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Miguel Real, A Voz da Terra

Miguel Real, em AVoz da Terra, traça o percurso de Julinho por Lisboa, antes,
durante e depois do terramoto de 1755.

I - Antes: conhecer a cidade de Sto António

Vindo de Pernambuco, onde perdeu a mulher e o filho, Julinho vem, finalmente


conhecer “a cabeça do Império”, acompanhado pelo escravo Florentino a quem
prometera alforriar em Lisboa.
O arrais de São Bartolomeu aproxima-se do destino e Julinho reconhece o Cabo
da Roca rasgando o mar, Sintra e a Peninha, pintura que o seu pai lhe tinha narrado 35
anos antes,
“Sê bem-vindo a Lisboa”, diz-lhe um dos amigos do tempo do Brasil que o
esperava no cais, João Maria Peixoto. O irmão, José Maria Peixoto diz-lhe que vai ser
feliz ali. A Esmeraldinha Nova diz-lhe que “ a nossa casa é a tua casa” e Esmeraldinha
Velha “esta é a cidade de Sto António”.
A partir daqui acompanhamos a nossa personagem pela sua viagem de
conhecimento da cidade/país, contada com um pormenor descritivo irrepreensível e uma
fina ironia.
A cidade parece-lhe familiar: os zimbórios, os coruchéus, os pináculos de cruz
alçada e as torres sineiras encimando fachadas graníticas de paredes gordas de taipa e
alvenaria, fazem-lhe lembrar Olinda, “um quarteirão de sobrados e nasce logo uma
igreja”.
Os amigos dos belos tempos de São Luís, que ele não via há trinta anos, moram
no Bairro alto que se ergue num “colosso geométrico de solares e palacetes,
entremeados do casario da criadagem, compondo longas ruas rectilíneas, todas
empedradas, como se pela primeira vez em Portugal um bairro tivesse nascido perfeito.”
É no palácio dos Peixotinhos, num jantar de apresentação de Julinho à sociedade
lisboeta que vamos conhecer algumas das personagens que vão acompanhar o
protagonista ao longo da sua deambulação pela capital. Temos o representante do clero,
o cónego Formigão, muito lá de casa, que viera aprovar e consagrar a casa de Santos.
Sempre atenta aos olhares sugestivos do cónego, a viúva Passarinho representa a forte
beatice que atravessa Lisboa. Porão Escorço que 25 anos antes servia aristocratas
mazombos de Olinda é o Intendente Geral de Lisboa, a imagem maior da autoridade a
quem se deve a segurança e a paz do Bairro Alto de São Roque. A família Smith,
composta pelo comerciante de sucesso que importa de Inglaterra tudo o que Portugal
precisa e não tem, pela esposa e pela grácil filha, a menina Smith, nascida em Londres
mas educada em Lisboa. A nobreza é representada pelos condes de Vilavelha. O conde
quase provoca um terramoto durante o jantar quando se apercebe que as suas botas estão
pisando o rosto de Vasco da Gama, enquanto se degusta um vinho preto de ramisco de
Colares, em honra de Julinho, de ascendência sintrense.
Este primeiro jantar queirosiano é também a primeira tentativa para as
Esmeraldinhas reconciliarem Julinho com a vida, arranjando-lhe uma senhora. Se ele
preferisse menina, teria a menina Smith; se ele preferisse madura, lá estava a viúva
Passarinho, mas ele não faria tal desfeita ao cónego Formigão, ainda mais que Julinho
ainda tinha Violante a sangrar na memória, e por isso incapaz de olhar para outra
mulher.

