Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
sans
Gayeté
(Montaigne, Des livres)
Ex Libris
José M i n d l i n
ALUIZIO AZEVEDO
O MULATO
IVt A . R A.ÍSI H A O -
1RS1
ALUIZIO AZEVEDO
O MULATO
«ARANHÃO-TYP. DO PAIZ.
18»!
tnett Mwtae
'#Mm icyxpgewao
iYwwVo Vw6«A».
I
5®)
IV
rv
VII
r
Eram cinco horas da tarde.
A festa de Maria Barbora continuara sempre muito
animada—havia uma boa disposição geral. Os homens
bebericaram durante o dia cálices de cognac, e sopra-
vam agora o fumo de seus charutos domingueiros,
eom um grande ar de pessoas de importância; as se-
nhoras melaram galantemente os beiços com licor
de rosa e ortelã pimenta.
Já se dansara muito. Brincou-se o padre cura, o
anel, o peixinho de muquem; afinal vieram todos para
fora, apreciar a tarde, assentados nos bancos defronte
da casa.
A sociedade fora augmentada pelos quatro cai-
xeiros de Manoel e por um sertanejo que a divertia.
Lamparinas sahira para ir perto a urna quinta, ma»
promettera não faltar á ladainha.
Tinha-se escondido o sol. Uma tarde formosa, com
o seu poente esfogueádo, rubrava no pateo as caras
suadas dos homens e os vestidos machucados das se-
is
196 .
nhoras, que arejavam-se debaixo das latadas de ma-
racujás e jasmins d'Italia.
As damas, commodamente assentadas, tinham re-
quebros convenientes, movimentos affectados de dig-
nidade—risos com a bocca fechada, olhares baixos,
o leque nos dentes e o dedo mindinho levantado com
galanteria.
Minava um appetite surdo e indiscreto pelo jantar.
A hora adiantava-se—alguns estômagos mais impa-
cientes resmungavam.
Contudo, todos, os olhares, todas as attenções, todos
os applausos convergiam apparentemente para o mes-
mo alvo. Este-alvo era o sertanejo, que, a. certa dis-
tancia, de pé, isolado, a cabeça erguida ,com desem-
baraço mal-educado, o chapéu de couro atirado para
o cangote e preso ao pescoço por uma correia, a ca-
misa de algodão cru por cima das calças arregaçadas,
o pé descalço, curto e espalmado, o peito côr dè cedro
a mostra, braço nu, vibrava esthusiasmado as cordas
metálicas de uma viola ordinária, acompanhando,
com um repinicado muito original, os versos que
improvisava ou trazia de cór.
—Bravo!
—Sim senhor!
Houve uma gargalhada geral.
—D. Annica; dê a flor!..,
Anna Rosa hesitava,
198
O caboclo me prendeu,
Meu amor !
Foi íão certa da razão,
Coração !
Que o cabo...• —
se chama?...
^-Quem. D. Amancia?! a senhora está fazendo
uma* embrulhada de nossa morte 1
—O tal ingiez !
—Que ingiez ? ! ninguém fallou nisso aqui!
214
1
ia
-9
5
X
Manoel adormeceu.
—Pois V. S. não sabe a historia de S, Braz?!.,.
Valha-o Deus, meu caro senhor, que podia cahir em
algum malfarrico, si não lhe fosse eu agora ensinar
a reza, que o nosso santo vigário nos ensinou nos
tempos máos. Olhe V- S.—quando topar uma cruz na
estrada, apeie e reze, e depois então siga o seu cami-
nho, dizendo sempre:
1
Somente cinco aunos depois da epoeha em que o romance
figura fatiar o personagem Raymundo, creou no Maranhão o bem
intencionado Sr. Roberto Moreira uma escola particular de pri-
meiras letras, á imitação das dos Estados-Unidos. Foi a primei-
ra que abolio o castigo corporal e merece por isso a attenção
dos homens modernos; ,pois, apezar de guerreados pelos muitos
vicios da péssima educação maranhense, sâo patentes e incon-
testáveis os bons resultados que aquelle reformador, em muito
pouco tempo, tem colhido dé seus esforços e fadigas.
3?
276
instrucção das classes baixas. Onde iria parar a meía-
phisica de nossa constituição,si não fosse a ignorân-
cia e o mystieismo do povo ? Creia, senhor Manoel,
que, no dia em que o povo conhecer seus direitos e
seu valor, baquea com todas as nossos velhas institui-
ções catholicas e absurdas, mas por emquanto...
