschmann:

“... e reivindicar cidadania, trazendo à tona, para o debate na esfera


pública, a discussão do lugar do pobre, do direito ao discurso e de acesso à
cidade colocando em pauta as contradições do processo de democratização
do país.” ( BENTES e HERSCHMANN, 2002: p.?)

Podemos notar neste momento a mudança sociocultural, promovida pelo rap,


dando voz à periferia, a qual não era anteriormente ouvida, em seus direitos e
necessidades. Os Racionais buscam promover uma revolução de valores e de
qualidade de vida. A tentativa de chamar a periferia para sair de sua posição de
submissão a partir das letras que buscam conscientizar suas populações no sentido
do aumento da sua auto-estima, faz com o Racionais MCs se tornem uma referência
nacional para o rap. Este grupo não é o primeiro a produzir letras que falem de
contestação social, porém parece ser o primeiro a ganhar notoriedade mesmo
utilizando-se de um discurso duro e muitas vezes até considerado agressivo e
violento. São músicas com textos extensos, assemelhando-se a uma reportagem,
mas que parecem na maioria das vezes expressar o sentimento da juventude das
áreas periféricas. O Racionais retrata nas suas letras a vida difícil da periferia, uma
vida próxima a bandidagem, muitas vezes com poucas alternativas, mas sempre
procurando deixar claro que não se pode desistir e que há sempre um dia após o
outro, e nas suas próprias palavras a vida é desafio. Esta atitude aponta para a
descoberta de novas possibilidades para um contato maior da periferia com a
própria periferia. Por isso a preocupação dos rappers( aqui especificamente os
integrantes dos Racionais) com sua identificação com os jovens da periferia e de
seu papel como exemplo. Daí a grande importância dos Racionais se apresentarem
como veículo de uma outra realidade possível.
30

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar as letras e entrevistas concedidas por Brown pude notar que ele
pode ser considerado um “intelectual orgânico” do movimento hip hop, apresentando
uma ideologia descrita nas letras de suas músicas que o tornam evidenciado dentro
do movimento. Ele demonstra características que acabam por qualificá-lo como tal.
Por exemplo, além de ter surgido de dentro da classe trabalhadora ele tem como
atributo ter sido escolhido por esta mesma classe.
Além disso, em seus discursos e também em suas letras de música são
elaboradas situações que podem contribuir para que a classe possa ser elevada a
sua própria função histórica. Através da sua própria história de vida e a de outros
“manos” da periferia, Brown parece criar uma certa representação da realidade
destes jovens fazendo com que tenham a possibilidade de construir
questionamentos a respeito de suas próprias vidas. Brown, com um discurso muitas
vezes considerado duro e agressivo, faz com que seus relatos sejam ouvidos por
quem os admira e também por quem os critica e com isso cria uma discussão a
respeito do lugar do jovem da periferia. Através dos seus raps, Brown busca
subverter a ordem estabelecida, que para ele não é justa, portanto sendo passível
de mudanças.
Mano Brown busca interpretar a realidade vivida por estes jovens da periferia
a partir da sua própria experiência e visão de mundo. Como ele mesmo diz é a sua
“verdade”, ou seja cada um tem a sua verdade. Brown não se qualifica como o
detentor de uma verdade, porém sabe que pela própria força e amplitude que tem
um rap, os seus versos muitas das vezes tornam-se um veículo de informação para
as camadas da periferia.
Ele parece perceber o quanto suas atitudes e opiniões são importantes como
exemplo para a periferia. Brown sabe da sua responsabilidade como um ícone do
movimento hip hop, portanto demonstra estar atento para de certa forma decodificar
as suas apreensões, pois de certa forma, algumas vezes o seu discurso é um dos
poucos canais de conscientização das angústias destes jovens.
Outra constatação é a de que o rap produzido por Brown e pelos Racionais
busca construir uma identidade social, tentando fazer com que o jovem da periferia
possa construir formas de resistência e também melhorar sua auto-estima.
31

Levando-se em consideração que a identidade social é o que consideramos


ser frente aos outros, o rap busca fazer com que este jovem tenha orgulho da sua
origem e que não fique numa posição de subalterno, mas sim que venha a lutar por
seu lugar na sociedade. Através do rap, há uma busca do resgate da cultura do
jovem negro, para que esse mesmo jovem tenha orgulho de sua origem, mas que
também perceba que as dominações são realizadas ao longo do tempo.
Dominações que Brown tenta demonstrar quando relata que a violência policial
geralmente é destinada aos jovens da favela, que as melhorias são feitas somente
para as elites e que somente os pequenos criminosos que são castigados, apesar
dos grandes crimes serem realizados por pessoas que ocupam lugares nos estratos
mais elevados da sociedade.
Ao trabalhar contra os estigmas que são atribuídos aos jovens da periferia,
especialmente os da favela, o rap busca a desconstruir a idéia de uma identidade
social pautada na figura de um jovem predestinado a ser um pobre coitado e de ter
que buscar o caminho do crime como possibilidade de ascensão social. O rap, aqui
se tratando do produzido pelo grupo Racionais MCs, procura mostrar ao jovem que
existe outro caminho e que ele deve ser orgulhoso de quem ele é, e que com muita
luta pode ser alguém, “contrariando as estatísticas”.
O rap produzido por Brown e pelos Racionais busca ser uma influência para a
juventude, a fim de fazer com que esses jovens da periferia desenvolvam outras
atitudes que venham a contribuir para que eles tenham uma chance frente ao
mundo( repleto de desigualdades sociais).
Não quero com isso esgotar o tema, mesmo porque não tive, em momento
algum, tal pretensão. Acho que este tema deve ser constantemente apreciado, por
ser um movimento contemporâneo e estar passando por várias transformações
cotidianas.
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