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Às Portas de Numância

África Ruh
Sinopse
154 a.C.

De Óstia em Roma para Numância na Celtibéria


De um mundo civilizado para um porão de um navio e
desse para a Hispânia controlada pelos mais ferozes e
temidos guerreiros.
Cassia Minor vê-se em território selvagem forçada a
casar com Leukón de Sekaisa se quiser salvar a sua vida.
Inicialmente decidida a fugir de Numância, assim que
tiver oportunidade, traindo quem a protegeu, Cassia dá por si
dividida entre a fidelidade a Roma e os sentimentos que
começam a desabrochar pelo bárbaro que a defendeu do aço
e do fogo.
Como conseguirá lidar com a guerra iminente que opõe
o seu pai a seu marido, a sua educação aos seus sentimentos
e que ameaça destruir tudo aquilo que aprendeu a amar?
Índice
Dedicatória

Roma, 150 a.C.


Prólogo
Porto da Óstia, 154 a.C.
I. Más notícias
II. Laços de sangue
III. Um mau augúrio
IV. Para o selvagem

Ampúrias, 154 a.C.


V. Um novo aliado

Hispânia Citerior, 154 a.C.


VI. Bárbaros!

Hispânia Ulterior, 154 a.C.


VII. A muralha da discórdia

Numância, 154 a.C.


VIII. A cidade do vento
IX. A dança do fogo
X. Lug
XI. A proposta

Hispânia Ulterior, 154 a. C.


XII. Escaramuça
XIII. A canção do bosque

Numância, 154 a.C.


XIV. Duelo de titãs
XV. A honra de um Belo
XVI. Romana
XVII. Um golpe certeiro
XVIII. Entre Epona e Lug
XIX. Lua de mel

Numância, 153 a.C.


XX. O Solstício de Inverno
XXI. Traição

Hispânia Ulterior, 153 a.C.


XXII. Encruzilhada

Numância, 153 a.C.


XXIII. Amigos dos romanos
XXIV. À maneira dos celtiberos
XXV. Coração de ferro
XXVI. O pranto do carnyx
XXVII. Penélope
XXVIII. O caminho dos heróis

Hispânia Ulterior, 153 a.C.


XXIX. Às portas de Numância

Roma, 150 a.C.


Epílogo
Para Nacho, com amor, por ter-me levado às portas de
Numância.
Para Marta, amiga e companheira de aventuras,
por ser a melhor equipe com a qual poderia contar.
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Roma, 150 a.C.

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Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Prólogo

No ano 154 a.C., o Senado romano ordenou o envio de


30.000 legionários para a Hispânia. Dirigidos pelo cônsul
Nobilior, esses homens iam levar a cabo uma importante
missão: derrotar os ferozes celtiberos, um povo bárbaro que
se atreveu a desafiar o poder de Roma.
Os celtiberos, entrincheirados em Numância1,
preparavam-se para o ataque. Deles se dizia que eram os
guerreiros mais violentos do Ocidente e que tinham os deuses
do seu lado. Deuses antigos, ocultos, que viviam nos bosques
e nas montanhas, nas cascatas e nos arroios; deuses
desconhecidos… e temidos por todo o mundo civilizado.
A guerra foi dura.
E, como todas as guerras, foi cruel.
Mas eu, Cassia Minor, não devia tê-la sofrido. Eu era
apenas uma moça romana que vivia no buliçoso porto de
Óstia2. Filha do famoso centurião Cassio Aquila, herói da
guerra contra Cartago, não deveria saber nada sobre os
celtiberos… salvo pelas notícias que o meu pai nos enviava da
frente através de um mercador grego chamado Alexis.

1 Antiga cidade da Península Ibérica, na atual Espanha, situada nas margens do Rio
Douro.
2 Antiga cidade portuária situada a 30 km de Roma.

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Contudo, os deuses quiseram que eu vivesse a guerra da


Hispânia em minhas próprias carnes.
Ou talvez tenha sido o destino. Não sei.
De qualquer maneira, jamais esqueci aquela guerra.
Nem os homens e mulheres que participaram nela.
Um deles foi e continua a ser o amor da minha vida.
Embora hoje já não caminhe sobre a terra.
Esta é minha história. Esta é a sua história.
E talvez seja a história de muitas outras guerras.

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Porto de Óstia, 154 a.C.

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I.
Más notícias

Não pretendia espiar, de maneira nenhuma. Mas ao


passar pelo átrio escutei o meu nome e não pude evitar deter-
me.
― Como vou dizer isso a Cassia?
Era a voz de minha mãe. Estava falando com o capitão
Alexis, que tinha vindo visitar-nos aproveitando a sua tarde
livre. Eu os tinha deixado a sós por educação.
― Com sensatez, querida ― respondeu o capitão ―. Ela
já sabe que o seu pai é centurião, e um centurião não pode
abandonar as suas tropas. Não agora que se trava outra
guerra na Hispânia.
Aquelas palavras aceleraram o meu coração.
Outra guerra?
Papai ia travar outra guerra?
Avancei com cautela. O átrio estava envolto nas sombras
da tarde, mas o sol poente iluminava as águas do impluvium3,
tingindo-as de ouro. Coloquei-me junto ao nosso pequeno

3Espécie de tanque retangular com fundo plano usado para recolher água da chuva
que se encontrava no vestíbulo das casas dos antigos gregos, etruscos e romanos.

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altar doméstico, cujo fogo ardia dia e noite, e tentei ver a


expressão de minha mãe através da cortina de fumaça.
Ela estava de pé, sustentando uma taça de vinho que
mal tinha provado. O capitão Alexis, por seu lado, reclinou-se
em um divã e mordiscava um figo com ar pensativo.
― Ele disse que estaria nas bodas de Cassia ― suspirou
a minha mãe ―. Assegurou-me que, por essa altura, os
lusitanos já estariam sob controle.
― E estão ― disse o capitão ―. Esse Viriato deu muitos
problemas, mas os seus não podem fazer frente às legiões
romanas.
― E então?
― Querida, a nova guerra não é contra os lusitanos, mas
contra os celtiberos.
Minha mãe afogou uma exclamação de assombro. Eu
também o fiz.
Meu pai nos tinha falado dos celtiberos: eram um
conjunto de tribos selvagens que viviam na Hispânia
Ulterior4, a zona mais agreste da Península Ibérica. Eram tão
ferozes que, a seu lado, os outros povos hispânicos pareciam
gente civilizada.
Alexis confirmou os meus piores receios:
― Se os rumores estiverem corretos, Roma nunca
enfrentou um inimigo tão temível.
― Mas por que agora? ― Gemeu a minha mãe ―. Cassio
nos disse que os celtiberos tinham feito um pacto com Roma!

4 Província romana fundada em 197 a.C., situada a sudeste da Península Ibérica.

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― E fizeram ― assentiu o capitão ―. O cônsul Graco os


convenceu. Mas parece que houve problemas com uma
tribo… os Belos, se não me engano. Pelo visto, queriam
murar a sua cidade, Segeda, e isso ia contra o acordo. Um de
seus líderes foi convidado a explicar-se no Senado, mas saiu
de lá aos gritos…
Um acesso de tosse interrompeu o seu discurso. Teve de
tomar um sorvo de vinho antes de concluir:
― Um desastre, vá. Não se pode dialogar com aquela
gente.
― E o que vai acontecer agora? ― inquiriu a minha mãe.
Eu me estava perguntando o mesmo. Encolhida no
átrio, com os olhos fixos no altar, rezava aos nossos espíritos
protetores, os lares, para que trouxessem o meu pai de volta
o mais cedo possível.
Nunca tinha estado na Hispânia, mas tinha escutado
todo o tipo de histórias no forum5. E nenhuma me agradava.
Queria que papai voltasse. Minhas bodas era o de
menos: queria tê-lo em casa, a salvo.
O capitão Alexis suspirou.
― De momento, o Senado enviou o cônsul Nobilior com
30.000 homens para que impeçam a construção dessa
maldita muralha. Além disso, pediu aos mercados que levem
fornecimentos para o exército. O meu navio parte amanhã
bem cedo para Ampúrias por esse motivo.
― Poderá levar uma mensagem a meu marido?

5 O Forum Romanum, localizado no centro de Roma, era um espaço aberto retangular,


circundado pelas várias construções públicas de grande importância cultural. O
principal centro comercial da Roma Imperial, este espaço era popularmente conhecido
como Fórum Magno (Forum Magnum) ou, simplesmente, Fórum.

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― Temo que não será possível, querida. Seu marido está


na Hispânia Ulterior, e eu não penso sair da Citerior6. De
fato, pretendo não pôr um pé fora de Ampúrias. Logo que
tenha descarregado as mercadorias no porto, voltarei para
Óstia e esquecer-me-ei dessas horríveis terras ocidentais. Não
dão mais que problemas.
Minha mãe ficou calada. Eu imaginava que tinha
sentimentos contraditórios.
Alexis, também.
― Lamento, de verdade ― acrescentou ele em voz baixa
―, mas eu não sou um guerreiro. Não quero que nenhum
selvagem cabeludo me persiga até meu navio, compreende?
― Compreendo ― murmurou minha mãe.
Sim. Eu também compreendia.
O sol já se tinha posto. A fumaça do altar subia em
volutas para um céu púrpura.
“Boa sorte, papai”, desejei-lhe mentalmente.
O capitão Alexis se levantou. Não era um homem alto,
mas a minha mãe lhe chegava apenas ao queixo. Eu tinha
herdado dela a baixa estatura e a cara cheia de sardas; de
meu pai, por outro lado, tinha recebido o cabelo liso e os
olhos marrons.
O capitão estava acostumado a dizer que papai e eu não
parecíamos romanos. Mamãe, por sua vez, era a viva imagem
da deusa Juno: pequena, roliça, com os cachos castanhos e a
boca pequena e amável.

6 Província romana fundada em 197 a.C.. Situava-se a nordeste da Península Ibérica.

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Perguntei-me o que pensaria ela da guerra contra os


celtiberos… e a perspectiva de não voltar a ver seu marido.
Obriguei-me a não pensar nisso.
― Se servir de consolo, querida ― Alexis estava dizendo a
minha mãe ―, eu sim estarei nas bodas de Cassia. A viagem
até à Hispânia apenas demora alguns dias; espero estar de
volta brevemente.
― Obrigada, capitão. Isso me alivia.
Escutei a tosse de Alexis perigosamente perto do átrio e
dei um passo atrás.
― A propósito…, como está a escrava de sua filha,
Melpómene?
Detive-me em seco. Melpómene era grega, como Alexis, e
ultimamente os dois pareciam ter algo entre mãos.
― Doente ― respondeu a minha mãe ―. Aquelas
malditas febres…
― Sim, nos portos estão caindo como moscas ―
comentou Alexis. Minha mãe deve ter posto má cara, porque
se apressou a retificar ―. Mas a escrava dela é jovem e está
bem alimentada. Envie-lhe lembranças de minha parte. Já
sabe…, somos conterrâneos.
― Conterrâneos ― repetiu minha mãe com tom suspicaz
―. Claro.
Quando vi que o capitão colocava a capa azul por cima
do ombro, decidi que tinha chegado o momento de partir. Se
me surpreendessem farejando, meter-me-ia em uma enorme
confusão.
Mas não podia esquecer o que tinha escutado.

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Meu pai não voltaria tão cedo da Hispânia. Antes teria


de fazer frente aos guerreiros mais sanguinários do Ocidente.
Deuses! Era terrível.
Mas não podia fazer nada a esse respeito. Apenas ser
uma boa filha… e uma boa esposa, chegado o momento. E
aguardar a sua volta sem perder a esperança.
Com esse firme propósito, fui ao encontro de
Melpómene.

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II.
Laços de sangue

Melpómene estava tossindo quando entrei no quarto.


― Ama! ― exclamou, apressada ―. Sinto muito…
Seu peito se agitou quando reprimiu um novo ataque de
tosse.
Eu me ajoelhei a seu lado e lhe toquei na testa. Estava
quente e úmida.
― Não peça perdão, sua tonta ― repreendi-a ―. Como se
sente?
― Bem…
― Não sabe mentir ― suspirei.
Havia um cântaro de água junto ao leito, mas estava
vazio.
― Espere, vou enchê-lo.
― Não é necessário…
Ignorei-a. Melpómene passava a vida a desculpar-se por
tudo, algo que, por um lado, era compreensível.
Meu pai a tinha comprado em Ampúrias durante a sua
primeira viagem à Hispânia. Naquela época, eu tinha três
anos e Melpómene, oito; papai considerou que uma escrava

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Às Portas de Numancia – Africa Ruh

grega não só me faria companhia, mas também poder-me-ia


ensinar a sua língua e os seus costumes.
Melpómene e eu tínhamos crescido juntas. Fomos ama e
escrava…, e também melhores amigas. Por vezes, eu esquecia
qual era o seu lugar dentro da família. Para mim, Melpómene
era parte da minha vida.
― Logo te trarei leite com mel. Espero que o bebas todo.
― É muito boa comigo, ama.
― Não o faço por você, mas sim por mim ― menti ―.
Quero que esteja totalmente recuperada no dia de minhas
bodas.
― Viu Máximo Escauro ultimamente?
― Não, na verdade é que não.
Senti um pingo de culpa ao dizer aquilo. Máximo
Escauro era jovem, bonito e muito popular; meu matrimônio
com ele ia permitir uma excelente posição social à minha
família, e os meus pais não tinham deixado de recordar-me
isso desde que nos comprometemos. Nós, os Cassios, não
éramos patrícios7, mas plebeus, mas as façanhas bélicas de
meu pai nos tinham permitido alcançar um status invejável
dentro da aristocracia romana. Minhas bodas com Máximo
era o culminar desse percurso, convertendo-nos em uma
autêntica linhagem patrícia… e cumprindo o sonho de papai
e mamãe.
Essa ideia me punha um pouco nervosa. Máximo era
um bom partido e eu gostava dele, mas mal nos
conhecíamos. Tínhamos passeado juntos, tínhamo-nos

7 Nome dado aos cidadão aristocratas em Roma.

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beijado às escondidas e até tínhamos feito… Bom, aquelas


coisas que se supõe que não se devem fazer antes das bodas.
Mas eu tomava cuidado: todos os dias bebia uma infusão de
ervas que me impedia de ficar grávida até depois do banquete
nupcial, e isso tranquilizava a minha consciência.
Apesar de tudo, isso me permitiu aproximar-me de
Máximo. Embora ainda não tivéssemos muita confiança,
gostávamos um do outro fisicamente. Pelo menos, podia ter
essa certeza.
― Estou desejando que cheguem as bodas ― suspirou
Melpómene ―. E de vê-la caminhar com um véu branco e
uma coroa de flores na mão…
― Pois já sabe o que tem a fazer: recuperar.
Afastei-lhe os cachos úmidos da cara e lhe dei de beber.
Então, recordei algo.
― Sabe, o capitão Alexis esteve aqui… e falou em você.
Os olhos azuis de Melpómene se abriram de par em par.
― Deu-lhe alguma mensagem para mim, ama?
Eu mordi o lábio inferior. Não, não me tinha dado nada:
afinal, eu o estava espiando.
― Nã…, não. Apenas perguntou como estava.
― Oh.
De repente, a minha escrava parecia abatida.
― Isto… Melpómene… ― pigarreei ―. O capitão e você
têm algo assim como…, já sabe, um romance?
Melpómene me olhou com cara de assombro. Depois de
um momento, deixou escapar uma risada nervosa.

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― Deuses, não! Não é o que você pensa, ama. É


apenas…
― Sim?
― O capitão encontrou… informação.
― Informação?
― Sobre meu pai.
― Oh.
Esse tema era delicado.
Meu pai tinha comprado Melpómene sem saber que o
seu pai também estava sendo vendido em Ampúrias.
Inteirámo-nos disso depois, quando Melpómene já vivia em
Óstia conosco. Se tivesse sabido antes, o meu pai teria
adquirido o dela; nenhum homem decente seria capaz de
separar uma família, e papai era o homem mais decente que
eu tinha conhecido. Mas, quando quis voltar a Ampúrias, o
pai de Melpómene já tinha sido vendido.
― Ao que parece, comprou-o um romano que vive em
Tarraco8 ― murmurou Melpómene ―. O capitão Alexis o
conheceu por acaso quando estava vendendo garum a seu
dono. Percebeu que era grego e falaram, uma coisa levou à
outra… e o capitão me mencionou.
Os olhos de minha escrava estavam úmidos. Os meus,
também.
― Oh, Melpómene, isso é maravilhoso! Pelo menos,
agora sabe onde está.
― Eu… eu lhe escrevi uma carta ― suspirou ela,
assinalando algo que havia a seus pés.

8 Antiga cidade romana, atual Tarragona.

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Então reparei: junto ao leito havia um cálamo9, um


tinteiro e um rolo de papiro primorosamente atados com um
cordel.
― Por Júpiter, mulher! Por que não me disse antes?
Teria dado a sua carta a Alexis!
― Eu não sabia que ele estava aqui, ama.
― É uma pena…
Interrompi-me. Melpómene tinha fechado os olhos e
chorava em silêncio.
― Melpómene! ― alarmei-me.
― Não… Não se preocupe, ama ― balbuciou ela, secando
a cara com impaciência ―. É a febre, que me põe sensível. Vai
passar, prometo.
Tentei pôr-me em seu lugar. Eu temia pela vida de meu
pai, que ia lutar contra os celtiberos na Hispânia; mas o meu
pai era um homem livre, que poderia voltar para casa quando
a guerra terminasse. Um homem com esposa e filha, e com
uma excelente reputação.
O pai de Melpómene, por sua vez, pertencia a um
tarraconense. Provavelmente, nunca voltaria a cruzar o
Mediterrâneo. Nem veria a sua filha crescer, nem poderia
voltar a abraçá-la… Nunca, jamais.
― Dê-me a sua carta, Melpómene ― disse com decisão.
Melpómene abriu os olhos.
― Como diz, ama?
― Dê-me a sua carta ― repeti ―. Vou levá-la a Alexis.

9 Instrumento para a escrita, feito de um pedaço de cana ou junco, talhado


obliquamente ou afinado na extremidade, utilizado antigamente para escrever em
tábuas de argila, papiros e pergaminhos.

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― É muito amável, ama, mas é de noite. Além disso, não


sabe onde está o capitão…
― Deixá-la-ei no “Quimera”. Ele a encontrará pela
manhã e estou segura de que não se importará de levá-la ao
seu destino.
O “Quimera” era o navio de Alexis. Supus que já estaria
atracado no porto, com a mercadoria cuidadosamente
armazenada: o capitão nunca deixava nada ao azar.
― Mas o que dirá a sua mãe? ― murmurou Melpómene
―. Não vai querer que saia sozinha a estas horas e com razão!
― Irei e voltarei em seguida. Não tem por que vir a saber.
― Mas…
Sem dar-lhe tempo para protestar, apoderei-me do rolo
de papiro.
― Não sou nenhuma menina, Melpómene ― disse com
calma ―. Não me delate, está bem? Antes que dê conta,
estarei de volta sem a sua carta e com uma boa tigela de leite
quente com mel.
Dei-lhe um beijo na testa e me levantei. Ela me olhava
com uma mescla de gratidão e exasperação.
― Tome cuidado, ama.
― Terei.
Saí sem fazer ruído. Nem sequer agarrei o meu xale
grande: minha túnica era fina, mas as noites em Óstia eram
mornas. E eu não ia estar fora por muito tempo.
Embora não houvesse lua, no porto ardiam mais de cem
fogueiras. Esperei que nenhuma delas estivesse muito perto
do “Quimera”.

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Decidida, pus-me a andar pelas ruas de pedra de Óstia.


E a noite me engoliu.

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III.
Um mau augúrio

O “Quimera” era um navio mercante de tamanho médio,


com um casco que rangia como os ossos de um veterano de
guerra e velas branqueadas pelo sal. Outorgava-lhe o seu
nome a figura de proa, uma tosca escultura de madeira com
cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente que
parecia vigiar o mar da proa.
Detive-me um instante no cais. Não havia ninguém
perto do navio; a tripulação não embarcaria até ao
amanhecer.
Contudo, a passarela estava preparada.
Cruzei-a rapidamente. O navio estava escuro, mas eu o
conhecia bem: quando era pequena, Alexis me deixava
brincar nele, sempre e quando estivesse atracado no porto,
claro. Os marinheiros acreditavam que dava má sorte levar
uma mulher a bordo.
Tolices.
De toda maneira, seria melhor que não me vissem. Não
há marinheiros tão supersticiosos como os gregos em todo o
Mediterrâneo, e eu não queria trazer problemas ao capitão

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Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Alexis. Deixaria a carta de Melpómene em seu camarote e


partiria o mais rapidamente possível; o resto ficava em suas
mãos.
Eu tinha escutado como o capitão tinha dito à minha
mãe que não pretendia sair de Ampúrias. Mas Ampúrias não
ficava longe de Tarraco, e eu sabia que Alexis era um homem
compassivo. Talvez não arriscasse a pele indo entregar a
carta pessoalmente, mas não se importaria de subornar
algum marinheiro ocioso para que o fizesse por ele. O capitão
era um homem pragmático: se com dinheiro podia evitar
expor-se ao perigo e, ao mesmo tempo, estar em paz com sua
consciência, gastá-lo-ia sem hesitar.
Confiando nisso, percorri o convés e me meti no
camarote de Alexis.
Estava muito escuro. Devia ter levado comigo um
candeeiro de azeite, mas já era tarde para pensar nisso. Às
apalpadelas, dei com a mesa do capitão e coloquei o cilindro
de papiro em um lugar que, à plena luz do dia, devia ser
visível (ou nisso confiava eu).
― Bem, isto já está ― disse em voz alta.
Pela primeira vez, dei-me conta de que estava há uns
segundos a conter a respiração.
― Sinto não ter podido conhecê-lo ― murmurei,
dirigindo-me ao pai de Melpómene ―. Sinto muito não poder
falar com você. Mas espero que os deuses e o capitão Alexis
lhe façam chegar as palavras de sua filha.
Na verdade, confiava mais na intervenção do capitão,
mas não me atrevia a ofender os deuses. A minha mãe era

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muito devota dos lares e o meu pai, de Marte, o deus da


guerra. Em Roma havia dois tipos de deuses: os privados, os
deuses familiares aos que se consagravam os altares
domésticos; e os públicos, quer dizer, Júpiter, Juno, Minerva
e todos os outros.
Eu, pessoalmente, nunca sabia muito bem a que deuses
me devia dirigir. Tinha a impressão de que nenhum deles me
prestava muita atenção.
Saí tateando do camarote de Alexis e pus um pé no
convés.
E, nesse instante, ouvi algo que me deixou gelada.
Passos. Passos na passarela.
“Rápido, Cassia, não fique aí parada!”.
O alçapão do porão estava bem diante de mim. Sem
pensar no que fazia, agachei-me, abri-o de um puxão e saltei
para o interior.
Caí de bruços contra o chão e gemi de dor. Felizmente, o
alçapão se fechou atrás de mim: agora apenas podia ver
alguns retalhos de luz lunar penetrando através das frestas
da madeira.
Voltei a ouvir passos. Agora soavam em cima de minha
cabeça.
Engatinhei na escuridão até ficar atrás do que parecia
ser uma pesada arca.
Esperei.
Os passos continuavam a ouvir-se. A quem
pertenceriam? Ao capitão Alexis, que estava a comprovar que

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Às Portas de Numancia – Africa Ruh

tudo estava em ordem? A algum de seus homens, que tinha


decidido dar uma olhadela?
E se fosse um ladrão?
“Bom, Cassia, parece que se colocou em uma confusão”,
disse a mim mesma.
Respirei fundo. Quem quer que fosse partiria. Antes ou
depois.
Embora tentasse manter a cabeça fria, o certo é que
tinha um mau pressentimento. Um mau augúrio, como os
romanos costumavam dizer.
Mas não podia deixar-me levar pelo pânico. Apenas
tinha de esperar um pouco. Essa pessoa iria embora em
algum momento, não?
Sim. Com certeza que sim.
Resignada, apoiei as costas na parede e me obriguei a
manter os olhos abertos.

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IV.
Para o selvagem

Acordei quando o navio soçobrou.


O movimento me empurrou contra o casco.
Desorientada, levei as mãos à cabeça e pisquei com força.
Continuava no porão do “Quimera”, encurralada atrás
da arca. Mas através das tábuas do convés se filtravam
fachos de luz avermelhada.
Levantei-me bruscamente. O navio zarpava ao
amanhecer.
Melhor dizendo: já tinha zarpado.
― Não, não, não… ― murmurei ―. Isto não pode estar a
acontecer…
Mas estava.
Nesse momento, como se os deuses confabulassem
contra mim, ouvi os gritos de Alexis sobre a minha cabeça:
― Calias, pirralho maldito! Quer baixar ao porão e trazer
o peixe de uma vez? Ou está esperando que se converta em
garum por ele próprio?
Em outras circunstâncias, teria rido da piada de Alexis:
o garum era um condimento fabricado à base de pescado

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Às Portas de Numancia – Africa Ruh

putrefato, muito apreciado entre os patrícios romanos e que


me dava vontade de vomitar. Mas naquele momento só me
preocupava uma coisa: alguém ia descer ao porão do
“Quimera”. E ia descobrir-me.
Não me deu tempo para esconder-me atrás da arca. Nem
sequer pude agachar-me.
Um menino apareceu em frente a mim. Aparentava uns
dez anos, e tinha a cara ossuda e os olhos afundados. Um
arbusto de cachos castanhos coroava a sua pequena cabeça.
Quando me viu, ficou paralisado.
― Apresse-se, Calias! ― Continua a gritar o capitão lá
em cima.
Mas o menino nem sequer parecia escutá-lo. Seus olhos
estavam cravados em mim.
Compreendi que, se não reagisse, estava perdida.
― Olá, Calias ― sussurrei com o meu melhor sotaque
grego ―. Chamo-me Cassia e estou aqui por engano. Seria
amável ao ponto de não me delatar?
Calias retrocedeu um passo.
― É… uma sereia? ― balbuciou.
Eu sorri com nervosismo.
― Não, acredito que não.
― De certeza?
― Juro. ― Voltei a engolir em seco ―. Temo que seja
apenas uma garota que cometeu um erro. E necessito de sua
ajuda. Se me encontrarem aqui…
― Calias! ― bramou Alexis do convés.
― Já vou! ― respondeu o moço.

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Mas não se moveu.


― Por favor, ― supliquei ― diga ao capitão Alexis que
estou aqui. Apenas a ele, a ninguém mais.
― Calias!
― Por favor…
― Sim ― gaguejou ele ―. Sim, eu faço isso. Senhora.
Partiu sem o peixe, mas eu estava demasiado assustada
para recordar-lhe. Enquanto aguardava, encolhi-me em um
canto do porão e tentei pôr em ordem os meus pensamentos.
Só havia uma explicação para o que estava a acontecer:
tinha adormecido na noite anterior. Tinha adormecido e tinha
acordado só quando o “Quimera” já navegava rumo à
Hispânia.
Rumo à Hispânia!
Pela primeira vez, tomei consciência da gravidade de
meus problemas.
Não só estava a bordo do “Quimera”, um navio cheio de
marinheiros hostis, mas aquele navio me conduzia à terra
dos hispânicos. Ao canto mais remoto do Ocidente.
E eu não podia fazer nada para evitá-lo.
Estava tão absorta pensando nisso que não ouvi como
se abria o alçapão e alguém descia ao porão por uma escada
de corda…
― Acalme-se, Cassia ― disse em voz alta ―. Certamente
haverá uma solução.
― Não, não há.
A voz de Alexis me sobressaltou. Quando olhei para o
capitão, dei-me conta de que falava a sério. E estava furioso.

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Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Cassia Minor, você sempre foi uma temerária, mas


isto é o cúmulo! ― Vaiou, agarrando-me pelo braço sem a
menor delicadeza ―. No que estava pensando, por todos os
infernos?
Calias estava atrás dele, mas eu mal lhe prestei atenção.
― Foi um acidente!
― Vi a carta de Melpómene! Suponho que você a deixou
em meu camarote, ah? E depois decidiu viajar clandestina em
meu porão, sabe-se lá com que intenção. Acaso pensou que
poderia visitar o seu pai na Hispânia? Ah, maldita
inconsciente! Se os meus homens a encontrarem aqui, a
jogarão à água… e eu não o lamentarei.
― Sinto muito, Alexis! ― gemi ―. De verdade, não
pretendia fazê-lo! É certo que penetrei no navio, mas…
― Desculpas, desculpas e mais desculpas!
Um ataque de tosse interrompeu as palavras do capitão.
Aproveitei o momento para justificar-me:
― Escute-me, por favor! É certo que deixei a carta de
Melpómene, mas a minha intenção era partir imediatamente,
eu juro!
O homem secou o suor da testa e me olhou com
desconfiança.
― E por que não o fez?
― Porque alguém chegou ― admiti ― e não queria que
me descobrisse. Não queria causar-lhe problemas, de
verdade! Escondi-me no porão e bem… adormeci.

31
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Por um momento, pensei que o capitão Alexis fosse


bater-me. Talvez merecesse isso, depois de tudo. Mas,
passado um minuto, o capitão relaxou.
― Bem. Bem. Não nego que admiro mais a ousadia que a
estupidez, mas a estupidez é mais fácil de perdoar, neste
caso. Além disso, o dano já está feito: não posso voltar para
porto de Óstia apenas por você, mas tampouco posso deixar
que a afoguem, assim agora tenho de decidir o que vamos
fazer.
― Obrigada.
― Bem me pode agradecer ― Ele bufou —. E os seus
pais me devem uma, moça!
Suspirei.
― Eu estou em dívida para com você, certamente ―
admiti.
Isso pareceu aplacar Alexis.
― Calias, venha aqui.
O menino deu um passo em frente. Estava descalço e
tinha a roupa feita em farrapos; por alguma razão, isso me
deu muita pena.
― Você ocupar-se-á de nossa ah…, convidada ― Alexis
ordenou ―. Trar-lhe-á comida e água e um recipiente para
que faça as suas necessidades.
A só menção daquilo me envergonhou, mas compreendi
que não estava em condições de melindrar-me.
― Também assegurar-se-á que ninguém mais desça ao
porão ― prosseguiu o capitão ―. Se Cassia chegar a Ampúrias
sã e salva, lhe recompensarei.

32
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Sim, meu capitão ― disse Calias ―. Obrigado, meu


capitão.
Eu o olhei e tratei de sorrir-lhe. Ele não me devolveu o
sorriso, mas fez um gesto de reconhecimento.
Alexis me dirigiu um olhar severo.
― Desejo-lhe uma feliz travessia, Cassia Minor.
― O mesmo digo eu, capitão Alexis.
Ele tossiu uma vez mais e saiu do porão.
O menino me jogou uma última olhadela.
― Quanto tempo dura a travessia? ― perguntei-lhe.
― Seis ou sete dias, senhora.
Amaldiçoei para dentro. Ia passar seis ou sete dias
fechada em um porão. Longe de minha mãe, de Melpómene…
e de Máximo. Sem poder dizer-lhes onde estava. Oh, iam ficar
tão preocupados comigo! Para não falar dos perigos aos quais
me expunha. E se os marinheiros me descobrissem? E se
rebentasse uma tempestade e todos nos afogássemos?
Vi como Calias subia pela escada de corda e suspirei.
Não ia ser uma viagem fácil.
Mas, como também não podia fazer outra coisa, encolhi-
me em meu canto… e esperei.

33
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Ampúrias, 154 a.C.

34
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

V.
Um novo aliado

Foi uma dura travessia.


Os dias eram compridos e aborrecidos. Não tinha nada
para fazer no porão e estava sozinha a maior parte do tempo.
Esperava com ânsia as visitas de Calias: o menino não era
muito falador, mas, pelo menos, com ele podia trocar umas
quantas palavras em grego.
Além disso, não me tinha delatado quando teve
oportunidade para fazê-lo. Isso era um ponto a seu favor.
A comida que me trazia consistia em pão seco, queijo
rançoso e uvas passas. Deduzi que Alexis continuava
aborrecido comigo, mas tampouco queria matar-me de fome.
Como seria de esperar, não se dignou a descer ao porão em
nenhum momento.
― Como ele está? ― perguntava eu a Calias.
― Grunhindo e tossindo, senhora. O de sempre.
Quanto ao moço, o pouco que pude surripiar-lhe foi que
tinha nascido na ilha de Samos, que era órfão e que tinha
passado a fazer parte da tripulação do “Quimera” no verão
anterior. De resto, gostava de figos maduros, de
caranguejos… e de procurar problemas.

35
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Quando levávamos dois dias de viagem, trouxe-me um


presente.
― Isto é para você.
Era uma moeda. Uma moeda de prata, pelo menos isso
parecia. Na cara tinha a efígie de um homem barbudo; na
coroa, a silhueta de um elefante.
― É uma moeda do reino da Numídia ― Calias me
explicou com ar divertido ―. Tirei-a a um tipo muito
desagradável, assim não a perca, está bem?
― Você é um ladrão? ― perguntei-lhe com tom grave.
Ele se ofendeu muitíssimo.
― Eu não roubo, senhora! Eu só partilho a riqueza!
― É uma curiosa forma de vê-lo ― observei.
Apesar disso, guardei a moeda. Era bonita e, além disso,
não achei muita graça à ideia de Calias a levar para cima: o
seu anterior dono podia acabar por encontrá-la.

Sete dias depois, a minha túnica estava negra pelo pó e


eu desprendia um aroma nauseabundo. Além disso, tinha o
corpo dormente e me tinha enjoado em várias ocasiões. A
última coisa que queria era navegar outros sete dias em
direção a Óstia, mas não restava mais remédio. Pelo menos,
Alexis faria tudo para que eu não tivesse de fazê-lo em um
escuro e asfixiante porão.
36
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Quando ouvi que o vigia avistava o porto de Ampúrias,


exalei um suspiro de alívio.
Durante todo aquele tempo, tinha tentado recordar tudo
o que o meu pai tinha contado sobre Ampúrias. Era uma
colônia grega, mas tinha sido fundada sobre uma cidade
indígena. Primeiro se situara em uma pequena ilha chamada
Palaiapólis, mas depois se estendeu até Neápolis,
convertendo-se assim em uma importante cidade costeira.
Embora o porto continuasse sob o controle dos mercadores
gregos, os romanos tinham permissão para desembarcar
nele; de fato, nos subúrbios da cidade havia um
acampamento de legionários.
Na verdade, não necessitava de toda aquela informação:
se as coisas corressem bem, eu nem sequer sairia do porto de
Ampúrias. Mas tinha muito tempo livre para pensar, e
preferia concentrar-me na colônia de Ampúrias, do que
começar a imaginar o que haveria além dela, no agreste
interior da Hispânia.
Na verdade, já sabia o que havia: bárbaros e guerra.
E um campo de batalha no qual o meu pai podia morrer.
A mera ideia me dava vontade de chorar.

O navio parou.
Mas, durante um bom pedaço, não escutei nada.
37
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Nem a voz de Alexis. Nem a agitação própria de um


desembarque.
Nada.
O que estava acontecendo?
Quando já começava a ficar impaciente, Calias se
apresentou no porão.
― Há problemas, senhora ― anunciou.
Eu me levantei de um salto.
― Que tipo de problemas?
― O capitão está muito doente.
― Deuses…
― Tem muita febre ― disse o menino ― e não sabe o que
diz. Os marinheiros estão confusos. Uns poucos partiram,
mas outros continuam lá em acima, no convés, e começam a
ficar nervosos.
Eu entendi o que Calias tentava dizer-me: sem um
capitão que pudesse guiá-los, alguns homens cairiam na
tentação de saquear as mercadorias que transportavam.
E eu estava escondida entre essas mesmas mercadorias.
― Tenho de ir ver o capitão ― decidi ―. É um amigo da
família. Se estiver doente…
― Se estiver doente, não poderá fazer nada por ele,
senhora ― Calias me interrompeu ―. Só conseguirá que
outros a vejam.
― Talvez isso não seja tão terrível…
― Conheceu muitos marinheiros ao longo de sua vida?
Fiquei a olhar para o menino. Ele mordeu o lábio
inferior.

38
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Com o devido respeito, senhora.


― Não, tem razão. Não quero que me encontrem. Mas, se
ficar aqui, farão.
― Alguns quererão roubar as mercadorias, mas…
― Mas…?
― Não se atreverão a mexer nos fornecimentos para o
exército. Nesses não tocarão; não querem problemas com
Roma. E isso ― acrescentou em voz baixa ― dá-me uma ideia.
― Uma ideia?
Ele assinalou a arca que estava mais perto de nós.
― Se se esconder em uma dessas, senhora, chegará até
ao exército. O capitão me disse que o seu pai era centurião…
― Sim, é.
― Se seu pai for centurião, nenhum legionário lhe fará
mal. É o mais seguro ― concluiu.
Eu fiquei pensativa.
― Talvez tenha razão… ― murmurei ―. Sei que há um
acampamento romano nos arredores de Ampúrias. Se me
levarem até lá…
Mas então me ocorreu algo.
― Mas o que acontecerá se os fornecimentos forem
enviados para a frente de combate? ― exclamei ―. Não posso
viajar para a Celtibéria, é muito perigoso!
― Sim, deve sê-lo ― admitiu Calias com ar pensativo ―.
Mas eu posso encarregar-me de que a sua arca seja enviada
para o acampamento e não para a frente. Se disser que
alguém me encarregou da sua custódia…
― A você?

39
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Minha pergunta soou grosseira, dadas as


circunstâncias. Afinal, Calias era a única pessoa em quem
podia confiar naquele momento.
― Ouça, senhora, sou pequeno, não idiota! ― bufou o
menino ―. Crê que teria aguentado tanto tempo no “Quimera”
se fosse um inútil? Quero ajudá-la. Deixe-me fazê-lo.
― Por quê? Por que quer ajudar-me?
― Porque me disse “por favor”. E foi amável comigo.
Fazia muito tempo que ninguém era amável comigo, sabe,
senhora? Além disso, chama-me por meu nome. Quase todos
me chamam “pirralho” ou, quanto muito, “ouça, você!”. Não
me importa ajudá-la, mas temos que apressar-nos.
Olhei-o durante um instante.
Parecia decidido.
― Muito bem, Calias ― suspirei ―. Meu pai recompensá-
lo-á.
― Não é preciso, senhora…, embora me pareça justo ―
disse ele com simplicidade.
Entre os dois esvaziamos uma arca de escudos. Depois
eu deslizei em seu interior. Teria de enovelar-me para que se
pudesse fechar a tampa, mas não me importava: apenas
queria sair daquele condenado navio.
― E o que acontecerá com o capitão Alexis? ― quis
saber.
Calias encolheu os ombros.
― Não faço nem ideia.
Nesse momento, ouvimos ruídos lá em acima.
― Depressa, senhora! ― urgiu-me o menino.