Raymundo interrompeu-se para chamar novamente
a attenção de Manoel sobre o guia que continuava a
cantar na frente—Pergunte aquelle homem quaes são
seus deveres civis e sociaes, quaes são seus direitos
e suas obrigações—elle não lhe saberá responder,
porque o vigário cá da fréguezia não ensina dessas
cousas—é um ignorante em toda a vergonhosa, ex-
tensão da palavra, é um movimento passivo, um ins-
trumento capaz de sé deixar aviltar e lezar, como
capaz de tudo. No entanto, si amauhã este animal,
levado unicamente pela bestialidade, commetter um
crime, a justiça o agarra e castiga, como si o tives-
sem preparado para respeitar as leis do paiz! diga-
me lá—isto é ou não é uma injustiça? E sabe por
qüe o governo seria muito capaz de mandar enforcar
aquelle homem si aquelle homem fosse um escravo
e matasse o senhor ? E' porque o governo é meta-
phisico, porque süppõe-se inspirado por Deus e está
muito convencido <jue todo o homem tem nâ fibrina
um bocadinho de azeite divino, bastante para guiar
e governar suas acções; é porque o governo acredita
no diabo, na infalibilidade do Papa e na influencia mys«
ttriosa dos planetasí sobre a política do paiz. E não me
277
Por S. Braz I
, Por S. Jesus !
Passo aqui
Sem levar cruz !
—Juro! N
Depois de algum silencio, que Valeu uma eternida-
de para Raymundo, Manoel disse resolutamente-E'
porque o senhor é mulato !
v —Mulato! eu ? ! . . .
E Raymundo tornou-se livido.
—E' verdade, infelizmente! disse Manuel em ar
dè confidencia—Vê o senhor ?!—não é por mim !
mas é pela sociedade! é pelos descendentes !• é por
tudo mais!—A família de minha mulher é muito
escrupulosa a esse respeito, e como ella é todo o
Maranhão! Concordo que seja uma asneira! concor-
do que seja umprejuiso tolo! mas o senhor não ima-
gina a prevenção que ha por cá com este negocio de
e ô r ! - nunca me perdoariam um tal casamento. Além
disso para realizal-o teria de quebrar a promessa
que fiz á minha sogra de nunca casar Annica com o
senhor! que aliás é muito digno, mas que todos no
Maranhão sabem que foi forro á p i a ! . . .
—Eu ? ! ora essa ! . . .
.— Sjm, meu estimavel sobrinho—o senhor"! peza-
me dizel-o e não o faria si não fosse obrigado, mas
o senhor é filho de uma escrava e nasceu também
escravo !
Raymundo abaixou a cabeça e reprimio os soluços.
E ali, á sombra das arvores seculares, por entre
cuja folhagem filtravam-se alguns raios da lua, ia
Manoel soltando, como machadadas, os episódios da
vida de Raymundo—rápidos e esmagadores^
323
Chegaram a casa.
Raymundo ardia de impaciência por se metter em
seu quarto, fechar-se por dentro, ficar inteiramente
só, e conversar a'vontade com a consciência—dizer-
lhe impropérios.' lançarjlhe accusações e , . . chorar!
Logo que chegou, entrou no quarto, sem compri-
mentar ninguém e fechou-se por dentro com um ruí-
do grosseiro de fechadura, que poucas vezes funccio-
na. Parou junto a mesa, no escuro, acendeu um
phosphoro, apagou-se, segundo, terceiro, o quarto
ardeu bem, porém Raymundo ficou a olhar abstrata-
mente pára a flama azul, dístrahido, torcendo entre
os dedos, automaticamente, a madeira, qué ardeu até
chamuscar-lhe as unhas; deixou cahir o resto do phos-
327
—Sei cá!
Eo conego empallideceu—estava a prumo, defronte
de Raymundo, tinha os braços crusados—O que quer
dizer isto ?!
—Querdizer que descobri afinal o assassino de
meu pae, e posso vingar-me como entender !
E Raymundo, setopre agitado, tinha olhares de
ameaça.
—E' uma violência?! preguntou o padre com a
voz suffocada de commoçãò; Raymundo respondeu
com um gesto grosseiro.