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Ainda neste jantar e pela mão do cónego Formigão, o nosso olhar de leitor
guloso deleita-se perante a descrição pormenorizada das sobremesas: os pastéis do
Claustro do Convento da Esperança, de feijão caramelizado batido em banana de
molhão, os quadradinhos de marmelada das monjas de Odivelas, os papos de anjo das
Carmelitas descalças, as barrigas de freira das Carmelitas calçadas e muitas outras das
clarissas brancas e pretas e de mais noviças. E ainda a sobremesa da moda, o sorvete, a
que o cónego Formigão, especialista no acto de provar chama neve e que defende dever
ser comido em tigelas de barro para mais do que a limão, saber a terra, terra-terra, terra
pura.
A caracterização deste grupo de pessoas culmina com a indigestão sofrida pelo
cónego que, não contente com aquele desfilar de doces, não resiste a umas talhadas de
melão. E aí “o cónego Formigão inteiriçou o corpo, gritou um virgem Maria mãe de
Jesus, soltou um ai, ai, que morro em pecado, e, denso, trebelhou de borco sobre o
tapete; ainda se soergueu, de joelhos, babado, olhos incompreensivos, procurando no
morriço das velas a luz que parecia interiormente faltar-lhe, arrebanhou a batina de
mãos crispadas, mostrando as ceroulas de sarja, as botinas cambadas; uma massa
apegadiça, viscosa, amarelácea, ascendeu-lhe à gorja, inundou-lhe a boca, enojando-a, e
o cónego, de veias túrgidas do pescoço, olhos desorbitados, faces congestionadas, unhas
como garras esgarçando o cabeção, repeliu-a em vómitos desengonçados sobre o soalho
nu; o cónego Formigão patinava as mãos na substância espessa e melosa das enxúndias
de porco e de vaca, no molho gratinoso do estufado de tordo, no álacre azedado do leite
de sorvete, na aguardente fermentada, e, alçando o rosto penitencial de Maria Madalena
para os Peixotinhos e as Esmeraldinhas, desmaiou, abandonando o corpo duro e tenso,
esperneando sobre o vomitado, de pernas majestosamente abertas donde, pingando da
batina, corria uma urina avermelhada.” Será salvo pela sangria do médico ou pela
oração das senhoras e criadas? É assim, “supersticiosa e embruxada, lenta e escura, a
cidade de Santo António”.
Julinho continua o reconhecimento da cidade e conhece mãe Zefa, a do
camdomblé do beco do Forno do Tijolo, quando vai com o seu rico Santo António para
ser abençoado pelo cónego Formigão. De caminho, vai tentar cumprir uma das duas
missões que o trouxe a Lisboa: saber junto do velho pratives o paradeiro de Violante
Dias, para lhe poder entregar o anel da patriarca dos judeus do Brasil, Branca Dias, que,
na primeira metade do século XVI, presa pela Inquisição e por esta perseguida, levara o
judaísmo para as terras do Novo Mundo, mantendo viva a tradição do Livro Velho.
Na noite em que Julinho vai conhecer Violante Dias que vive, em isolamento
penitenciário, nas marinhas, uma enfilada de casas baixas perto do Castelo, pertencentes
ao Santo Ofício, acontece a despossessão da viúva Passarinho. A Igreja no seu melhor!
O Padre Sousa Azevedo, antigo missionário nos desertos da Mauritânia, será o autor do
exorcismo. Só ele poderia valer à viúva que na véspera quis “levantar-se da cama e um
pé não lhe obedeceu, depois dois pés; uma madrugada, querendo servir-se do criado-
mudo, sentiu o tronco vogar na cama, flutuando, desprendido das pernas imobilizadas, a
urina corria-lhe quente das anáguas, encharcando o lençol, e a viúva Passarinho ondeava
satisfeita, entre a tule do dossel, de torso e cabeça sem membros, contemplando o rio
amarelo que corria pela cama”. Segundo o cónego Formigão seria a última fase: “ a
seguir afloram os temores, as convulsões, depois os desmaios contínuos, o torsão dos
braços, o reviramento dos olhos, uma pasta de sangue babada sobre o peito, a expulsão
de alfinetes pela boca, o focinho guinchante de ratazanas, açulando a boca da viúva
Passarinho, é a possessão, a alma do cabrão do defunto a assomar”.
Quando o ritual termina, as Esmeraldinhas, “roxas de medo, julgam ter
visto quatro diabinhos a fugirem pela boca da viúva Passarinho, o cónego Formigão