40
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Eu obedeci.

A escuridão me envolveu.
Dentro da arca fazia um calor sufocante. Além disso,
notava o meu próprio fedor e sentia repugnância por mim
mesma.
Mas dizia a mim mesma que era necessário. Calias tinha
razão: os marinheiros logo começariam a revistar o porão, e
era pouco provável que se atrevessem a tocar nos
fornecimentos para o exército romano. Afinal de contas, o
capitão Alexis transportava mercadorias mais apetecíveis,
como ânforas de vinho, azeite e garum; certamente,
prefeririam apoderar-se disso do que dos escudos.
Ou nisso confiava eu.
Não demoraria muito a averiguar se estava correta.

Depois do que me pareceram horas, a arca começou a


mover-se.

41
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Meu coração deu um tombo. Não ouvia o que diziam os


marinheiros, se é que estavam a dizer alguma coisa, mas
percebia todos os seus movimentos… e não eram
propriamente delicados.
“Que não me atirem à água”, supliquei aos deuses. “Por
favor, que não me atirem à água”.
Não me atiraram.
Tampouco se deram conta de que eu não pesava tanto
quanto os escudos. Nem de que não se ouvia o tinir do metal.
Perguntei-me se Calias cumpriria a sua promessa e
vigiaria a minha arca.
Só havia uma maneira de ter certeza.

42
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Hispânia Citerior, 154 a.C.

43
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

VI.
Bárbaros!

A cada poucos minutos, a tampa da arca se abria. Umas


vezes me encontrava com a cara de meu pai; outras, com a de
um legionário desconhecido. Em uma ocasião, vi um
selvagem desgrenhado que me agarrou pelo pescoço e me
arrastou de meu esconderijo.
Eram só pesadelos. Mas sempre me pareciam reais.
Já não sabia há quanto tempo estava a delirar naquela
maldita arca. Começava a suspeitar que tinha morrido em
seu interior e meu espírito estava confuso demais para
abandonar o meu corpo.
A sede tinha convertido os meus lábios em couro velho.
A fome retorcia o meu ventre. O sono me assaltava de repente
e me provocava aquelas cansativas visões.
No punho guardava a moeda que Calias me tinha dado.
O metal estava quente pelo contato com a minha pele, mas
me negava a soltá-lo. Aquela moeda me recordava onde
estava… e por que razão.
O que teria acontecido com o menino?
E com Alexis?
E com o seu navio?

44
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Era impossível saber. Apenas podia definhar ali dentro…


e rezar.

O tempo passou.
Acreditava notar o barulho continuado de uma carroça,
mas talvez fosse só a minha imaginação.
Crac.
A arca se derrubou.
A tampa se abriu.
E a luz me cegou.
Senti o estalo do sangue quando uma pedra me abriu a
testa. Aturdida pela dor, engatinhei para fora da arca e rodei
pela erva úmida. Cambaleei um par de vezes até que consegui
levantar-me.
Então eu vi.
Primeiro, o bosque.
Depois, a caravana romana. Assaltada. Destroçada.
E finalmente…, a eles.
Gritei.
Nas minhas costas ouvia os grunhidos dos homens, os
relinchos dos cavalos. O chocar das espadas.
Uma batalha estava ocorrendo no meio de um bosque
que eu não conhecia. Uma batalha entre legionários
romanos… e selvagens.
45
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Os selvagens eram três, mas levavam vantagem sobre a


meia dúzia de legionários que integravam a caravana. Três
deles já tinham caído; os outros três pareciam prestes a fazê-
lo.
Clang, clang, clang. O som do ferro a bater parecia um
lamento fúnebre.
― Meus deuses ― murmurei, espantada, enquanto me
afastava de um dos carros derrubados ―. Meus Deuses,
ajudem-nos…
Passei por cima de várias espadas romanas que estavam
derramadas no chão. Perguntei-me se devia agarrar uma,
apenas por prevenção. Mas o que ia fazer com ela? Eu não
sabia lutar!
Nesse instante, ouvi uma voz conhecida:
― Senhora!
Girei em busca de seu dono.
― Calias! ― chamei-o com desespero ―. Calias, onde
está…?
― Senhora!
Localizei-o junto a um carvalho de ramos nus. Estava de
pé, olhando em redor como um cervo assustado.
Frente a ele havia um homem.
Um bárbaro.
Era um jovem de média estatura, magro, mas com os
músculos muito marcados sob as roupas ásperas. Usava
grevas10 de bronze e um elmo com crista; quando o tirou,
uma longa cabeleira loira caiu por suas costas.

10 Parte da armadura que cobria do joelho para baixo.

46
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Disse algo em sua língua, os deuses saberiam o quê.


Mas eu não estava prestando atenção às suas palavras, mas
à espada que tinha na mão e que brandia em direção a
Calias.
O menino me olhou. Depois fechou os olhos com força.
De repente, eu também tinha uma espada na mão.
E corria.
Tudo se deteve enquanto eu me movia: o céu, cinzento
pela débil luz da tarde; as árvores, testemunhas serenas,
cujos ramos retorcidos se elevavam para as nuvens; a própria
terra, que suportava os meus passos acelerados.
“Vai morrer, Cassia”, disse uma voz em minha cabeça.
“Vai morrer em uma terra estranha, às mãos de estranhos. E
as pessoas que gostam de você nunca saberão o que lhe
aconteceu”.
O grito subiu por minha garganta:
― Deixe-o em paz!
O selvagem se virou. E os seus olhos azuis se
encontraram com meus.
Em vez de atacá-lo, rodeei-o. E me pus diante de Calias.
A espada tremia em minha mão.
Então recordei algo que meu pai havia dito. Fazia muito
tempo, mas, por alguma razão, as suas palavras retornaram
para mim com tanta clareza como se as tivesse pronunciado
naquele mesmo momento.
“O gladius hispalensis é a melhor espada que existe, e
esses celtiberos sabem usá-la, é claro! Eu acredito que sim!

47
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Se os ferreiros romanos fossem capazes de imitá-la, não


perderíamos uma só batalha…”.
Meus nódulos estavam brancos de tanto apertar o
punho. Não ia servir-me de nada, mas não podia render-me.
Não sem lutar.
Calias estava imóvel, erguido como uma lebre.
― Corre ― ordenei-lhe em grego.
Mas o menino não se moveu.
O bárbaro resmungou algo, soltou uma gargalhada e
cuspiu no chão.
― Vá, Calias ― repeti ―. Este homem vai matar-nos.
― Sinto muito, senhora, mas não irei sem você.
― É uma ordem!
― Eu não sigo as suas ordens, senhora.
O selvagem deu um passo à frente.
Eu lutei para conter as lágrimas.
“É o fim. Os dois morreremos. Calias e eu morreremos
agora… e não me ocorre nenhuma forma de impedi-lo”.
A ponta de minha espada se elevou. O bárbaro brandiu
a sua… e, nesse instante, um cavalo surgiu do nada e se
interpôs entre nós.
Tudo aconteceu muito depressa.
O cavaleiro disse algo ao homem loiro. Este fez um gesto
de protesto, mas logo deve ter pensado duas vezes, porque se
limitou a murmurar.
Então o cavaleiro se virou e nos olhou de cima.

48
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Foi um momento estranho. Eu sabia que enfrentava um


grupo de bárbaros, de selvagens dispostos a matar e, no
entanto, aquele olhar me pareceu humano.
Foi breve. Mas jamais o esqueci.
O cavaleiro era um homem jovem. A primeira coisa que
me chamou a atenção foi o seu tamanho: até mesmo sobre o
cavalo destacava-se por sua altura. Tinha os ombros largos e
as pernas musculosas, embora parecesse mal alimentado. Tal
como o seu companheiro, vestia uma túnica curta, calças e
uma capa de lã escura, e toda a sua armadura consistia em
um par de grevas de bronze.
Ele também tinha o cabelo comprido, mas o tinha
recolhido com um fio de couro. Um cacho lhe caía solto pela
bochecha, manchado de sangue recente e pinturas de guerra.
Afastou-o com um movimento impaciente.
Depois se dirigiu a mim:
― São romanos?
Fiquei sem fôlego.
Estava falando em latim. Um latim rústico, áspero, mas
inconfundível.
― Por Júpiter ― murmurei ―, como demônios sabe falar
a minha língua?
― Eu perguntei primeiro.
Seu tom não era agressivo, mas firme.
Apertei os lábios.
― Eu sou romana ― declarei ―. Mas ele não é. Deixem-
no ir embora.

49
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Calias me olhava desconcertado. Era evidente que não


entendia uma só palavra de latim.
O cavaleiro bárbaro elevou uma sobrancelha, negra
como a fuligem.
― Qual é o seu nome, romana?
Eu falei com orgulho:
― Cassia. Cassia Minor.
― Bem, Cassia Minor… ― disse ele, inclinando a cabeça
com respeito ―, eu sou Leukón de Sekaisa. Agora que já nos
conhecemos, peço-lhe que solte essa espada. Por favor.
― E se eu não o fizer?
O jovem levantou a comissura do lábio.
― Se não o fizer, Ambón perderá a paciência. ―
Assinalou o bárbaro que nos tinha atacado em primeiro lugar
―. Ou talvez seja Aunia quem o faça. Ou Corbis. Ou Lubbo.
Então me dei conta de que Calias e eu estávamos
rodeados. Outros dois homens e uma mulher se colocaram
em ambos os lados do Ambón, separados de nós por Leukón
e sua montada; eu só tinha visto três guerreiros no início,
mas estava claro que havia mais.
Todos usavam o cabelo comprido e a cara pintada.
Todos tinham as espadas desembainhadas. E todos nos
observavam.
Estremeci, mas tentei dissimulá-lo.
― Não poderei retê-los por muito tempo, temo ―
prosseguiu Leukón ―, assim que a aconselho a que solte isso.
Agora.

50
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Eu tinha os músculos do braço duros. Estava


empunhando a espada com muita força.
A arma tilintou ao cair sobre a erva.
― O que está acontecendo, senhora? ― sussurrou-me
Calias.
― Não estou certa ― respondi ―, mas acredito que não
nos vão matar. Pelo menos, não o farão já.
Quando me dei conta de que estava falando em latim,
repeti a frase em grego.
Enquanto isso, Leukón falou com os seus
companheiros. Estes foram em busca de seus respectivos
cavalos, que aguardavam a uma distância prudencial; deviam
estar bem treinados.
Então Leukón me olhou, olhou para Calias e voltou a
olhar-me.
― Nós não matamos meninos, Cassia Minor ― disse com
suavidade.
― E romanas? ― desafiei-o.
Estava a ponto de cair, mas mantive a compostura.
Os outros bárbaros já tinham montado em seus cavalos
e aguardavam, pacientes, por Leukón.
Compreendi que ele não era seu companheiro, mas seu
líder.
Falou-me sem elevar a voz:
― Sinto muito dizer-lhe que romanas são parte do
legado.
De seguida, disse algo em sua língua. A mulher se
inclinou sobre o seu cavalo e estendeu uma mão para Calias.

51
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Como o menino não aceitava a sua mão, ela o agarrou pelo


cangote e o elevou em seu cavalo à força.
Leukón também me estendeu a mão.
― Vais subir sozinha ou tenho de fazer o mesmo que
Aunia?
― Posso fazê-lo sozinha, obrigada.
Fiz. Sem nenhuma elegância.
Tinha o corpo enfraquecido. Depois de uma travessia
pelo Mediterrâneo e um desesperador término, aquele
enfrentamento tinha esgotado as poucas forças que me
restavam.
Calias me olhava do cavalo de Aunia.
― Não faça nada estranho ― indiquei-lhe em grego ―. Se
houver alguma possibilidade de salvar-lhe a vida,
aproveitarei.
― O mesmo digo eu, senhora.
A lealdade do menino me provocou uma pontada de dor.
Oxalá Calias tivesse corrido. Oxalá se tivesse salvado.
Leukón estalou a língua e seu cavalo empreendeu o
trote. Os outros o seguiram.
Sentia o calor de seu peito contra as minhas costas. E
um potente aroma de suor, sangue e couro.
Enquanto nos afastávamos da clareira, fixei-me no
cadáver de um legionário que tinha caído de barriga para
cima. De seu ventre brotava, vermelha como uma papoula, o
punho de uma espada.
“A gladius hispalensis é a melhor espada que existe, e
esses celtiberos sabem usá-la…”.

52
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Oh.
Oh, não.
“Por favor, que estes selvagens não sejam celtiberos”,
rezei em silêncio. “Que sejam iberos, que sejam qualquer
outro povo. Mas que não sejam celtiberos”.
Fossem quem fossem, uma coisa estava clara: Calias e
eu éramos seus prisioneiros.
Para onde nos levavam? O que queriam de nós?
Podia perguntar a Leukón. Mas não me atrevia.
Já era de noite e fazia frio. Estava faminta e, ao mesmo
tempo, tinha o estômago revolto. A ferida da testa me doía;
estava certa de que ainda não tinha deixado de sangrar.
Mas, independentemente de tudo, tinha o coração
encolhido.
Não queria respostas. Queria descansar.
E, sem dar-me conta, fui ficando presa a um doloroso
torpor.

53
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Hispânia Ulterior, 154 a.C.

54
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

VII.
A muralha da discórdia

Esqueci boa parte do que aconteceu nos dias seguintes,


mas há uma coisa que jamais poderei esquecer: o frio. Um
frio que penetrava nos ossos, intumescia a carne e nublava o
pensamento.
Um frio que debilitava o meu corpo e a minha vontade.
O frio foi a primeira coisa que senti quando despertei
sobre o cavalo de Leukón de Sekaisa. O céu já clareava no
leste, mas ainda se via o resplendor das estrelas por entre as
copas das árvores.
Quando Leukón desmontou, uma primeira rajada de
vento sacudiu o meu corpo. Todo o meu traje consistia em
uma túnica fina, suja e cheia de buracos, e os meus pés
estavam congelando nas sandálias. Daquele modo, os
bárbaros não teriam chance de matar-me: morreria congelada
a qualquer momento.
Os selvagens já estavam montando acampamento.
Ambón, o loiro, acendeu uma fogueira; os outros dois homens
começaram a limpar o sangue de suas armas.

55
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

A mulher, Aunia, foi encarregada de atar-nos a uma


árvore - a Calias e a mim. Como se algum dos dois tivesse
energia suficiente para escapar. Depois se sentou junto ao
fogo e engoliu um punhado de castanhas.
Dei-me conta que Calias estava tremendo. Recostei-me
contra o tronco da árvore e lhe rodeei os ombros com o braço.
Ele afundou a cara em meu peito e os seus ombros
estremeceram perigosamente.
Eu não ia submetê-lo à humilhação de olhá-lo enquanto
chorava. O menino tinha o seu orgulho, apesar de tudo. E era
valente. Assim que o abracei, cobrindo-o com meu cabelo
para protegê-lo dos olhos daquela gente, aproveitei a sua
proximidade para esquentar um pouco o meu corpo.
Voltamos a cair adormecidos. Os dois.
Desde aquele momento, o nosso destino ficou selado.
Para sempre.

Despertei quando já era de dia. A erva estava úmida pelo


orvalho. Doía-me o pescoço, certamente, por ter dormido
atada naquela incômoda posição.
Calias tinha os olhos abertos, fixos nos restos da
fogueira. Segui o percurso de seu olhar: os selvagens ainda
dormiam, exceto Leukón, que estava de pé, junto a seu
cavalo.
56
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Estava quieto, o que me permitiu vê-lo com atenção.


Tinha os traços duros, enfeados por um nariz quebrado, mas
era bonito, sem dúvida. Estava murmurando algo ao animal,
que bufava brandamente, como se pudesse entender o que
lhe dizia o seu dono. Era uma imagem estranha; naquele
instante, Leukón não parecia um guerreiro sedento de
sangue, mas uma pessoa.
Era a mesma sensação que tinha tido ao vê-lo pela
primeira vez.
Por fim, Calias se deu conta de que eu estava acordada.
― Bom dia, senhora.
― Olá, Ca… Ah!
Quando movi a cabeça, uma dor intensa na testa me
enjoou.
― Senhora!
Mal tomei consciência do revoo que causei, já que a dor
me obrigava a manter os olhos fechados e as mandíbulas
apertadas. Mais tarde, Calias me contou o que tinha
acontecido durante aqueles minutos.
Pelo vistos, Leukón tinha vindo a correr e os outros
bárbaros despertaram sobressaltados, acreditando que
alguém os atacava. Ao ver que estava ferida, Leukón tinha
convocado um homem chamado Corbis, que era um tipo
pequeno e amarelado, e lhe tinha pedido umas ervas que
guardava em sua sacola. Logo ele mesmo tinha aplicado na
ferida e me tinha enfaixado a cabeça com uma tira de couro.
Enquanto fazia tudo isso, Ambón e Aunia não deixavam de
protestar, mas o seu chefe os ignorava; quando acabou,

57
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

virou-se para eles e lhes gritou algo que os deixou mudos.


Então os dois agarraram em seus cavalos e montaram, com a
cabeça alta e sem dignar-se a olhar para ninguém.
Leukón, mal-humorado, agarrou-me nos braços e subiu
a seu cavalo.
Quando a dor se atenuou, abri os olhos e vi que
estávamos trotando por um bosque de árvores acastanhadas.
O céu estava tão cinzento quanto estivera no dia anterior.
Toquei a minha testa com os dedos. A tira de couro era
áspera e irregular, mas firmemente atada.
Embora ainda não tivesse podido falar com Calias,
deduzi o que tinha acontecido. E disse a mim mesma que o
perigo não era desculpa para ser ingrata.
― Obrigada, Leukón ― murmurei em latim.
Ele não disse nada, mas escutei um bufo atrás de mim.
Pensei que Leukón se parecia um pouco com o seu
cavalo. E mal pude reprimir um sorriso.
Então decidi que tinha chegado o momento de procurar
respostas.
Meu pai sempre me repetia a mesma frase: “Primeiro
pensar e depois fazer”. Eu tinha o mau costume de inverter a
ordem, mas, pela primeira vez, fiz corretamente. Estive um
bom pedaço decidindo o que ia dizer a Leukón e como ia fazê-
lo.
À partida, eu já sabia que Leukón de Sekaisa não era
uma besta sedenta de sangue; pelo menos, não se tinha
comportado assim com Calias e comigo. Contudo, um homem
capaz de manter à raia outros quatro selvagens armados até

58
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

aos dentes tinha de ser perigoso à força, por isso devia


extremar as minhas precauções.
Quando deixamos a parte mais densa do bosque e a
bruma nos envolveu, decidi que tinha chegado o momento de
iniciar a conversa:
― Posso fazer-lhe uma pergunta, Leukón?
Ele respondeu depois de uns instantes:
― Pode.
Bom. Isso já era algo.
― Aonde vamos?
― Para Numância.
― Para Numância?
Era a primeira vez que ouvia aquele nome.
― É uma cidade. Já a verá.
― Vive lá?
― Agora sim. Antes vivia em Sekaisa.
Claro, por isso se chamava Leukón de Sekaisa. Senti-me
um pouco parva por ter feito aquela pergunta.
― Infelizmente ― prosseguiu ele ―, Sekaisa já não
pertence ao meu povo.
Mordi a língua para não lhe perguntar diretamente qual
era esse povo. Em vez disso, murmurei:
― Lamento.
― A sério? ― perguntou ele com tom zombador ―. Foram
os romanos quem sitiou a cidade e nos obrigaram a
abandoná-la.
― Ah…, bem...

59
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Mas pelo que percebi vocês não a chamam de Sekaisa


― acrescentou ―, mas Segeda.
Estive a ponto de cair do cavalo.
― Segeda? ― balbuciei ―. Então, vós devem ser…
― Belos ― concluiu ele ―. Somos os Belos de Sekaisa.
Custou-me não perder a compostura. Acabava de
descobrir que os meus captores não só eram celtiberos, mas
que também pertenciam à tribo que tinha provocado aquela
guerra na Hispânia. A tribo que tinha quebrado o pacto de
Graco ao murarem a sua cidade.
E eu cavalgava junto a um de seus líderes.
― Numância pertence aos nossos irmãos, os Arevacos ―
prosseguiu Leukón ―. Acolheram-nos lá até que recuperemos
Sekaisa. Porque, aconteça o que acontecer, vamos recuperá-
la.
Seu tom não era desafiante, mas eu percebi que me
estava provocando.
― Olhe, não espere que lhe deseje boa sorte com isso,
mas tampouco é assunto meu. Eu estou na Hispânia por
engano e Calias…
Fiz o gesto de olhar para trás, mas o corpo de Leukón
me impediu. Estava muito perto do meu.
Virei-me rapidamente.
― Seu pequeno amigo ficará bem ― disse ele junto a
meu ouvido ―. Mas não podemos deixá-lo sozinho no bosque.
Aqui não estamos só nós, compreende? Há outros povos, e
também há legionários. Percebi que o menino não sabe falar
latim. Se os romanos o confundissem com um dos nossos…

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Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Um legionário nunca machucaria um inocente! ―


saltei.
― Não conhece os legionários.
― Sim conheço. Melhor do que você.
― Talvez ― ele admitiu ―, mas não viu o que são capazes
de fazer.
Eu sabia que devia morder a língua. Sabia.
Mas não fui capaz de fazê-lo:
― Esta guerra é por sua culpa!
Vi como as mãos de Leukón se esticavam sobre as
rédeas. E, por um instante, arrependi-me de ter dito aquilo.
Mas ele falou com a mesma tranquilidade:
― Esta guerra é o fruto da prepotência de Roma. E de
que o seu Senado não sabe escutar.
Respirei fundo.
― O que quer dizer com isso?
O cavalo saltou por cima de um tronco caído. Eu
também dei um salto, mas Leukón me segurou com firmeza.
Dava-me conta de que quase tinha deixado de respirar.
― Esse Graco era uma raposa ardilosa, mas era razoável
― disse Leukón ―. Exigiu que pagássemos certos tributos a
Roma em troca de não construir mais muralhas…
― Vê? Vê como…?
― Nós não construímos nenhuma muralha, Cassia
Minor ― ele me interrompeu ―. Nós ampliamos a que já
existia. A população de Sekaisa tinha crescido ultimamente, e
tanto o Conselho de Anciões como a Assembleia da cidade
concordaram que não era justo deixar algumas famílias fora

61
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

do perímetro da muralha. Enviamos um ancião, Kacyro, para


explicar isso ao Senado romano… e ninguém quis escutá-lo.
Não soube o que responder àquilo.
― Pode acreditar em mim ou não ― Leukón estabeleceu
―, mas esse é o motivo da guerra. Se pensar que eu ou
qualquer um de meus irmãos gostou de perder a nossa
cidade e de ter de derramar sangue inutilmente, está muito
equivocada. Infelizmente ― suspirou ―, não temos outra
opção. Hispânia é a nossa casa, não a sua; aceitamos
convidados, não tiranos. Acredito que é compreensível.
Era-o. Maldição, claro que era!
Mas eu não podia dar razão a um chefe celtibero. Os
celtiberos eram o inimigo do meu povo, da minha família, de
Roma! Nem sequer deveria estar a falar com um deles!
― Leukón, deixe-nos partir, por favor ― sussurrei ―.
Deixe que Calias e eu voltemos para Ampúrias. Eu cheguei à
Hispânia sem querer e ele tentou ajudar-me.
― Viajavam com uma caravana de romanos ― observou
ele.
― Sim, mas foi um acidente! Eu fiquei…, ah, presa no
porão, e Calias queria ajudar-me a voltar para Óstia, que é o
meu lar.
― Queria ajudá-la a voltar para Óstia em uma caravana
de romanos que se dirigia para a Celtibéria? ― repetiu o
jovem com tom amável.
Impacientei-me.
― Sei que soa estranho, mas é uma larga história e não
acredito que seja necessário contar-lhe. Se eu acreditar na

62
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

sua palavra, e acredito, você deveria acreditar na minha: eu


não tenho nada a ver com a sua guerra, nem quero estar
aqui. E o pobre Calias não merece ser prisioneiro de
ninguém.
― Nisso lhe dou razão.
― Vê? ― suspirei ―. Escute, se se empenharem a ficar
comigo, façam-me o favor de libertá-lo. Pode ser que o bosque
seja perigoso, mas é um menino desenrascado. E este não é
lugar para ele.
Leukón não disse nada durante uns segundos.
Começava a chover. Era uma chuva fraca e gelada;
abracei-me a mim mesma e aguardei, expectante, a resposta
do homem.
― Sinto muito ― disse finalmente ―, mas não depende
de mim.
― Você é o seu líder! ― protestei.
― Sou o líder deste grupo de exploradores ― replicou ele
―, não o líder dos Belos e dos Arevacos. O líder será eleito
quando todos nos reunirmos em Numância… e duvido que eu
o seja. Sou muito jovem.
― Então, não nos ajudará?
― Farei o que puder.
Aquilo não me pareceu muito alentador, mas o tom de
Leukón não admitia réplica.
Pensei que não poderia obter nada mais dele…, mas em
seguida me dei conta de que estava equivocada.
Quando os meus dentes começavam a bater
intensamente, notei um movimento atrás de mim.

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Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Leukón estava tirando a capa para colocar-me por cima.


Tinha frio demais para rechaçá-la, por isso fiquei quieta
enquanto ele sujeitava o tecido sobre o meu ombro com a sua
própria fíbula11. Era uma peça de bronze com forma de
cavalo.
― Obrigada ― murmurei ―. É uma boa capa.
― Não é uma capa, é um sagum12 ― esclareceu ele.
― É um bom sagum, então.
― É óbvio que é. Afinal, é meu.
Quase sorri. Quase.
Mas não o fiz. Ainda sentia o gosto amargo da derrota.
Já só havia um caminho para mim: o caminho para
Numância. E, para não variar, eu não o tinha escolhido.

11 Alfinete de peito da antiguidade. Ao contrário dos alfinetes contemporâneos, as


fíbulas não eram apenas decorativas, servindo para apertar peças de vestuário como
capas.
12 Parte da indumentária militar usada pelos romanos e gregos. Era feito de tecido com

forma quadrada, presa por uma fíbula e colocada por cima da demais indumentária.

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Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Numância, 154 a.C.

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Às Portas de Numancia – Africa Ruh

VIII.
A cidade do vento

Demoramos vários dias para chegar a Numância.


O resto da viagem não foi muito emocionante:
cavalgávamos dia e noite, quase sem descanso, e só
acampávamos quando era estritamente necessário. Então,
algum dos bárbaros nos atavam, a mim e a Calias, a uma
árvore e nos deixavam ali, até que se levantava o
acampamento.
― Por que não nos deixam dormir deitados? ― perguntei
a Leukón em uma ocasião.
― Porque pôr-se-iam a correr assim que nos virássemos
― replicou o líder celtibero.
Não tive mais remedeio que dar-lhe razão.
Calias estava assustado, mas dissimulava às mil
maravilhas. Continuava a chamar-me de “senhora” e
tratando-me com respeito; dado que ele estava ali por minha
culpa, não podia evitar sentir-me agradecida.
Conforme passavam os dias, entrávamos mais e mais na
Celtibéria. Era uma terra de colinas marrons, bosques
azulados e ladeiras salpicadas por flores amarelas; as águas

66
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

eram negras e os céus, brancos e cinzentos. Com frequência


nos encontrávamos à mercê da chuva e do vento, e uma vez
tivemos de refugiar-nos de uma tempestade de granizo.
A Celtibéria não era Roma. Não era o Mediterrâneo.
A Celtibéria estava para lá do mundo civilizado. Do
mundo de meus deuses.
Não sei se Calias sabia. Aterrava-me pensar nisso.
Leukón e eu mal falávamos. Ele não quis contar-me por
que sabia latim, nem me falou de seu passado. Apenas
averiguei que dirigia aquele grupo de guerreiros, e que o seu
objetivo era sabotar as caravanas romanas, para evitar que o
exército de Nobilior obtivesse provisões para passar o inverno.
Mas agora tinham de voltar para Numância. Os
celtiberos precisavam de um líder e este teria de ser eleito por
unanimidade.
― Não se preocupe, senhora ― Calias me disse uma
noite ―. O capitão Alexis estava acostumado a falar-me dos
bárbaros. Dizia que gritavam muito e cheiravam mal, mas
que só eram perigosos se os provocassem.
Eu reprimi um sorriso carregado de tristeza. Até mesmo
o déspota do Alexis era capaz de tranquilizar um moço.
Uma vez mais, apalpei a moeda que Calias me tinha
dado. Era o meu talismã.
E uma das poucas coisas que me recordavam que Roma
estava ali, esperando o meu regresso.

67
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Chegamos a Numância em um dia especialmente


ventoso.
Eu mal podia ver alguma coisa: o meu cabelo se metia
nos meus olhos e boca, e tinha frio demais nas mãos para
entrançá-lo. Não obstante, o meu corpo se mantinha quente
dentro do sagum: o objeto era de lã escura, bem tecida, e
estava desenhado para não agitar-se com o vento.
O cavalinho de bronze emitia um brilho apagado à luz
do dia. Fiquei olhando-o, pensativa, até que um grito de
Leukón me sobressaltou:
― Numância!
Os bárbaros lhe responderam:
― Numância!
Os cavalos empreenderam galope.
E, por fim, eu a vi.

A cidade se erigia no alto de uma colina, dominando o


mosaico de colinas e ladeiras. Essa colina estava rodeada por

68
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

um rio de águas turbulentas; os celtiberos o chamavam de


algo como “Douro”, mas eu ignorava o seu nome romano.
Talvez nem o tivesse. Talvez os romanos ainda não
tivessem chegado até ali.
Cruzamos o rio a toda velocidade e subimos em direção
à muralha. Era feita de pedras irregulares, coroada por várias
torres vigia quadradas, e do outro lado dela se ouviam gritos
de boas-vindas: provavelmente, os vigias já tinham
vislumbrado o grupo de guerreiros e estavam anunciando a
sua chegada.
Levei as mãos ao coração.
Numância os esperava. Também a mim.
O perímetro da cidade tinha forma ovalada. As casas
estavam espalhadas ao redor de duas largas ruas paralelas,
dispostas de norte ao sul e cruzadas por outra dúzia de
ruelas diagonais. Aquilo pretendia evitar as fortes correntes
de ar; o vento da Celtibéria, chamado cierzo por seus
habitantes, era capaz de derrubar uma carroça quando
soprava com força.
As casas eram de pedra e argila, com os telhados em
palha. Quase todas possuíam um pequeno pátio anexo,
dentro do qual havia currais com galinhas e pequenas
cisternas de pedra.
Definitivamente, Numância não se parecia com Óstia.
Nem com Ampúrias. Não se parecia com nenhuma cidade que
eu alguma vez tivesse visitado… nem da qual tivesse ouvido
falar.

69
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Mal chegamos, uma pequena multidão nos rodeou.


Havia homens e mulheres de diversas idades, mas todos eles
tinham três coisas em comum: o cabelo comprido, roupas de
lã e olhares receosos.
Ambón foi recebido calorosamente, por isso deduzi que
era um jovem bastante popular. A acolhida de Aunia, Corbis
e Lubbo foi mais discreta; vi que Aunia empurrava Calias e
quis intervir, mas Leukón escolheu esse momento para fazer-
me descer do cavalo.
As pessoas se apinhavam em torno de nós. Vários
homens deram tapas nas costas de Leukón; uma mulher se
pendurou no seu braço e me assinalou, e outras lançaram
chiados de indignação.
Então alguém se dirigiu ao guerreiro. E todo o mundo se
afastou.
Era um homem de meia idade, ruivo e de aparência
agradável. Quando sorriu, mostrou uma ampla dentadura
intacta.
― Leukón! ― exclamou, rindo, e abrindo os braços.
― Karos ― respondeu o jovem com ar respeitoso.
Os dois se abraçaram. O homem chamado Karos era um
pouco mais baixo que Leukón, mas possuía uma aura de
poder que não me passou despercebida.
Embora, na verdade, eu tivesse coisas mais importantes
nas quais pensar.
― Calias! ― chamei-o, esticando o pescoço para ver por
cima das cabeças das pessoas ―. Calias!
Mas não havia nem rastro dele.

70
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Puxei o braço de Leukón.


― Leukón, onde está Calias?
O jovem guerreiro me dirigiu um olhar severo e escapou
de mim. Depois continuou a falar com esse tal Karos, que me
olhava de esguelha.
― Idiota ― grunhi baixinho.
Nesse momento, alguém me deu um toquezinho no
ombro.
Girei, esperançada, mas não era Calias, mas Aunia. A
mulher me indicou por gestos que fosse atrás dela.
― Sabe onde está Calias? ― perguntei-lhe, embora
soubesse que Aunia não falava latim.
― Calias ― repetiu ela.
― O menino que esteve viajando conosco ― esclareci, me
perguntando se, depois de tudo, poderia entender o que lhe
dizia.
Aunia voltou a fazer gestos para que a acompanhasse.
Hesitei. Leukón continuava dando-me as costas,
embrenhado em sua conversa com Karos; ele era o único com
quem me podia comunicar, mas agora não parecia disposto a
falar comigo, e eu estava cada vez mais ansiosa.
― Vá ― disse a Aunia ―, acompanho-a.
Ela sorriu.
E, apesar das pinturas de guerra, aquele sorriso me
provocou uma onda de calor no peito.
Aunia me conduziu ao interior de uma casa. Estava
dividida em três espaços bem diferenciados: o primeiro era
diminuto, e nele apenas havia um tear, um punhado de

71
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

recipientes de barro e um alçapão que, presumivelmente,


conduziria a uma adega. O segundo cômodo era mais
espaçoso: contava com uma lareira ao nível do chão, um
comprido banco encostado à parede e várias peles macias que
faziam a vez de assentos. Ao fundo de tudo estava o último
espaço, que parecia ser um armazém.
Não era uma casa luxuosa, nem confortável, mas tinha
um teto de palha e um fogo que crepitava alegremente. Era
exatamente o que eu necessitava.
Além disso, havia alguém esperando-me ali.
― Calias! ― suspirei, aliviada ―. Menos mal!
O menino estava sentado no banco. Já não usava as
suas roupas de marinheiro, mas uma túnica de lã por tingir e
umas grosas calças.
― Corbis me deu isto ― explicou, acariciando a lã ―.
Sabe qual é Corbis, senhora?
― Sim, o curandeiro ― soprei ―. Foi ele quem o trouxe
aqui?
― Não, foi Aunia. Corbis me levou para outra casa, mas
Aunia foi buscar-me. Acredito que preferem que estejamos
juntos.
― Fico contente.
― Eu também, senhora.
O moço sorriu. Tinha os dentes afiados, o que o fazia
parecer um morcego pálido.
Eu lhe belisquei docemente a bochecha.
― Bem, Calias, prometo-lhe que sairemos desta. Não sei
como, mas faremos.

72
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Tentava parecer otimista, mas, no fundo, estava


assustada.
Por que estávamos ali?
O que iriam fazer conosco?
Aunia começou a cantarolar. Quase tinha esquecido que
estava ali. Enquanto eu falava com Calias, ela tinha limpado
a pintura da cara. Também tinha soltado a trança: agora
luzia a sua bonita cabeleira castanha.
Fiquei olhando-a, hipnotizada, até que se dirigiu a mim.
Tinha algo nas mãos. Era um vestido: um vestido de lã
de cor clara, quase branco, com formosos adornos no pescoço
e nas mangas.
― Está oferecendo-lhe isso, senhora ― Calias me disse.
Eu já me tinha dado conta, mas estava surpreendida
demais para reagir.
Aunia me contemplava com expressão amável. Até
então, a mulher só me tinha dirigido olhares de irritação; da
mudança eu gostava, sem dúvida, mas não deixava de
assombrar-me.
Não obstante, não havia mal nenhum em aceitar o
vestido. Os farrapos de minha túnica estavam a ponto de
desfazer-se depois de tantos dias viajando a cavalo e
dormindo no chão.
Aunia também entregou umas botas de cano alto de
pele. Como o vestido não tinha bolsos, guardei a moeda do
Calias na bota direita: agora sim, essa era a última coisa que
me restava de Roma.

73
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

“Por pouco tempo”, disse a mim mesma com


nervosismo. “Tudo isto parece um pesadelo, mas tenho a
certeza de que encontrarei forma de escapar. E Calias
escapará comigo”.
O estômago do menino escolheu esse momento para
protestar energicamente. Ao ouvi-lo, Calias pôs uma cara tão
graciosa que soltei uma gargalhada.
Minha risada sobressaltou Aunia, que disse algo em sua
língua e, depois de jogar-nos uma última olhadela, saiu da
casa deixando-nos lá fechados.
Bom. Não é como se Calias ou eu tivéssemos muita
vontade de sair lá para fora, mas não achava graça nenhuma
estar fechada em qualquer parte.
― O que vamos fazer agora, senhora? ― perguntou-me
ele.
Eu olhei ao redor. Na casa havia potes de barro, adornos
de hastes e um punhado de ferramentas agrícolas, mas nada
mais.
― Esperar ― suspirei ―. E rezar para que nos tragam
comida. Não sei se é o seu caso, mas eu morro de fome.

74
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

IX.
A dança do fogo

Calias estava à janela.


― Venha ver isto, senhora.
Eu levantei a cabeça. Estava acomodada no banco
comprido, desfrutando da penumbra noturna. Ninguém tinha
vindo trazer-nos comida, mas havia um cântaro de água em
um canto, por isso a sede já não era um problema. Pelo
menos, estávamos calmos.
― Tome cuidado, Calias. Poderiam descobri-lo.
― Tem de ver isto, senhora ― insistiu ele.
Aproximei-me da janela. Estava coberta por uma pele de
lobo engordurada, mas o menino a tinha afastado um pouco.
Afastou-a um pouco mais para que pudesse olhar através
dela.
O que vi me deixou impressionada.
A janela da casa dava para uma das duas ruas
principais. Alguém tinha acendido uma fogueira ao ar livre;
enquanto as chamas se elevavam para o céu estrelado, um
grande grupo de homens e mulheres dançava em torno dela,
emitindo uns estranhos cânticos guturais.

75
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Esses cânticos me arrepiaram a pele.