—Muito bem! senhor doutor Raymundo, muito
bem! Andou maravilhosamente! E' desta forma que
me pede noticias de seu pae! é este ó modo porque
ágradece-me a amisade, que dediquei n'outro tempo
ao pobre homem!—fui o seu ünicb amigo, o seu am-
paro, a sua derradeira consolação! E é um filho desse
santo homem que agora, depois , de vinte annos,
ameaça um pobre velho, que foi sempre respeitado,
por todos! Parece que bó esperavam que me embran-
. qüecessem de todo os cabellos para insultarem esta
batina, que foi sempre recebida com o chapéu na
mão! Ah! muito bem! muito bem! Era preciso vi-
ver vinte annos para ver isto! muito bem! Quer vin-
gar-se !... .Pois vingue-se! Quem o impede ?! Sou eu
o "criminoso ?! Pois venha o carrasco—não me defen-
derei, mesmo porque já me faltam as forças para
issof... Então.?! o que faz que não se mexe.'
De facto Raymnndo estava immovel—sentia-se en^
342
«Illustre canalha.»
QS>
XIV
•^»-*^<8>
XV
tTr(A Barbora?
—Sim, senhor.
—E então ?
—E' que a pequena, depois de pedir muito a avó
qne se compadecesse delia e obtivesse do pae liber-
dade .para se casar com ó cabra,, abrio a chorar e
lamentar-se como uma douda—que era muito desgra-
çada!- - -que ninguém em casa a estimava, quetodos
só queriam contrarial-a! mas qne ella havia de mos-
trar!., .porque faria isto ! e porque faria aquillo K . .
—Mas o que dizia ella que fazia? Ora que,diabo
tle maneira de contar as pousas,!.,.
—Tolices !;• -. senhor conego—-tolices !—Que ,se>;
majava! ou que fugia! ou que se meüia á freira, e
porque o casamento p'ra cá(! e porque o casamento
p'ra lá! emfim, queria dizer qoe a mulher nunca se
devia casar obrigada; e afinal atirou-se aos pés da avó,
soluçando e dizendo que, si não consentissem no seu,
casamento com Raymundo, ella seria muito infeliz
e não respondia por s i ! . . .
^trEntão pelo que vejo a velha já sabe que o ^ayr;
mundo ficou? , .» «
—Parece!—a rapariga pelo menos dizia que a
avó havia de amargar muitos desgostos e muitas
aquellas se não consentisse no casamento !,..
- r E o q u e fez ella?;!
—Quem, a pequena ?:
V^NãO:! abelha»
—A velha enfezou*se e pol-a do quarto p'ra fora,
i 62
412
—Pelo Raymundo. »
Anna Rosa respondeu com um gesto afirmativo
de cabeça.
—E quaes são as suas intenções a esse respeito?
—Casar com elle...
—E não sabe que com isso offende a Deus ptir
vários modos?!—offende! porque desobedece a seus
pães; offende!! porque agasalha no seio uma paixão
reprovada por toda a sociedade e principalmente por
sua família; e offende!!! porque com uma tal união
condemna seus filhos a um futuro de desprezo e
misérias!... Anna Rosa—esse Raymundo tem a
alma tão negra como o sangue !—alem de mulato, è
um homem máo, sem religião, sem temor de Deus!—
é um pedreiro livre! é um alheu! Desgraçada da
mulher que se maridar còm semelhante monstro!—o
inferno está, ahi! está cheio dessas infelizes ! porque
ellaSj coitadas! não tiveram um amigo, que as acon-
selhasse, como te estou eu aconselhando!. . Tens o
inferno a teus pés, tniaha afilhada -mede o preci-
pício! Á mim compete, como pastor e padrinho, de-
fender-te delle—quero abrir-te os olhos!
E, como Anna mostrasse um certo ar de duvida, o
conego abaixou a cabeça e disse mysteriosamente—
Sei de cousas horrorosas praticadas por aquelle dam-
nado,!—não é somente o facto da côr que levanta a
opposição de teus maiores!
Anna Rosa fez uma contracção de surpreza.
—Saberás por ventura o que precedeu o nasci-
423
v
XVI
«Illm. Sr.
1. Você apenas deve utilizar esta obra para fins não comerciais.
Os livros, textos e imagens que publicamos na Brasiliana Digital são
todos de domínio público, no entanto, é proibido o uso comercial
das nossas imagens.