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jurara ter visto três (…) os Peixotinhos diziam que sim, enfim, sim, sim, pois claro, para
não dizerem que não”.
Na ida para o Castelo, Julinho pode sentir os cheiros das casas do bairro:
soboarias gordurosas de odor enjoativo, oficinas de marcenaria de cheiro fresco a
madeira e cheiro acre a resina, armazéns de cortiça nova chegada do Além-Tejo, ainda
fresca do corte do sobreiro, uma loja de gigas e cestos de vime de cheiro álacre do
choupo e do salgueiro, tonéis de cal viva de cheiro ardente, uma senzala de pretas onde
se serviam camarões e berbigões, uma loja de especiarias com o ar carregado de pó de
pimenta e de canela, o picante da malagueta e o bálsamo do gengibre.
Julinho encontra Violante e verifica que o nariz, a boca, o queixo, os olhos, a
silhueta do perfil, o suave aveludado redondo das faces, a ponta oblíqua do nariz, a
curva forçada das pálpebras, as sobrancelhas duras, o proeminência enrugada da testa, o
doce pregueado dos cabelos caindo em três ondas, o jeito lento de entreabrir os lábios, o
queixo aparado sobre o lábio espesso “não eram parecidos, eram iguais aos da sua
defunta mulher.

II - Durante: Ouvir a voz da terra

Ninguém percebeu a voz do céu: as Esmeraldinhas pensam que ratoeiras e peçonha


de alfavaca acabariam com os ratos. Os Peixotinhos desconhecem os seus cavalos que
refocinhavam, ferravam os cascos no chão, relinchavam, espumavam, mordiam o freio e
escoiceavam o ar. Os fieis apenas se intrigam com os bandos de corvos e gaivotas que
buscavam os lugares cimeiros. A viúva Passarinho não compreende a violência dos seus
cães e das suas capoeiras. A família Smith, presbiteriana, lamentando que tivesse sido
obrigada a fechar a loja num sábado, um óptimo dia para negócios, por causa do culto
bárbaro de adoração dos mortos nas igrejas nesse dia 1 de Novembro de 1755, também
se admira com a matilha de cães que corria desaustinada para o vale de Alcântara. O
conde de Vilavelha espanta-se com os bandos de pombas e pardais e a pedra de armas
da sua casa, “um rectângulo de granito ferrado, espadas cruzadas em flor de mandrágora
em relevo”, desprega-se do portão e tomba sobre a liteira, esmagando a condessa.
E “foi então que um trovão estourou dentro da terra”. “Lisboa, tocada pela voz da
terra, convulsiona-se. Do Terreiro do Paço ao Rossio, a mole imensa da cidade
encrespou-se, ondulou, saltou separada dos seus alicerces, e abateu-se inteira, as
abóbadas resistentes do Palácio Real fustigaram-se, açoitadas pela terra, e ruíram, o
torreão do rei mergulhou no Tejo, engolindo três embarcações inglesas, o edifício
central e a igreja da patriarcal, a seu lado, inclinaram-se um sobre o outro e tombaram
ao mesmo tempo num fragor horrendo de pedregulhos rolando, matando criados e
funcionários reais, o rei e a rainha tinham partido manhã cedo para a quinta real de
Belém.”
“Lisboa gritou de medo, mas já não fugiu, não tinha forças nem ânimo, ofereceu-se
como sacrifício vivo ao deus impiedoso e cruel.”
Julinho, por entre os escombros, quer saber se Violante está viva. Dizem-lhe que
sim. “Saltando, tropeçando, escorregando, desceu a encosta do Castelo pelas escadinhas
da Madalena, de novo fez orelhas surdas a pedidos de socorro, a gritos de feridos, a
choros de crianças, a gemidos de moribundos.”
É preciso enterrar os mortos e cuidar dos vivos. “Lisboa sepultava os seus mortos no
mar, enterrava-os em água, a serrilha feroz dos beiços dos peixes substituía a lenta
mastigação dos vermes da terra.” Os Peixotinhos terão papel importante na reconstrução
da cidade.