― É estranho, não é? ― sussurrou Calias ―. Parece uma
espécie de ritual.
E parecia. Presidia-o um ancião, vestido de branco e
com uma coroa de folhas secas na cabeça. Tinha os olhos
escuros, rodeados de olheiras, e a cara mais séria que tinha
visto em toda a minha vida.
Mas em seguida deixei de olhá-lo para procurar Leukón.
Encontrei-o rapidamente: a sua enorme altura o
denunciava. Ele não estava dançando, mas contemplava aos
bailarinos; algo em sua expressão me fez pensar que não
estava muito contente com o que via.
Ao cabo de uns minutos, o baile cessou. Então os
celtiberos se apinharam em torno do ancião e este se dirigiu a
um deles.
Era Karos, o homem ruivo que tinha ido receber Leukón.
O ancião lhe fez uma seca reverência. Karos
desembainhou a sua espada, fez um corte na mão e deixou
cair umas gotas de sangue sobre a fogueira.
Do fogo brotaram faíscas e a multidão uivou.
Eu decidi que Calias já tinha visto o suficiente.
― Por que, senhora? ― protestou ele quando voltei a
colocar a pele de lobo no lugar.
― Porque eu não gosto que veja o que fazem os
bárbaros.
― Senhora, já lhe disse isto uma vez: sou pequeno, não
tolo. E é preciso mais que um selvagem fazendo um corte
para assustar-me, sabe?

76
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Não duvido ― concedi ―, mas continua a parecer-me


desagradável.
― Esse homem, Karos…, é o chefe?
― Acredito que sim.
Recordei algo que Leukón tinha dito enquanto
viajávamos: ao chegar a Numância, os celtiberos escolheriam
o seu líder.
Tudo apontava para que tivessem acabado de fazê-lo.
― Que pena ― disse Calias ―. Eu preferia Leukón.
― A sério? ― surpreendi-me.
― Você não?
― Não me importo.
― Pois deveria.
― Por quê?
― Porque você agrada a Leukón.
― Calias! ― alarmei-me ―. Que tipo de tolice é essa?
― Ele não quer matá-la, senhora. E isso é bom.
― Você não pode saber isso. ― Olhei-o com receio ―. Ou
entende a sua língua, por acaso?
― Não. Eu só sei falar grego.
― Então?
― Não entender o que dizem as pessoas me permite
reparar mais no que realmente querem dizer.
― Como…?
― As palavras são o que menos importa ― insistiu ele ―.
Eu me fixo nos olhos, na boca e nas mãos. E assim me dou
conta das coisas. Por isso, senhora ― acrescentou ―, sei que

77
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Leukón não lhe fará mal. Mas os outros… talvez. E, se isso


acontecer…
O ruído da porta interrompeu as suas palavras.
Não foi Aunia quem veio dessa vez, mas outra pessoa.
Estava envolvida em um sagum de cor marrom, mas tirou o
capuz assim que entrou.
Era uma jovem. Primeiro reparei em seus olhos, de um
azul tão claro como o céu de Roma. Depois, em seu olhar:
decidido e, ao mesmo tempo, curioso.
Quando tirou o capuz, uma trança loira caiu por seu
ombro.
― Olhe, Calias: temos companhia ― disse ao menino em
grego.
― Já vi que sim, senhora. Não parece perigosa, pois
não?
A recém chegada se aproximou. Levava uma tocha na
mão e a usou para reavivar o fogo da lareira. Quando o fez, as
chamas alaranjadas iluminaram um braço magro e
musculoso.
― Eu não estaria tão certa disso ― comentei ―. Com
aquele braço poderia esmagar-nos a cabeça.
Disse-o sem pensar. Ela me olhou de esguelha; eu
estava certa de que não podia entender o que dizíamos, mas,
mesmo assim, decidi tentar a sorte:
― Olá. Meu nome é Cassia, Cassia Minor. Ele é Calias.
Temo que sejamos prisioneiros de sua gente, mas não viemos
para causar problemas.

78
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Repeti o mesmo discurso em latim e em grego, só por


prevenção.
A jovem se ergueu. Calias me deu uma pequena
cotovelada.
― Não a entende ― sussurrou ―, e eu tampouco.
― Sei ― disse em latim ―, e é uma pena. Estou certa de
que muitas coisas se arrumariam se pudéssemos falar com
esta gente.
A garota continuava a olhar para mim. Seus olhos
passaram de meu vestido branco para a minha cara. Então
recordei algo que Calias me havia dito: “As palavras são o que
menos importa”.
E, fazendo um esforço, sorri-lhe.
― Sou Cassia ― disse, assinalando a mim mesma ―.
Caaassia.
Ela entreabriu os olhos.
― Senhora, não sei se é uma boa ideia…
― E ele é Calias ― continuei, impertérrita, pondo a
minha mão no ombro do menino ―. Caaalias.
A jovem soprou.
E, de repente, ela também sorriu.
― Kara.
― Kara? ― Repeti, esperançada ―. Esse é seu nome?
― Kaaara ― disse ela com tom zombador, golpeando o
peito com os nódulos.
― Oh, chama-se Kara! ― Aplaudi ―. Viu, Calias? Você
tinha razão! Podemos falar com ela sem que…!

79
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Mas deixei a frase pela metade. Kara havia voltado a


olhar para o meu vestido e tinha deixado de sorrir. Agora
tinha o cenho franzido.
― Oh ― murmurei.
― Parece-me que não gosta do que tem vestido ―
observou Calias.
― Eu também acho.
A jovem resmungou algo em sua língua. Depois meteu a
mão no interior do sagum e extraiu dele um pedaço de pão de
aveia e um punhado de castanhas.
Deixou a comida no banco e, sem sequer olhar-nos, saiu
da casa.
Por alguma razão, eu me senti abatida.
― Acha que meti o pé na poça, Calias?
― Não sei, senhora. Mas sei que tinha boa intenção.
― E isso nos serve de alguma coisa?
O menino sorriu, mostrando-me os seus dentes afiados.
― Talvez a você não, mas a mim sim.
Apoiei a cabeça no seu ombro. Eu passei a mão pelo seu
cabelo e suspirei:
― Pelo menos, agora podemos jantar.
― Você primeiro, senhora.
Engolimos o pão e as castanhas rapidamente.
Depois adormecemos.

80
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Cassia! ― ouvia a voz de Máximo me chamando.


― Máximo? ― balbuciei.
Em frente a mim havia uma muralha de pedra irregular.
A muralha estava salpicada de torres de vigia; tentei escalá-
las, mas, por mais que tentasse, não consegui.
Os gritos de Máximo continuavam a ouvir-se do outro
lado:
― Cassia! Tem de voltar! Roma a espera!
― Estou a tentar, Máximo! ― respondi ―. Mas não é
fácil!
― Cassia!
Minhas mãos escorregavam pelas pedras, incapazes de
agarrar-se a elas. Incapazes de impulsionar o meu corpo para
cima.
Essa muralha me tinha presa.
Não era a muralha de Numância. Eu sabia que não era.
Era a muralha de Sekaisa. A que tinha provocado a
guerra.
― Cassia!
A voz de Máximo soava cada vez mais longínqua.
Eu desesperei:
― Máximo, ajude-me!
Mas Máximo já se tinha ido.
― Senhora?
Foi Calias quem me despertou daquele pesadelo.
― Senhora, está bem?
Pisquei. Estava coberta de suor frio; de resto,
encontrava-me bastante bem.

81
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Sim, creio que sim.


― Não queria acordá-la, mas parecia agoniada.
― Fez bem, Calias ― suspirei ―. Estava sonhando com o
meu prometido.
― Ah.
O moço me olhou com suspeição, por isso me apressei a
esclarecer:
― Ele estava… chamando-me. Mas eu estava presa e
não conseguia ir ter com ele.
Por alguma razão, dizê-lo em voz alta me reconfortava.
― Não se preocupe, senhora. Certamente logo volta a vê-
lo.
― Isso espero.
― Como ele se chama?
― Máximo.
― É um bom homem?
Não respondi.
― Fiz mal em perguntar, senhora?
― Não ― murmurei ―. É só que, para ser sincera…, não
sei. Não sei se é um bom homem ou não.
― E vai casar com ele sem saber? ― Calias se alarmou.
― Entenderá quando crescer.
― Oh, detesto essa frase!
― Eu também a detestava quando tinha a sua idade. ―
Sorri.
Enquanto Calias resmungava, eu fiquei olhando a casa.
Já não era de noite: a janela continuava coberta pela pele de
lobo, mas através das frestas se filtrava a luz do dia.

82
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Quanto tempo dormi, Calias?


― Muito, senhora.
― Oh…
― Mas não se preocupe, estive olhando pela janela. Ali
fora vai acontecer algo grande: construíram uma plataforma
de madeira e debaixo estão preparando uma fogueira.
Pergunto-me se farão como ontem à noite e dançarão em
redor.
― Ontem à noite não havia nenhuma plataforma ―
comentei distraidamente. Estava recordando o inquietante
ancião ―. Recorda-se daquele homem mais velho? Deve ser o
seu líder espiritual.
― Chamam-lhes druidas, ou qualquer coisa assim.
― Como sabe?
― Viajei muitas vezes ― disse ele com simplicidade ―.
Com marinheiros que viajaram muito mais do que eu.
― Percebo.
Em outras circunstâncias, teria invejado Calias. Eu só
tinha ido a Roma um par de vezes; de resto, jamais tinha
saído da minha Óstia natal.
Contudo, a minha viagem acidental para a Hispânia
tinha mudado a minha forma de pensar. Agora a única coisa
que desejava no mundo era voltar para casa e não sair de lá
jamais.
Mas antes tínhamos de arrumar toda aquela confusão.
E para isso necessitávamos de ajuda.
― Pergunto-me onde estará Leukón ― grunhi.
― Nem ideia.

83
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

O menino e eu nos olhamos.


E, como já vinha sendo hábito, resignamo-nos a esperar.

Foi Aunia quem nos trouxe o jantar. O de Calias


consistia em mais pão e castanhas; o meu, pão branco com
mel e um punhado de bagas.
― Isto não é justo ― protestei ―. O meu jantar é melhor
do que o seu, então vamos compartilhá-lo.
Ofereci ao menino uma baga, mas Aunia percebeu e me
deu um tapa. Sua atitude me apanhou despreparada.
― Ouça! ― protestei ―. Por que ele não pode comer isto e
eu sim?
― Não importa, senhora ― disse ele com modéstia ―,
conformo-me com o pão.
― Mas eu não quero que se conforme!
Aunia estava tensa. Parecia querer muito que apenas eu
comesse o pão com mel e as bagas.
Nesse instante, Kara entrou pela porta.
E aconteceu algo muito estranho.
Kara me olhou, olhou para o meu jantar e voltou a
olhar-me. Depois empurrou Aunia com o ombro, dirigiu-se
para onde eu estava e atirou o meu jantar ao chão com uma
patada.
― Oh! ― indignei-me.
84
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Kara pisoteou a comida até que se converteu em um


mingau disforme. Depois saiu apressadamente, perseguida
pelos gritos iracundos de Aunia.
Eu fiquei olhando-as pasmada até que saíram.
― Pode-se saber o que foi aquilo? ― murmurei.
Calias parecia tão assombrado quanto eu.
― Não tenho nem ideia.
― É possível que Kara pense que se deram a demasiado
trabalho por mim ― sugeri ―. Tampouco gostou de ver-me a
usar este vestido tão bonito.
― Não sei, senhora. Mas me deu uma sensação ruim.
― A mim também.
Engoli em seco.
Calias me agarrou na mão. Eu não a retirei: seu tato me
dava um inexplicável alívio.
Nesse instante, a porta se abriu de novo.

85
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

X.
Lug

Não era Aunia. Tampouco Kara.


Era Leukón.
Por fim!
Levantei-me de um salto. O jovem estava limpo e usava
o cabelo recolhido; já não parecia tão selvagem como no
bosque. Mesmo assim, tinha uma expressão tão séria que
senti uma pontada de medo.
― Olá ― disse com cautela.
Ele se aproximou de mim e me olhou dos pés à cabeça.
Quando o fez, o seu rosto se escureceu ainda mais.
― Isto… ― pigarreei ―, não quero ser grosseira, mas
Calias e eu estamos há quase dois dias fechados aqui e estão
acontecendo coisas muito estranhas, e não sabemos o que é
exatamente o que…
A entrada de Kara interrompeu o meu discurso. Vinha
atrás de Leukón, ao que parecia, apressadamente; quando
retirou o capuz do sagum, a sua testa gotejava suor.
Leukón e ela trocaram palavras em sua língua. Ambos
pareciam nervosos.

86
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Eu começava a sentir-me incomodada.


― Ah, olhe, era a isso que me referia com coisas
estranhas ― disse com ironia ―. Kara teve a delicadeza de
estragar o meu jantar.
Leukón se virou para olhar-me. Fê-lo tão depressa que
dei um salto.
― Isto é sério, Cassia. Deixe-nos pensar.
― Oh, suponho que uma romana não pode ajudá-los a
pensar ― soprei ―. Não se preocupem, deixo isso para vocês.
De repente, o jovem guerreiro golpeou a parede com o
punho, fazendo-a retumbar e sobressaltando Calias, que
saltou como uma lebre.
Isso acabou por enfurecer-me.
― Quer deixar de fazer de bruto? ― espetei a Leukón ―.
Está assustando-nos!
― E com razão.
― Como diz?
― Deveriam estar assustados. Sobretudo, você.
― Muito bem, você ganha! Agora sim estou assustada! ―
Olhei-o com apreensão ―. Diga-me o que está acontecendo,
por favor.
Leukón apertou as mandíbulas. Depois dele, Kara me
olhava de modo hostil.
― Querem sacrificá-la.
O ar abandonou os meus pulmões.
― Como…? ― balbuciei ―. Isso é um absurdo! Não sou
uma vaca!
― Sabe em que consiste um sacrifício…?

87
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― É óbvio que sei! ― interrompi-o ―. Os áugures


romanos13 levam a cabo sacrifícios em honra dos deuses, mas
sacrificam gado, não pessoas! Isso é ridículo!
Leukón inspirou profundamente.
― Pode ser que seja ridículo para vocês; para mim, é
apenas cruel. Mas o certo é que o druida de Numância,
Avaro, decidiu que sacrificar uma romana ajudará a ganhar a
guerra. Ele é o sacerdote do deus Lug; embora Stena, a
sacerdotisa de Epona, não esteja de acordo com ele, Lug é o
deus mais importante de todos e, portanto, ninguém ousará
contradizer Avaro.
Eu pisquei com lentidão.
― Está dizendo que vão sacrificar-me porque um maluco
qualquer acredita que isso ajudará a derrotar as legiões
romanas?
― Estou dizendo algo muito sério, Cassia Minor! ―
estalou Leukón ―. Estou dizendo que vão queimá-la viva em
uma pira! Por isso Aunia lhe deu as roupas e os mantimentos
rituais!
Fiquei sem fôlego.
Se o que dizia Leukón fosse verdade…
Deuses, é claro que era verdade! Por que iria enganar-
me?
― Por isso Kara jogou fora o seu jantar ― prosseguiu o
jovem, mais calmo ―. Ela também não quer que morra.
― Também? ― murmurei.

13Áugures ou arúspices - sacerdotes da Roma Antiga que usavam os hábitos dos


animais para tirar presságios: voo e canto das aves e as entranhas de diversos
animais.

88
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Eu estou do seu lado.


Os olhos escuros de Leukón de Sekaisa deixaram de
olhar-me com dureza.
Eu fechei os meus durante um momento.
“Não pode ser. Não posso acabar assim”.
Mas não podia iludir-me. Um homem e uma mulher
dispostos a defender-me não eram nada comparados com
todo um povo desejando a minha morte.
A voz de Calias me devolveu à realidade:
― O que está acontecendo, senhora?
Abri os olhos e o pus ao corrente com a maior brevidade
possível. Minha voz tremia tanto quanto os meus joelhos.
O menino ficou pálido ao escutar-me.
― E o que vamos fazer agora?
Eu voltei a olhar para Leukón, que estava frente a mim.
Observando-me.
Falei-lhe em voz baixa:
― Há alguma solução?
Kara lhe disse algo em sua língua. Leukón sacudiu a
cabeça.
― Leukón? ― insisti.
O jovem me deu as costas. Agora o fogo iluminava os
seus cachos negros e o perfil de seu braço nu. Era o dobro do
meu e estava cheio de cicatrizes.
Essa visão me provocou um calafrio.
Por fim, ele falou.
― Há ― admitiu ―. Há uma solução…, mas você não vai
gostar dela.

89
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XI.
A proposta

Calias estava encostado à janela.


― Acha que demorarão muito para voltar, senhora?
Eu não lhe respondi. Estava sentada no banco
comprido, com o olhar perdido no fogo da lareira.
Ao não obter resposta, o menino deixou cair a pele de
lobo e retornou a meu lado.
― A pira já está pronta ― sussurrou ―. Mas, como não
comeu essa comida, eles não…
― Eles não me queimarão. Ainda.
Falei com surpreendente ligeireza, dado que Calias e eu
estávamos comentando o meu iminente sacrifício.
Mas, por mais estranho que pareça, eu não estava tão
preocupada com isso, como com o que Leukón acabava de
propor-me.
Ainda não podia acreditar.
O moço mordeu a unha do dedo polegar.
― Leukón não demorará, senhora. Só tinha de preparar
os cavalos, não é verdade?
― Penso que sim.

90
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Então, é melhor que estejamos preparados.


― Você não irá, Calias.
― Mas…
― Já lhe disse isso ― atalhei ― : você ficará aqui
enquanto eu…
Deuses.
Deuses!
Leukón não me podia ter dito aquilo a sério.
E, contudo, tinha-o feito.
― Senhora! ― Calias alarmou-se ―. Não chore, por favor!
― Não estou chorarando ― menti ―. Apenas… não
entendo como pude chegar até este momento.
― A vida é assim mesmo, senhora. Não tente procurar
um significado: as coisas acontecem, e devemos enfrentá-las
da melhor maneira possível.
Fiquei olhando para o menino. Ele era um órfão grego;
em dez anos tinha vivido mais aventuras do que eu jamais
sonhara.
Mas eu era diferente. Eu tinha um pai, uma mãe, um lar
e um prometido.
Eu tinha um prometido, maldito seja!
Eu devia casar-me com Máximo, não com…!
― Um bárbaro imundo! ― explodi, sobressaltando Calias
―. Tenho de casar-me com um bárbaro imundo para salvar a
pele!
O menino me olhou com recriminação.
― Senhora, está sendo injusta! Leukón nem sempre está
imundo. Há vezes em que se lava.

91
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

De repente, dei-me conta do quão absurda era aquela


conversa. E, sem saber por que, pus-me a rir.
Acredito que Calias teria preferido ver-me chorar.
― Senhora, encontra-se bem? Por favor, não fique louca
agora…
― Deuses… ― suspirei, secando os meus olhos ―.
Deuses, Calias, a minha vida deve ser uma brincadeira dos
deuses.
― Posso dizer-lhe uma coisa, senhora?
― Claro.
― Eu acredito que Leukón só quer ajudá-la.
― A que se refere?
― Não se ofenda, senhora: é bonita. E eu gosto. Mas não
acredito que Leukón esteja apaixonado por você, nem que
queira aproveitar-se da sua situação. Entende-me, senhora?
Entende o que quero dizer?
O menino ruborizou. Eu lhe dei um tapinha na cara.
― Entendo. E eu também acredito que as suas intenções
são boas. É apenas que…
Suspirei ao recordar a minha breve conversa com
Leukón.
A sua proposta de matrimônio tinha sido a mais direta
da história:
― Karos é o líder, mas me respeitam. Tanto os Belos de
Sekaisa, como os Arevacos de Numância me respeitam, por
isso não se atreverão a pôr a mão em cima de minha mulher.
Se se casar comigo, estará a salvo.
Isso me tinha dito.

92
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Eu não entendia:
― E quanto a você? Não se importa de casar comigo?
Não tem outra?
― Não estou casado. E não me interessa ninguém.
― Eu estou prometida em Óstia. Com um homem
chamado Máximo.
― Má sorte para ele.
― Mas eu já… ah…, enfim…
Não sabia se os celtiberos eram muito escrupulosos no
que dizia respeito à virgindade de suas mulheres.
A Leukón custou um pouco entender o que eu tentava
dizer-lhe:
― Ah…? Ah! Não me importa, sempre e quando não se
importe que eu não…
― Ah… Não, suponho que não me importa.
― Bem.
― Bem.
Naturalmente, não esperava uma romântica declaração
de amor da sua parte, mas aquilo me parecia deprimente.
Para não falar de que era uma traição para com
Máximo. E para com os meus pais.
E para com Roma.
Mas essa traição era a única coisa que podia salvar-me
da fogueira.
Calias pôs os braços nos quadris.
― Senhora, eu não sei muito de maridos e mulheres,
mas sei que uma pessoa que está disposta a salvar-lhe a vida

93
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

é uma boa escolha, não lhe parece? Além disso ― adicionou


―, Leukón é jovem e forte. E parece valente.
― Não posso acreditar ― murmurei ―. Admira isso num
selvagem, Calias? Pensava que os gregos tinham mais bom
senso.
― Quantos selvagens conhece, senhora?
― Os mesmos que você, certamente.
― Bom, pois eu não vou julgá-los sem conhecê-los.
Apertei os lábios. A última coisa que queria era escutar
um sermão de um menino de dez anos.
De todas as maneiras, não tivemos tempo de discutir
mais. Naquele instante, ouvimos um ruído e nos levantamos
ao mesmo tempo.
A cabeça de Kara apareceu pela porta.
― É hora, senhora ― anunciou Calias.
― Sei ― murmurei ―. Deseje-me sorte.
― Sorte.
― Obrigada.
Inclinei-me sobre o moço e lhe dei um rápido beijo na
testa.
― Obrigada por tudo ― repeti.
― Não há de quê, senhora. Mas me faça um favor.
― Qual?
― Se encontrar maneira de escapar, volte por mim.
Começaram a picar-me os olhos.
― Oh, Calias, é claro que o farei! Jamais o deixarei para
trás. Jamais.
Kara fez um gesto de impaciência.

94
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Obrigado, senhora ― disse Calias ―. Adeus, senhora.


― Adeus.
E, olhando pela última vez para o menino, dirigi os
meus passos para a porta.

95
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Hispânia Ulterior, 154 a.C.

96
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XII.
Escaramuça

Leukón nos esperava junto às portas. Acompanhavam-


no dois cavalos: Kara montou em um deles e Leukón me
subiu no outro. Depois se colocou atrás de mim.
Kara me tinha obrigado a trocar o meu vestido branco
por outro de lã marrom e me tinha entregado um sagum de
meu tamanho. Levava-o preso com uma fíbula simples.
Certamente, esse não era o traje adequado para umas
bodas. Mas a roupa era o de menos.
Mal podia ver Leukón na escuridão, mas reparei em
alguns detalhes. O jovem guerreiro tinha entrançado o
cabelo, mudou de túnica e cheirava vagamente a cinza.
E levava a sua espada pendurada no cinto.
Quando as portas de Numância se abriram, um lobo
uivou ao longe.
Enquanto o cavalo empreendia o galope, compreendi
que me assustavam menos os lobos do que o meu destino.
Descemos a colina e entramos no bosque.

97
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Os lobos continuavam a uivar, mas Leukón e Kara não


deram mostras de inquietação. Falavam pouco entre si;
ignoravam-me por completo.
“Que bodas tão felizes”, disse a mim mesma com ironia.
Até mesmo na escuridão, os cavalos pareciam saber
para onde se dirigiam. Não havia caminho, nem atalhos; ao
redor só se viam árvores escuras e, através da tapeçaria de
seus ramos, um céu esverdeado salpicado de estrelas.
A alvorada estava perto. Já havia luz a leste.
Pela manhã, eu ter-me-ia convertido na esposa de um
guerreiro hispânico.
“É a única maneira”, pensei. “Vou casar com Leukón
para sobreviver… e, assim que possa, escaparei. Irei embora
de Numância, voltarei para Óstia e tudo isto não será mais do
que uma má recordação”.
Animada por esse pensamento, girei-me para olhar para
o meu futuro marido.
Mas então, sem uma palavra, ele me empurrou do
cavalo.
Caí sobre uns arbustos. Arranhei a cara e as pernas,
mas a vegetação amorteceu o golpe.
Quando consegui levantar-me, o bosque se encheu de
gritos. Um cavalo passou trotando junto a mim; mas mesmo
mal havendo luz, soube imediatamente que não era o de
Leukón, nem o de Kara.
O que estava acontecendo?
Por cautela, fiquei escondida entre os arbustos.

98
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Logo aos gritos se lhes uniu outro som arrepiante: o de


espadas.
Meu coração desbocou. Estava decorrendo uma batalha.
Tentei localizar Leukón entre os opositores, mas não o
vi: só distinguia vultos. Ouvia o som do metal, grunhidos e
ofegos…
E gemidos de dor.
“Bom, Cassia, não pode ficar de braços cruzados
enquanto matam o seu futuro marido, pois não?”.
Se matassem Leukón, eu também estaria morta. Assim,
encomendando-me a qualquer deus que passasse por ali,
pus-me a escavar em busca de alguma pedra grande. Quando
encontrei um par delas, entreabri os olhos e tentei distinguir
os guerreiros celtiberos de seus atacantes.
Por fim, localizei o meu prometido. Fiz bem na hora em
que estava tirando a sua espada do estômago de um inimigo.
Que bem.
Kara estava a seu lado. Ao ver que alguém se
aproximava por trás, lancei-lhe uma das pedras com todas as
minhas forças. Minha pontaria não foi muito boa: acertei-lhe
na coxa e não no crânio, como pretendia. Mas o grito alertou
a mulher, que enfrentou o seu rival e o tombou com uma
cabeçada.
Kara me olhou na penumbra. E sorriu levemente.
Então alguém me agarrou por trás e me pôs uma adaga
no pescoço.
― Ah! ― gritei.

99
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Senti um fôlego quente na bochecha, uma espetada na


mandíbula, uma sensação de sufoco no peito…
“Vai cortar-me a garganta”.
Uma pessoa desconhecida ia degolar-me na escuridão.
Fechei os olhos com força…
… e, de repente, vi-me libertada daquele abraço mortal.
― Cassia! ― rugiu Kara.
A mulher me sustentou antes que caísse, mas eu
apenas a olhava.
Meus olhos estavam fixos em Leukón.
O sangue lhe manchava os braços até aos cotovelos.
Sem pestanejar, limpou a sua espada na túnica de meu
atacante, em cuja garganta tinha aberto um profundo talho
horizontal.
Parecia um sorriso grotesco.
Fiquei enjoada.
― Cassia… ― Kara começou a dizer.
Mas eu já tinha perdido o conhecimento.

Despertei sobre o cavalo.


Leukón me embalava docemente, murmurando algo em
sua língua. Quando viu que abria os olhos, perguntou-me em
voz baixa:
― Está bem?
100
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Eu lhe dirigi um débil sorriso e lhe vomitei em cima.


Ao cabo de uns minutos, senti-me com forças para falar.
― Quem eram? ― balbuciei.
― Aqueles? ― Leukón soprou ―. Amigos dos romanos.
Claro. Havia povos indígenas que se tinham aliado a
Roma. Os que eu conhecia eram os iberos, sobretudo, mas
talvez houvesse algumas tribos celtiberas que os apoiassem.
Em qualquer caso, não queria fazer mais pergunta a
Leukón.
― A propósito ― disse ele então ―, obrigado por ajudar-
nos.
― Ah?
― Kara diz que atirou uma pedra ao homem que estava
lutando contra ela.
― Oh, sim, foi muito heroico.
― Talvez não tenha sido heroico, mas foi valente.
Olhei-o de esguelha. Estava sujo, ensanguentado e
coberto de vômito. O meu vômito.
― Não sei por que vomitei ― balbuciei como desculpa.
― Eu sei.
― Ah, sim? ― soprei ―. Que eu saiba, não vomitei
quando assaltaram a caravana, e isso foi pior. Ambón poderia
ter-nos matado.
― Sim, teria feito com gosto ― concedeu Leukón ―, mas
você não podia permitir-se ao luxo de ter medo.
― Por quê?
― Tinha de proteger alguém, lembra-se?

101
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Sim, lembrava-me. Ao ver Calias em perigo, tinha


esquecido tudo o resto.
― Bom, não fui de grande ajuda. Está em Numância por
minha culpa.
Leukón não disse nada. Quando girei sobre mim mesma
para olhá-lo, vi que sorria discretamente.
Dessa vez, fui eu quem soprou. Íamos casar sujos de
terra, sangue e vômito, e nem sequer estava certa de que
gostássemos muito um do outro. Certamente, aquele não ia
ser um matrimônio convencional.
Mas, por alguma razão, eu também estava sorrindo.

102
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XIII.
A canção do bosque

Amanhecia quando paramos junto a uma cascata.


Eu já me tinha acalmado. Os lobos tinham deixado de
uivar, os pássaros cantavam e a brisa trazia um agradável
aroma a vegetação molhada.
O rumor da cascata também era tranquilizador. Quando
Leukón me desceu do cavalo, fiquei olhando para as águas,
que discorriam até um arroio cheio de pedras; a primeira luz
do dia as cobria de uma multiplicidade de cores.
Era uma bela paisagem.
Leukón deixou cair a sua espada no chão e tirou o
sagum. Depois desprendeu a túnica e as calças. E,
completamente nu, meteu-se sob a água gelada.
Contemplei como a espuma limpava o seu corpo.
Ele percebeu o meu olhar e elevou as sobrancelhas.
Afastei a vista imediatamente.
Recordei o descaramento com o que tinha contemplado
o corpo nu de Máximo. Conhecia muito bem a sua pele
morena, os seus músculos e nervos, a suavidade da sua
carne.

103
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Leukón tinha a pele pálida e coberta de pelos escuros.


Era muito mais alto que Máximo, e mais corpulento também.
Mas a ele não me atrevia a olhar da mesma maneira.
Kara parecia divertida, mas não fez comentários. Só se
aproximou de mim e me tirou o sagum.
Quando adivinhei quais eram as suas intenções, resisti:
― Ah, não, nem pense. Não vou entrar ali.
Como resposta, a mulher me arrancou o vestido.
― Mas o que faz? ― gritei-lhe, agitando os braços ―.
Devolva-me isso!
Sem perder o sorriso, Kara me empurrou para a cascata.
Quando a água molhou o meu corpo, senti como se um
milhar de agulhas de osso se cravassem em minha pele nua.
Comecei a amaldiçoar em latim, sabendo que Leukón podia
entender-me e desejando que o fizesse.
Contudo, ele não se mostrou muito impressionado.
Tinha o cabelo colado ao pescoço e bufava como um cavalo.
Eu me abracei a mim mesma.
― Bestas…!
Percebi que estava chorando.
Por que chorava agora? Não tinha chorado quando os
celtiberos nos atacaram, nem quando descobri que
pretendiam sacrificar-me, nem quando fomos emboscados
por “amigos dos romanos” a meio da noite…
Talvez necessitasse disso, de chorar. Chorar à vontade,
sem ter de esconder-me de Calias ou de qualquer outra
pessoa. Chorar por Óstia, por meus pais, por Máximo; chorar

104
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

por como o meu destino tinha mudado, sem que eu pudesse


fazer nada por evitá-lo. Chorar por meu futuro.
As lágrimas escorregavam por minhas bochechas e eram
arrastadas pela água. Mal podia ver, mas sentia. Senti as
mãos de Leukón em meus ombros, esfregando-os para
mitigar o frio; e senti…
Abri os olhos.
Os de Leukón me contemplavam. E se tinham tornado
tão quentes que, sem saber por que, escondi a cara em seu
peito.
Ele me acariciou as costas. Devagar. Com recato.
Não sei quanto tempo permanecemos sob a cascata. Só
sei que, quando Kara me puxou para tirar-me da água e me
devolveu a roupa, eu continuava a sentir-me nua. Nua e
vulnerável.
Não tinha nada com o que secar-me, por isso coloquei o
vestido em cima da pele molhada. Kara desenredou o meu
cabelo empapado e me fez uma rápida trança. Eu deixei-a,
sem atrever-me sequer a olhar para aquele que ia ser meu
marido.
Leukón mal demorou um minuto para colocar a roupa e
recolher o cabelo. Kara era a única que continuava a parecer
um desastre, mas, pelo menos, nós os dois voltávamos a
parecer seres humanos.
Pensei que íamos montar de novo, mas não foi assim:
deixamos os cavalos atados a uma árvore e Leukón nos guiou
através de um atalho semioculto entre a vegetação.

105
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Demoramos uns minutos para chegar a uma clareira


rodeada de carvalhos. Os ramos retorcidos entreteciam uma
cúpula sobre as nossas cabeças, através da qual se filtrava o
pálido resplendor da alvorada.
A erva era mais escura no centro daquele círculo.
Leukón avançou até lá e se ergueu em toda a sua altura,
quase alcançando um jovem carvalho.
Kara me empurrou ligeiramente para ele.
Leukón e eu nos olhamos. As roupas dele estavam
úmidas e cheias de manchas escuras, mas ele tinha a cara
limpa e uma expressão serena.
Eu ainda tremia, não sei se por culpa do mergulho ou
dos nervos.
Ia casar. Ia casar com um guerreiro bárbaro.
O grito de um falcão rompeu o silêncio. Eu tomei um
susto, mas Leukón me tranquilizou:
― Não se assuste, este lugar é sagrado. Os deuses o
protegem.
― Que deuses? ― perguntei, mais para distrair-me do
que por estar interessada na resposta.
― O meu é Cernunnos14 ― explicou ele ―. O seu…
Encolheu os ombros.
― Quem sabe? Logo saberemos.
Eu soprei.
― Se for Lug, podem dizer-lhe que não se incomode,
obrigada.

14Por causa de seus chifres e representação ocasional de um grande e ereto falo,


Cernunnos é o Deus da fertilidade, guardião das entradas e do círculo mágico. Deus
pagão dos bosques, rei do carvalho e senhor das matas. Deus do ciclo de vida.

106
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Não me tinha esquecido da cara de Avaro, o druida de


Numância. Nem da fogueira que tinha mandado acender para
queimar-me viva.
Engoli em seco.
Parecia-me que Leukón ia dizer algo mais, mas então
ouvimos um som e nos viramos.
Uma mulher tinha aparecido na clareira. Não era jovem,
nem anciã, mas caminhava com dignidade. Embora usasse
um vestido de lã simples, o seu cabelo estava
primorosamente recolhido e adornado por uma coroa de
campainhas. Tinha a cara redonda, as maçãs do rosto altas e
uns olhos castanhos que brilhavam com inteligência.
Quando se cravaram em mim, senti-me muito pequena e
insignificante.
― Stena ― saudou Leukón com uma inclinação de
cabeça.
Kara, que tinha recostado as costas em um velho
carvalho, também se ergueu para saudar a mulher.
― Ela é Stena ― Leukón me explicou ―. A sacerdotisa de
Epona.
― É uma druida? ― murmurei, impressionada.
― Não. É uma… Bom, não sei que expressão utilizam os
romanos, mas nós a chamamos de mulher sábia.
― Acredito que sei ao que se refere.
A mulher sábia deu um passo em frente. Fixei-me em
sua proeminente barriga, que revelava uma gravidez
relativamente avançada. Levava duas coroas entre as mãos:
uma era de haste e a outra de campainhas.

107
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Leukón franziu o cenho ao ver as campainhas e disse


algo em sua língua. Stena o olhou com curiosidade, mas
respondeu docemente. Então, sem aviso prévio, o meu futuro
marido se meteu entre dois carvalhos e desapareceu.
― Oh ― murmurei ―, espero que não se tenha
arrependido bem agora.
Ninguém disse nada. Tanto Kara, como Stena pareciam
tranquilas, por isso deduzi que Leukón voltaria logo.
Fê-lo, com efeito. Com um bom molho de algo na mão.
― Lírios ― informou-me, oferecendo-os à mulher ―. Você
é mais lírios do que campainhas.
― E isso por quê?
― As campainhas crescem entre as pedras e à beira dos
caminhos, abrindo caminho como podem. São pequenas e
discretas. Você é pequena ― sorriu ―, mas não é nada
discreta. Os lírios são diferentes…
― Nunca pensei que fosse poeta ― brinquei.
Leukón desviou o olhar.
― Podemos começar.
Nesse instante, arrependi-me de ter falado.
E me dei conta de algo que me assustou.
Eu me casava por pura sobrevivência. Leukón me tinha
proposto casamento para salvar-me a vida, sim…, mas ele
esperava algo mais.
De repente, senti-me terrivelmente culpada. Estava
enganando uma pessoa! Eu não amava aquele homem. De
fato, pretendia escapar dele mal tivesse oportunidade para
fazê-lo.

108
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

“A culpa é dele”, disse a mim mesma, tratando de


sossegar a minha consciência, “por ter-me sequestrado”.
Mas, na verdade, ele não me tinha sequestrado. Ele só
tinha evitado que Ambón me assassinasse… e que Avaro me
convertesse em um punhado de cinzas.
Felizmente, Stena me tirou de meu ensimesmamento: já
tinha entrançado os lírios, formando com eles uma coroa que
estava depositando cerimoniosamente sobre a minha cabeça.
Depois, foi a vez de Leukón com a coroa de hastes.
Então nos obrigou a entrelaçar as mãos.
Já não havia como voltar atrás.
Os meus olhos voltaram a encontrar-se com os de
Leukón. Percebi que não eram exatamente negros, mas sim
de um marrom tão escuro que o parecia, quando não estavam
à luz.
Se não conseguisse escapar, o que seria de minha vida?
Teria de contemplar aqueles mesmos olhos todos os dias,
cada manhã e cada tarde, sem descanso, nem trégua…?
A mulher sábia começou a falar.
― Stena está dizendo que as nossas mãos unidas
formam o símbolo do infinito ― traduziu Leukón em voz baixa
―. Sua esquerda com minha direita.
Pressionou brandamente os seus dedos contra os meus.
Eu o imitei, sobressaltada.
A mulher sábia extraiu uma corda do interior de seu
vestido e, sem deixar de murmurar aquela litania, começou a
enrolá-la à volta de nossas mãos enlaçadas.

