Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Miguel Real, em AVoz da Terra, traça o percurso de Julinho por Lisboa, antes,
durante e depois do terramoto de 1755.
1
Ainda neste jantar e pela mão do cónego Formigão, o nosso olhar de leitor
guloso deleita-se perante a descrição pormenorizada das sobremesas: os pastéis do
Claustro do Convento da Esperança, de feijão caramelizado batido em banana de
molhão, os quadradinhos de marmelada das monjas de Odivelas, os papos de anjo das
Carmelitas descalças, as barrigas de freira das Carmelitas calçadas e muitas outras das
clarissas brancas e pretas e de mais noviças. E ainda a sobremesa da moda, o sorvete, a
que o cónego Formigão, especialista no acto de provar chama neve e que defende dever
ser comido em tigelas de barro para mais do que a limão, saber a terra, terra-terra, terra
pura.
A caracterização deste grupo de pessoas culmina com a indigestão sofrida pelo
cónego que, não contente com aquele desfilar de doces, não resiste a umas talhadas de
melão. E aí “o cónego Formigão inteiriçou o corpo, gritou um virgem Maria mãe de
Jesus, soltou um ai, ai, que morro em pecado, e, denso, trebelhou de borco sobre o
tapete; ainda se soergueu, de joelhos, babado, olhos incompreensivos, procurando no
morriço das velas a luz que parecia interiormente faltar-lhe, arrebanhou a batina de
mãos crispadas, mostrando as ceroulas de sarja, as botinas cambadas; uma massa
apegadiça, viscosa, amarelácea, ascendeu-lhe à gorja, inundou-lhe a boca, enojando-a, e
o cónego, de veias túrgidas do pescoço, olhos desorbitados, faces congestionadas, unhas
como garras esgarçando o cabeção, repeliu-a em vómitos desengonçados sobre o soalho
nu; o cónego Formigão patinava as mãos na substância espessa e melosa das enxúndias
de porco e de vaca, no molho gratinoso do estufado de tordo, no álacre azedado do leite
de sorvete, na aguardente fermentada, e, alçando o rosto penitencial de Maria Madalena
para os Peixotinhos e as Esmeraldinhas, desmaiou, abandonando o corpo duro e tenso,
esperneando sobre o vomitado, de pernas majestosamente abertas donde, pingando da
batina, corria uma urina avermelhada.” Será salvo pela sangria do médico ou pela
oração das senhoras e criadas? É assim, “supersticiosa e embruxada, lenta e escura, a
cidade de Santo António”.
Julinho continua o reconhecimento da cidade e conhece mãe Zefa, a do
camdomblé do beco do Forno do Tijolo, quando vai com o seu rico Santo António para
ser abençoado pelo cónego Formigão. De caminho, vai tentar cumprir uma das duas
missões que o trouxe a Lisboa: saber junto do velho pratives o paradeiro de Violante
Dias, para lhe poder entregar o anel da patriarca dos judeus do Brasil, Branca Dias, que,
na primeira metade do século XVI, presa pela Inquisição e por esta perseguida, levara o
judaísmo para as terras do Novo Mundo, mantendo viva a tradição do Livro Velho.
Na noite em que Julinho vai conhecer Violante Dias que vive, em isolamento
penitenciário, nas marinhas, uma enfilada de casas baixas perto do Castelo, pertencentes
ao Santo Ofício, acontece a despossessão da viúva Passarinho. A Igreja no seu melhor!
O Padre Sousa Azevedo, antigo missionário nos desertos da Mauritânia, será o autor do
exorcismo. Só ele poderia valer à viúva que na véspera quis “levantar-se da cama e um
pé não lhe obedeceu, depois dois pés; uma madrugada, querendo servir-se do criado-
mudo, sentiu o tronco vogar na cama, flutuando, desprendido das pernas imobilizadas, a
urina corria-lhe quente das anáguas, encharcando o lençol, e a viúva Passarinho ondeava
satisfeita, entre a tule do dossel, de torso e cabeça sem membros, contemplando o rio
amarelo que corria pela cama”. Segundo o cónego Formigão seria a última fase: “ a
seguir afloram os temores, as convulsões, depois os desmaios contínuos, o torsão dos
braços, o reviramento dos olhos, uma pasta de sangue babada sobre o peito, a expulsão
de alfinetes pela boca, o focinho guinchante de ratazanas, açulando a boca da viúva
Passarinho, é a possessão, a alma do cabrão do defunto a assomar”.
Quando o ritual termina, as Esmeraldinhas, “roxas de medo, julgam ter
visto quatro diabinhos a fugirem pela boca da viúva Passarinho, o cónego Formigão
2
jurara ter visto três (…) os Peixotinhos diziam que sim, enfim, sim, sim, pois claro, para
não dizerem que não”.
Na ida para o Castelo, Julinho pode sentir os cheiros das casas do bairro:
soboarias gordurosas de odor enjoativo, oficinas de marcenaria de cheiro fresco a
madeira e cheiro acre a resina, armazéns de cortiça nova chegada do Além-Tejo, ainda
fresca do corte do sobreiro, uma loja de gigas e cestos de vime de cheiro álacre do
choupo e do salgueiro, tonéis de cal viva de cheiro ardente, uma senzala de pretas onde
se serviam camarões e berbigões, uma loja de especiarias com o ar carregado de pó de
pimenta e de canela, o picante da malagueta e o bálsamo do gengibre.
Julinho encontra Violante e verifica que o nariz, a boca, o queixo, os olhos, a
silhueta do perfil, o suave aveludado redondo das faces, a ponta oblíqua do nariz, a
curva forçada das pálpebras, as sobrancelhas duras, o proeminência enrugada da testa, o
doce pregueado dos cabelos caindo em três ondas, o jeito lento de entreabrir os lábios, o
queixo aparado sobre o lábio espesso “não eram parecidos, eram iguais aos da sua
defunta mulher.
3
Enquanto Julinho procura a sua segunda Violante, realiza-se a procissão a Nossa
Senhora Reparadora. “Livrai-nos do mal, amém,” “A imagem branca de Nossa Senhora
Reparadora é deposta na peanha coberta de crisântemos e dálias, o povohéu ajoelha-se,
reza, suplica futuro, que o passado está morto e o presente é vazio.”
4
Agora sim, era a hora do regresso.