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Enquanto Julinho procura a sua segunda Violante, realiza-se a procissão a Nossa
Senhora Reparadora. “Livrai-nos do mal, amém,” “A imagem branca de Nossa Senhora
Reparadora é deposta na peanha coberta de crisântemos e dálias, o povohéu ajoelha-se,
reza, suplica futuro, que o passado está morto e o presente é vazio.”

III – Depois: compreender o voz dos homens

“Enterrados os mortos e cuidados os vivos”, Julinho vê Lisboa “reanimar-se,


enlutada, dissentida, aterrorizada”. Vê os teatros reabrirem. Vê as senhoras burguesas
despedirem-se das cabeleiras empoadas de canudos e ondas, os cabelos caíam agora
simples, corridos, levemente encaracolados, lavado, cheirando a alfazema e lavanda,
presos por pregadores de prata.
Julinho também falta não ao jantar de luto de despedida dos Smith, que partem sem
a sua filha, desaparecida no terramoto.
Julinho percebe ainda que a situação não permitia resposta do Ministro à sua
segunda missão secreta em Lisboa: negociar a independência do Pernambuco.
“Para esta Lisboa, exigia-se uma nova igreja e uma nova nobreza, desempoeiradas e
europeias, exigia-se um outro terramoto, não físico, mas social, o terramoto dos
homens.”
E ele acontece. O Ministro demonstra “ser capaz de esmagar sem remorso tudo e
todos que de leve prenunciem um recuo ou um bloqueio ao novo Portugal e à nova
Lisboa”. “Uma Lisboa geométrica exige uma voz geométrica”. Os Távoras são
executados. O algoz fica estonteado com a sensualidade do veludo suave da pele do
pescoço da marquesa, nunca tocara uma pele assim, lisa e bela, não resiste, simula que o
pescoço da marquesa não estava a jeito, encosta-lhe as costas da mão, pressionando-o
colhendo para sempre na memória o inefável prazer daquele toque.”
Violante é encontrada. Com ela, a menina Smith. Julinho inventa para Violante uma
história capaz de convencer as Esmeraldinhas.
Entretanto há festa no Rossio. Não é a tourada de Santo António, mas um auto-de-
fé. “Três judeus vão ser queimados, mais dois heréticos e apóstatas relaxados, um deles
padre Malagrido; acusadas de bruxaria; vinte mulheres iam degradadas para Angola,
catorze para o Brasil, uma para São Tomé.”
Lisboa reencontra-se. As famílias desterradas regressam aos poucos ao local da sua
antiga casa, habitando agora em andares, as pretas calhandreiras batem às portas,
reclamando as velhas peniqueiras das necessidades da noite.”
Com a bênção do cónego Formigão, Violante Dias tem novos papéis que garantem
que d. Maria Ana nasceu em Serpa. Julinho agradece o favor com duas bolsas. Já pode
regressar à Bahia com a sua nova família. Diz Julinho: “Lá seremos felizes, eu contigo,
tu com os teus filhos, até que um dia possamos ser felizes todos com todos.”
Como “nada prendia Violante a Lisboa, nem casa, nem família, nem filhos, só
memórias, vamos, disse Violante, partamos pata a Bahia, disse ela. “Julinho viera triste
para Lisboa, refazer a sua vida, e regressava feliz ao Brasil, de vida refeita com d. Maria
Ana. Fora o amor.” É também o amor que opera a mudança na escravidão do cónego
Formigão: trinta anos foi escravo do Senhor, agora, no final da vida, torna-se escravo do
amor.
Mas visto que a vida é guerra, como dizia Esporão Escorço, Florentino, ajudado pela
alma de Manicongo, desferra trinta punhaladas no intendente geral. Era a única forma
de vingar o espírito do negro assassinado pelas forças policiais.

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Agora sim, era a hora do regresso.

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