109
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Agora nos está explicando que o infinito não só


representa o amor entre duas pessoas, mas a posição de
igualdade entre homem e mulher ― Leukón continuou ―.
Que, tal como o sol e a lua compartilham o céu, o homem e a
mulher devem compartilhar a terra…
Do que falava aquela mulher? Em Roma, as jovens eram
entregues a seus maridos, postas sob o seu amparo. A que se
referia Stena com aquilo de igualdade?
Olhei de esguelha para Kara, que nos observava com os
braços cruzados sobre o peito. Enquanto Stena oficializava as
bodas, ela permanecia alerta, com a espada e a adaga
preparadas para qualquer ataque.
Reparei que a presença de Kara me fazia sentir segura.
E a Leukón também, pois era capaz de baixar a guarda
quando ela estava vigiando. E isso me fez tomar consciência,
pela primeira vez, que os celtiberos eram um povo diferente
do meu. Muito diferente.
Stena continuava a falar.
― O nosso matrimônio será uma união, não uma
submissão ― traduziu Leukón ―. Teremos o mesmo sangue,
mas não o mesmo espírito.
Uma brisa percorreu a clareira.
“O nosso matrimônio”, repeti para mim.
Durante toda a vida ouvi falar de bodas e de noivos, de
maridos e filhos, de famílias e linhagens. Tinha estado
prometida duas vezes. E, no entanto, aquela era a primeira
vez que tomava consciência do significado daquilo tudo.

110
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Estava unindo a outra pessoa o meu corpo… e o meu


futuro.
“Teremos o mesmo sangue, mas não o mesmo espírito”.
Pelo menos, aquela parte de mim ainda me pertencia.
Mas estava unindo todo o resto a uma pessoa… e essa pessoa
era um guerreiro hispânico. Um inimigo.
Tratando de fugir daqueles pensamentos, apertei com
força a mão de Leukón.
Então, Stena se calou.
Leukón disse umas quantas frases em sua língua.
Depois traduziu:
― Eu, Leukón de Sekaisa, filho de Ama de Sekaisa e…
Tibério Semprónio Graco…
Deixei de respirar.
Tinha dito Tibério Semprónio Graco?
Como o cônsul romano? O mesmo ao qual
anteriormente se referiu como “uma raposa ardilosa, mas
razoável”?
― … tomo esta mulher por esposa ― prosseguiu Leukón,
olhando-me com ar desafiante ―. Para que seja sangue de
meu sangue.
Fechei os olhos e voltei a abri-los.
Stena me olhava fixamente. Kara, também.
O bosque era o único que ainda parecia respirar. O
vento agitou as copas das árvores, arrancando-lhes uma
canção suave e sussurrante. Essa canção penetrou em meus
ossos e em meu coração.
E me escutei dizer:

111
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Eu, Cassia Minor, filha da Cassia Maior e Lúcio


Cassio Aquila, tomo este homem por marido…
Formou-se um nó em minha garganta. Mas Leukón
estava ali, olhando-me, e eu já não podia deter-me:
― … para que seja…
O bosque continuava a cantar.
― … sangue de meu sangue.
Houve um breve silêncio.
O meu coração pulsava com tanta força que temi que os
outros pudessem ouvi-lo.
Stena desenrolou a corda de nossas mãos e deu um
passo atrás. Kara se aproximou de Leukón e lhe deu uma
palmada nas costas. Fez-me uma reverência. Depois entregou
uma pele de veado enrolada e uma simples fíbula de bronze:
os presentes de bodas. Leukón lhe agradeceu em sua língua e
eu inclinei a cabeça e tentei sorrir, mas não consegui.
Por todos os deuses, o que tinha feito?
Então Leukón se virou para olhar-me, tirou a sua fíbula
e a prendeu em meu sagum.
― Este é o meu presente, Cassia.
Eu toquei com o dedo o cavalinho de bronze.
― Obrigada ― murmurei ―, mas eu não tenho nada para
você.
Ele sorriu.
― Não importa.
Por fim, consegui devolver-lhe um sorriso. Ou algo
parecido.

112
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Kara me dirigiu um olhar de simpatia e pôs-se a andar


pelo atalho. Leukón sujeitou o seu próprio sagum com a
fíbula que ela acabava de dar-nos de presente e colocou a
pele de veado ao ombro.
― É hora de voltar para Numância.
― De acordo.
Stena nos dispensou com um longo olhar e um
comentário que, como é óbvio, não entendi.
― O que ela disse? ― perguntei a Leukón.
Ele olhava para mulher sábia com interesse.
― Algo bastante curioso.
― Ah, sim?
― Stena está certa de que a sua deusa protetora é
Epona.
― E isso o que quer dizer?
O jovem me contemplou durante um momento.
― Nada.
E pôs-se a andar pelo atalho.
Eu quis voltar a olhar para a mulher sábia, mas esta já
tinha partido.
As costas de Leukón já começavam a confundir-se com
o matagal.
― Espere por mim! ― chamei-o.
Ele se deteve.
E assim, com os passos compassados e com o destino
selado, o meu marido e eu iniciamos o regresso à cidade de
Numância.

113
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Numância, 154 a.C.

114
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XIV.
Duelo de titãs

Tinha-o feito. Tinha me casado.


Estava vagamente consciente da presença de Leukón
atrás de mim, no lombo do cavalo, mas mal lhe emprestava
atenção. A minha mente fervia de agitação; o meu corpo, por
sua vez, jazia lânguido sobre a sela.
O aroma a lírios tinha impregnado a minha roupa.
Joguei a cabeça para trás e contemplei o céu cinzento.
Pelo menos, era o mesmo céu que havia sobre Óstia.
Sobre Roma.
Que triste consolo.
O cavalo bufou. Eu lhe acariciei o lombo.
― Não sente nada ― disse Leukón nas minhas costas,
sobressaltando-me.
Esse comentário me incomodou.
― Como não sente nada? É um animal, não uma pedra.
O meu marido (meu marido!) riu entredentes.
― Não me referia a isso. Mal lhe tocou.
Esticou o braço e pôs a sua mão sobre a minha. Depois
me fez beliscar com força o lombo do cavalo.

115
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Assim. Assim já sente.


― E não lhe dói?
― É o meu cavalo.
― E?
― É tão duro quanto eu.
― Seu sagum é o mais duro, seu cavalo é o mais duro…
― enumerei ―. Tudo o que tem é o mais duro quê?
Leukón estava afogando-se de risada.
Eu fiquei confusa:
― Deuses, não posso acreditar que esteja pensando
nisso!
― Em quê? ― perguntou ele com tom amável.
― Você já sabe a que me refiro!
Ardiam-me as bochechas.
― Não, não sei ― insistiu Leukón ―. Seria amável ao
ponto de explicar-me.
― Não, não penso ser amável ― grunhi ―. Não gosto de
ser amável.
― Pois não seja. Não há problema.
Leukón voltou a rir baixinho, o que me irritou e, ao
mesmo tempo, abrandou-me um pouco.
Que estranho era que pudesse sentir simpatia por um
bárbaro. De certa maneira, lamentaria ter de traí-lo.
Um momento, no que estava pensando? É óbvio que não
lamentaria! Estava desejosa de deixar esta terra de selvagens!
Depois de uns minutos, Leukón rompeu o silêncio:
― Vá, Trovão, parece que a minha esposa decidiu deixar-
me sem palavras.

116
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Trovão? ― Pus os olhos em branco ―. A sério que


chamou Trovão ao seu cavalo?
― O que tem de mal?
― Nada, é muito original.
Leukón sorriu com orgulho.
― Você acha?
Dei-me conta de que não tinha captado a ironia.
― Sim ― menti com descaramento. Depois de ter
zombado do seu discurso sobre flores, não queria voltar a
incomodá-lo.
― Como chamaria você a um cavalo?
― Preferiria que fosse uma égua.
― Gosto de saber disso.
― Por quê?
― Epona é a deusa protetora dos cavalos, mas sente
predileção pelas éguas.
― Não sei se isso me deixa em muito bom lugar.
― Oh, muito pelo contrário. Epona é uma deusa muito
poderosa. De fato…
― Sim? ― perguntei-lhe ao ver que deixava a frase a
meio.
― De fato ― disse ele finalmente ―, Stena, a sua
sacerdotisa, é a única pessoa que pode deter Avaro.
― Como?
― A deusa Epona é quase tão importante quanto o deus
Lug ― explicou Leukón ―. Por isso Stena pode fazer frente a
Avaro… algum dia.
― Algum dia.

117
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Então o meu marido me olhou com expressão grave.


― Avaro se zangará quando souber que arruinei o seu
sacrifício. E não é um homem que perdoe facilmente, assim
teremos de ter muito cuidado com ele. Tente ganhar o seu
respeito, de acordo?
― Diga-me, como ganho o respeito de alguém que se
dedica a assar os inimigos de seu povo, entre os quais eu me
encontro?
― Não lhe fale como me fala ― bufou ele ―. Será um bom
ponto de partida.
E, estalando a língua, fez com que Trovão aumentasse a
velocidade.

Fizemos o resto da viagem em silêncio. Quando voltamos


a avistar a colina de Numância, o vento uivava.
Perguntei-me que recebimento nos dariam os outros
celtiberos.
A primeira coisa que vi ao cruzar as portas foi a
plataforma de madeira. Estava no meio de uma das ruas
principais, solitária, esperando a sua vítima.
Quer dizer, esperando-me.
Trovão diminuiu a marcha e se deteve, bufando. O meu
marido desmontou e me baixou ao chão.

118
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Várias pessoas nos viram e começaram a gritar. Só


percebi uma palavra: “Leukón”.
― O que dizem? ― perguntei-lhe com apreensão.
― O que você acha? ― suspirou ele ―. “Leukón e a
romana já estão aqui!”.
A Romana. Essa ia ser a minha nova identidade.
Bom. Podia suportá-la, tendo em conta que a alternativa
era morrer queimada.
Kara deteve o seu cavalo junto a nós e desmontou de
um salto. Os três pusemo-nos a andar, rodeados por uma
pequena multidão. Todos nos olhavam, mas ninguém se
atrevia a deter-nos.
Não vi Avaro em lado nenhum. E rezei a algum deus,
romano ou celtibero, para que ele não aparecesse.
Quando chegamos ao que devia ser a casa de Leukón,
Karos de Sekaisa já tinha sido advertido do nosso regresso.
Tal como Calias e eu suspeitávamos, o homem tinha sido
eleito líder dos Belos e dos Arevacos durante o tenebroso
ritual que tínhamos presenciado às escondidas. Avançou com
ar imperioso, abrindo caminho por entre a multidão, até
deter-se em frente a nós.
Eu estava segura de que, por aquela altura, toda a
Numância sabia que Leukón tinha casado com a Romana.
Mas o que pensaria o seu líder? Tomaria medidas a respeito?
Eu ainda não sabia grande coisa dos costumes celtiberos,
mas supunha que não era muito normal alguém casar com
sacrifícios humanos.

119
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

O meu marido parecia sereno. Saudou Karos


respeitosamente e, continuando, convidou-o a entrar em sua
casa.
Agora também ia ser a minha casa. E a de Calias. Não
tinha visto o menino quando chegamos; supus que
continuaria onde o tínhamos deixado.
Melhor assim. Preferia que passasse desapercebido até
que eu pudesse ir ao seu encontro.
Os quatro entramos na casa. Era muito parecida com a
que tinha ocupado até então: também tinha três cômodos de
diferentes tamanhos, mas, além disso, contava com uma
pequena quadra para Trovão. Kara se ocupou de deixar nela
os cavalos (a sua égua, Furiosa, era quase tão grande quanto
o próprio Trovão, por isso os dois animais encetaram uma
amistosa luta pelo melhor lugar) e logo se uniu a nós no
cômodo maior.
Leukón me indicou um espaço no banco. Eu me
acomodei nele, tratando de não olhar com muita insistência
para Karos de Sekaisa. Este, por seu lado, esperou que o meu
marido desenrolasse a pele de veado para instalar-se sobre
ela. Deve ter elogiar a sua qualidade, pois Kara se mostrou
agradada. Ela também se sentou no chão, mas Leukón
preferiu fazê-lo no banco, a meu lado.
Uma vez instalados, os dois homens começaram a falar
entre eles e eu me entretive bisbilhotando. O chão estava
cheio de peles de veado e as paredes de adornos de haste.
Recordei a coroa que Leukón tinha usado durante as nossas
bodas e disse a mim mesma que, provavelmente, o seu deus

120
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

protetor, Cernunnos, estava relacionado com os veados, como


Epona estava relacionada com os cavalos.
Reprimi um sorriso. A este ritmo, acabaria conhecendo
os deuses celtiberos.
Deixei de sorrir quando reparei que havia armas
dispersas por toda a parte: adagas, facas, pequenos escudos
e espadas, naturalmente. A melhor estava no cinto de
Leukón, mas havia outras. Observei que Kara também as
olhava com interesse.
Apesar de tudo, o conjunto me agradava. Junto ao fogo
havia ramalhetes de tomilho e alecrim, e eu gostei do aroma
que desprendiam. Pelo menos, não exalavam a cavalo
molhado.
Depois de uns minutos de conversa, Karos se inclinou
sobre o meu marido e lhe deu uma palmada no ombro.
Leukón esboçou um meio sorriso e inclinou a cabeça.
― Está tudo bem? ― perguntei-lhe.
― Isso parece. A sua esposa intercedeu por nós.
― A sua esposa? ― comecei a dizer, mas não pude
acabar a frase.
Porque então começaram os gritos. Vinham da porta.
E, embora eu ainda não conhecesse a língua dos
celtiberos, soube que não estavam gritando nada de bom.

121
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Ao redor da casa de Leukón se reuniam uma centena de


pessoas.
A primeira coisa que vi foi a cara vermelha de Aunia.
A segunda, a expressão zombadora de Ambón.
A terceira…, o corredor que se abria por entre as
pessoas para deixar Avaro passar.
O druida dirigiu o seu olhar para o meu marido. Os seus
olhos eram de uma cor marrom esverdeada, quase amarela,
que me trouxe lembranças do fedor dos pântanos. Ao redor
tinham profundas olheiras. A boca, uma linha reta, estava
torcida em um sorriso amargo.
Quando o ancião se moveu, a sua comprida cabeleira
branca flutuou atrás dele como um halo.
Avaro falou. Eu não tinha a menor ideia do que estava
dizendo, mas estava convencida de que não era nada
agradável.
Não, não era. As suas palavras provocaram gritos entre
as pessoas: algumas pessoas protestaram, mas a maioria
delas nos olhava com hostilidade.
Karos levantou as mãos para pedir silêncio. Os gritos se
converteram em murmúrios, mas não cessaram.
O meu marido se moveu. Foi um movimento discreto,
quase imperceptível…, que o situou bem diante de mim.
Kara o seguiu com o olhar. Ela também se deslocou
ligeiramente.
Quando Avaro disse algo mais, os dedos de meu marido
roçaram o punho da espada.
“A gladius hispalensis é a melhor espada que existe…”.

122
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Reprimi um calafrio. Por muito que o meu marido fosse


um bom guerreiro, Kara e ele não conseguiriam fazer nada
contra toda a Numância.
Sentia algo mais do que medo. Sentia raiva.
“Parabéns, Cassia: não só se colocou em uma confusão,
mas também o colocou a ele, a um menino inocente e a dois
guerreiros valentes. E nem sequer consegue perceber o que
acontece ao seu redor”.
Apertei os punhos.
Então Avaro me assinalou com um dedo ossudo, e
Leukón desembainhou a espada com um grito de guerra.
Não atacou. Não ainda. Mas conseguiu que todo o
mundo desse um passo atrás.
Até mesmo Karos ficou pálido. Trocou algumas palavras
com Leukón; Kara acrescentou algo em voz baixa, mas Karos
não deixava de olhar para o meu marido.
Ele não tinha guardado a sua arma.
E, quando parecia que ia derramar sangre, alguém
irrompeu na cena.
Stena chegou caminhando com o mesmo aprumo que
tinha mostrado no bosque. Como se não tivesse à frente dela
dois titãs, a ponto de bater-se em duelo. De um lado, um
druida sedento de sangue; do outro, um guerreiro disposto a
fatiar pescoços.
Era estranho pensar que aquele guerreiro disposto a
fatiar pescoços era o meu devoto marido.

123
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

A mulher sábia se deteve em frente ao druida e disse


algo. Fez com voz pausada, mas firme. E sem afastar o olhar
de Avaro em nenhum momento.
O ancião empalideceu. De ira.
Mas não ousou contradizê-la.
― Vamos, Cassia.
Estava tão hipnotizada que não me tinha dado conta de
que Leukón estava a meu lado.
Mas compreendi que tínhamos tido muita sorte. E, sem
fazer perguntas, segui o meu marido para o interior de nossa
casa.

124
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XV.
A honra de um Belo

Eu ainda continuava impressionada.


― O que lhe disse?
Leukón fechou a porta atrás de nós, apoiou as costas
nela e exalou um profundo e prolongado suspiro.
― O que disse Stena a Avaro? ― insisti.
― Umas quantas coisas, temo.
― Isso já sei, mas como o convenceu a que nos deixasse
em paz?
Leukón voltou a suspirar. Depois caminhou
pesadamente até ao comprido banco e se sentou a meu lado.
― Disse-lhe que nos tínhamos casado sob o amparo dos
deuses. E que, como você é minha esposa, eu não posso
deixar que lhe façam mal sem romper o meu juramento
divino. Então pediu-lhe que não provocasse um
derramamento de sangue.
― E isso funcionou?
Eu duvidava que Avaro tivesse algum problema com
derramamentos de sangue.

125
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Stena disse que, se eu rompesse um juramento


divino, desonraria os Belos. E nós, os Belos, levamos a honra
muita a sério. ― Sorriu com amargura ―. Stena foi muito
ardilosa: converteu um assunto pessoal em um assunto
tribal. Se Avaro tivesse insistido em obrigar-me a lutar,
outros Belos se uniram a mim. E nem sequer ele pode se
permitir ao luxo de provocar uma matança, não diante de
Karos de Sekaisa.
― E Karos? Está do nosso lado?
― O que você acha? Stena é a sua esposa.
Isso sim eu não esperava.
― Oh.
― Sei, são um estranho casal.
― Não mais do que você e eu, na verdade.
― Isso é certo.
Leukón tirou a fita que segurava o seu cabelo, de
maneira que os seus cachos negros caíram sobre os seus
ombros. Depois pendurou o seu sagum em um gancho que
havia na parede.
― Não vai tirar toda essa roupa? ― perguntou-me.
Eu me pus tensa. Ele deve ter percebido, porque elevou
uma sobrancelha.
― Refiro-me ao sagum. Ficará com calor até que o fogo
se apague.
― É que… ainda tenho de sair ― repliquei ―. Para ir
procurar Calias. Quero que viva comigo…, se não se
importar, claro.
― Mesmo se eu me importasse ― adivinhou Leukón.

126
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― A verdade é que não penso separar-me dele.


― Sei. Por isso pedi a Kara que fosse buscá-lo.
― Ah. ― Demorei um momento para acrescentar ― :
Obrigada.
― De nada ― sorriu ele ―. Agora Calias também é parte
da minha família.
Inspirei profundamente.
Eu, gostasse ou não, acabava de formar família com
aquele homem. Não sabia por que as suas palavras me
afetavam tanto.
― Calias pode dormir na despensa ― sugeriu ―, e nós
aqui, junto à lareira.
A despensa era o quarto pequeno situado atrás do
cômodo maior. Estava separado dela por uma tosca cortina.
Perguntei-me se Leukón quereria que Calias dormisse ali
para que nós dois tivéssemos intimidade. E essa ideia me pôs
nervosa.
Alheio a meus pensamentos, o meu marido apoiou as
costas na parede.
― Amanhã deveria visitar Stena e agradecer-lhe por ter-
nos ajudado. Eu posso traduzir as suas palavras.
― É óbvio que o farei! ― assegurei, um pouco
envergonhada de que não me tivesse ocorrido ―.mas, para
dizer a verdade, surpreende-me.
― O que a surpreende?
― Que nos tenha ajudado. Casou-nos às escondidas de
todos, enfrentou Avaro por nós… ― enumerei ―. É muito sua
amiga?

127
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Não.
O tom frio de Leukón me surpreendeu.
― Isso me parecia ― murmurei depois de um momento
―. Tenho a impressão de que Kara e você são bons amigos,
mas Stena…
― Kara é como uma irmã para mim ― disse Leukón ―.
Mas temo que Stena e eu não tenhamos uma relação muito
estreita.
― Então? ― insisti ―. Por que foi tão generosa conosco?
― Espera algo em troca.
― De você?
― Não. De você.
Quando ia perguntar a que se referia, a porta se abriu
de novo.
― Senhora!
Abri os braços para receber Calias neles. O menino
esfregou o seu nariz contra a minha bochecha.
― Senhora, conseguiu! Livrou-se daquele homem
horrível!
― Isso parece ― admiti ―. Por que o diz? Passou-se
alguma coisa na minha ausência?
Ele me soltou para olhar-me nos olhos.
― Oh, sim ― disse com ardor ―. O druida ficou furioso
ao ver que não estava, então começou a dar voltas por aí,
gritando e esbracejando, enquanto todos os outros o olhavam
com cara de susto… Tinha de ver! Um mequetrefe como ele
tem toda uma cidade atemorizada! ― Calias elevou o queixo
―. Se eu tivesse uma espada, dar-lhe-ia uma boa lição…

128
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Não vai ter uma espada ― adverti-o ― nem vai dar


lições a ninguém. Vai viver aqui, em casa de Leukón, até que
possamos escapar juntos.
― Senhora…! ― Calias se alarmou, olhando
significativamente para Leukón e para Kara.
― Não se preocupe, querido: não entendem uma só
palavra de grego ― tranquilizei-o ―. E agora, se não se
importar, vou dizer a meu marido que nos dê algo para
comer.
Pronunciei as palavras “meu marido” com um orgulho
inadequado, dadas as circunstâncias. Pigarreei,
envergonhada, mas Calias não deve ter percebido, porque se
limitou a instalar-se sobre as peles que rodeavam a lareira.
“Terei de ver como se adapta”, pensei, “não parece sentir
falta de nada… nem de ninguém”.
Mas de quem ia sentir falta? Do capitão Alexis? O meu
coração deu um tombo ao pensar nele. Ter-se-ia recuperado
de sua enfermidade?
Desejei que assim fosse. Desejei-o com todas as minhas
forças.

Leukón nos serviu um guisado de coelho para jantar.


Além da carne, levava cenouras e uma erva cujo nome latino
o meu marido ignorava. Estava um pouco picante, mas muito
129
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

saboroso; eu devorei a minha parte e Calias limpou a sua


tigela com um pedaço de pão de aveia.
Kara jantou conosco, mas se retirou em seguida. Leukón
colocou umas peles na despensa para Calias e o menino caiu
adormecido numa questão de minutos. Quando adormeceu, o
meu marido afastou a cortina e o agasalhou. Depois, voltou a
fechá-la.
― Não posso agasalhá-lo quando ainda está acordado ―
disse-me em voz baixa ―, apenas quando dorme.
― Por quê?
― É um menino duro. Não quero torna-lo brando.
― O que tem de mal em ser brando? ― protestei ao dar-
me conta da indireta.
Leukón riu discretamente.
― Nada…, se você não gosta de estar vivo.
― É assim tão difícil tudo aqui? ― perguntei, meio na
brincadeira, meio a sério.
Meu marido se sentou no banco comprido e me
contemplou. O fogo desenhava sombras em sua cara.
― Não mais do que em qualquer outra parte ―
murmurou ―. Pelo menos, aqui não há escravos.
― Diz por Roma?
― Sim, a verdade.
― Eu tenho uma escrava. Chama-se Melpómene e é a
minha melhor amiga.
― Em Roma estão acostumados a comprar os seus
amigos?
Essas palavras me magoaram.

130
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Perdoe-me ― disse Leukón ao ver a minha cara ―, não


estou bem.
― Sinto falta dela, sabe?
Falei com aspereza. Se não o fizesse, choraria. E estava
farta de chorar.
― Entendo. Perdoe-me, a sério. É só que… Bom, custa-
me entender alguns costumes de seu povo. Eu não gosto da
ideia de que se comprem e vendam seres humanos, eu nunca
gostarei…, mas você não tem culpa, Cassia. Não devo
esquecê-lo.
Levantei a cabeça para olhá-lo.
E uma pontada de dor encolheu o meu estômago.
Eu estava planejando fugir do selvagem com o qual me
tinha casado para salvar a vida. Ele estava tentando
compreender a sua esposa romana.
Isso me fez recordar algo.
― Leukón, preciso perguntar-lhe uma coisa.
― Adiante.
― Durante as bodas, mencionou os nomes de seus pais.
Seu pai…
― Sim?
― Era Tibério Semprónio Graco, o cônsul?
Seus lábios se curvaram em um sorriso divertido.
― Não, Cassia. Não era o mesmo Tibério Semprónio
Graco.
― E não é muita coincidência que tenha o mesmo nome?
― Estávamos falando de escravos, recorda?
― Sim, o que tem isso a ver?

131
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Cassia, você sabe melhor do que eu o que acontece


quando um escravo é libertado por seu amo romano…
Abri os olhos completamente. É óbvio que sabia: quando
um romano libertava um escravo, este se convertia em um
liberto… e adotava um nome romano. Normalmente, o nome
de seu libertador.
― Seu pai é um liberto de Graco?
― Foi. Morreu.
― Sinto muito.
― Eu também. E sim, foi um escravo e depois um
liberto. Um liberto de Graco.
Leukón tinha deixado de sorrir. Agora olhava para o
fogo, e o seu olhar parecia o de alguém mais velho.
― Quantos anos tem?
Perguntei sem pensar.
― Dezenove, e você?
― Vinte. Pensava que fosse mais velho.
― Eu pensava que você era mais jovem.
― E tem algum problema com esse fato?
― Nenhum absolutamente.
Pigarreou.
― Eu tinha dois anos quando o meu pai foi leiloado em
Ampúrias. Graco o comprou logo, e não o libertou até muito
tempo depois. Eu só o conheci quando acabava de fazer doze
anos. Nessa altura, a minha mãe já tinha morrido.
― Oh.

132
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― O meu pai sonhava voltar para Sekaisa…, mas as


coisas tinham mudado. Alguns pensavam que era uma
desonra ter sido capturado pelos romanos.
― Ele não teve a culpa ― murmurei.
― Claro que não. Mas, sabe... o meu pai não era como
eu. Embora desejasse voltar para casa com a sua família, não
odiava os romanos, nem sequer Graco. De fato, admirava-o.
Por isso me obrigou a aprender latim.
― Alegro-me que o tenha feito.
― Eu também ― disse a contragosto ―. Mas me alegro
agora. Naquela altura…
Fez um gesto um pouco grosseiro para indicar o que lhe
tinha parecido na altura.
― Então, você odeia os romanos? ― Quis saber ―. Tenho
de dormir preparada para que me apunhale no coração?
― Não diga isso nem de brincadeira. Nunca deixaria que
lhe fizessem mal.
― Por quê?
― Porque é minha mulher.
― E antes?
― Antes?
Levantei-me do banco e me aproximei da janela.
Necessitava de um pouco de ar fresco… e fugir dos olhos de
meu marido.
― Por que fez isto, Leukón? Por que se casou comigo? E
não diga que fê-lo só para ajudar-me.

133
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Não ia dizer isso ― respondeu ele com calma ―. Não


vou por aí casando-me com todas as pessoas que quero
ajudar.
― Então?
― Gosto de você. Não me importa estar casado com você.
― Não se importa? Esse é um motivo para casar?
― Pretende que faça arder Troia por você, Helena?
A referência a “A Ilíada” me deixou assombrada. Não
esperava ouvir falar de um poema de Homero na terra dos
selvagens.
― Como conhece a “A Ilíada”?
― Kara a conhece. Contou-me, e eu gosto. Mas, se
quiser a minha opinião, o que fez Paris com Helena foi um ato
de covardia, além de uma estupidez. O verdadeiro herói de
Troia foi Heitor.
Eu continuava a pensar em Kara.
― Mas como pode uma celtibera…?
― Não estamos falando de Kara, mas sim de nós ―
Leukón me interrompeu ―. O que é que quer saber?
― Pois… Não sei, o que espera deste matrimônio? O que
quer de mim exatamente?
Ele não respondeu; só me olhou. Olhou-me com tanta
intensidade que, por um momento, deixei de respirar.
Por fim, falou. Em voz tão baixa que mal o ouvia por
cima do crepitar do fogo.
― Quero muitas coisas, Cassia Minor. Quero que nos
dêmos bem. Que nos façamos companhia. Quero que
comamos juntos, que bebamos e que celebremos os

134
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

momentos importantes de nossas vidas. Que riamos juntos,


como já fizemos, quando cavalgávamos para cá, e que não
tenha medo de chorar por sua escra…, ah…, por
Melpómene… diante de mim. ― Minhas mãos continuavam
pousadas no batente da janela. Não me atrevia a mover-me ―.
Quero que me ame ― concluiu com simplicidade ―, e que me
deixe amá-la. Talvez não nos amemos ainda, mas… eu gosto
de você. E quero que goste de mim, pelo menos. Até que
possa sentir algo mais.
Deuses, não. Não podia continuar a escutá-lo.
Eu ia partir de Numância. Não queria deixar um coração
quebrado atrás de mim. Nem sequer um orgulho ferido.
Leukón disse algo mais:
― Mas me fez duas perguntas. Respondendo à
primeira…, não espero nada. Você não me deve nada.
E, dando por finalizada a conversa, o jovem guerreiro se
estendeu sobre as peles do chão e fechou os olhos.
Eu fiquei olhando-o em silêncio.
Sentia algo no coração. Algo incômodo e do qual, no
entanto, não me podia libertar.

Não sei quanto tempo passei junto à janela. Só sei que,


quando decidi afastar-me dela, a respiração de meu marido
se tinha tornado lenta e pausada.
135
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Tirei o sagum em silêncio, mas agarrei o cavalinho de


bronze e o levei para o leito de peles. Leukón me tinha
reservado a parte mais quente, o qual me fez sentir
vagamente culpada.
Então recordei a moeda que Calias me tinha dado. Tirei-
a de minha bota de cano alto e a segurei ao lado do broche.
Os dois objetos adquiriram um brilho alaranjado à luz
das chamas.
Seguindo um impulso, ajoelhei-me junto a Leukón e
depositei a moeda ao lado de sua cabeça. Depois lhe pus um
cacho atrás da orelha e me deitei a seu lado, a uma distância
prudencial, isso sim.
Certamente Calias não se importaria que lhe desse
aquela moeda.
Bem antes de cair presa no torpor, dei-me conta de algo:
aquela tinha sido a minha noite de bodas.
“Mas que romântica”, disse uma voz zombadora dentro
da minha cabeça.
E adormeci.

136
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XVI.
Romana

Um aroma agradável me despertou.


Abri os olhos. Leukón já não estava deitado nas peles,
mas ajoelhado em frente à lareira. Cozinhando. Era dali que
vinha o aroma: do recipiente que o meu marido estava
remexendo com paciência.
Estava tão cômoda que me fiz adormecida durante uns
minutos mais, até que o meu estômago me obrigou a
levantar.
― Bom dia ― murmurou Leukón ―. Dormiu bem?
― Sim, bastante bem.
Tentei pentear-me com os dedos, mas não obtive um
grande resultado.
Espiei por cima de seu ombro para ver o que estava
cozinhando. Era uma massa esbranquiçada cheia de grumos.
― O que é isso?
― Papa de aveia.
― Ah, como o puls? ― perguntei distraidamente.
― O puls?

137
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Assim chamamos as papa, mas são de trigo, não de


aveia ― expliquei ―. Tampouco as tomamos pela manhã, mas
à noite. E as acompanhamos com mel, quase sempre.
― Nós comemos papa pela manhã e as misturamos com
manteiga, mas podemos prepará-las à noite, se preferir.
― Não, está bem assim.
Estivemos um minuto em silêncio.
― Bem... ― disse Leukón ―, ontem à noite deixou cair
uma coisa.
Assinalou a moeda, que tinha colocado com extremo
cuidado em cima do comprido banco.
― Não a deixei cair, deixei-a lá para você ― admiti ―. É
uma moeda do reino da Numídia. Foi Calias quem me deu,
mas não acredito que se importe que agora seja sua.
― Mas por que me dá isso?
― Porque ontem não lhe dei nenhum presente.
― Não importa.
― Sim, importa.
― Nesse caso, agradeço-lhe. Contudo ― adicionou,
pensativo ―, parece-me que na Numídia nunca viram um
cavalo.
― O que quer dizer?
― Viu a coroa da moeda? Se aquilo for um cavalo, eu
sou uma galinha!
― Não é um cavalo, homem ― sorri ―. É um elefante.
― Um quê?
― Não sabe o que é um elefante?
― Não, a verdade é que não.

138
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Passei os seguintes minutos tentando dar-lhe uma


descrição mais ou menos detalhada. Talvez tenha exagerado
um pouco, porque Leukón começou a olhar-me com cara de
preocupação.
― Por Cernunnos! Existem bestas desse tamanho?
― Sim, temo que sim.
― E não são perigosas?
― Só se as provocar.
― Ah, então são como eu.
Ia soltar uma gargalhada, mas me dei conta de que o
dizia a sério e me reprimi a tempo.
― Sim, Leukón. Os elefantes são como você.
Virei-me para rir em silêncio.
Nesse momento, Calias esticou a cabeça por detrás da
cortina.
― Chega bem a tempo do café da manhã ― informei-o
em grego.
Os três fizemos a nossa primeira refeição juntos. Foi
tranquila, embora me cansasse um pouco ir passando do
latim para o grego para falar com eles. Apesar de tudo,
alegrava-me de ter companhia; não esquecia o quão só me
tinha sentido no porão do “Quimera”.
Parecia que tinha acontecido há anos.
Além disso, as papa estavam comestíveis, o que me
aliviou. Não teria podido suportar alimentar-me de pão seco e
castanhas para sempre.
“Para sempre não, Cassia”, recordei-me, “só até que
parta”.

139
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Sim. Só até lá.


Assim que acabou de tomar o café da manhã, Leukón
partiu dizendo que tinha coisas a fazer e levou Calias com ele.
― Aonde vão?
― Calias tem de conhecer os outros meninos ― disse o
meu marido.
― O que diz, senhora? ― perguntou o menino com
nervosismo.
― Que vai conhecer outros meninos de Numância.
― Ah, bom.
― Não se importa?
― Não tenho nada melhor para fazer, senhora. E não
quero ficar preso aqui.
Eu, por outro lado, sim ia ter de ficar presa ali.
A não ser…
― Espere, Leukón! ― chamei-o quando os dois
começaram a caminhar.
― Sim?
― Posso ir ver Stena?
― Ainda não.
― Então, quando?
― Quando eu voltar.
― E quando será isso?
― Pela tarde.
― Vou ter de estar toda a manhã sem fazer nada?
― Há coisas para fazer em casa ― disse ele com
paciência ―. Pode aprender a usar o tear, por exemplo. Eu
mal tenho tempo para isso e agradeceria um pouco de ajuda.

140
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Assinalou o rudimentar tear que descansava junto ao


alçapão da adega.
― O tear ― repeti, confiante ―. Bem.

Mal. Foi muito mal.


Nunca tinha usado um tear como aquele. Melhor
dizendo: não estava acostumada a usar nenhum. A minha
mãe e Melpómene gostava de tecer, mas eu não. Eu preferia
cantar, tocar lira ou pintar mosaicos. Por desgraça, a minha
mãe considerava que cantar e tocar a lira eram atividades
demasiado relaxantes, e que pintar mosaicos era uma tarefa
de homens (como se as mulheres não tivessem duas mãos
para fazê-lo).
Para piorar a situação, o tear celtibero não se parecia
em nada ao tear romano. O suporte era tosco e os pesos
oscilavam em todas as direções, enredando os fios. Um dos
pesos me golpeou o joelho e me fez amaldiçoar de uma forma
que teria escandalizado a minha mãe. Mal consegui tecer
umas quantas fileiras antes de dar-me por vencida.
Ainda era meio-dia. Leukón não voltaria até ao
entardecer; enquanto isso, eu devia ficar em casa. Realmente,
não me apetecia sair sozinha: por um lado, não entendia a
língua dos celtiberos, por isso não poderia falar com ninguém
sem um intérprete; por outro lado, poderia encontrar-me com
141
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Avaro, Aunia ou algum outro numantino desejoso de ver-me


arder na fogueira.
Não, a verdade é que não queria sair de casa.
Mas o que ia fazer, se não tecesse?
― Deuses ― disse em voz alta ―, não me tinha dado
conta do quão inútil sou.
Essa ideia me deixou abatida.
Então reparei em algo que estava encostado a um canto.
Uma roda de oleiro. Rudimentar, mas inconfundível.
― Disto já eu gosto mais…
Lá fora tinha começado a chover. Saí de casa com
cautela, mas não fui além da quadra de Trovão: agachei-me
junto à cisterna (os celtiberos não tinham impluvium, como os
romanos, mas um simples buraco coberto de pedras lisas
para recolher a água de chuva), e peguei um bom punhado de
terra argilosa. Depois voltei rapidamente para o interior.
E, satisfeita, pus mãos à obra.

― Por Cernunnos e Baelistos! ― exclamou Leukón ao


entrar em casa.
Eu o saudei do centro do cômodo. Quando o fiz,
pulverizei pedacitos de argila por toda a parte.
― Oh!
O meu marido me olhou com espanto.
142
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― O que está fazendo, mulher?


― Coisas em barro, não vê? ― Assinalei a pequena
coleção de copos e vasilhas que tinha ido deixando a meu
lado ―. Quando sair o sol, porei para secar. Olhe, a decorei e
tudo!
Mas Leukón não parecia entusiasmado.
― O que aconteceu? Fiz algo de mal?
― Não, não. Mas não precisamos de recipientes, temos
de sobra. Roupa, por outro lado…
― Ouça, tentei usar o tear e é impossível.
― Ai sim?
Eu não gostei do tom com que ele disse aquilo.
Empurrei suavemente a roda de oleiro e me levantei.
― Recordo-lhe que acabo de chegar e não tenho nem a
menor ideia de como se fazem as coisas por aqui. Pensei que
se alegraria que tivesse tentado fazer algo útil.
― Alegro-me que queira ser útil, mas…
Leukón abrangeu a habitação com o braço. Agora a
metade do espaço estava ocupado pelo torno e pelas minhas
criações; até àquele momento, não me tinha dado conta de
que tinha invadido meia casa.
E, por alguma razão, senti vergonha.
― Bom, de nada ― balbuciei ―. Não voltarei a usá-la.
― Só quando for necessário ― disse Leukón suavemente.
Eu tentei afastar o cabelo da cara, mas só consegui
sujar-me ainda mais.
― Stena nos espera ― disse o meu marido.
― Já? Não posso lavar-me?

143
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― É melhor que não a façamos esperar.


E assim, humilhada e coberta de argila, segui Leukón
até à casa de Karos.
Felizmente, a chuva ajudou a limpar-me. Dirigimo-nos a
uma das ruas diagonais; percorremos uma distância curta,
mas cruzamos com muitas pessoas.
E todas elas repetiam a mesma palavra ao ver-me
passar.
― O que dizem? ― perguntei a Leukón.
― Romana.
― Esperava algo pior.
― Pior do que isso?
Engoli em seco. Às vezes, esquecia que aquele povo
estava em guerra com o meu.
Por sorte, logo chegamos à casa de Karos de Sekaisa. E
Leukón me fez passar.
Pelo que parecia, todas as casas de Numância (ou, pelo
menos, as casas das pessoas importantes) se pareciam entre
elas. A de Karos e Stena possuía uma diminuta adega, um
armazém discreto e um amplo cômodo em que tudo se
distribuía ao redor da lareira. Nesse aspecto, não era muito
diferente da nossa. Contudo, havia algo que revelava o status
de seus donos: armas.
Havia espadas e lanças penduradas nas paredes.
Escudos com o símbolo do deus Lug, uma espécie de
triângulo cujos vértices acabavam em espirais, pintados no
couro. Adagas decoradas. Grevas brilhantes.

144
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Karos de Sekaisa era um líder guerreiro. E não


pretendia deixar que a sua gente o esquecesse.
Mas o homem não estava lá quando chegamos. Stena
nos esperava junto à lareira; ao ver-nos chegar, convidou-nos
a sentar.
Não falou logo. Primeiro nos serviu dois copos de um
líquido de cor amarelada. Enquanto o fazia, reparei que o seu
cabelo castanho tinha alguns fios prateados.
― Obrigada ― disse, aceitando o meu.
Provei um gole.
Estive a ponto de cuspir-lhe aquilo na cara, mas me
controlei. Vi que Leukón dissimulava um sorriso.
― Você gosta de nossa caelia, querida? ― perguntou com
tom amável.
Stena me olhava com interesse.
― Tem sabor de urina ― respondi sem perder o sorriso -
é para envenenar-me?
― Não, só é uma cerveja um pouco forte.
Meu marido esvaziou o copo antes de devolvê-lo a Stena.
Eu contive a respiração e o imitei.
Argh! Aquela mistura era imbebível.
― A caelia é muito popular por aqui ― disse Leukón
então ―. É melhor que se acostume a ela.
― Vá para o inferno.
― Parece-lhe elegante falar assim com o seu marido?
― O que não é elegante é falar em latim diante de Stena
― assinalei ―. Traduza-lhe as minhas palavras, por favor.
― Menciono que a sua cerveja tem sabor de urina?

145
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Só lhe diga que lhe agradeço pelo que fez ontem.


Leukón lhe transmitiu a minha mensagem. Stena o
escutava com atenção, mas me olhava .
Respondeu algo.
― Stena diz que não lhe agradeça, pois se alegra que
esteja entre nós. ― Leukón chiou por entre os dentes ―.
Trama alguma coisa.
― Pergunte-lhe por que se alegra ― urgi-lhe, ignorando a
última coisa que disse.
Stena explicou em voz pausada. Leukón demorou um
pouco para traduzir.
― Diz que confia em você. Que sabe que vem de um
povo… civilizado. ― Pareceu custar-lhe bastante pronunciar
aquela palavra ―. E que está desejando que falem com calma.
― Sobre o quê?
― Não quer dizer.
― Como…?
Stena me interrompeu para voltar a falar. Deu um breve
discurso, que Leukón traduziu arrastando as palavras:
― Diz que não quer que eu me meta em seus assuntos e
que, por esse motivo, você deve aprender a nossa língua o
mais rápido possível. Ela vai ajudar você.
Notei que o meu marido tinha esticado os ombros.
― Leukón, se Stena não lhe agrada… ― comecei a dizer,
mas ele levantou uma mão para pedir-me silêncio.
― É-me igual. Stena nos ajudou; se não fosse por ela,
não estaríamos aqui. Assim aconselho a que faça o que lhe
diz.

146
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Bem. De qualquer maneira, quero aprender a sua


língua…
Dei-me conta do que tinha acabado de dizer.
Por que queria aprender a língua dos celtiberos? Se a
minha intenção era partir dali o antes possível…
“Bom, por agora, estou aqui”, refleti. “E não tem sentido
nenhum permanecer isolada”.
Pela primeira vez em todo esse tempo, Stena sorriu
levemente. E se inclinou para tocar-me no braço.
Sua mão era suave e estava morna.
― Stena diz que pode contar com ela.
Por alguma razão, senti o impulso de agarrar-lhe a mão.
Se o meu gesto surpreendeu a mulher sábia, dissimulou-o;
deu-me um suave apertão e me soltou com delicadeza.
Logo tocou o ventre em gesto protetor.
― É hora de ir ― disse Leukón
Stena não se despediu. Eu a olhei pela última vez antes
de abandonar a sua casa; não era uma mulher formosa, mas
o fogo refletia na sua cara pálida, tingindo-a de vermelho e
âmbar.
Nesse momento, entendi o que Karos tinha visto nela.

Quando voltamos para casa, Calias estava de mau


humor. Meu marido tampouco parecia muito animado, e eu
147
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

voltei a sentir-me mal ao ver os restos do meu trabalho


pulverizados pelo chão. Coloquei a roda de oleiro no seu lugar
e, com um suspiro, juntei os copos que tinha fabricado e fiz
uma grande bola de argila com eles.
― Não vai secá-los ao sol? ― perguntou Leukón, que
estava a esfolar um coelho.
― Não ― disse com orgulho ―. Se ninguém gosta deles,
não tem sentido guardá-los.
― Você gostava deles, não?
― Argh!
O meu marido franziu o cenho, mas não disse nada
mais. Enquanto esfolava o pobre animal, tentei falar com
Calias, mas o menino respondia com monossílabos e me
cansei dele depois de uns minutos.
Durante um momento, só se ouviu o rangido da lareira e
o desagradável som da faca de esfolar sobre a pele do coelho.
Até que, de repente, ouvimos umas batidas na porta.
― Talvez seja Kara ― mencionei.
― Duvido ― resmungou Leukón, secando a testa com o
antebraço ―. Kara não sabe bater sem pôr a porta abaixo.
Permiti-me sorrir. Leukón ficou de pé e foi abrir.
Esteve uns minutos falando com a pessoa. Eu não podia
vê-la de onde estava e achei que pareceria mal aparecer nas
suas costas, por isso aguardei pacientemente.
Quando Leukón se despediu e retornou para junto do
fogo, levava algo entre as mãos.
Era uma pedaço de tecido. Quando o desdobrou, vi que
se tratava de uma túnica de lã.

148
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Que bonita ― comentei. A lã estava por tingir, mas


tinha adornos bordados nas mangas.
― É um presente de Aunia ― disse Leukón.
― De Aunia? ― repeti, sobressaltada ―. A mesma Aunia
que colaborou com Avaro para queimar-me na fogueira?
― Ela só fez o que lhe mandaram.
― E o fez com gosto, por certo.
Meu marido me olhou com receio.
― O que quer dizer com isso?
― Você viajava com Aunia quando nos conhecemos ―
recordei- lhe ―. São muito amigos?
― Somos companheiros de armas.
― Aunia tem marido?
― O que está insinuando?
― Tem marido ou não?
― É viúva ― disse Leukón com aspereza ―, e não
entendo a que propósito isso vem.
― A propósito que não acho graça que uma mulher que
tentou que me queimassem viva lhe dê túnicas de presente.
Calias nos olhava com desconcerto.
― Passa-se alguma coisa, senhora? ― perguntou-me
com mais frieza do que habitualmente.
― Passa-se alguma coisa com você? ― repliquei.
O menino me virou a cara e resmungou:
― Não se passa nada.
Leukón me olhava com gravidade.
― Não culpe Aunia pelos planos de Avaro ― disse em voz
baixa ―. Ela só obedece ordens.

149
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Kara estava na mesma situação e me ajudou. Jogou


fora a minha refeição.
― Kara é valente. Aunia tece camisas. Cada um faz o
que pode.
― Mas…
Leukón arremeteu o objeto ao chão.
― Não quero continuar a falar disto.
O meu marido tombou sobre as peles e fechou os olhos.
Mas eu não tinha terminado ainda:
― Leukón, pediu a Aunia que lhe fizesse uma túnica?
Ele se levantou bruscamente.
― Como diz?
― Como eu não sei usar o tear, talvez tenha pensado
que…
― Crê que sou tão inútil assim a ponto de não saber
fazer as minhas próprias túnicas? ― estalou ―. Aunia me deu
um presente e eu o aceitei por cortesia, isso é tudo!
― Pois muito bem! Aceite todos os presentes que queira!
Sentei-me no banco comprido, abracei a mim mesma e
fechei os olhos.
― Não vai dormir aí, pois não?
― Não vejo por que não.
― Muito bem ― grunhiu Leukón ―. Como você preferir.
Levantou-se e agarrou o seu sagum. Depois o atirou
para cima de mim.
Eu o afastei sem sequer olhar.
― Estupendo ― suspirou ele ―. Congele, se for isso que
quer.

150
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Voltou a deitar-se. Desta vez, deixei-o em paz.


Então me dei conta que Calias já se tinha deitado nas
suas peles.
Distingui a silhueta do moço através da cortina. Teria
gostado de dar-lhe as boas noites, mas já era tarde para isso.
Resignada, recuperei o sagum de meu marido e me
envolvi com ele. Estava impregnado de seu aroma; por
alguma razão, isso me provocou uma dor indescritível. Uma
dor que não compreendia, mas sentia no mais profundo de
meu ser.
Fechei os olhos com força e rezei.
Mas não rezei aos lares. Nem a Júpiter, Juno ou
Minerva.
“Olá, Epona”, disse silenciosamente, “sinto muito por
não ter falado com você até agora, mas não sabia o que
dizer…”.

151
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XVII.
Um golpe certeiro

Os dias seguintes não foram muito agradáveis.


Pela manhã, Leukón e Calias partiam e me deixavam
sozinha. Por sorte, agora eu tinha algo para fazer: visitar
Stena e aprender a língua dos celtiberos.
A minha língua materna era o latim, naturalmente.
Também tinha aprendido grego graças a Melpómene. Mas só
conhecia essas duas línguas, e nenhuma delas se parecia
com a língua dos celtiberos.
Stena era uma professora impressionante. No início, eu
não entendia nada do que me dizia, mas ela não parecia
importar-se, pois continuava a falar, acompanhando as suas
palavras com gestos e assinalando os objetos que mencionava
especificamente.
A primeira palavra celtibera que aprendi foi “fogo”.
A segunda, “casa”.
A terceira, “guerra”.
“Fogo”, “casa” e “guerra” eram três palavras que
resumiam bastante bem como era a sociedade celtibera,
concretamente, a numantina. As crenças daquelas pessoas

152
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

giravam em torno do fogo, que associavam a deuses como


Lug e Baelistos; e seu coração estava no lar, onde se reuniam
com os seus seres queridos.
Mas a guerra era algo mais do que uma ocupação para
eles. A guerra era uma forma de vida.
Enquanto Stena e eu conversávamos, fazíamos outras
coisas. E assim foi como, pouco a pouco, eu fui aprendendo a
cozinhar alguns pratos simples, como o guisado de coelho e a
sopa de castanhas, a remendar a roupa e a lustrar as armas.
Eram tarefas simples, e me permitiam concentrar-me nas
palavras da mulher sábia, que me acompanhavam até mesmo
depois de despedir-me dela.
Aqueles primeiros dias em Numância foram suportáveis
graças a Stena. Leukón estava ausente a maior parte do dia
e, por vezes, voltava depois de jantar. Quanto a Calias…
Calias estava muito estranho.
Fazia pouco tempo que o conhecia, mas juntos tínhamos
enfrentado situações realmente complicadas. Até então,
parecia-me um menino preparado, amável e com um peculiar
sentido de lealdade; no entanto, nos últimos tempos mal me
dirigia a palavra. Ao princípio, isso me incomodava, mas
depois começou a preocupar-me.
Então, decidi falar com ele.
Escolhi uma tarde ventosa e cinzenta. Eu tinha
regressado cedo e estava preparando uma sopa de favas para
o jantar. Calias chegou arrastando os pés, pendurou o seu
sagum no gancho e tombou nas peles com um suspiro.
― Que tal foi o dia? ― perguntei-lhe em grego.

153
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Bem.
Mentia. Soube sem necessidade de olhar para ele.
― Venha aqui e me ajude a tratar da sopa, quer?
O menino se levantou. Estava mais arisco do que
habitualmente, mas não se tornou desobediente. Pelo menos,
não até àquele momento.
― Está tudo bem, querido? ― perguntei-lhe.
Ele fixou o olhar na concha da sopa.
― Sim, senhora.
― Fico contente. Comigo não está tudo bem, sabe?
Calias deixou de mexer a sopa.
― Não, senhora?
― Não. Está-me custando muito adaptar-me a este
lugar. Tudo é novo para mim: a comida, os costumes, as
pessoas.
Ele murmurou:
― Não sei se gosto das pessoas, senhora.
Eu escolhi com cuidado as minhas palavras:
― O que lhe pareceram os outros meninos de
Numância?
― Não me pareceram meninos, senhora.
― O que quer dizer?
― Eu não gosto que os adultos pensem que os meninos
são tolos ou que não podemos valer-nos por nós mesmos.
Quando um menino é rico, há vezes em que as pessoas mais
velhas que o rodeiam o impedem de fazer certas coisas,
acreditando que não vai saber fazê-las. E então esse menino

154
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

rico nunca aprende, e continua sendo um menino durante


toda a sua vida. Isso não é bom.
― Não, não é bom ― admiti, sem saber muito bem aonde
queria chegar.
― Eu não sou parvo ― prosseguiu ele ―, e posso valer-
me por mim mesmo. Demonstrei-o.
― É óbvio que sim, Calias.
― Naveguei com o capitão Alexis e vi muitos costumes.
Não sou um fracote.
― Claro que não.
― Mas… continuo a ser um menino, senhora ―
murmurou ―. E os meninos de Numância não são meninos.
São guerreiros em ponto pequeno.
Eu começava a compreender o que tentava dizer-me.
― E decidiram declarar-lhe guerra, Calias?
Ele engoliu em seco antes de responder:
― Sim, senhora. Mas não quero que diga a Leukón.
― Por que não?
― Porque não quero que pense que sou brando.
― Veja bem, Calias, o meu marido e eu não estamos de
acordo no que diz respeito a isso de ser brando ― disse com
frieza ―. Ele acredita que ser brando é sinal de fraqueza. Eu
acredito que ser brando é não necessitar de brandir a sua
espada ou gritar para conseguir que o respeitem.
― Você acha que respeitam Leukón porque brande a sua
espada ou grita, senhora?

155
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Calias perguntava aquilo a sério. Só por prevenção,


decidi não lhe contar que o meu marido se tinha comparado a
um elefante.
― Suponho que o respeitarão por outras razões.
Possivelmente porque é valente ou porque protege os outros.
― Você o respeita?
― Sim, claro.
― Por favor, não lhe conte isto. Se souber…
― Não lhe contarei, pode ficar tranquilo. ― Suspirei ―.
Mas eu gostaria de saber os nomes dos meninos que o estão
incomodando.
― São todos, senhora.
Olhei-o de esguelha.
― Numância inteira o está incomodando? Está certo
disso?
― Bom, não ― confessou ―. São dois meninos. Mas os
outros não se atrevem a fazer-lhes frente, assim é como se
fossem todos.
― Diga-me os seus nomes.
― São Tiresio e Unibelos ― revelou ―. Os filhos de Aunia.
Aquela frase me deixou petrificada.
― Os filhos de Aunia?
― Da Aunia que conhecemos, senhora ― disse Calias
com um sorriso carregado de amargura ―. São gêmeos e
têm…
― Sim?
― …dez anos ― resmungou o menino ―. Um a menos
que eu.

156
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Compreendi por que não tinha querido dizer-me nada


até então: devia estar envergonhado porque dois meninos
mais novos conseguiam atormentá-lo.
Senti pena pelo Calias, mas a dissimulei; Calias não
necessitava de compaixão, mas de ajuda.
― Aonde vai, senhora? ― perguntou ao ver que eu me
punha em pé.
― Esqueci-me de dizer uma coisa a Stena, mas voltarei
em seguida e continuaremos a falar disto.
Coloquei o sagum por cima dos ombros, prendi-o com o
cavalinho de bronze e elevei o queixo com dignidade.
Depois olhei para Calias uma última vez… e lhe sorri.
― Não se preocupe ― disse em tom alegre ―, não
demorarei.

Encontrei Aunia na forja. Ambón estava fabricando uma


arma (uma espada?, uma adaga?) e Aunia paquerava com ele.
Embora o homem estivesse de costas para mim, notei que
não me fez caso. Tinha o cabelo loiro recolhido em uma
trança e a pele brilhante pelo suor. Contemplei
distraidamente os músculos de suas costas e pensei que, em
uma cidade onde as pessoas davam tanta importância à força
bruta, Ambón devia ser um jovem muito admirado.

157
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Aunia me viu chegar antes dele e o seu sorriso


desapareceu. Recordei o quão docemente me tinha tratado
enquanto me entregava o meu jantar ritual e reprimi uma
careta de desgosto; dissesse o que dissesse o meu marido,
não podia evitar culpá-la por eu ter estado a pontos de ser
sacrificada.
Mas não tinha ido vê-la por mim, mas sim por Calias.
Repassei mentalmente as poucas palavras que tinha
aprendido com Stena e me preparei para tentar comunicar-
me com ela.
― Olá, Aunia ― saudei-a em primeiro lugar ―. Olá,
Ambón.
O jovem guerreiro percebeu que eu estava ali e deixou
de golpear o metal. As suas sobrancelhas loiras se elevaram
ligeiramente; depois sorriu, muito devagar, e murmurou algo.
Esse algo não deve ter agradado a Aunia, que pôs cara
de poucos amigos.
― Aunia… ― comecei a dizer-lhe, mas ela me deu as
costas.
Fiquei olhando para a sua comprida cabeleira castanha
e, reprimindo o impulso de arrancar-lhe, disse em voz alta:
― Aunia. Problema. Teus filhos.
Ela se virou e me olhou fixamente. Tinha os olhos da cor
do mel.
― Meu filho ― continuei, já que não sabia usar outra
forma para referir-me a Calias ―. Guerra. Seus filhos.
Aunia fez um gesto com a mão. E, por muito que eu não
conhecesse bem a língua, nem os costumes dos celtiberos,

158
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

entendi perfeitamente aonde nos estava mandando, a Calias e


a mim.
A risada de Ambón conseguiu irritar-me.
― Aunia! ― rugi ―. Guerra não!
Então alguém se aproximou de nós.
Era uma menina de uns dez anos, loira e de aspecto
forte. Tinha a cara lisa e rosada como um pêssego, e o cabelo
loiro e úmido. Usava uma túnica bordada, calças e uns botas
de cano alto, e envergava um sagum de cor marrom preso
com uma fíbula decorada.
A moça passou a meu lado empurrando-me com o
ombro e se deteve em frente a Aunia.
Escutei o seu nome: Unibelos.
Era a filha da Aunia. A menina que estava incomodando
Calias.
― Diga-lhe - ordenei à sua mãe ―. Guerra não.
Unibelos me olhou, primeiro com surpresa e depois com
ar divertido. Fez um comentário que provocou a risada de
Ambón; tive a certeza de que estava rindo de meu sotaque.
A sua mãe me olhou de cima a baixo, olhou para a sua
filha, voltou a olhar-me … e me deu um pequeno tapa.
O tapa não me doeu, mas o meu orgulho se fez em
pedacinhos.
Unibelos soltou uma gargalhada. Ambón também riu
entredentes. No meio dos dois, Aunia voltou a fazer-me o
mesmo gesto de antes.
Não sei o que me passou pela cabeça.

159
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Só me lembro que, momentos depois, eu dobrava o


pescoço para trás… para aplicar uma forte cabeçada em
Aunia.
Ouvi o seu gemido de dor quando a minha testa
impactou com o seu nariz. Ouvi como Ambón se calava,
amaldiçoava… e voltava a rir, desta vez, às custas da sua
dolorida companheira de armas. E ouvi como Aunia me
gritava enquanto tocava no nariz.
Mas eu apenas olhava para ela, aturdida, como se
aquilo não estivesse acontecido.
Nesse momento, vi uma cara conhecida a menos de dez
pés de distância. Kara acabava de sair de uma casa e
contemplava a cena com uma mescla de assombro e
admiração.
― Bom golpe ― elogiou.
A filha de Aunia já não parecia contente. Ao ver a sua
mãe sangrando, começou a gritar:
― Tiresio!
O seu irmão. Estava chamando o seu irmão.
Então ouvi que alguém gritava o meu nome:
― Cassia!
Stena tinha aparecido à janela e me olhava com gesto
ameaçador. Tinha os olhos semicerrados e os lábios
apertados.
― Cassia, venha cá! ― ordenou-me.
E, como um menino apanhado em plena travessura,
corri para a sua casa antes que as coisas ficassem mais feias
ainda.

160
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XVIII.
Entre Epona e Lug

Leukón me olhava com seriedade.


― Deu uma cabeçada em Aunia.
Não era uma pergunta.
Eu brinquei com a fíbula, evitando o seu olhar.
― Sim, parece que sim.
― Diante de sua filha ― prosseguiu Leukón ―, Unibelos.
― Sim, diante dessa bestazinha.
― A que vem isto?
― Olhe, Stena já me deu um sermão, então…
― Eu não sou Stena ― ele me interrompeu ―, mas o seu
marido. E quero uma explicação.
― Kara não lhe contou nada? ― Suspirei ―. Veio ver-me
depois que Stena e eu nos despedimos. E me disse que ela
poderia ensinar-me a lutar.
― Como?
― Acho que gostou da minha cabeçada, suponho ― disse
com modéstia ―. Na verdade, não sei quais foram as suas
palavras exatas, mas assinalou enquanto me dizia algo como
“você guerra comigo”.

161
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Leukón passou a mão pela cara.


― Já sabia que Kara não tem dois dedos de testa ―
balbuciou ―, mas esperava que você fosse mais sensata.
― Olhe, subiu-me um pouco à cabeça… ― bufei de
risada ―. Não podia ter sido mais bem dito!
― Isto lhe parece divertido?
― Um pouco, sim.
― Pois a mim, não. Não lhe convém fazer inimigos.
― Oh, sim, tudo é culpa minha ― soprei, deixando de rir
―. É culpa minha que Avaro queira sacrificar-me e que Aunia
me odeie, suponho. E é culpa minha que os seus filhos
estejam…
Nesse instante, recordei que tinha prometido a Calias
não dizer nada a Leukón sobre os seus problemas com
Tiresio e Unibelos.
― O quê? ― Ele insistiu ―. O que estão fazendo?
― Nada.
― Mas…
― Ouça, não posso desfazer o que já está feito, de
acordo? E Stena já me disse o que pensa sobre isso.
― Não me interessa a opinião de Stena.
― A mim, sim ― disse com aspereza ―. Pelo menos, ela
me está ajudando a adaptar-me.
― Por que o diz com esse tom?
― Porque, se não fosse por Stena, eu estaria todo o dia
presa em casa.

162
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Ah, já entendi ― grunhiu ele ―. Deve pensar que gosto


mais de chafurdar na lama do que estar com a minha esposa,
não é?
― Isso é o que faz durante todo o dia? Chafurdar na
lama?
― Coordeno saídas de exploradores, como bem sabe. E
consegui que não me fizessem passar mais noites fora
pedindo a Karos que me deixe ficar com você até que se
acostume com Numância. Acredite ou não ― acrescentou ―,
eu gosto da sua companhia. Embora suspeite que o
sentimento não seja mútuo.
― Por que diz isso?
Ele me dirigiu um olhar esclarecedor.
E eu decidi calar-me.

Enquanto Leukón e Calias dormiam, eu refletia sobre o


que Stena e Kara me tinham dito.
A minha conversa com Kara tinha sido muito breve. A
jovem guerreira se aproximou de mim, tinha-me dito aquilo
de “você guerra comigo” e me tinha dado uma forte palmada
nas costas. Depois tinha me acompanhado a casa.
Com Stena tinha estado mais tempo. Não sei se ela
tinha querido ter uma longa conversa ou, simplesmente,
deixar passar o tempo para que Aunia e a sua família fossem
163
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

para casa. De qualquer maneira, aproveitou esse momento


para dar-me uma reprimenda.
― Guerra não boa ― disse ―. Você não guerra.
Bom, o mais provável é que ela não o tenha dito assim.
Mas foi tudo o que eu entendi.
― Você melhor que guerra ― insistiu a mulher ―. Você
paz. Você e eu paz.
― Paz?
― Paz celtiberos e romanos.
― Como…? ― murmurei em latim ―. Está dizendo o que
acredito que está dizendo?
― Lug guerra. Baelistos guerra. Epona paz ― concluiu
ela, contemplando-me com os seus grandes olhos marrons ―.
Você e eu paz.
Eu não tinha conseguido entender nada mais do que
aquilo. Não obstante, tinha algumas suspeitas a respeito dos
motivos pelos quais Stena tinha decidido ajudar Leukón a
salvar-me a vida.
Mas eram só suspeitas. A única coisa que estava clara
era que Stena não aprovava o meu comportamento.
E eu? Sentia-me satisfeita?
Não. Absolutamente.
Podia rir. Podia dizer que Aunia me tinha provocado.
Mas o certo era que mal tinha jantado. Tinha o estômago
fechado e ainda me tremiam os joelhos.
Tinha experimentado a violência… e não tinha gostado.
Não tinha gostado de fazer mal a uma pessoa. Não tinha
gostado de ver correr sangue, por muito que fosse o de Aunia.

164
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Abatida, tombei-me nas peles e adormeci.

Despertei quando ainda era de noite.


Leukón não estava deitado a meu lado, mas sentado no
banco. Tinha um vulto entre os braços.
Pisquei e reparei. Não era um vulto: era Calias.
O menino dormia placidamente. Leukón o embalava
enquanto murmurava uma espécie de ladainha. Seus olhos
estavam perdidos no fogo da lareira; estive uns minutos
admirando a beleza das chamas que se refletiam neles.
Até que o meu marido me descobriu.
― Despertei-a? ― sussurrou.
― Não. ― Levantei-me ―. O que acontece com Calias?
Está doente?
Leukón sorriu levemente.
― Não, só teve um pesadelo.
― Oh.
O meu marido apoiou as costas na parede. Calias tinha
a bochecha colado a seu ombro e os lábios entreabertos;
parecia mais novo do que normalmente, e mais vulnerável.
Reprimi o impulso de acariciar-lhe o cabelo. Não queria
despertá-lo.
Leukón me olhava de esguelha.
― Perguntava-me se…
165
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Mmm?
― Tiresio e Unibelos fizeram alguma coisa a Calias?
Mordi o interior da bochecha.
― Como…?
― Como sei? ― Suspirou ele ―. Bom, não sou idiota.
Conheço-a melhor do que pensa, e sei que não é uma pessoa
violenta. Só a vi empunhar uma arma em uma ocasião… e foi
para defender este moço. ― Assinalou Calias com a cabeça ―.
Você não gosta de Aunia, mas teve de ter um motivo de peso
para atacá-la. E, tendo em conta que lhe escaparam os
nomes de seus filhos, só tive de unir os pontos.
― Podemos fazer alguma coisa para ajudar Calias? Não
quero que passe um mau momento por culpa daqueles
meninos.
― Ocupar-me-ei disso.
― Falará com Aunia?
― Tenho uma ideia melhor. Confie em mim.
Fiquei olhando-o à luz da lareira. Já começava a
acostumar-me às cicatrizes de sua cara e ao perfil irregular
de seu nariz quebrado. E, pouco a pouco, ia descobrindo
outras matizes: o brilho de seus olhos escuros, a sua forma
de franzir as sobrancelhas quando estava pensativo, a suave
curva que formava a sua boca.
― Está bem ― suspirei ―. Confiarei em você.
Ele esticou os lábios em algo parecido a um sorriso e se
levantou para deixar o moço em seu leito. Momentos depois,
voltou a tombar-se atrás de mim.

166
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Eu estava de lado, dando-lhe as costas, mas pude


perceber o calor que desprendia de seu enorme corpo. E me
dei conta de que me custava respirar com normalidade.
― Continua acordada? ― sussurrou ele.
A carícia de sua respiração na minha nuca me provocou
um calafrio. Virei-me com lentidão e vi que tinha tirado o
sagum e a túnica. O cabelo lhe cobria os ombros e roçava em
seu peito nu.
Umedeci os lábios involuntariamente. De repente, estava
plenamente consciente da minha própria pele, arrepiada sob
a túnica áspera, e do suor que começava a cobri-la. E me
assaltou o desejo febril de que as grandes mãos de meu
marido me arrancassem a roupa para percorrer o meu corpo
e libertá-lo daquele calor insuportável.
Queria sentir-me nua. Vulnerável. Queria tombar-me
nas peles e que esse homem me fizesse esquecer que eu não
pertencia a seu mundo. Mas não sabia como dizer-lhe isso,
então fiquei observando-o em silêncio, com o corpo em tensão
e o coração acelerado.
Ele me sustentou o olhar durante uns segundos. E,
finalmente, murmurou:
― Por Cernunnos, quero beijá-la.
Mas fui eu quem o fez. Afligida por todas aquelas
sensações novas, levantei-me torpemente, joguei os meus
braços ao seu pescoço e pressionei a minha boca contra a
sua em busca de respostas.
Seus lábios se abriram. Momentos depois, senti o roçar
de sua língua procurando a minha. E esse contato, doce e

167
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

contido, foi o suficiente para que eu sentisse umidade entre


as coxas.
“Deuses, me ajudem”, pensei com desespero.
Mas deixei que invadisse a boca. E, quando ele pôs as
suas mãos em meus quadris e me sentou em seu regaço, um
gemido escapou de minha garganta.
O beijo se desfez momentaneamente. E Leukón
sussurrou contra os meus lábios:
― É tão pequena… Não quero fazer-lhe mal.
Abri os olhos e, quando me encontrei com o seu olhar
aceso, soube que me desejava. E eu o desejava: queria a sua
boca contra a minha, as suas mãos sobre os meus seios, o
seu corpo me empurrando contra o leito. Durante uns
segundos, essas imagens nublaram a minha mente…
Até que compreendi o que estava prestes a fazer.
Se entregasse o meu corpo a um bárbaro, já não haveria
volta atrás. Não era o mesmo: casar-me para sobreviver e
render-me à paixão com um inimigo de Roma. Se o fizesse, se
me deixasse arrastar pelo que estava sentindo…, eu também
seria uma traidora.
Esse pensamento foi o único que me convenceu a
afastar-me de meu marido.
Não sabia como reagiria. Conhecia-o o suficiente para
saber que não ia forçar-me, mas insistiria? Protestaria?
Zangaria-se comigo?
Por um instante, olhou-me com desconcerto. Mas depois
piscou, esboçou um pequeno sorriso e se estendeu de costas
sobre as peles.

168
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Boa noite, romana.


Isso foi tudo o que disse. Depois girou sobre o seu
flanco, rodeou-me a cintura com o braço e fechou os olhos.
Eu pus a minha mão sobre a sua e tratei de acalmar a
minha respiração agitada.
“Ele entende?”, pensei com espanto.
Entende? Ou apenas me respeitava?
Isso importava, por acaso?
Leukón já estava dormindo quando uma lágrima
solitária escorregou por minha têmpora e molhou as peles.
Não podia sentir o que sentia. Não podia.
Mas sentia. Profundamente.

169
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XIX.
Lua de mel

Tinha passado mais de um ciclo lunar desde a minha


chegada a Numância.
Não tinha voltado a ter problemas com Aunia desde
aquele confronto. A mulher parecia evitar-me, ou talvez fosse
eu quem a evitava inconscientemente. De qualquer maneira,
não voltamos a trocar uma só palavra… e eu preferia assim.
Algumas vezes, quando percorria as ruas da cidade,
sentia que alguém me observava. E encontrava os olhos
turvos de Avaro, sempre vigilantes. Sempre carregados de
rancor.
Mas nem Aunia, nem Avaro me causavam problemas,
por isso eu estava decidida a esquecer a sua existência.
Calias parecia muito mais animado. Partia com Leukón
a cada manhã, e os dois voltavam à hora de jantar. Deduzi
que, finalmente, tinha começado a dar-se bem com os outros
meninos. Não voltei a perguntar-lhe por Tiresio e Unibelos, e
ele tampouco os mencionou, por isso o assunto ficou
virtualmente esquecido.
Eu, por minha parte, tinha estado familiarizando-me
com a língua celtibera. Agora podia entender boa parte do
que me diziam e até elaborar frases simples; tendo em conta

170
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

o pouco tempo que estava em Numância, pode dizer-se que


aprendia rapidamente. Calias não se esforçava tanto quanto
eu, mas me disse que, pouco a pouco, ele também ia
aprendendo.
Os meus progressos com a língua dos celtiberos me
permitiram ter conversas cada vez mais interessantes com
eles; pelo menos, com os que estavam dispostos a dirigir-me
a palavra (que não eram muitos, na verdade). Passava a
maior parte do tempo com Stena ou, na sua ausência, com
Kara.
Stena e Kara eram as duas pessoas com as quais me
sentia mais unida depois de Leukón e Calias…, o que era
curioso, dado que as duas mulheres eram muito diferentes.
Stena era séria e reflexiva; Kara, nobre e ousada. A primeira
passava o dia falando da guerra, da paz, do amor e outra
meia dúzia de temas profundos. A segunda preferia a
algazarra, beber caelia e não pensar muito. Eu gostava das
duas, de cada uma à sua maneira: em Stena admirava a sua
mente e em Kara o seu espírito.
Por desgraça, elas não estavam destinadas a entender-
se.
― Leukón é um bom homem, mas se equivoca ― Stena
me disse em uma ocasião ―. Tal como Kara. O seu coração é
forte, mas a sua consciência se debilita a cada vez que mata.
Nenhum dos dois escolheu o caminho correto.
― E qual é o caminho correto? ― Quis saber.
― A paz. E você e eu percorreremos esse caminho…
juntas.

171
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Eu não tinha nem ideia de como íamos fazê-lo, mas


Stena se negava a dar-me mais explicações no momento.
― Ainda não ― dizia sempre que eu lhe perguntava ―.
Depois.
Talvez preferisse esperar dar à luz para então
compartilhar os seus planos comigo. A minha mãe dizia que
as mulheres grávidas eram mais sensíveis que o normal. De
todas as maneiras, Stena parecia prestes a dar à luz ao seu
filho.
Kara era mais direta na hora de referir-se a Stena:
― É como uma cabra. E tem Karos preso pelos…
― Kara! ― Eu a interrompia, meio escandalizada, meio
divertida ―. Não diga essas coisas tão vulgares.
― Não são mentiras.
― Não são mentiras, mas não é correto .
― A verdade sempre é correta.
Por outro lado, a jovem guerreira insistia em ensinar-me
a lutar. Mas eu não tinha vontade de aprender.
Cada dia que passava me sentia mais culpada por ter
dado uma cabeçada em Aunia. Agora, quando rememorava
aquele instante, não sentia vontade de rir, nem me orgulhava
do que tinha feito. Mas me sentia envergonhada… e
arrependida.
Mas já não havia como voltar atrás. Não conseguiria
nada desculpando-me; Aunia me tinha declarado guerra e eu
não podia impedi-la.
O melhor a fazer era manter-me afastada daquela
mulher.

172
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Quanto a Leukón…
A nossa relação passava por um momento estranho.

Numância se preparava para o solstício de inverno. Em


Roma celebrávamos as Saturnálias, umas festas que
culminavam com um grande banquete no forum da cidade. O
banquete em Óstia era esplêndido; os meus pais e eu
assistíamos todos os anos, e eu sentia uma pontada de
nostalgia cada vez que recordava que, pela primeira vez,
estaríamos separados nessas datas.
A minha mãe estava em Roma. O meu pai, na frente, na
Hispânia. E eu…
Eu estava em Numância.
O que aconteceria se não conseguisse sair dali antes de
a guerra começar? Ficaria de braços cruzados enquanto o
meu marido enfrentava o meu pai?
Não poderia suportá-lo. Teria de ir antes.
Mas, naquela altura, o solstício de inverno me mantinha
ocupada. Como esposa do líder, Stena estava encarregada de
organizar os preparativos, e eu a estava ajudando com o que
podia. No banquete haveria guisado de coelho picante,
galinhas com recheio de castanhas, cebolas assadas e sopas
de alho. Nenhum desses pratos era muito difícil de preparar,
mas, por precaução, praticámo-los vários dias antes. O prato
173
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

doce consistiria em leite coalhado com mel; eu não gostava de


leite coalhado, mas me animava com a perspectiva de voltar a
saborear mel.
O mel era uma das pequenas coisas que me fazia sentir
saudades de Roma. O mel, as tâmaras, o vinho doce, as
túnicas fluidas, as sandálias, os espelhos, as peças de teatro,
os banhos termais…
Na verdade, teria dado qualquer coisa por um bom
banho nas termas de Óstia. Os celtiberos não se lavavam
muito, por isso quase todos cheiravam mal; Leukón era um
dos mais asseados e, mesmo assim, tinha de conformar-se
com a água da cisterna e uma escova de crina. Contudo, o
seu odor corporal não me incomodava.
Para falar a verdade, eu gostava do seu odor corporal.
Mas o dissimulava.
Não tínhamos voltado a beijar-nos e dormíamos quase
sem tocar-nos. Dávamo-nos bem, cada vez melhor; a única
coisa que se interpunha entre nós era o fato de que
estávamos casados há uma lua e ainda não tínhamos
consumado o matrimônio.
Eu me obrigava a recordar os medos que me tinham
bloqueado naquela primeira noite, os remorsos que tinha
sentido ao pensar que estava prestes a trair a mim mesma ao
abrir as pernas para um inimigo de meu povo. Mas, conforme
passavam os dias, começava a ter outros pensamentos.
Pensamentos incômodos.
Como, por exemplo, que eu não tinha tido problemas
para abrir as pernas para Máximo Escauro, com quem mal

174
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

tinha trocado umas quantas frases. E, contudo, Máximo


nunca me tinha provocado uma décima parte da emoção que
sentia quando Leukón voltava para casa, colocava Trovão na
quadra e tirava o sagum. Máximo não escutava o que eu
tinha para dizer, não ria comigo, nem sequer me olhava
enquanto nos beijávamos. Não é que fosse um homem cruel
ou desdenhoso; simplesmente, era um homem. E nenhuma
mulher merecia a sua consideração.
Assim eram as coisas em Roma; Numância estava
ensinando-me algo muito diferente. Estava ensinando-me que
havia homens que, sim, confiavam em suas mulheres, e que,
sim, as admiravam. E meu marido era um deles.
De noite, quando me deitava junto a ele, voltava a sentir
a minha pele queimar. E desejava libertar-me da roupa e dos
temores ao mesmo tempo.
Mas não me atrevia. Ficava olhando para Leukón até
que o fogo se apagava, e depois dormia.
Até que aconteceu algo que mudou as coisas.

Máximo me falava com tom acusador:


― Por que, Cassia? Por que me traiu?
Estava sentado junto à lareira. Eu não queria que
estivesse ali: se Leukón voltasse para casa e o surpreendesse,
eu teria problemas.
175
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Tem de ir, Máximo.


― Ou o quê?
― Ou o meu marido zangar-se-á.
― “Seu marido”? ― grunhiu ele ―. Agora um selvagem é
“seu marido”?
― Tem algum problema com isso?
― Por Júpiter, Cassia… Pensei que tinha casado com ele
para sobreviver. Mas realmente o querer.
― Isso não é verdade.
Máximo me olhou com expressão zombadora.
― Tem a certeza que não?
― Não!
― Nesse caso, volte para Óstia comigo.
Ficou de pé e me estendeu a mão, mas eu não a aceitei.
― Não posso.
―Por quê?
― Eu… tenho de preparar o banquete para o solstício de
inverno ― disse apressada ―. Stena precisa de mim. Além
disso, não posso deixar Calias sozinho. E Leukón…
― Ele também precisa de você? ― Ele soprou ―. Ou é
você quem precisa dele?

Acordei coberta de suor frio.

176
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Aturdida, procurei Máximo com o olhar, mas não estava


ali. Estava em Óstia, a muitas milhas de distância,
perguntando-se o que tinha sido de sua prometida, talvez.
Abracei-me. Não estava frio, mas estava tiritando.
― Está bem, querida?
A voz de Leukón rompeu a escuridão. E esse “querida”
vibrou em meus ouvidos.
― Não.
O meu marido se sentou no leito. O fogo estava apagado,
mas um raio de lua crescente penetrava através da pele de
lobo e banhava de luz branca o perfil de Leukón: a testa
ampla, as maçãs do rosto altas, o nariz quebrado.
Os lábios entreabertos.
― O que aconteceu? ― murmurou, inclinando-se para
mim ―. Diga-me.
Eu me encolhi e evitei olhá-lo diretamente.
― Você… arrepende-se? ― sussurrei.
Leukón não respondeu logo.
― De que fala?
― Arrepende-se de ter casado comigo?
― É óbvio que não. É a minha melhor amiga. Melhor que
o meu cavalo, e isso já quer dizer muito.
Sorri com nervosismo, mas o meu coração ainda
pulsava dolorosamente. Então Leukón me levantou o queixo e
não tive mais remédio que enfrentar os seus olhos escuros. E
o que vi neles me acelerou o coração.
― Cassia, querida ― suspirou ―, não preciso deitar-me
com você para estar contente.

177
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Não…? ― Eu passei a língua pelos lábios ―. E não


tem… vontade?
Ele deixou escapar um bufo de risada entredentes.
― Por Cernunnos… ― Assinalou para baixo com a
cabeça. Eu não me atrevi a olhar, mas sabia o que me estava
dando a entender ―. Claro que tenho vontade. Mas o que vou
fazer? Obrigá-la jamais será uma opção. Se não me desejar…
Não chegou a terminar a frase. Por que naquele
momento, eu já estava tremendo.
― Eu… ― “o desejo”, pensei; mas não o disse ―. Esse
não é o problema, Leukón.
As mãos de meu marido envolveram a minha cara com
delicadeza. O seu tato quente me fez fechar os olhos por um
momento; quando voltei a abri-los, os de Leukón me
contemplavam com intensidade.
― Cassia, casou-se comigo para não morrer queimada ―
murmuro ele ―. Que tipo de homem seria eu se não
compreendesse o quão duro teve de ser para você?
Eu engoli em seco e pus as minhas mãos sobre as dele.
― Casei-me com você por isso, sim… ― admiti ―, mas…
Deuses, não. Não podia dizer-lhe. Se o fizesse, não
poderia voltar atrás; se deixasse que o que sentia se tornasse
real, já não poderia continuar a enganar a mim mesma.
Mas acaso podia continuar a fugir da verdade?
Acaso não sentia já muitas coisas por Leukón de
Sekaisa?
Via tudo envolto em bruma, não sei se por culpa da
noite ou dos sentimentos que se amontoavam em meu peito.

178
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Deixei cair as pálpebras e joguei a cabeça para trás; e,


quando os meus lábios encontraram os de meu marido na
escuridão, um suspiro de alívio sacudiu o meu peito.
Instantes depois, as nossas línguas se enredavam em
um beijo úmido. Todo o meu corpo tremia, mas eu sabia que
já não era medo o que sentia. Já não.
As mãos de Leukón baixaram até às minhas coxas e
deslizaram por debaixo da túnica de lã. Afoguei um ofego
quando os seus dedos se afundaram na minha carne; depois
fechei as minhas mãos sobre o seu peito e lhe abracei os
quadris com as pernas.
Ele caiu de costas sobre as peles. Então me tirou a
túnica pela cabeça e a atirou para a outra ponta do cômodo
sem nenhuma delicadeza.
E seus olhos percorreram o meu corpo nu com tanta
devoção que estive prestes a ruborizar.
― Maldita seja, é perfeita… ― grunhiu.
Eu ri com nervosismo e me inclinei para beijá-lo. A sua
mão apanhou um de meus seios, mas não protestei; a minha
já estava acariciando a protuberância entre as suas pernas.
Leukón balbuciou algo em sua língua e eu lhe mordi o
lábio inferior com suavidade. Depois lhe puxei os calções para
baixo.
― Não… Não sei muito bem o que…, bom…, o que
acontece agora… ― murmurou atropeladamente. Quando me
separei dele para olhá-lo, vi que tinha as bochechas
manchadas de vermelho.

179
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Uma onda de ternura se misturou com a ânsia que


sentia. Pus a minha mão em sua bochecha e lhe acariciei os
lábios com o polegar.
― Não se preocupe ― sussurrei ―. Eu vou ensiná-lo.
Agarrei as suas mãos e as coloquei sobre os meus
quadris. Depois voltei a afundar-me em sua boca.
Assim começou a nossa lua de mel, a de verdade. E
terminou de madrugada, quando apoiei a cabeça no peito de
Leukón e, pela primeira vez desde que o “Quimera” zarpou
rumo à Hispânia, tive um sono longo e reparador.

180
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Numância, 153 a.C.

181
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XX.
O Solstício de Inverno

Cem fogos ardiam em Numância na noite do solstício de


inverno. As lareiras estavam apagadas, mas as ruas estavam
salpicadas de fogueiras: por uma vez, os Belos e os Arevacos
não jantariam em suas casas, com as suas famílias, mas sob
as estrelas, tendo como companhia toda a cidade.
Eu estava quase tão emocionada quanto eles. Levava
todo o dia trabalhando ombro a ombro com Stena, e o
resultado tinha sido bom: o ambiente estava impregnado do
rico aroma da carne guisada e da sopa fumegante. Além do
que tínhamos previsto, Ambón e um pequeno grupo de
caçadores tinham trazido três veados, tinham-nos esfolado e
os tinham assado eles mesmos. Ambón era um excelente
cozinheiro, e tenho de admitir que a sua ajuda foi muito bem-
vinda.
Enquanto assávamos os veados, o guerreiro arrumou
maneira de ficar a sós comigo.
― Romana ― chamou-me ―, quero dizer-lhe uma coisa.
Seu tom não era agressivo, embora talvez um pouco
malicioso.

182
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Está bem ― disse com paciência.


Ambón passou a mão pelo cabelo, úmido pelo suor e
enegrecido pela cinza.
― Recorda-se de como nos conhecemos?
― Claro. Ia matar-nos, a Calias e a mim.
O jovem esboçou um sorriso de desculpa.
― Se a tivesse conhecido, Romana, não teria tocado em
um só cabelo seu. Nem em seu filho.
Todo mundo sabia que, na verdade, Calias não era meu
filho. Mas eu o tinha adotado, e era mais simples referir-se a
ele desse modo.
― Obrigada, Ambón. Vindo de você, isso é muito amável.
― Seu filho é mais duro do que eu pensava.
― Ah, sim? ― surpreendi-me ―. Por que diz isso?
― Não sabe?
― Há algo que deva saber?
― Não, suponho que não. Se Leukón não lhe contou
nada…
Eu tossi discretamente. A rivalidade entre Ambón e o
meu marido era conhecida por todos.
Na verdade, eu não sabia muito bem de onde vinha
aquela rivalidade. Ambón era muito popular entre os jovens
guerreiros; Leukón, por outro lado, contava com a admiração
dos meninos e com o respeito dos anciãos.
Em Numância não tinham Senado, nem magistraturas,
como em Roma. O poder estava repartido de uma forma mais
simples: por um lado estava a Assembleia, formada por
guerreiros (e guerreiras); por outro lado, o Conselho de

183
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Anciãos, que tomava as decisões importantes. Karos de


Sekaisa fora eleito como líder militar, mas Avaro, como
sacerdote de Lug, era venerado por todos.
E depois havia Stena, a mulher sábia, que era a
sacerdotisa de Epona e a mulher mais influente da cidade,
além de “uma dor de cabeça” para Kara e algo como uma
amiga para mim.
Em qualquer um dos casos, Ambón era alguém com
quem devia dar-me bem.
― Sabe? ― disse então, contemplando a peça que estava
cozinhando ―. Leukón foi mais esperto do que eu. Devia tê-la
reclamado como esposa antes dele.
Eu me alegrava que Ambón tivesse sido tolo. Havia um
matiz diferente entre casar-se comigo e “reclamar-me como
esposa”. O segundo me fazia sentir como parte de um bota de
guerra… e não me agradava.
― Tenho coisas a fazer ― disse com toda a amabilidade
que fui capaz de reunir.
Ambón abriu a boca para dizer algo mais, mas então
dois meninos se aproximaram dele. Reconheci-os facilmente:
o cabelo sujo e a pele rosada eram inconfundíveis.
Tiresio e Unibelos, os filhos de Aunia, estavam
enfeitados para o solstício de inverno. Tiresio usava o cabelo
entrançado e uma fíbula com forma de cavaleiro; Unibelos,
por seu lado, envergava uma túnica bordada e brincos de aro.
Os dois puxaram Ambón para afastá-lo de mim.
Recordei o ar zombador com que Unibelos me tinha
olhado no primeiro dia e quase me alegrei de ter batido em

184
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

sua mãe. Depois me dei conta do quão cruel era bater em


uma mãe diante de sua filha e me senti uma pessoa horrível.
― Está bem, querida?
A voz de meu marido me arrancou de meus
pensamentos.
Virei-me para olhá-lo.
― Por Epona, o que lhe aconteceu?
― Tomei banho.
― E que banho, está jorrando!
Leukón sorriu com acanhamento. Tinha o cabelo colado
à cara e uma gota de água lhe escorregava pelo nariz.
― Sim… bem.
― Colocou a cabeça em um balde de água?
Sua expressão culpada o delatou.
― Leukón, quantas vezes tenho de dizer que não precisa
colocar a cabeça toda? Basta jogar um pouco na cara!
― É que a minha cara é muito grande!
Com um suspiro, acompanhei-o a casa para que se
secasse.
Calias estava à nossa espera. Usava uma diminuta
trança que exibia com orgulho. Tinha começado a deixar o
cabelo crescer, como Leukón, e não havia forma de cortá-lo.
― Parecia triste quando a encontrei lá fora ― comentou o
meu marido enquanto ele mesmo se penteava ―. Aconteceu
alguma coisa?
― Estava pensando em Aunia.
― Ah, sim?

185
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Cada dia me sinto pior por ter-lhe batido. Fiz diante


de sua filha.
― Bom, tampouco é para tanto. Aunia é uma guerreira:
já lhe bateram com muito mais força e vontade do que você.
Quanto a Unibelos…
Ao ouvir esse nome, Calias olhou para Leukón.
Juraria que o meu marido dissimulou um sorriso.
― Não se preocupe, querida. Talvez, apesar de tudo,
Aunia e seus filhos necessitassem que alguém lhes desse
uma lição.
― Mas você disse…
― Esqueça o que eu disse.
Calias continuava a olhar-nos com interesse. Começava
a entender algumas palavras em latim, mas com Leukón
preferia comunicar-se por gestos. Às vezes, eu me sentia
aborrecida por não conseguir acompanhar as suas conversas.
― O que me estão escondendo? ― perguntei, primeiro em
latim e depois em grego.
― Nada ― disseram os dois ao mesmo tempo.
― É hora de ir ― anunciou Leukón.
Os três estávamos preparados. Eu mal me tinha
arrumado: só tinha recolhido o cabelo em duas tranças e
tinha puxado o lustro à fíbula de Leukón. Apesar do fogo,
precisaríamos de usar o sagum se jantávamos ao ar livre.
― Bom ― concedi.
Mas, por vias das dúvidas, tomei nota daquela conversa.

186
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

A celebração do solstício de inverno era algo mais que


um banquete. Havia cânticos, danças e jogos, e um ou outro
discurso, também. Assim que nos juntamos aos outros,
recebemos um copo de caelia e um pedaço de pão tenro e nos
instalamos junto a uma das fogueiras. Karos e Stena nos
tinham reservado um lugar a seu lado, o que era uma honra
para a nossa família.
Nossa família. A minha e a de Leukón.
Mas não era uma família de verdade. Antes ou depois,
romper-se-ia. Quando eu fosse embora de Numância.
Mas não queria pensar naquilo. Não naquela noite.
Estava bebendo o primeiro sorvo de caelia quando os
homens que havia ao redor começaram a cantar. Kara chegou
correndo e se uniu a eles com entusiasmo: a canção falava de
guerra e honra, mas Stena começou a falar comigo e mal
pude prestar atenção à letra.
Os celtiberos acompanhavam as suas vozes com
pandeiros e tambores de pele. Não tinha visto instrumentos
como a lira em Numância, e duvidava que existissem.
Um estrondo fez com que Stena se calasse, e o meu
marido decidiu aproveitar aquele momento para deslizar a
mão por debaixo de minha túnica. Tentei continuar bebendo
como se nada estivesse acontecendo, mas, quando afundou

187
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

dois dedos entre as minhas coxas, derramei parte da minha


bebida nas saias da mulher sábia. Dirigi um olhar de
desculpa a Stena enquanto cravava o cotovelo nas costelas de
Leukón, que esteve prestes de afogar-se em risada.
Quando me preparei para pedir mais caelia, Karos
mostrou algo à multidão. E todos foram calando.
Era uma espécie de bastão. Um dos extremos tinha
forma de javali com a boca aberta; o outro consistia em uma
espécie de bocal.
Karos pôs os lábios ao redor do bocal e soprou com
força.
Um prolongado lamento percorreu as fogueiras,
emudecendo os presente e criando uma atmosfera solene.
Stena estava rígida. Olhava para o seu marido, mas não
parecia vê-lo.
Quando o instrumento deixou de soar, os numantinos
irromperam em gritos e aclamações.
― O que foi aquilo? ― perguntei a Stena em voz baixa.
― Um carnyx ― sussurrou ela ―. Um instrumento de
guerra.
― Oh.
Karos surpreendeu o olhar de sua mulher e apertou os
lábios.
Stena me falou em voz baixa:
― Epona sabe que o amo, Cassia. Mas está equivocado.
Todos estão… menos nós.
A mulher sábia me agarrou a mão.

188
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Eu procurei Leukón na multidão, mas não o vi em lado


nenhum.
Por sorte, o carnyx foi rapidamente substituído pelo som
dos tambores. Algumas pessoas se levantaram e começaram
a dançar; outras ficaram sentadas, batendo palmas e
bebendo sem parar.
Então senti que alguém estava puxando-me.
― Kara, me assustou! ― exclamei em latim.
Ela me olhava com um sorriso.
― Kara, assus…. - comecei a repetir na sua língua.
― Não seja tão branda, Romana ― ela riu ―. Venha
dançar!
A jovem me arrastou por entre as fogueiras. Quando
chegamos a um lugar no qual não havia gente sentada, ficou
diante de mim e começou a dar pontapés no chão ao ritmo
dos tambores.
Eu não a imitei. Ainda tinha a boca aberta.
― O que aconteceu, Romana? ― perguntou Kara,
risonha ―. Viu um fantasma?
― Você…, você… ― gaguejei ―. Está falando em latim!
― Sim, parece que sim.
E, sem dar-me tempo para reagir, dirigiu-se para mim
em grego:
― Também conheço esta outra língua. Qual prefere que
utilize?
A jovem continuava a dançar. Ambón passou a seu lado
e lhe deu um amistoso empurrão. Ela o devolveu.

189
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Deuses, Kara… ― murmurei em latim ―. Como sabe


falar latim e grego? E por que fingiu que não entendia nada?
Pouco a pouco, a minha mente voltava a funcionar
normalmente.
E me dei conta que, durante todo aquele tempo, Kara
tinha estado escutando as minhas conversas com Calias…,
incluindo aquelas nas quais eu deixava muito clara a minha
intenção de partir de Numância.
Os olhos da minha amiga se cravaram nos meus. Agora
ela tampouco dançava.
― Primeiro responderei à sua segunda pergunta ―
murmurou ― : antes de lhe contar, queria saber se era de
confiança.
― E a que conclusão chegou?
Kara me agarrou pelas mãos e me separou da fogueira.
Deixamos as pessoas dançando e nos detivemos em uma
esquina envolta em sombras.
― Cheguei a duas conclusões, na verdade ― disse ela
com calma ―. A primeira é que sim, é de confiança.
― E a segunda?
― Que, diga o que disser, não quer ir embora daqui.
Engoli em seco.
― Disse isso a…?
― …Leukón? ― Adivinhou ―. Não houve necessidade.
Ele soube desde o começo.
Essa revelação me causou uma profunda impressão.
― Ele… também sabe grego?
― Oh, não ― bufou Kara ―. Mas não é tolo, sabe?

190
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Não entendo ― murmurei ―. Se sempre soube, por


que…?
A jovem me apertou as mãos.
― Ele acreditava que seria feliz aqui. Depois de tudo,
encontrou-a escondida em uma arca; isso o fez pensar que
tinha problemas com os romanos. Pensou que, se lhe
mostrasse como vivíamos e a fizesse sentir parte de nosso
povo…, você quereria ficar.
Voltei a engolir em seco. Estava chocada.
Kara continuou:
― Disse-me que, se tentasse fugir no meio da noite, não
a impediria. Mas a verdade é que você nem sequer tentou.
Preferiu ficar a seu lado, e isso me alegra.
Suspirou.
― Gosto de Leukón, Cassia. É mais do que um irmão
para mim, embora não tenhamos o mesmo sangue.
― Eu sei ― admiti ―. Eu sei, Kara.
― Sobre a sua outra pergunta…
Voltamos a olhar-nos fixamente. Seus olhos azuis
pareciam amarelos à luz das fogueiras.
― Escute-me, Cassia: não tenho nada contra você. Não é
a primeira romana que ganha o meu respeito… nem a minha
amizade.
Sua boca se torceu.
― Contudo, se continua a pensar que Roma é o “seu
povo”…, o melhor será que vá embora o antes possível. Para o
bem de todos.

191
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

A jovem suspirou e me deu um tapinha no ombro.


Depois partiu sem olhar atrás.
Eu vi como se afastava.
Tinha razão.
A minha mente fervia. Kara estava correta: eu só estava
prolongando a agonia. Quanto mais tempo permanecesse em
Numância, mais me custaria partir da cidade… e deixar para
trás todas as pessoas que tinha conhecido ali.
Estive quase a tomar uma decisão. Quase.
Mas então ouvi gritos. E, alarmada, pus-me a correr
para o lugar de onde provinham.

― Por Epona! ― gritei ao ver o que estava acontecendo.


Tratei de abrir caminho por entre a multidão, mas uns
braços fortes me sujeitaram.
― Tranquila, mulher ― Ambón riu, estreitando-me
contra o seu corpo ―. Só estão aprendendo.
Com um empurrão me afastei dele.
À volta de uma fogueira de tamanho médio havia um
círculo desenhado na terra. No interior desse círculo estava
acontecendo um combate corpo a corpo; e isso não me teria
preocupado muito, se não fosse um combate entre meninos.
Um deles era Tiresio, o filho de Aunia.
O outro era Calias.
192
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Calias! ― chamei-o, furiosa.


Estava disposta a intervir, mas não foi necessário: com
um grito de guerra, Calias se agachou, rodeou a cintura de
Tiresio com os braços… e o arremeteu por cima de sua
cabeça.
Tiresio caiu de bruços fora do perímetro do círculo.
Quando se levantou, sangrava o nariz.
Calias e ele se olharam. Por um momento, pensei que
Tiresio ia investir contra Calias.
Mas, em vez disso, o filho de Aunia esboçou um sorriso.
― Você ganhou ― disse a Calias.
E, ante o meu olhar estupefato, os dois meninos
trocaram um soco amigável e limparam o círculo.
Enquanto Unibelos e uma moça ruiva começavam bater-
se, eu me dirigi para Calias.
― Pode explicar-me o que acaba de fazer? ― espetei-lhe.
Quando o menino me viu, olhou-me com uma mescla de
culpabilidade e orgulho.
― Acabo de derrotar Tiresio.
― Com que objetivo?
Meu tom deve ter sido muito frio, porque o moço se
encolheu um pouco.
― Eu… queria mostrar a todos que sou forte.
― E para isso teve de quebrar o nariz de Tiresio?
― Bom, não o quebrei.
― Poderia tê-lo feito!

193
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― A Leukón quebraram o nariz quando tinha a minha


idade, senhora. É algo habitual entre os celtiberos mais
jovens.
Eu não podia acreditar o que estava a ouvir.
― É assim que se divertem? Batendo uns nos outros?
― Para eles é normal, senhora ― protestou Calias ―, e eu
quero ser como eles.
― Quer ser como eles? ― repeti, assombrada.
― Sim! Quero ser como eles e… quero viver aqui para
sempre!
As suas palavras me provocaram uma pontada de
angústia.
― Oh, Calias…
Ele me abraçou. Deu-me impressão de que tinha
crescido vários centímetros desde a nossa chegada a
Numância.
― Por favor, senhora ― gemeu ―, quero ficar aqui. E
quero que você fique. Por favor, fique comigo. Conosco. Agora
esta é a sua casa.
― Calias, eu já tenho uma casa…
― Não, não tem! ― saltou ele, separando-se bruscamente
de mim ―. Seu pai está na guerra e a sua mãe ia entregá-la a
esse… Máximo! ― pronunciou o seu nome com um ódio
impróprio dele ―. Recuso-me a acreditar que esse homem é
melhor que Leukón de Sekaisa, senhora! Recuso-me, recuso-
me e me recuso!
Eu tinha um nó na garganta.
― Não é melhor, mas… Roma é a minha casa.

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Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Isso não é verdade. Numância é a sua casa.


― Eu sei onde está o meu coração! ― estalei.
― Sim, senhora, e por isso sabe que está aqui! O que
acontece ― continuou em voz baixa ― é que tem medo de
tomar as suas próprias decisões.
― Calias…
― Sempre fez o que lhe mandavam, não é? Tem medo de
errar. Se toma uma decisão e se equivoca, não poderá jogar a
culpa em mais ninguém. Mas, sabe uma coisa?, não é um
erro querer ficar aqui. Eu amo este lugar… e sei que você
também ama, senhora. Sei porque a amo.
O menino baixou a cabeça e fungou ruidosamente.
Depois pôs-se a correr.
― Calias…!
Quis detê-lo, mas não pude.
As suas palavras me golpearam com tanta dureza como
as de Kara.
Qual dos dois tinha razão?
A quem devia escutar?
E se Calias estivesse certo? E se de fato levasse a sério
as palavras dos outros porque me assustava decidir por mim
mesma?
Compreendi que não podia continuar a prolongar aquela
situação. Calias já se tinha decidido: ele permaneceria em
Numância, e eu não podia (nem queria) obrigá-lo a fazer
outra coisa.
Mas, graças a Kara, eu sabia que podia ir. Se fugisse no
meio da noite, o meu marido não me impediria.

195
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Oh, deuses, o meu marido. Como ia abandonar o nosso


quente leito para escapulir-me para a escuridão? Como ia
sair de sua vida sem lhe dizer adeus?
Como ia trair o homem que me amava… e que eu
amava?
Sim, amava-o.
E queria ficar com ele.
Queria ficar com ele.
Fechei os olhos, tentando assimilar a decisão que
acabava de tomar.
“Ficarei aqui. A minha pátria será a Hispânia. A minha
casa, Numância. A minha gente, os celtiberos. O meu amor…,
ele”.
Meu corpo tremia, mas o meu coração se mantinha
firme.
Já estava. Já o tinha feito. Tinha tomado a minha
decisão.
Mas, quando me dispunha a ir contar a Calias…, escutei
o meu nome.
― … Cassia.
Era a voz de Leukón, mas o meu marido não me estava
chamando. Estava falando de mim com outra pessoa.
A sua voz não provinha das fogueiras, mas de um beco
que havia entre duas casas. As casas estavam vazias, por isso
o beco estava tenuemente iluminado pelo longínquo
resplendor do fogo.
Não tinha de ser cuidadosa. Mas fui.

196
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XXI.
Traição

A sombra de meu marido se recortava contra a parede.


Ele estava de costas para mim.
Aunia, de frente.
A mulher não me via. Tinha a cabeça inclinada, de
maneira que o cabelo lhe tapava os olhos.
Mas eu não estava reparando na sua cara, mas na sua
barriga.
Aunia tinha retirado o sagum, exibindo um ovalado
ventre. Calculei que estaria na quinta ou sexta lua de sua
gravidez.
― Por favor ― disse a Leukón ―, tem de fazê-lo.
― Não ― respondeu o meu marido ―. Não tenho.
― Precisa de um pai!
― Procure outro para isso.
Aunia levantou a cabeça e o fulminou com o olhar.
― Tem de fazê-lo!
― Ah, sim?
Leukón falava com aspereza. Não era o tom que estava
acostumado a usar quando estava comigo.

197
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Isso me provocou um ligeiro calafrio.


A mulher franziu os lábios.
― Se não o fizer, direi à sua mulher ― espetou ―. Direi
que é seu.
Algo se rompeu dentro de mim ao escutar aquilo.
“Não pode ser”.
― Diga-lhe se quiser ― respondeu Leukón ―. Não
acreditará em você.
Aunia elevou o queixo.
― Direi quando aconteceu. Direi que foi durante uma de
nossas explorações.
― Não acreditará em você ― repetiu o meu marido.
Eu me separei do beco. Já tinha ouvido o suficiente.
Pus-me a andar em direção à minha casa, esquivando-
me dos celtiberos que dançavam e ignorando os que me
chamavam ao passar. O coração me golpeava as costelas; mal
podia ver nada o que acontecia em meu redor.
Não podia ignorar o que tinha visto.
Aunia ia ter um filho. Um filho de Leukón.
Fiz cálculos mentais. Aunia parecia prestes a dar a luz,
por isso Leukón e ela deviam ter engendrado o bebê há várias
luas. Certamente, antes que Leukón e eu casássemos.
Talvez Aunia já soubesse que ia ter um filho quando o
fizemos. Talvez por esse motivo o tivesse aceitado tão mal.
Aunia era viúva. Se Leukón se casasse com ela, a sua
família voltaria a estar completa…, mas eu me tinha colocado
em seu caminho.
Agora entendia por que me odiava.

198
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Mas por que Leukón se comportara daquele modo? Não


me teria importado saber que se deitara com outras mulheres
antes de casar-se comigo. Nem sequer me teria importado
saber que as tinha amado.
O que me importava era que tinha mentido.
Ele tinha dito que era virgem. Mas, se Aunia estivesse
dizendo a verdade…
Oh, claro que estava. Leukón nem sequer tinha negado
que o filho era dele! Só lhe tinha dito que eu não ia acreditar
nela.
― Pois acredito, querido ― balbuciei.
Entrei em minha casa e me pus a acender a lareira.
Demorei um bom pedaço para consegui-lo, mas isso me
permitiu manter as mãos ocupadas: se não as usasse para
fazer algo de útil, pôr-me-ia a quebrar coisas.
O fogo ateou. E eu fiquei observando-o, imóvel como
uma estátua de sal.
Não sei quanto tempo passou.
Talvez só tenham sido uns minutos, mas eu senti que
tinha envelhecido vários anos de repente.
Calias tinha razão: até àquele momento, eu tinha temido
tomar as rédeas da minha vida. De algum modo, esperava
que alguém me devolvesse ao mundo que conhecia, o mundo
dos meios-fios e pavimentações, dos navios mercantes e dos
banhos termais. O mundo romano, moderno e civilizado, com
o qual eu já estava familiarizada.
Mas eu tinha assentido a um novo universo. O universo
hispânico, selvagem e formoso, do qual agora fazia parte. E,

199
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

embora o tivesse feito contra a minha vontade, tinha desejado


permanecer nele.
E agora tudo se rompia. Leukón, um dos pilares sobre
os quais descansava esse novo universo, tinha me traído.
Não me doía o fato de ter se deitado com outra mulher.
Doía-me que não me tivesse dito nada. E que agora pretendia
não só continuar a enganar-me, como também ignorar a
criatura.
Essa era a pessoa com a qual queria compartilhar o
resto da minha vida? Um homem capaz de ignorar a mãe de
seu filho? De renegar a criança?
De tomar-me por idiota?
Pouco a pouco, a minha desilusão ia sendo substituída
por outro sentimento: raiva.
Não podia continuar ali parada, esperando que a meu
marido parecesse oportuno voltar. Iria à sua procura e o
obrigaria a assumir as consequências de seus atos.
Bem quando me punha em pé, ele apareceu na soleira
da porta.
― Vi o fogo da rua ― disse com suavidade ―, está bem?
― Sim, estou perfeitamente ― repliquei ―. E quanto a
você?
Leukón deixou de sorrir.
― Está tudo bem?
― Não.
― Ah! ― O meu marido deu um passo em frente ―. Pode
explicar-me o que está acontecendo?
― Acredito que é você quem me deve uma explicação.

200
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Não entendo.
Soprei.
― Então, serei clara: não me incomoda que se deitasse
com Aunia, mas não entendo por que me ocultou isso todo
este tempo. E me parece vergonhoso que agora pretenda
ignorar o vosso filho.
Quando pronunciei as duas últimas palavras, Leukón
exclamou:
― O quê?
Seu tom não revelava aborrecimento, nem vergonha. Só
uma profunda incredulidade.
― Como “vosso”? Desde quando eu vou ter um filho com
Aunia?
― Desde que se deitou com ela durante uma de vossas
explorações.
Leukón abriu os olhos e a boca ao mesmo tempo.
― Isso…
― Isso é o que ela lhe disse antes. ― Suspirei ―. E eu
acredito nela.
― Acredita nela? ― O meu marido repetiu, quase sem
fôlego.
― Agora entendo por que sempre a defendia. Na verdade,
devia ter suspeitado, mas…
― Acredita nela? ― insistiu ele ―. Estou dizendo que o
filho de Aunia não é meu e você… acredita nela?
Respirei fundo.
― Leukón, escutei a vossa conversa.

201
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Não toda, Cassia. Porque acredito ter recordado a


Aunia que o seu filho não é meu, mas de Ambón.
― Essa parte eu perdi, por acaso.
Meu marido me olhava com desconcerto.
― Cassia, é a verdade. Ambón não quer casar-se com
Aunia, nunca quis. Por isso Aunia pretende que eu me
encarregue de seu filho, coisa que não penso fazer, por certo.
O filho não é meu.
― Como sabe?
― Porque eu jamais pus uma mão em cima daquela
mulher, por Cernunnos! ― Leukón estalou ―. Jamais!
Golpeou a parede com o punho.
― Não golpeie as coisas.
― O que quer que eu faça, se a minha esposa prefere
acreditar na palavra de uma embusteira à minha?
Voltou a golpear a parede.
Aquilo acabou por enfurecer-me.
― Escute-me, bárbaro! ― chiei, igualando o meu tom de
voz ao seu ―. Tanto me faz como me fez o quer que tenha
acontecido, não permito que me levante a voz! Nem lhe
permito que fique violento!
Ele bufou:
― Violento? Não bati em ninguém, só na parede!
― Ah, menos mal ― zombei ―. Tenho de agradecer-lhe
por não me bater?
Leukón se plantou a meu lado com apenas três passos.

202
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Antes cortaria a minha própria mão ― vaiou ―.Você


ouviu bem, Cassia? Mas, se acredita que eu seria capaz de
fazer-lhe algum mal…
― Já não sei em que acreditar, Leukón ― interrompi-o ―.
Já não sei.
Olhamo-nos durante uns segundos. Os seus olhos
ardiam; os meus se apagaram.
De repente, já não estava furiosa. Só cansada e
decepcionada.
Ele falou em voz baixa:
― Nunca quis estar aqui, pois não?
― Vim à força ― respondi no mesmo tom ―. Fiquei por
obrigação. E agora…
― Agora…?
Percorri a casa com o olhar: as peles, os adornos de
haste…, o nosso leito.
― Agora tudo isto me faz sentir dor.
― Bem.
Leukón me virou as costas.
― Vai embora?
― Sim. E você vem comigo.
― Mas…
Ele se deteve e me olhou por cima do ombro.
― Cassia, por favor ― murmurou ―. Deixe-me fazer uma
coisa bem, pelo menos.
Aquelas palavras não me convenceram, mas o tom com
que as pronunciou. E, pisoteando os últimos restos de nossa
breve felicidade, segui-o para o exterior.

203
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Hispânia Ulterior, 153 a.C.

204
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XXII.
Encruzilhada

Trovão percorria o bosque a galope, quebrando ramos e


golpeando troncos com os seus flancos.
Leukón me segurava firmemente. Por prevenção, eu
também me agarrava à pelagem do cavalo. Ia encolhida no
meu sagum, tentando proteger-me do vento gelado que
sacudia o meu corpo.
Os fogos de Numância tinham ficado para trás. Só olhei
por cima do ombro uma vez: a cidade ainda estava envolta
em fumaça dourada, mas as fogueiras foram desvanecendo
pouco a pouco.
A festa tinha acabado.
Leukón tinha despertado Trovão, tinha me subido nele e
o tinha guiado para fora de Numância em silêncio. Não tinha
se despedido de ninguém… e eu suspeitava que tinha tratado
de passar despercebido.
― Aonde vamos? ― tinha lhe perguntado.
Mas Trovão ia tão depressa que Leukón não conseguia
escutar-me.
Cavalgamos durante um bom pedaço.

205
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

A decepção que tinha sentido ao conhecer a verdade se


converteu em uma dor surda. Naquele momento, todos os
meus sentidos estavam em alerta por causa do frio e do
sonho que tinha tido. O meu corpo estava dormente e as
minhas pálpebras se fechavam sozinhas. Só queria dar meia
volta, voltar para Numância, deitar-me nas minhas peles… e
não sair delas durante uns quantos anos.
Mas Leukón, implacável, continua a conduzir Trovão
para o desconhecido.
Detivemo-nos em uma clareira diminuta. Leukón me
ajudou a desmontar e atou Trovão a um tronco. Rodeavam-
nos pinheiros tão altos como dez homens; fiquei olhando para
o círculo de luz azul que se via por entre as copas das
árvores, um céu sem lua, nem estrelas, enquanto o meu
marido murmurava alguma coisa ao seu cavalo.
Depois se dirigiu para mim:
― Venha comigo, Cassia. Quero mostrar-lhe uma coisa.
― O quê?
Mas Leukón não respondeu. Evitava os meus olhos
desde que tínhamos saído de Numância.
Eu fui atrás dele.
Caminhamos por entre as árvores durante alguns
minutos. Finalmente, Leukón se deteve e afastou um ramo
baixo para deixar-me ver.
― Aí está.
Um resplendor avermelhado me cegou. Pisquei,
tentando acostumar-me à súbita luz…
E vi.

206
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

As fogueiras estavam repartidas em fileiras que se


cruzavam perpendicularmente. Conhecia perfeitamente
aquela disposição, e vê-la diante de mim me provocou um
estremecimento.
― O acampamento de Nobilior ― anunciou Leukón ―. Os
romanos estão aqui, Cassia. Às portas de Numância.
― Deuses… ― murmurei.
O meu marido deu um passo atrás.
― É livre.
Procurei a sua cara na escuridão, mas só vi a sua
silhueta. Negra. Quieta. Tensa como a corda de um arco.
― O quê? ― ofeguei.
― Pode ir ter com eles.
― Mas…
― É livre ― suspirou ― para voltar para casa.
Primeiro senti pena.
Depois, a raiva voltou.
― Isso é o que quer? Libertar-se de mim?
― Hmm…?
― Quer que vá… para poder casar com Aunia?
Minhas palavras deixaram atrás de si um breve silêncio.
A voz de Leukón se quebrou:
― Já chega, por favor!
Aproximou-se de mim a passos largos. Pude ver como
tensionava os músculos, como o seu peito ascendia e
descendia rapidamente debaixo do sagum. E me encolhi
involuntariamente.

207
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Trouxe-a até aqui porque merece ser livre ― grunhiu


―, mas isso não quer dizer que não me parta o coração.
Contudo, se for …
― Leukón… ― comecei a dizer, mas ele me interrompeu:
― Não, espere. Você já falou, então me deixe terminar.
Se for … ― repetiu ―, não quero que as suas últimas palavras
sejam uma mentira. Eu nunca, nunca estive com Aunia
dessa maneira. Fomos companheiros de armas, nada mais.
Ela quer que me ocupe de sua família, e posso entendê-lo,
porque deve ser duro cuidar de três meninos sem ajuda…,
mas sabe tão bem quanto eu que esse filho não é meu. E você
tem de acreditar nisso.
Terminou de percorrer a distância que nos separava e
me agarrou pelo braço. Com brutalidade, mas sem violência.
Atraiu-me para o seu corpo e inclinou a cabeça até que pude
notar a carícia de seu fôlego nos meus lábios.
Eu estava contendo a respiração.
― Fiz coisas terríveis, Cassia ― sussurrou ―. Matei
homens armados e assassinei a sangue frio. Assaltei
caravanas e roubei o que quis. Fui bruto e violento, também;
você tinha razão em tudo isso. ― Seu olhar desceu até à
minha boca ―. Mas não sou um mentiroso, nem um covarde.
Isso eu não sou.
Fechou os olhos e me empurrou contra a árvore mais
próxima para devorar os meus lábios. Apenas me deu tempo
para pôr as minhas mãos no seu peito: antes que eu
percebesse, já me tinha soltado e me virado as costas. .
― Que os deuses tenham piedade de mim ― suspirou.

208
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

E não disse nada mais.


Eu ainda sentia o rastro ardente que aquele último beijo
tinha deixado sobre os meus lábios. E me perguntei se
realmente seria o último. Terminava tudo assim? Era assim
que ia terminar a minha história com o homem que me tinha
salvado do aço e do fogo, que me tinha devotado o seu lar e o
seu corpo?
Essas eram as suas últimas palavras para mim?
“Mas não sou um mentiroso, nem um covarde. Isso eu
não sou”.
― Não, não é ― disse com um fio de voz ―, e eu acredito
em você.
Seus ombros se esticaram. E pude ver como se voltava
para procurar os meus olhos na penumbra.
― Você… acredita em mim? ― repetiu com cautela.
Eu levei as minhas mãos ao coração.
― Sim ― admiti ―. Sim, acredito em você.
Sua cara se iluminou.
― Obrigado. ― Inclinou a cabeça ―. Obrigado, Cassia.
Assim me dói menos… separar-me de você.
Algo se agitou dentro de mim ao escutar aquilo.
― Leukón, eu não…
Calei-me quando ouvi um ruído nas minhas costas.
Leukón também deve ter ouvido, porque me agarrou
pelo braço e me pôs atrás dele.
― É o cavalo dele. ― Escutei um homem dizer na língua
dos celtiberos.
― Matamos? ― disse um outro homem.

209
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Leukón respondeu com voz potente:


― Se tocarem no meu cavalo, cortarei lhe as mãos!
Depois me disse:
― Fique aqui. Ou vá para o acampamento. Mas não me
siga.
E pôs-se a correr.
Como é óbvio, fiz caso omisso do que me dissera.

Na clareira três homens nos esperavam.


Eram celtiberos. Recordava vagamente de suas caras; de
fato, um deles tinha viajado conosco para Numância. Não me
lembrava se era Corbis ou Lubbo.
Os três homens levavam tochas. E os três estavam
armados. Não vi cavalos em lado nenhum, mas podiam tê-los
deixado atados um pouco mais atrás.
Corbis (ou Lubbo) foi o primeiro a adiantar-se.
― Bem, Leukón, não esperava isto de você.
Meu marido inchou o peito.
― A que se refere, Lubbo?
Sim, era Lubbo. Corbis era o tipo das ervas medicinais.
Eu gostava dele, algo que não podia dizer de Lubbo, na
verdade.
― Sei que você não teve culpa ― grunhiu então ―. Foi
essa cadela que tomou por esposa.
210
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Definitivamente, de Lubbo eu não gostava nada.


― Se fala assim de minha esposa, Lubbo, terei de
arrancar-lhe a cabeça. Poupe-nos a isso, está bem?
Lubbo se encolheu involuntariamente ao escutar aquilo.
Por uma vez, alegrei-me do fato de Leukón ser tão direto.
― Ela o enganou ― resmungou Lubbo ―. É o que fazem
as mulheres de sua índole: como não sabem brandir uma
espada, usam a sua astúcia para dominar um homem e, zás!,
levam a sua avante.
― Não sabia que tinha tanta experiência com mulheres,
Lubbo. Na verdade estava inclinado a pensar bem o contrário.
Os companheiros de Lubbo riram entredentes, mas um
deles encarou o meu marido:
― Leukón, a sua língua não o salvará desta vez.
Apanhámo-lo.
― A fazer o quê? Será que não posso vir ao bosque com
a minha mulher?
― Não ao acampamento dos romanos, velho amigo ―
respondeu o homem ―. Sinto muito, mas deve voltar para
Numância… e entregar-nos a sua esposa.
― Não.
― Escute-me, Leukón…
― Não, escute-me você: fiz um juramento ante os
deuses. Jurei que protegeria a minha esposa. Se tentarem
fazer-lhe algum mal, terei de matá-los. Simples assim.
Dizia-o com tanta tranquilidade que se tornava
arrepiante.

211
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Eu, por minha parte, estava a calcular as nossas


possibilidades. Sabia que Leukón era um bravo guerreiro,
mas, se aqueles homens se empenhassem em levar-me com
eles…, seriam três contra um.
― Existe a possibilidade de que vá com eles? ―
perguntei-lhe em latim.
― Não sem que corra perigo ― respondeu ele sem olhar-
me ―. Não o permitirei.
― Mas…
― Cassia ― interrompeu-me ―, não o permitirei.
Soube que não ia mudar de ideia, por isso me afastei
discretamente dele e me aproximei de Trovão, que se agitava
com nervosismo.
― É tal e qual Karos ― espetou Lubbo a Leukón ―.
Deixaram que duas mulheres os dominem.
― Que a sua mulher possa opinar não quer dizer que o
domine, Lubbo ― respondeu o meu marido com voz pausada
―. Embora suponha que nenhuma mulher se aproximou de
você o suficiente para que você possa sequer escutá-la.
Tentava ganhar tempo, mas ele se estava esgotando.
― Já basta de bate-papo! ― Lubbo ladrou ―. Entregue-
nos a romana ou será acusado de amigo dos romanos!
― Vou ter de matá-lo, Lubbo.
― Avaro tem razão ― disse um dos outros homens ― :
Ela o converteu em um traidor.
― Não queremos amigos dos romanos entre nós ― O
terceiro o apoiou.

212
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Lubbo e os seus companheiros arrojaram as suas tochas


e desembainharam as espadas.
Leukón já tinha a sua preparada.
― Cassia, corre ― disse-me.
Mas eu tinha uma ideia melhor.
Tudo aconteceu muito rápido: os homens puseram-se a
correr, Trovão levantou as patas dianteiras e o animal caiu
sobre Lubbo, pisoteando-o com os seus cascos.
Ouvi o desagradável som dos ossos quebrando-se.
Momentos depois, o ruído metálico das espadas se misturou
com os gritos de guerra de meu marido.
As tochas se apagaram. Eu rebolei pelo chão, afastando-
me da confusão, e tentei ver algo na penumbra do bosque.
Um homem caiu ao chão com alarido. Soube que não
era Leukón porque os outros dois continuaram a lutar.
Não podia fazer nada para ajudar o meu marido, então
me aproximei de Trovão, que relinchava e dava coices. Tentei
acalmá-lo, mas não fui capaz; finalmente, tive de afastar-me
para que não me pisoteasse também.
Momentos depois, ouvi um gemido.
Girei e vi uma imagem horrível.
― Não… ― gemi.
Meus olhos se encheram de lágrimas.
Um daqueles homens estava inclinado sobre Leukón. Só
via a sua silhueta, mas era muito pequena para ser a de meu
marido. Ele estava deitado no chão, imóvel, enquanto o outro
ofegava.

213
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Entre os dois corpos havia uma espada. Uma espada


erguida verticalmente.
Uma espada que nascia do peito de Leukón.
― Não! ― rugi.
O outro homem grunhiu algo. Seus ombros se
sacudiram e seu corpo se relaxou.
O homem caiu ao chão como um fardo.
Leukón rodou sobre o seu flanco e se levantou.
Então percebi: a espada não estava cravada em seu
peito, mas no ventre de seu oponente.
― Cassia…? ― murmurou o meu marido.
Eu caí de joelhos junto a ele.
― Deuses…, está vivo?, Está ferido?
― Estou bastante ferido, na verdade ― grunhiu ―, mas
acredito que sobreviverei.
Leukón também ficou de joelhos, bem diante de mim.
― Como você está?
― Mal.
― Fizeram-lhe mal? ― alarmou-se.
― Leukón, eu pensava… Oh.
As lágrimas alagavam as minhas bochechas. Quando o
meu marido percebeu, inclinou-se para mim.
― Ah, querida…, estava chorando por mim?
― Pensava que aquele homem o tinha matado…
Leukón me apoiou docemente em seu peito.
― Talvez outros o façam quando voltar para Numância ―
admitiu ―, mas morrerei feliz sabendo que você está a salvo.
A sua gente a protegerá, e não terá de viver esta guerra.

214
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Equivoca-se ― sussurrei ―. Vou vivê-la.


― Mas…
Levantei a cabeça para olhar para ele. Apesar da
escuridão, acreditei vislumbrar o brilho de seus olhos.
― Leukón de Sekaisa, fez um juramento ante os deuses
― recordei-lhe ―. Sou sua esposa e não pode desfazer-se de
mim tão facilmente.
― Cassia…
― Vou voltar com você ― declarei ―. Vou voltar para a
minha casa…, que também é a nossa casa. E depois veremos
o que faremos.
Leukón me pôs as mãos nos ombros.
― Escute-me, Cassia: vou ter de explicar a morte destes
homens. Avaro os enviou, mas eles não voltarão e eu sim. O
que me deixa em uma posição delicada, dado que Avaro
suspeita que estou disposto a trair a minha gente para que os
romanos ganhem a guerra.
― Sei que ter uma esposa romana não ajuda ― admiti ―,
mas prefiro voltar com você.
― Tem a certeza?
― Toda.
― Mas, o que a fez mudar de opinião?
Embora não pudesse ver-me, sorri.
― Faz tempo, Calias me disse algo muito inteligente.
― Sim? O que lhe disse?
― Que uma pessoa que está disposta a salvar a sua vida
é uma boa escolha.
― Isso foi o que a fez mudar de opinião?

215
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Não, só me recordei disso.


― Então? ― insistiu Leukón ―. Por que mudou de
opinião?
Eu ri e, ao mesmo tempo, voltei a chorar:
― Ah, querido…, eu não mudei de opinião. Eu não
queria partir.
― Nem sequer quando Aunia…?
― Esqueçamos Aunia. ― Suspirei ―. Acredito que temos
problemas mais graves do que as suas intrigas.
― Temos, sim. Mas, se está convencida…
― Quantas vezes tenho de dizer-lhe que estou?
Dessa vez, foi meu marido quem riu.
― Está bem.
Aproximou-se de Trovão com cautela. O cavalo
continuava nervoso, mas pareceu acalmar-se ao ver o seu
dono.
― Ouça, Leukón… ― disse-lhe ao ver que se dispunha a
montar ―. Não deveríamos fazer algo com eles?
Lubbo e outros não me inspiravam simpatia, mas não
me parecia bem deixar os seus cadáveres à mercê dos
predadores.
Curiosamente, a Leukón sim:
― Não, ainda não. Morreram em combate: é justo que os
abutres os descarnem para que alcancem o Além o mais
depressa possível.
― Como…? ― bloqueei, assombrada.

216
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― É algo que apenas os guerreiros merecem ― explicou


―. Quando um guerreiro morre de forma heroica, é justo
deixar que os abutres se ocupem dele.
― Não entendo.
― Não importa. É um costume, e teriam gostado que o
respeitássemos.
Seu tom não admitia réplica, por isso aceitei a sua mão
e montei atrás dele.
Tinha presenciado uma matança. Tinha renunciado
voltar para os romanos. Tinha decidido acompanhar Leukón
a Numância… com todas as consequências.
Devia estar impressionada. Arrependida. Assustada.
Mas só sentia alívio. Um alívio tão grande que, sem dar
conta, permitiu-me adormecer em cima do cavalo.

217
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Numância, 153 a.C.

218
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XXIII.
Amigos dos romanos

Estava amanhecendo quando chegamos a Numância. O


céu clareava no este, mas não havia lua, nem estrelas nele:
só um denso manto nubloso e chuva. Uma chuva gelada que,
pouco a pouco, ia empapando o meu sagum e a pelagem de
Trovão.
― Não se ouve nada ― disse a Leukón ―. Acha que todos
ainda estarão a dormir?
― Não.
Voltei-me. O meu marido contemplava as muralhas com
o cenho franzido.
As portas se abriram. Lentamente.
Havia alguém do outro lado.
Mal Trovão entrou na cidade, viu-se rodeado por um
grupo de guerreiros.
― Alto! ― Ordenou um deles, um jovem com a cara cheia
de sardas ―. Onde estão Lubbo e os outros?
Ao ver as espadas, o cavalo ficou nervoso. Temi que se
elevasse sobre os seus quartos traseiros, mas Leukón o tinha
bem treinado: fez um som com a língua, deu-lhe uma

219
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

palmada no lombo e conseguiu apaziguá-lo, até que


descemos.
Então sim, Trovão começou a relinchar com fúria.
Leukón se colocou diante de mim e olhou para o jovem
das sardas. Pensei que a altura de meu marido era uma
vantagem: tal como tinha feito Lubbo, o menino se encolheu.
― Lubbo e outros tentaram machucar a minha esposa ―
disse Leukón com calma ―. Disse-lhes que era uma má ideia,
mas não me escutaram.
― E qual foi o desenlace? ― perguntou alguém lá atrás.
Dois guerreiros se afastaram para deixar passar Ambón,
que estava despenteado e usava o sagum recolhido por cima
do ombro, como se se tivesse levantado apressadamente do
leito.
Leukón e ele trocaram um olhar. E o meu marido sorriu
levemente.
― Eu não ameaço, Ambón. Eu ajo.
― Matou-os, então.
Não era uma pergunta.
Então ouvi uma voz conhecida:
― Eu diria que se suicidaram.
Kara empurrou um homem para situar-se junto a
Ambón, que a olhou de esguelha.
― Todos sabemos que não é fácil provocar Leukón ―
grunhiu ela ―. Mas, se se empenhar em fazê-lo…, o problema
é seu.

220
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Lubbo sempre foi um pouco idiota, isso sim ―


concedeu Ambón, provocando algumas risadas por entre os
guerreiros ―. Contudo…
― Contudo ― alguém o interrompeu ―, Lubbo estava
seguindo as minhas ordens.
Conhecia aquela voz.
― Karos ― murmurou Leukón.
O líder dos Belos e os Arevacos se dirigiu a nós. Ele
estava impecável: tinha a cara limpa, o cabelo entrançado e o
sagum preso com uma reluzente fíbula em forma de
guerreiro.
― Eu disse a Lubbo que os seguisse quando os vi sair de
Numância às escondidas ― declarou ―. Mas nem ele, nem os
seus homens retornaram. E você admite tê-los matado… por
causa da sua mulher.
― Não está enganado, Karos ― replicou o meu marido ―
: ela não os provocou em momento algum. Foram eles
quem…
― Onde estão os seus corpos? ― Karos o interrompeu.
Nunca antes tinha falado assim com Leukón, pelo
menos, não na minha presença. Parecia realmente zangado.
O meu marido respondeu:
― No bosque.
― Perto do acampamento romano?
― Sim.
Houve gritos de protesto.
― Então, é verdade… ― murmurou Karos ―. Ía trair-nos.
― Isso não é verdade ― intervim eu.

221
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

O homem me dirigiu um olhar carregado de desprezo.


― Cale-se, mulher ― rosnou-me.
E voltou a enfrentar para Leukón:
― O Conselho de Anciãos decidirá o que fazer com você.
Quanto à sua mulher…
Karos hesitou. Eu notei que Leukón aproximava os
dedos do punho da espada.
― Eu ocuparei-me dela.
Kara me agarrou pelo braço.
― Levarei para minha casa e vigiarei… até que decidam
o que fazer com Leukón.
Karos fez um gesto áspero.
― Se a deixa escapar, Kara, eu mesmo cortarei seu
pescoço.
― Não escapará ― bufou ela ―. Têm o seu marido,
lembra-se?
Leukón e eu nos olhamos.
― Sabe que Karos não está atrás disto, não sabe? ―
perguntei-lhe em latim ―. É Avaro.
― Sei ― respondeu ele ―. Lubbo e outros o delataram
sem querer.
― O que quer que eu faça, Leukón?
― Vá com Kara. E espere.
― Como o posso ajudar?
Ele sorriu com pesar.
― Não pode ajudar-me, querida. Não desta vez.
E, decidido, tirou o cinto e o deixou cair ao chão… junto
com a sua espada e a sua adaga.

222
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Ambón os recolheu com ar satisfeito.


― Por agora, fico com isto ― anunciou.
Leukón, por seu lado, separou os braços do corpo e
deixou que dois guerreiros o atassem. Um deles era o menino
sardento; quando se aproximou, Leukón se agachou
ostentosamente para facilitar-lhe a tarefa.
― Maldito arrogante… ― murmurei, dividida entre a dor
e a ternura.
Leukón me dirigiu um breve sorriso. Depois os homens
tiraram as cordas e ele teve de virar-me as costas.
― Para onde o levam? ― perguntei enquanto ele se
afastava.
Só Kara respondeu:
― Leukón está sob o amparo do Conselho de Anciãos.
Eles o julgarão quando chegar o momento.
E acrescentou em latim:
― E agora, se estiver pronta, fechará a boca e virá
comigo.
E isso foi o que fiz.

A casa de Kara era curiosamente pequena. Tinha três


espaços: o que dava para a rua, diminuto e com um pequeno
alçapão que permitia aceder à adega, outro maior, presidido

223
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

pela lareira, e a quadra onde dormitava Furiosa. O armazém


era um buraco na parede, e não havia nenhum tear à vista.
No banco mal cabíamos as duas, mas a jovem não se
sentou, ficou de pé, ao lado da janela, dando-me as costas.
― Onde está Calias? ― foi a primeira coisa que lhe
perguntei.
Ela demorou um momento para responder.
― Com Karos ― grunhiu finalmente ―. Até que decidam
o que fazer com vocês dois, o seu filho é responsabilidade do
chefe.
― E depois?
― Esperemos que não haja um depois.
Levantei-me de um salto.
― Kara, o que vão fazer com Leukón?
Por fim, ela se virou para olhar para mim.
Esse olhar me assustou.
― No melhor dos casos, deixarão lutar por sua vida. No
pior…, executarão.
― Lutar por sua vida? ― repeti. Não queria pensar no
pior, ainda não.
― Os julgamentos por combate não são muito habituais,
mas existem ― disse Kara ―. Se um guerreiro for acusado de
algo, pode esperar que o Conselho de Anciãos tome uma
decisão… ou defender-se por seus próprios meios. Também
pode deixar que lutem por ele, sempre e quando essa pessoa
tenha o seu sangue. Mas não se entusiasme ― acrescentou ―
: não acredito que deixem Leukón lutar.
― Por que não?

224
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Porque é o melhor.
Kara apertou as mandíbulas e desviou o olhar.
Eu dei um passo para ela.
― Culpa-me por isto, Kara? ― perguntei com suavidade.
― Sim e não ― admitiu ela ―. Não é culpa sua, eu sei.
Você não quis causar-lhe problemas, mas…
― Causei-os.
A jovem voltou a contemplar-me.
― Suponho que não escolhemos por quem nos
apaixonamos.
― Não, mas escolhemos a quem querer. E eu escolhi
querê-lo… e o arrastei à tumba.
― Se o matarem, Cassia, irão matá-la também.
― Isso não me importa ― disse sem mentir ―. Só quero
ajudá-lo.
― E eu, mulher ― suspirou ela ―. E eu.
Ficamos caladas durante um momento.
― Há alguma coisa que possamos fazer?
― Receio que não. O Conselho de Anciãos admira a
coragem, mas não acredito que isso seja suficiente para
Leukón.
― Se houvesse alguma forma de convencê-los…
Kara se adiantou e me pôs as mãos nos ombros.
― Acredito que, apesar de tudo, fez bem.
Eu a olhei com desconcerto.
― A que se refere?

225
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Leukón e você não estavam perto do acampamento


romano porque queriam conspirar contra Numância,
equivoco-me?
― Não, não se equivoca.
― Leukón quis devolvê-la aos seus… e você preferiu ficar
com ele.
― Não o fiz só por ele ― admiti.
― Ah, não?
― Não. ― Sacudi a cabeça ―. Simplesmente, dei-me
conta que quase tudo o que me importa está aqui. Leukón,
sim, mas também Calias, Stena… e você. ― Suspirei ―.
Amigos que consegui por meus próprios meios, sem
necessidade de comprá-los.
― O que quer dizer com isso?
― Uma vez, falei com Leukón sobre a minha escrava,
Melpómene…
A boca de Kara se esticou. As suas mãos se separaram
de meus ombros.
― Disse alguma coisa de mal, Kara?
― Eu não gosto de escravos.
― Pode acreditar em mim ou não, mas Melpómene é…,
ou era…, a minha melhor amiga. Pelo menos, até que cheguei
a Numância.
A jovem me olhou de esguelha.
― Era?
― Kara, você… ― Era uma pergunta difícil ―. Você
também foi uma escrava, não é verdade?
Ela entreabriu os olhos.

226
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Leukón disse-lhe que…?


― Leukón não disse nada, eu adivinhei.
― Como?
― Bom, não há muitos celtiberos que saibam falar latim
e grego, nem que conheçam “A Ilíada” e “A Odisseia”. Além
disso, em Numância há guerreiras valentes, mas nunca vi
nenhuma como você. Ninguém desfruta brigando, para não
dizer matando; quem o faz sem sofrer têm de ter uma boa
razão. Como, por exemplo ― acrescentei com tato ―,
defender-se de quem lhe tenha feito muito mal.
Kara fechou os punhos.
― Nunca voltarei a ser a escrava de ninguém.
― É óbvio que não.
― Mas… você não tem culpa.
Seus músculos relaxaram.
― Você não tem culpa de que escravizassem Melpómene
― disse com lentidão ―. E a tratou bem.
― Tentei, pelo menos.
A jovem dirigiu o seu olhar para o fogo.
― Eu também tive uma ama…
Engoliu em seco.
― Era boa. Muito boa.
― Como se chamava…?
O ruído da porta nos interrompeu. Ninguém a golpeou,
mas ouvimos como se abria lentamente.
Kara desembainhou a sua adaga, mas em seguida
escutamos uma voz conhecida:
― Tenho de falar com você, Cassia.

227
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Stena! ― murmurei ―. O que faz aqui? Deveria estar


deitada.
Kara fez uma careta. Eu, pelo contrário, fui ao encontro
da mulher. Faltava menos de uma lua para dar à luz e tinha
engordado notavelmente, mas descartou a ideia de deitar-se
com um gesto e me dirigiu um olhar penetrante.
― Temos de falar ― insistiu.
― Bem-vinda a minha casa, Stena ― disse Kara com
ironia ―. Passe e se ponha cômoda, por favor.
A mulher sábia lhe jogou uma rápida olhadela.
― Sinto muito, Kara, mas isto é importante. Devo dizer
algo a Cassia… a sós.
― Kara pode ficar ― declarei ―. Confio nela.
― Oh, não se preocupe comigo, Romana ― soprou a
jovem guerreira ―. Irei ver se consigo saber alguma coisa
sobre Leukón.
E abandonou a casa em três passadas.
Eu fiquei olhando como se afastava, perguntando-me se
devia detê-la, mas Stena não me deixou pensar muito:
― Sente-se, Cassia ― urgiu-me. Ela já se instalara junto
à lareira ―. Não temos muito tempo.

Quando Stena deixou de falar, eu fiquei olhando-a


através das chamas.
228
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Seus olhos não albergavam dúvidas, nem temores.


Estava decidida.
― Stena…, dá-se conta do que me está pedindo?
― É a única opção, Cassia.
Eu levei as mãos à cabeça.
― Acusaram-nos de ser amigos dos romanos. Se fizer o
que me diz…
― Se fizer o que lhe digo, estará impedindo uma guerra
― atravessou ela ― e salvando muitas vidas. Vidas com as
quais se importa.
― E Leukón? O que será dele?
― Se não morrer executado, querida, fará no campo de
batalha ― suspirou Stena ―. Leukón já está condenado, mas
há outras vidas em jogo.
Tentou pôr-me a mão no braço, mas eu me separei dela.
― Está-me pedindo que sacrifique o meu marido para
cometer uma loucura.
― Não é nenhuma loucura. Escutarão.
― A mim? ― Ri-me ―. Por todos os deuses, sou uma
mulher! Em Roma ninguém escuta as mulheres!
― É a esposa de um guerreiro celtibero.
― Um guerreiro celtibero que, conforme diz, podemos
considerar já como um homem morto.
Stena me olhou com gravidade.
― Não é isso o que tem de dizer-lhes.
― Não vou dizer-lhes nada, Stena. Não funcionará.
― Deveria confiar mais em seu povo, Cassia. É um povo
civilizado, ao contrário deste.

229
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Roma já não é meu povo ― disse com tom severo ―. E


acredito que o superestima. Roma é um povo de tiranos e
escravagistas.
A mulher sábia acariciou o ventre.
― Então, não acredita que os celtiberos e os romanos
possam viver em paz?
Eu lhe virei a cara e olhei pela janela. Não se via nada
do outro lado, nada exceto o negrume absoluto.
Estremeci.
― Não acredito que possa ser de ajuda, Stena. Mesmo se
fizer o que me pede e me apresente no acampamento romano
para propor a paz entre Numância e Roma, duvido que
alguém me escute. Entregar-me-ão a meu pai, se estiver no
acampamento; se não estiver, enviar-me-ão de volta a Óstia.
Para longe do meu marido e da vida que escolhi.
― Nesse caso, perdi o meu tempo.
Stena se levantou com dificuldade. Quis ajudá-la, mas
me rechaçou.
― Confiava em você, Cassia Minor ― disse enquanto se
encaminhava para a porta ―. Mas estava equivocada.
― Talvez ― admiti.
Ela me olhou uma última vez.
― Quando Numância arder até aos alicerces, recorde
esta conversa. Recorde que teve a oportunidade de salvar-nos
a todos… e a rechaçou.
Não lhe respondi.
Só falei quando voltei a ficar sozinha:

230
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Troia também ardeu por amor ― disse em grego,


recordando-me de “A Ilíada” ―. Por causa do amor de um
covarde, mas por amor, afinal de contas.
Eu não podia comparar-me a Páris, de qualquer
maneiras. Páris tinha roubado Helena, a esposa de
Agamémnon, e a tinha levado para Troia com ele; eu,
simplesmente, estava disposta a acompanhar o meu marido
até ao último momento.
“Uma pessoa que está disposta a salvar-lhe a vida é uma
boa escolha”, Calias tinha dito.
Bem. Eu queria ser essa pessoa.

Kara voltou depois de um pedaço. Eu estava olhando


pela janela: por ela penetravam as últimas luzes da tarde.
Que curioso. Antes me tinha parecido que já era de
noite.
― Esta noite julgarão Leukón ― informou logo ao chegar.
― Já?
― Sim.
Deixou-se cair sobre as peles e pôs a cabeça entre as
mãos.
― Não o deixarão lutar ― murmurou ―. E não tem pai,
irmãos ou filhos que lutem por ele. Terá de submeter-se a um
julgamento normal.
231
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― E isso é mau, suponho.


Levantou-se para olhar para mim.
― Condenarão à morte, Cassia. É o fim.
― Não, não é.
Pus-me em pé. Estava tremendo, mas fingi não percebê-
lo.
― Não é ― repeti ―. Stena me propôs uma coisa.
― Do que se trata?
― Isso não importa. Não a aceitei.
― Por que não?
Virei-me para contemplá-la.
― Porque quero salvar Leukón ― disse depois de um
minuto ― e porque quero fazê-lo à vossa maneira. À maneira
dos celtiberos.
Os olhos azuis de Kara se abriram de par em par.
― Quer dizer que vai lutar por ele?
― Sou a sua esposa. Se eu estivesse pendente de
julgamento, não permitiriam que ele lutasse por mim?
― Sim, mas… ― Kara soprou ―. Cassia, é absurdo. Você
não é uma guerreira. Vão matá-la.
― Se não poder salvar a sua vida, Kara, deixe-me salvar
a sua honra. Deixa que tente.
― Por Baelistos, oxalá pudesse fazê-lo eu! ― exclamou ―.
Mas, embora sejamos como irmãos, não temos o mesmo
sangue. Vocês os dois, por outro lado…
― “Sangue de meu sangue” ― recitei ―. Isso dissemos
nas nossas bodas.
As duas nos olhamos. Longamente.

232
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Até que, finalmente, Kara grunhiu:


― Muito bem. Façamos as coisas à nossa maneira.

233
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XXIV.
À maneira dos celtiberos

Vi os anciãos através do fogo.


Reuniram-se no exterior, como faziam os celtiberos
sempre que tinham de decidir algum assunto importante,
quer fosse escolher um novo líder ou em um julgamento.
Além dos membros do Conselho, havia várias dúzias de
guerreiros jovens… e um ou outro menino.
Vi Calias no meio da multidão, mas o ignorei.
Ele não me reconheceu. Acredito que ninguém o fez até
que me detive em frente aos anciãos.
― Eu, Cassia Minor, esposa de Leukón da Sekaisa, peço
um julgamento por combate!
Minha petição causou um grande revoo. A multidão
irrompeu em gritos de assombro e indignação.
― Por todos os deuses! ― Ouvi Karos rugir ―. O que
significa isto?
Eu aguardei enquanto o líder dos Belos e dos Arevacos
me contemplava com os olhos entreabertos.
As caras de outros anciões também estavam voltadas
para mim. Na verdade, nem todos eram anciões: havia

234
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

homens amadurecidos e homens de idade avançada. Uns me


olhavam com espanto; outros, com irritação; todos, com
receio.
Eu tive de reprimir um sorriso zombador.
Kara me tinha ajudado a vestir-me para a ocasião. Já
não usava o meu vestido de sempre, mas uma túnica curta e
calças. Tinha o cabelo entrançado como um homem e a cara
coberta de tinta azulada. Também usava o sagum por cima
do ombro, como faziam os guerreiros quando iam lutar, e
tinha protegido as minhas pernas com grevas de bronze.
Em minhas mãos havia uma espada. Uma gladius
hispalensis.
Kara me tinha explicado como segurá-la. Não tínhamos
tempo para que eu aprendesse a usá-la.
Karos me olhou de alto a baixo e depois se virou para
Kara:
― Esta mulher estava sob o seu cuidado. Por que lhe
permitiu que nos interrompesse?
― Porque tem esse direito ― respondeu ela ―. Leukón é
sangue de seu sangue.
― Mas…
Uma voz profunda, rasgada, fez-se ouvir por cima do
resto:
― Ela é Romana. Ela é tão culpada quanto o seu marido.
Avaro, o druida, ocupava uma posição de honra entre os
anciãos. Quando falou, os outros se calaram
respeitosamente.

235
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Ela tentou conspirar com os romanos ― prosseguiu


Avaro, contemplando-me com os seus olhos turbulentos ―.
Arrastou o seu marido com ela, mas Leukón não é o
responsável. Embora, naturalmente, deva pagar pelo que fez.
O druida apertou os seus finos lábios.
― São as mulheres quem estão atrás de tudo isto. Quem
querem destruir-nos.
Eu tinha a minha própria teoria a respeito dos homens
que odiavam as mulheres, apoiada na falta de amor, o mau
hálito e uma importante carência de higiene mental. Não
obstante, não estava ali para debater a origem da misoginia
de Avaro, mas para salvar o meu marido da morte.
De qualquer maneira, não ignorei o fato do druida
utilizar o plural, “mulheres”, para referir-se aos fatos.
Avaro não culpava só a mim . Estava culpando a alguém
mais e, a julgar pelos olhares que dirigia a Karos, não era
muito difícil adivinhar a quem se referia.
― Esta mulher ― adicionou, assinalando-me com o dedo
― foi contar os nossos segredos a Nobilior. Para mudar o
curso da guerra a troco da nossa liberdade!
As suas palavras provocaram murmúrios de
assentimento, mas eu repliquei:
― Não estou aqui para defender-me de acusações
injustas, mas para pedir um julgamento por combate.
― Os julgamentos por combate são para os celtiberos ―
disse Karos ―, não para os romanos.

236
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Não sou romana, sou celtibera ― respondi com tom


firme ―. Leukón é sangue de meu sangue. Os dois somos
celtiberos, agora e sempre.
― Um celtibero tem direito a proteger o sangue de seu
sangue! ― rugiu Kara, que continuava junto a mim ―. Ou têm
medo que uma jovem os vença?
Eu sabia por que dizia aquilo: a vergonha jogava a nosso
favor. Nenhum daqueles homens seria admirado por derrotar-
me; se, pelo contrário, eu os derrotasse, seria uma
humilhação completa.
Logicamente, eu sabia que isso era impossível. Não
podia vencer um guerreiro experiente, nem sequer um dos
meninos.
Mas isso os anciões não sabiam. Leukón ou Kara
poderiam ter-me ensinado em segredo.
Nesse momento, lamentava que Kara não me tivesse
ensinado de verdade.
Avaro elevou o queixo e falou com Karos:
― Vai permitir isto?
― Estou a pensar ― grunhiu o chefe.
― Em quê?
Como resposta, Karos ficou de pé.
― Estou pensando ― repetiu em voz alta ― em quantas
de nossas mulheres se atreveriam a fazer isto.
Produziu-se um instante de desconcerto. Os homens se
olhavam entre eles, mas ninguém se atreveu a elevar a voz.
― Alguns estão casados com guerreiras ― prosseguiu
Karos ―. Outros, com mulheres que mal sabem lutar. Mas

237
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

esta mulher ― acrescentou, assinalando-me com a cabeça ―


não sabe por onde se agarra uma espada… e aqui está,
disposta a morrer por seu marido.
A multidão parecia conter o fôlego.
― É uma traidora! ― exclamou Avaro ―. Não merece a
nossa admiração!
Karos se deteve em frente a ele e o olhou fixamente.
― Pois tem a minha.
E, logo de seguida, virou-se para os outros anciões:
― Se fosse uma traidora, já estaria no acampamento de
Nobilior, a salvo. Mas está aqui, pedindo uma oportunidade
para o seu marido, e eu voto para que lhe dê.
O seu discurso penetrou em minha carne e em minha
alma.
“Obrigada”, tentei dizer-lhe sem palavras, só com o
olhar. Em resposta, Karos me dedicou uma breve inclinação
de cabeça.
Os membros do Conselho ainda pareciam aturdidos.
Ainda não sei que decisão tinham tomado…, se é que
tinham tomado alguma, porque, bem quando um deles se
dispunha a falar, um gemido prolongado fez vibrar os
telhados de Numância.
O gemido do carnyx.
― Os exploradores voltaram! ― gritou alguém das
muralhas ―. Dizem que Nobilior levantou acampamento!
― Deuses ― grunhiu Kara junto a mim.

238
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

As pessoas começaram a levantar-se. Alguns correram


para as suas casas; outros, no entanto, encaminharam-se
para as muralhas.
― Liberem Leukón! ― ordenou Karos.
― Não! ― protestou Avaro, mas Karos se interpôs em seu
caminho.
― Disse que o libertem ― vaiou ―. Se houver uma
batalha, necessitamos do nosso melhor guerreiro. Quando
tudo isto terminar, decidiremos o que fazer com ele.
Eu olhei para Kara. A sua cara de alívio devia ser reflexo
da minha.
Enquanto dois guerreiros foram buscar o meu marido,
Karos se aproximou de mim.
Seus olhos pareciam atravessar os meus.
― Hoje ganhou o meu respeito…, Cassia.
E me deu uma palmada nas costas.
Quando se afastou, libertei o ar que se tinha acumulado
em meus pulmões.
― Vou ver Leukón ― disse a Kara.
E pus-me a correr sem olhar para trás.

239
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XXV.
Coração de ferro

O vento assobiava lá fora, mas eu estava empapada em


suor. A minha pele escorregava contra a de Leukón; ele
estava deitado de barriga para cima e eu abraçava os seus
quadris com as coxas, procurando desesperadamente o roçar
de seu corpo.
Nossas bocas chocaram uma na outra. As nossas
respirações se misturaram.
Senti as suas mãos pressionando as minhas nádegas,
empurrando-as para os seus quadris.
Afundei a cara em seu pescoço. Ele apertou os dentes. E
assim, em silêncio, rendemo-nos um ao outro.
O fogo se estava apagando, mas não queria reavivá-lo.
Tinha a cabeça apoiada no peito de Leukón; assim podia
escutar o som de sua respiração e os batimentos de seu
coração.
Desde que o Conselho de Anciãos o tinha libertado,
obcecava-me a ideia de voltar a perdê-lo a qualquer momento.
Se sobrevivesse à guerra que se aproximava, o Conselho o

240
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

julgaria… e eu sabia que tinha poucas possibilidades de sair


vitorioso.
Por causa disso, cada momento com ele me parecia uma
vida. Por isso o procurava, noite após noite, assim que Calias
se retirava para o seu próprio leito.
Era como se, de algum modo, o meu corpo pudesse
protegê-lo dos perigos do exterior.
Mas eu sabia que era apenas uma ilusão. A guerra me
tiraria isso; e, se não o fizesse a guerra, fariam os seus
próprios companheiros de armas.
― Está tudo bem, Romana? ― sussurrou-me,
arrancando-me de meus pensamentos.
― Sim ― menti.
Ele esticou o pescoço e me beijou a testa.
― Oxalá fosse assim sempre, não?
― Se fosse assim sempre, eu não poderia andar ―
brinquei.
― Bem pensado, eu tampouco ― ele riu ―, mas não me
importaria.
Levantei-me para olhá-lo.
― Recorda o que me disse no dia de nossas bodas?
― Disse-lhe muitas coisas nesse dia.
― Estava pensando em seu discurso sobre as flores.
Leukón elevou as sobrancelhas.
― Vai lembrar-me que paguei de tolo?
― Fui eu quem o pagou. ― Suspirei ―. Não devia ter
zombado de você.
― Nem eu teria que ter-me armado de poeta.

241
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Não é Homero ― admiti ―, mas tampouco foi terrível.


Foi pior quando se comparou a um elefante.
Os dois sorrimos ao recordá-lo.
― Leukón ― disse eu então ―, arrepende-se de algo?
― A verdade é que não.
― Tem certeza?
― Disse-lhe isso no bosque, junto ao acampamento
romano: fiz muitas coisas horríveis, Cassia, mas não lamento.
Afinal ― acrescentou com suavidade ―, cheguei até aqui. E
estou com você.
Eu voltei a contemplar o fogo. As brasas crepitavam
discretamente, como se não quisessem interromper-nos. Uma
fumaça dourada subia em volutas para o teto.
― Você se arrepende de algo? ― perguntou-me Leukón.
Eu fui terminante:
― Não. De nada.
― Nesse caso ― concluiu ele ―, só podemos
encomendar-nos aos deuses.

Assim passávamos as noites: fazendo amor e falando.


Dormíamos pouco, mas não nos importava.
Os dias eram mais cansativos. Logo os romanos
estariam às portas de Numância: os guerreiros celtiberos

242
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

deviam preparar-se para o ataque… e, preferivelmente,


adiantar-se a ele.
Eu já tinha percebido que os celtiberos preferiam as
emboscadas ao enfrentamento direto. Ao contrário de
Nobilior, Karos conhecia bem o terreno que rodeava
Numância; embora as legiões fossem imbatíveis quando
lutavam juntas, um só legionário não era rival para um Belo
ou um Arevaco armado até aos dentes.
Por isso os exploradores desempenhavam um papel tão
importante nos preparativos da guerra. E Leukón era um
explorador excelente.
Embora as famílias de Lubbo e dos outros dois homens
lhe virassem a cara ao vê-lo passar, a maioria de seus
companheiros de armas o tinha acolhido de novo sem
problemas. Afinal, Leukón era um bom guerreiro… e um
homem de honra. E, embora tivesse matado três numantinos,
a sua fama o precedia.
No fundo, eu pensava que, à exceção de Avaro, os
anciãos não queriam executá-lo. Mas, chegado o momento,
que outra opção teriam? Os celtiberos levavam muito a sério
a traição.
Enfim, não tinha sentido pensar naquilo. Depois de
tudo, antes do julgamento ia haver uma guerra… e muitas
coisas podiam acontecer nesse lapso de tempo.
Enquanto Leukón comandava os exploradores, Kara me
treinava. As duas tínhamos chegado à conclusão que a
violência e eu éramos incompatíveis. Mas eu tinha decidido
aprender a proteger-me … e a proteger os outros.

243
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Já tinha visto duas pessoas queridas à beira da morte.


Não estava disposta a passar pelo mesmo uma terceira vez.
Foi então que Kara me confessou que entre ela e Leukón
tinham ensinado Calias a brigar. Era a única coisa que o meu
marido me tinha ocultado e, de certo modo, eu compreendia:
naquele momento, não teria aprovado que Calias aprendesse
a lutar.
Agora já não era assim tão claro.
O menino estava muito afetado pelo que tinha
acontecido naqueles últimos dias. Depois que Leukón foi
liberado, foi a seu encontro e se jogou a seus pés.
― Perdoe-me ― soluçou na língua dos celtiberos, que já
começava a dominar.
Leukón o olhou com cara de assombro.
― Por que teria de perdoar-lhe, filho?
― Não me chame filho ― gemeu o moço ―. Não mereço.
― Calias, querido…
― Você tampouco, senhora. Você tampouco deveria ser
boa para mim. Eu… falhei com vocês dois!
Calias irrompeu a chorar de novo. Leukón me interrogou
com o queixo; eu encolhi os ombros.
Finalmente, o meu marido ficou de joelhos em frente do
menino.
― Ouça, Calias, pare de chorar.
Não era uma petição, mas uma ordem. Isso era a única
coisa que podia convencer Calias.
― Por que diz que falhou conosco? ― perguntou-lhe
Leukón ―. Que eu saiba, não fez nada de mal.

244
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Calias limpou as lágrimas com os dedos.


― Quando o estavam a julgar, eu devia ter feito alguma
coisa. Devia ter sido valente, mas só consegui ficar a olhar.
Sinto tanto…
Eu perdi a paciência:
― Isso, Calias, é uma estupidez. É um menino, e os
meninos não podem comportar-se como adultos.
― Eu sei lutar, senhora! ― protestou ele ―. Sei lutar
melhor do que você, e não tive coragem para fazê-lo!
Eu ia replicar, mas Leukón se adiantou:
― Não é uma questão de coragem, moço, mas de
cérebro. Acha que quero que um cachorrinho me defenda?
O menino o olhou com os olhos como pratos.
― Um… cachorrinho? ― repetiu, ofendido.
― É como eu quando tinha a sua idade ― assentiu
Leukón, destemido ―. Pode brandir uma espada, proteger-se
com um escudo e dar um par de tapas a um menino de sua
idade. Mas não pode lutar até à morte, nem sequer por mim.
― Mas…
― Um guerreiro de verdade sabe quando uma batalha
está perdida de antemão ― sentenciou Leukón ― e a evita.
Um bom guerreiro vive hoje, para lutar amanhã.
Calias parecia impressionado.
― Então…, não acha que sou um covarde?
― Olhe para esta mulher ― disse Leukón, assinalando-
me com a cabeça ―. É como uma mãe para você, não é
verdade?
― Sim, é.

245
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

O menino desviou o olhar. Eu tive de engolir o nó que se


formou em minha garganta.
― Nesse caso, deixe de chamá-la de senhora. Chame-a
de mãe e faça com que aprenda a brigar. Proteja-a… até que
ela possa proteger-nos aos dois. Fará isso, Calias? Fará isso
por mim?
― Sim…
― …pai.
― Sim, pai.
Calias ficou muito mais tranquilo após aquela conversa.
Eu tinha sentimentos contrários: por um lado, sentia
que, por fim, a minha pequena família se tinha consolidado;
por outro, essa família era tão frágil que vivia atormentada
por seus próprios medos, temendo que, a qualquer momento,
o nosso mundo se fizesse em pedaços.
Os treinos com Kara me ajudavam a evadir-me.
― Se não quiser matar, terá de aprender a não morrer ―
dizia todos os dias.
Foi ela quem me ensinou a esquivar e a bloquear, a
brandir a espada e a adaga para repelir o inimigo e a
empreender a fuga pondo obstáculos no caminho para não
ser perseguida. Não sei se fui uma boa aluna, mas, pelo
menos, apliquei-me. E Calias me ajudava sempre que podia.
― Muito bem…, mãe ― felicitava-me em grego.
Kara também me falava em grego. Quando nos
cansávamos de treinar, sentávamo-nos em alguma parte e ela
me recitava trechos de “A Ilíada”:

246
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― “Mas que prazer terei, se está morto aquele que eu


tanto quanto a vida apreciava”.
― Isso disse Aquiles ― adivinhei ―. Quando Pátroclo
morreu.
― Aquiles ficou louco ― assentiu Kara ―. Foi aí que
começou a queda do herói.
― Você acredita que Aquiles amava Pátroclo? ―
murmurei ―. Tenho que sei também se deitava com uma
escrava chamada Briseida…
― O corpo e o coração nem sempre seguem o mesmo
caminho, sabe?
― Diz por experiência?
Ela soltou a espada que estava afiando e me olhou de
esguelha.
― Se sente curiosidade por minha vida amorosa, direi
que sou uma boa amante… e, no entanto, só amei uma vez.
― Ah, sim? ― bisbilhotei ―. Quem?
Kara voltou a agarrar a espada.
― Ela não está em Numância.
Ficou a olhar para o reluzente fio e acrescentou:
― Talvez já esteja morta.
As suas palavras me provocaram um calafrio. Mas ela
continuou afiando a arma, impassível.
― Quando a sua vida é a guerra, terá de ter um coração
de ferro ― murmurou ―. Não se esqueça disso.
Decidi falar de outra coisa:
― Só conhece “A Ilíada”? Ou também “A Odisseia”?
Kara quase sorriu.

247
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Conheço “A Odisseia”, mas não me traz boas


lembranças ― confessou.
E já não voltamos a tocar no assunto.

Outro dos acontecimentos que tiveram lugar naqueles


dias foi as bodas de Aunia e Ambón.
A gravidez de Aunia já estava tão avançada que a
mulher já não conseguia escondê-la. Ambón devia ter
mudado de ideia a respeito do filho de ambos; como Aunia o
tinha persuadido era um mistério, mas eu me alegrava que
aquele assunto se tivesse resolvido pacificamente.
― Não me interessa a sua vida ― Leukón me disse
quando lhe contei que tinha visto Aunia e o Ambón dirigirem-
se ao bosque em companhia de Avaro.
― A mim, sim ― repliquei ―. Aunia esteve prestes a
danificar o nosso casamento.
― E por isso quer que seja feliz com Ambón? ―
surpreendeu-se o meu marido.
― Quero que seja feliz. Assim não terá tempo para
lembrar-se de nós.
― Você é a pessoa menos rancorosa que conheço.
― No fundo, Aunia me dá pena ― admiti ―. Suponho
que, quando a gente não é feliz, sente o impulso de fazer os
outros infelizes.
248
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Não acredito nisso. Conheço muitas pessoas que


foram infelizes e, no entanto, tentaram ajudar outros.
― É possível ― concedi ―, mas, de qualquer maneira,
prefiro que Aunia esteja ocupada com a sua própria vida e
não se meta na nossa.
― Nisso concordo com você. Mas não me dá nenhuma
pena.
― E Ambón? ― brinquei ―. Ele vai ter de aguentá-la para
sempre… e também a Tiresio e Unibelos.
Embora Calias tivesse aprendido a manter à raia os
gêmeos, continuavam a ser duas das crianças mais
desagradáveis de Numância.
― Ambón tampouco me dá pena ― bufou Leukón ―. Ele
fez a sua própria cama.
O meu marido preferia ignorar as pessoas que não lhe
agradavam. Eu tentava fazer o mesmo, e conseguia… até
certo ponto.
Mas não me tinha passado despercebido que Avaro
tinha casado Aunia e Ambón. E que o druida parecia mais
animado do que de costume.
Eu estava acostumada a cruzar-me com ele quando ia e
vinha dos treinos com Kara. E sempre o fazia no mesmo local:
junto à casa de Karos e Stena.
Stena tinha deixado de falar comigo desde a noite do
julgamento. Eu sabia que estava duplamente ofendida: não
só tinha rechaçado a sua proposta de procurar a paz entre
Numância e Roma, mas me tinha disfarçado de guerreira
para salvar a vida de meu marido. Tinha escolhido o mesmo

249
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

caminho que todos os outros… e o tinha feito


conscientemente.
De algum modo, compreendia a mulher sábia. E
algumas vezes, quando Leukón e Calias dormiam e eu estava
acordada, perguntava-me se ela não teria razão. Se não
estaríamos todos equivocados, todos menos ela.
Suponho que nunca o saberei.

Por muito que Stena me evitasse, eu me sentia em


dívida para com ela. Apesar de tudo, tinha-me casado com
Leukón e me tinha defendido de Avaro. Os seus motivos eram
o de menos: tinha-o feito, e eu não podia esquecê-lo.
Assim, enchi-me de coragem e fui dizer-lhe o que levava
dias matutando.
Encontrei-a estendida em suas peles. Faltavam alguns
dias para dar à luz, e, pelo visto, as suas dores eram tão
fortes que mal podia levantar-se. Foi Karos quem me abriu a
porta de sua casa: ele saía naquele momento, mas me
franqueou a entrada com ar solene.
Na noite do julgamento tinha perdido o respeito de
Stena, mas tinha ganhado o de seu marido.
― Está muito cansada ― sussurrou-me ―. Seja paciente
com ela.
― Serei.
250
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

A mulher sábia me viu entrar, mas fingiu não fazê-lo.


Continuou a olhar para o teto, como se eu não fosse mais do
que um sopro de brisa.
― Stena ― disse em voz alta ―, sei que já não me
considera sua amiga, mas há algo que quero dizer-lhe.
― Não quero escutar.
― É importante…
― Já disse ― repetiu lentamente ― que não quero
escutar.
― Muito bem ― suspirei.
Dei a volta para voltar sobre os meus passos, mas então
vi algo.
E esse algo me fez deter-me.
Havia uma sombra na janela. Quando me aproximei
dela, desapareceu, mas estava certa que a tinha visto.
Espreitei, mas a rua estava deserta.
Mesmo assim…
― Vá embora ― Stena me disse ―. Não tem nada o que
fazer aqui.
Eu me afastei da janela e a olhei longamente.
― Avaro a está vigiando ― informei-a. ―. Pode acreditar
em mim ou não, mas tinha de dizer-lhe isso.
Ela não disse nada. Continuava com os olhos cravados
nas vigas de madeira.
― Tome cuidado, Stena ― insisti ―. Eu realmente me
importo com você.
Como a mulher sábia não parecia disposta a separar os
lábios, dei-me por vencida e abandonei a casa.

251
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Nessa mesma tarde, o carnyx voltou a soar.


Os guerreiros sairiam à meia-noite. Em Numância só
ficariam os meninos, os anciãos, as mulheres grávidas e
aquelas pessoas que não estavam capacitadas para lutar.
A cidade ficaria deserta e vulnerável, protegida
unicamente por suas muralhas.
― Estaremos de volta em breve ― Leukón me prometeu
―. Os exploradores sabem onde está Nobilior. Vamos
surpreendê-los quando separar-se de seus homens; se
atuarmos rapidamente, o resto do seu exército não poderá
unir-se a ele.
Calias protestou um pouco quando soube que não ia
acompanhá-lo, mas o meu marido o convenceu de que era
melhor assim.
― Preciso de você em Numância ― disse-lhe com
gravidade ― para que proteja a sua mãe.
― Ela já sabe defender-se sozinha, pai. Kara a ensinou.
― Sim, sabe fazê-lo, mas não gosta. Você é um guerreiro
de verdade.
Tomei a vaga consciência do quão triste era que um
menino fosse um “guerreiro de verdade”. Os guerreiros de
verdade não abominavam a violência; de fato, podiam chegar
a desfrutá-la.

252
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Mas o meu marido era um guerreiro. O meu povo era


um povo de guerreiros.
E eu devia apoiá-los. Se Roma atacasse Numância, eu
estaria atrás de suas muralhas. Resistindo com minha
cidade.
Enquanto víamos partir os guerreiros, recordei algo que
Kara tinha dito: “Quando a sua vida é a guerra, terá de ter o
coração de ferro”.
― Não, querida ― murmurei para mim mesma,
contemplando como a trança se agitava atrás dela, enquanto
cavalgava para o bosque ―. Não terá de ter o coração de ferro
para ir à guerra, mas para deixar que outros o façam por
você.
E, elevando uma prece a Epona, retirei-me das
muralhas na companhia de Calias.

253
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XXVI.
O pranto do carnyx

Stena entrou em trabalho de parto de madrugada.


Eu estava acordada, atenta a cada um dos sons da
noite. O sussurro do vento. O pingar da chuva.
E, de repente, o grito.
Levantei-me apressadamente. Ouvi que Calias também
se remexia no leito.
― O que aconteceu? ― murmurou em grego ―. Quem
grita?
― É Stena. Não se preocupe, deve ser o pequeno. Vejam
bem… chegar a meio da noite…
― Poderia ter esperado pela manhã ― bocejou Calias.
Eu já estava sujeitando o sagum. Pesavam-me as
pálpebras e tinha o corpo frio e dormente, mas não podia
ficar em minha casa enquanto a mulher sábia de Numância
dava à luz sozinha.
Calias também colocou o sagum, mas não conseguia
sujeitá-lo. Mal conseguia manter os olhos abertos.
― Vou com você…
― Não, querido, fique aqui. Não vou precisar de você.

254
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Mas…
Dei-lhe um beijo na testa. Ao ver que me dirigia para a
porta, ele voltou a deitar-se. Acredito que já estava
adormecido quando parti.
Baixei a cabeça para proteger-me da chuva. Era fraca,
felizmente.
Olhei para cima e me perguntei como estaria Leukón, às
escuras e no meio do bosque, para surpreender Nobilior e
seus homens.
Pela enésima vez naquela noite, rezei por ele e por seus
companheiros de armas. Depois me obriguei a parar de
pensar neles.
Eu ia travar outra batalha. E também ia ser dura.
Encontrei Stena em uma poça de líquido fedorento. Tirei
o sagum velozmente e me ajoelhei a seu lado. A mulher tinha
a cara pálida e estava coberta de suor frio.
― Está aqui ― murmurou.
― É óbvio.
Tinha os lábios ressecados. Primeiro, dei-lhe um pouco
de água: se continuasse a gritar daquela maneira, ficaria mal
da garganta.
Nunca antes tinha feito um parto, mas tinha visto a
minha mãe fazê-lo. Na verdade, era a parteira quem fazia a
maior parte do trabalho; o seu acompanhante devia limitar-se
a oferecer-lhe comodidade e segurança. E eu podia fazer
ambos.
― Tem de pôr-se de cócoras ― disse-lhe com suavidade
―. Deixe que a ajude.

255
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Curiosamente, ela obedeceu.


Assim que mudou de posição, o seu corpo estremeceu
violentamente.
― Já vem aí! ― gemeu.
― Sim, querida. Já vem aí.
― Ah!
― Como o vai chamar?
Stena falou entre dentes:
― Se for um menino, Karos, como o seu pai…
― E se for uma garota?
― Ah!
Houve uma explosão de fluidos. Momentos depois, uma
cabeça redonda e enrugada apareceu por entre as pernas de
Stena. Ela continuou a gritar; eu coloquei as minhas mãos
em concha e as pus debaixo dela.
― Muito bem, Stena ― murmurei ―. Está fazendo-o
muito bem.
Suponho que foi bastante rápido, mas pareceu-me uma
eternidade. Quando tudo acabou, eu suava quase tanto
quanto Stena e estava suja de sangue e de outras
substâncias pegajosas.
E, no entanto, sorria.
Recordando as instruções de minha mãe, golpeei
brandamente o calcanhar da criatura, que emitiu um ganido
quase animal.
― Vá lá, parece que o pequeno Karos tem caráter ―
sussurrei.

256
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Ao ver que Stena não dizia nada, virei-me rapidamente.


Mas em seguida comprovei que estava bem. Ou tão bem
quanto podia estar alguém que acabava de expulsar outro ser
humano de seu interior.
― Tome.
Coloquei-o no seu peito.
Stena levantou o vestido para que ele pudesse encontrar
o mamilo. O bebê se remexeu como um peixe fora da água,
mas, depois de alguns segundos, apanhou-o com as gengivas
e começou a mamar com avidez.
― É incrível ― suspirei ―, acaba de chegar ao mundo e
já sabe o que tem de fazer.
― É um celtibero ― disse a sua mãe, que tinha fechado
os olhos ―. Os nossos deuses nos guiam e protegem desde
que nascemos.
― Que sorte ― comentei com ligeireza ―. Os deuses
romanos estão calados ou encerrados em seus templos.
Stena abriu um olho.
― Agora você é uma celtibera.
Em seu tom já não havia rancor. Só cansaço.
― Sim, sou ― pigarreei ―. Deveríamos separá-lo de
você…
Stena me deu permissão para cortar o cordão umbilical.
Impressionou-me bastante fazê-lo, mas era a única que podia
ocupar-se de dita tarefa, por isso tentei seguir suas
instruções ao pé da letra. Também me arrepiou fazer o nó
que, mais adiante, converter-se-ia no umbigo da criatura.

257
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Quer que lave o pequeno Karos? Ou prefere ficar com


ele?
― Confio em você ― respondeu ela ―. Mas lave-o
depressa…, por favor.
A mulher sábia esboçou um sorriso tremente. Eu lhe
devolvi e agarrei no pequeno com extremo cuidado.
― Oh, não, não chore ― arrulhei em latim quando
começou a protestar ―. Já o devolvo à sua mãe.
Dirigi-me para a cisterna e me agachei para lavá-lo com
água da chuva. Quando lhe tirei a maior parte do sangue,
descobri que a sua cabeça estava cheia de penugem
vermelha.
― Parece-se com o seu pai ― disse-lhe em voz baixa ―.
Mas não restam dúvidas que é filho de sua mãe.
Como continuava a choramingar, deixei-o chupar no
meu dedo polegar. Aquilo pareceu apaziguá-lo.
Ao vê-lo em meus braços, tão diminuto e frágil, senti um
estranho calor no peito.
Eu também queria um bebê. Um bebê com penugem
negra, como os cachos de Leukón.
Essa ideia me fez sorrir. E continuei a sorrir até que
cruzei a soleira da porta e vi o que tinha acontecido na minha
ausência.
― Meus deuses! ― chiei com voz aguda. O meu primeiro
impulso foi ocultar o bebê em meu peito.
Avaro me olhava com tranquilidade.
― Já só falta você, Romana.

258
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

O corpo sem vida de Stena jazia a seus pés. Os dedos


nodosos de Avaro estavam fechados em torno do punho de
uma adaga, por cujo fio ainda escorregavam gotas de sangue.
Vi como as gotas caíam ao chão. Tap. Tap. Tap.
Voltei a olhar para o druida.
― Assassino… ― grunhi, sustentando o recém-nascido
contra o meu corpo ―. Asquerosa serpente…
― Não sofreu ― disse ele, dando um passo à frente ―.
Você tampouco sofrerá, fá-lo-ei depressa. Será melhor que a
fogueira, não lhe parece?
Eu nem sequer o estava escutando.
― Matou uma mulher que acabava de dar a luz ― vaiei
―. Uma mulher indefesa. É…, é… é um covarde! ― explodi―.
Rato, verme, inseto imundo!
Pus-me a insultá-lo em todas as línguas que conhecia,
tudo isso sem soltar o bebê. Aquilo era, sem sombra de
dúvidas, o mais horrível que tinha presenciado em toda a
minha vida… e a criatura que tinha nos braços me tinha
desarmada. Não podia lançar-me sobre Avaro e estrangulá-lo
sem soltá-la.
O ancião deu outro passo, interpondo-se entre mim e a
porta. Depois levantou a adaga.
Percebi um movimento junto à janela, mas não olhei.
Toda a minha atenção estava em Avaro, que se dirigia para
nós com a arma em riste.
― Ele viverá ― declarou com sua voz rasgada ―. Apesar
de tudo, é filho de Karos de Sekaisa. Mas você… Você vai
morrer!

259
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Eu retrocedi até que as minhas costas chocaram com a


parede.
O pequeno Karos chorava com amargura, mas eu mal
estava consciente disso. Sentia o fôlego fétido de Avaro, o
zumbido do sangue palpitando em minhas têmporas, o
coração a ponto de estalar.
A adaga assobiou ao cortar o ar.
Não havia tempo. Não havia saída.
Fechei os olhos com força, mas não aconteceu nada.
Abri os olhos e me encontrei com as pupilas de Avaro.
Estavam cravadas em mim, mas não me viam. Já não.
De seus lábios gretados brotou um fio de sangue.
O ancião desabou a meus pés, de barriga para baixo. A
sua túnica branca tinha uma mancha vermelha nas costas
que ia crescendo a cada segundo que passava.
Olhei para ele. Depois olhei em frente.
Calias observava o cadáver do druida. E apertava a
adaga como se ainda estivesse cravada entre as omoplatas .
― A minha mãe, não ― murmurava, como em transe ―.
A minha mãe, não…
As lágrimas alagaram os meus olhos.
― Oh, Calias…
― A minha mãe, não ― repetiu ele na língua celtibera.
E, sem soltar a adaga, passou por cima de Avaro e
escondeu a cara em meu peito.
E assim ficamos, Calias, o bebê e eu, abraçados e
trementes, até que voltamos a ouvir o carnyx.

260
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XXVII.
Penélope

Foi Leukón quem nos encontrou.


Não recordo muito bem como foi. Sei que se alarmou ao
ver Stena e Avaro, e que nos fez, a Calias e a mim, algumas
perguntas. Calias respondeu com monossílabos; eu mal
conseguia separar os lábios.
O pequeno Karos tinha adormecido. Leukón quis pegá-lo
nos braços; no início, eu me negava a soltá-lo, mas depois
percebi que se tratava de meu marido e deixei de resistir.
Como dizia, não recordo muito bem o que aconteceu.
Tive a vaga noção de que já não estávamos na casa de Karos
e Stena, mas na nossa. Calias e eu tínhamos ficado sozinhos,
e isso me aliviava. Também a ele, ou isso me pareceu.
― Aunia me viu ― ele disse em voz baixa ―. Viu tudo da
janela.
― Isso não importa. A única coisa que importa é que
estamos vivos.
Na verdade, não sabia muito bem o que estava a dizer.
Ainda tinha a horrível imagem do sangue de Stena
escorregando pela faca de Avaro gravada na mente.

261
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Tap. Tap. Tap.


A lembrança desse som me atormentava.
Leukón voltou. Percebi que o bebê já não estava com ele.
― Onde está o pequeno Karos? ― Saltei, angustiada ―.
Avaro vai matá-lo…!
Então recordei que Avaro também estava morto.
― Avaro já não pode fazer mal a ninguém ― disse o meu
marido ―. Levei o bebê para seu pai. Quer que seja a última
coisa que veja.
― Karos…?
Por fim, reagi:
― Deuses, você voltou!
Corri para Leukón e joguei os braços ao seu pescoço. O
meu marido me afastou docemente dele.
― Cassia, escute-me …
― Fizeram-no? Conseguiram emboscar Nobilior?
― Fizemos, mas…
― Oh, graças aos deuses…!
― Cassia!
Seu grito me sobressaltou.
― Cassia ― repetiu em voz mais baixa ―, tem de escutar-
me. Karos vai morrer a qualquer momento, e sua esposa e
Avaro foram assassinados em circunstâncias misteriosas.
Abri a boca para explicar-lhe essas circunstâncias, mas
ele esclareceu:
― Calias me contou tudo. Sinto muito dizer-lhes que
correm um grande perigo. Sobretudo, ele.
― Ele? ― perguntei com calma ―. Por quê?

262
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Porque, evidentemente, ele …


― Ele viu como eu apunhalei Avaro.
Meu marido franziu o cenho.
― Isso não…
― Calias me viu apunhalar Avaro ― repeti eu com tom
firme ―. Fui eu, não ele.
― Isso não é verdade, mãe! ― interveio o menino, que
estava encolhido no banco ―. Fui eu!
― Não, fui eu.
― Foi você, Calias? ― perguntou Leukón, desorientado.
― Sim, pai!
― Sim, mas não ― insisti ―. De agora em diante,
pensaremos que fui eu. E isso será o que diremos a todo o
mundo.
Calias me olhou com ar desolado.
― Não deixarei que carregue com a culpa, mãe. Se for
um homem para matar, sou um homem para assumir as
consequências de meus atos.
― Não é um homem, por todos os infernos! ― estalei ―. É
um menino.
Ao ver que eu ia replicar, Leukón falou:
― Escutem-me, isto é grave. Se Karos morrer, já não
teremos ninguém que responda por nós. Até que a
Assembleia proponha um novo líder e o Conselho de Anciãos
lhe dê a sua bênção, Numância será uma cidade sem ordem.
E alguém pode querer fazer justiça por sua própria mão.
― Refere-se ao fato de que podem vingar Avaro? ―
perguntei ―. Não acredito que alguém gostasse muito dele.

263
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Não era querido, mas era venerado. E temido por


muitos ― suspirou Leukón ―. É possível que alguns temam
que o seu espírito não descanse até que seja vingado.
― Fui eu ― Calias insistiu―. E Aunia me viu.
Suas palavras deixaram atrás de si um silêncio
pegajoso.
― Aunia? ― repetiu Leukón depois de uns segundos ―.
Aunia… viu-o?
― Sim. Estava espiando através da janela quando
cheguei à casa. Não me viu naquele instante, mas depois,
quando eu …
― Quando você viu como eu matava Avaro ― recordei.
― Então, Aunia também viu quando Avaro assassinou
Stena ― disse Leukón em tom neutro ― e como tentava
assassinar Cassia. Mas não tentou impedi-lo.
Eu sorri com amargura.
― E o que esperava?
Meu marido franziu o cenho.
― Tenho de falar com ela…
Quando estava a levantar-me, alguém golpeou a porta.
Leukón e eu nos olhamos com sobressalto.
― Adiante ― disse ele finalmente.
A cara de um homem apareceu na soleira. Reconheci-o:
era Corbis, o curandeiro que acompanhava Leukón em suas
explorações.
Fez um rápido gesto de saudação e logo se dirigiu a meu
marido:
― Leukón, tem de vir. Kara está pior.

264
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― O que lhe aconteceu? ― saltei.


― Feriram-na, mas não parecia grave ― grunhiu Leukón.
Ele e eu nos olhamos durante um momento.
― Eu vou ― decidi.
Corbis abriu a boca, mas depois deve ter pensado
melhor, porque se limitou a murmurar:
― Vá depressa. Só no caso...

Quando saí de casa, percebi que as coisas não tinham


corrido muito bem para os celtiberos. Leukón me tinha dito
que tinham conseguido emboscar Nobilior…, mas não me
tinha dito a que preço. As ruas de Numância estavam cheias
de feridos, que eram atendidos ali mesmo, com rudimentares
bandagens e talas, e muitas casas tinham as portas abertas.
Escutei gemidos e choros ao passar por várias delas, e senti
que as minhas vísceras se retorciam.
Nesse momento, as palavras de Stena ressonaram em
meus ouvidos: “Quando Numância arder até aos alicerces,
recorde esta conversa. Recorde que teve oportunidade de
salvar-nos a todos… e a rechaçou”.
“Não é culpa minha “, disse mentalmente ao fantasma
da mulher sábia. “Nada disto é culpa minha “.
Mas nem sequer eu estava certa de que aquilo fosse
verdade.
265
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

A casa de Kara tinha a porta aberta. Lá dentro estava


frio: o fogo se apagou e ninguém se deu ao trabalho de
reacendê-lo. Tendo em conta o estado da maior parte dos
guerreiros, não podia reprovar a sua falta de consideração.
A jovem estava sentada no banco de pedra. Pressionava
o seu ventre com a mão; e logo me apercebi que os seus
dedos estavam tingidos de vermelho.
― Kara! ― exclamei ―. O que faz aí? Tem que deitar-se!
― Os mortos é que se deitam ― grunhiu ela ―. Eu ainda
não estou morta.
Esse “ainda” se cravou dolorosamente em meu peito.
― Você não vai morrer ― declarei.
Ela me sorriu fracamente. Tinha a cara muito suja,
como se tivesse chafurdado na lama.
― Caí do cavalo ― explicou com simplicidade ―.
Enquanto o seu marido falava com um romano, os deuses
sabem lá por quê.
― O meu marido…? ― repeti, surpreendida, mas então
percebi uma coisa ―. Kara, por que está falando em latim?
A modo de resposta, ela esticou a mão e me agarrou pelo
punho.
― Tem de contar-lhe ― sussurrou ―. Quando voltar para
os romanos.
A sua mão estava fria, mas o seu fôlego me queimou a
cara.
― De que fala? ― perguntei-lhe docemente ―. Não vou
voltar, querida. Numância é o meu lar.
Mas Kara ignorou as minhas palavras:

266
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Vai contar-lhe. Ela não pode ser como Penélope, não


pode esbanjar a sua vida tecendo e esperando-me, porque eu
já não vou voltar. Já não.
A jovem se estava referindo a uma passagem de “A
Odisseia” de Homero. Penélope, a esposa de Ulisses, recebeu
a notícia de que este tinha morrido na guerra de Troia, mas
não quis acreditar. Para evitar a perseguição de seus
pretendentes, disse a todos que, antes de voltar a casar-se,
teceria um sudário para o seu defunto marido. Durante vinte
anos, Penélope esteve tecendo o sudário durante o dia e
desfazendo-o durante a noite…, até que, finalmente, Ulisses
voltou para casa.
― Eu… nem sequer sou Ulisses, rei de Ítaca ― grunhiu
Kara ―. Eu só sou uma selvagem. “Minha pequena selvagem”,
estava acostumada a chamar-me … ― A jovem bufou ―.
“Pequena”, dizia… A muito descarada… Apesar do fato de que
eu podia colocá-la ao ombro como um saco. E como
esperneava!
O sangue de Kara tinha manchado o banco. Enquanto
ela falava, eu analisava discretamente a sua situação:
formaram-se dois círculos escuros em redor de seus olhos e a
ferida do ventre parecia alargar-se por momentos. A sua mão
tremia.
― Devo ir procurar ajuda, querida ― disse-lhe com o tom
mais suave que fui capaz de fingir ―. Certamente os seus
companheiros de armas sabem melhor do que eu o que…
Mas ela pressionou o meu pulso com os dedos.

267
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Vou morrer de qualquer maneira, Cassia, e quero que


escute as minhas últimas palavras. Você é a única que pode
levar a minha mensagem a Ítaca.
Sorriu.
O coração me pedia para chorar, mas não podia fazer
aquilo a Kara. Não podia negar-lhe o seu último desejo.
De maneira que lhe agarrei a mão e me sentei a seu
lado.
― Fale-me de Penélope ― pedi-lhe em voz baixa.
Kara fechou os olhos. Tinha a cara contraída pela dor,
mas continuava a sorrir.
― O seu verdadeiro nome é Cornélia ― resmungou ―.
Cornélia Alba. Vive em Tarraco, ou vivia lá quando o seu pai
me comprou. Não me queria para fazer-lhe companhia, mas
para protegê-la. Ela tinha quinze anos e havia um homem
que a acossava, um tipo horrível, cheio de dinheiro…
Fez uma careta de desagrado.
― Não pense nele ― disse-lhe rapidamente ―. Pense
nela.
― Chamavam-na de Alba porque tinha a pele muito
clara. Seu cabelo, pelo contrário, era escuro. Era bem o
oposto de mim. ― Riu ―. Estava acostumada a dizer que eu
era o dia e ela a noite. Cuidava de mim. Quando estive
doente…
Deixou de rir.
― Cuidou de mim. Foi aí que se meteu na minha cama.
Eu… não queria. No início, não. Devia-lhe lealdade, sabe? E
pensava que, se me deixasse levar pelos sentimentos…

268
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Seu olhar se perdeu em algum ponto longínquo. Eu


aguardei com paciência.
― Mas não pude resistir à tentação ― suspirou Kara
momentos depois ―. Ela…, ela me beijava por a toda parte e
me dizia coisas bonitas. Eu nunca… Eu… ― Seu queixo
tremeu ―. Ela me encontrou. Encontrou algo em mim, algo
que nem sequer eu sabia que existia. Já sentiu isso alguma
vez?
A sua pergunta me apanhou despreparada. Por um
instante, Kara parecia ter esquecido que falava comigo, mas
agora me olhava fixamente.
― Sim ― admiti com o coração encolhido ―. Já senti.
― Ah, Leukón… ― ela riu ―. Esse maldito cavalo sabe
ser delicado quando quer, não é verdade? Sim, eu também
sabia. Por isso Cornélia se derretia em meus braços. E eu
enlouquecia.
A jovem guerreira começou a tremer.
― Foram os melhores dias da minha vida.
Duas lágrimas rodaram por suas bochechas.
― Ela fez com que tudo valesse a pena ― balbuciou ―.
Os tapas, os grilhões, o medo…; até mesmo a humilhação.
Respirava entrecortadamente. Eu me encostei mais a ela
e deixei que apoiasse a cabeça em meu ombro.
― Mas Leukón veio libertar-me ― suspirou ―. Leukón, o
meu companheiro de armas, foi a Tarraco… e eu deixei
Cornélia Alba para voltar com os meus.
Gemeu.

269
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Teria ficado. Teria ficado, Cassia…, mas não podia


fazê-lo! ― Soluçou ―. O meu povo precisava de mim, não
podia virar-lhe as costas… E você, você dirá a Cornélia que
não continue a esperar-me… Porque nunca voltarei, nunca…
Afundou a cara em meu peito. Eu a abracei com força.
E o seu sangue foi molhando a minha túnica.

Não sei quanto tempo passou.


Só sei que, quando o meu marido apareceu, Kara ainda
estava viva, mas o seu espírito parecia ter abandonado o seu
corpo. A jovem tinha decidido deitar-se e tinha os olhos
fechados; a qualquer momento, os seus membros
relaxariam… e a melhor amiga que eu tinha tido em
Numância se iria para sempre.
Leukón viu Kara. Um véu de dor cobriu o seu olhar, mas
em seguida o desviou para dirigir-se a mim:
― Temos de ir.
― Mas…
A voz de Kara me sobressaltou:
― Vá, romana ― disse sem abrir os olhos ―. Já não tem
nada o que fazer aqui.
A contragosto, soltei a sua mão e fui ao encontro de meu
marido. Calias estava com ele, branco como leite.
― Falou com Aunia? ― perguntei-lhe em voz baixa.
270
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Sim.
― E o que lhe disse?
― Temos de ir.
― Mas…
― Agora.
Seu tom não admitia discussão alguma.
― Ponha o sagum ― ele indicou ― e me siga. Sem fazer
perguntas.
Ia dizer-lhe que eu não era um cavalo ao qual pudesse
dar ordens, mas o que disse a seguir me abrandou:
― Por favor.
Decidi fazer o que me pedia.

271
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XXVIII.
O caminho dos heróis

A primeira coisa que vi ao sair para o exterior foi a pira.


Era uma pira de madeira, alta como três homens. Havia
alguns cadáveres dispostos em redor dela, mas a parte
superior estava vazia.
― O que é aquilo? ― perguntei.
― A pira de Karos ― respondeu Leukón em voz baixa ―.
Os abutres o estão descarnando, mas logo queimarão os seus
restos e as suas armas. E o seu espírito se unirá ao resto dos
heróis no caminho para o Além.
Evoquei mentalmente o semblante de Karos de Sekaisa,
o seu cabelo ruivo, os seus movimentos bruscos. E me
surpreendi a mim mesma dizendo-me que sentiria falta
dele…, tal como de Stena.
Aquele casal se amava. Pelo menos, o pequeno Karos
poderia consolar-se com isso.
Mas quem lhe contaria isso?, quem lhe falaria de seu
pai, Karos de Sekaisa, líder dos Belos e dos Arevacos?, de sua
mãe, a mulher sábia Stena? Perder-se-iam os seus nomes

272
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

com o passar do tempo? Alguém seria capaz de recordá-los


quando tivessem passados anos, séculos…, milênios?
Os numantinos se encaminhavam para a pira, mas nós
íamos na direção contrária. Para as muralhas.
Calias e eu corríamos atrás de Leukón. O meu marido
caminhava dando longos passos, tão depressa quanto podia,
esquivando-se das pessoas que arrastavam os feridos e os
mortos.
― Deuses ― murmurei ―, a sério que venceram?
― Numância venceu Roma ― grunhiu ele ―, mas os
celtiberos perderam. São os povos quem ganha as guerras,
não as pessoas. As pessoas sempre saem derrotadas.
Detivemo-nos junto às portas, mas estavam fechadas.
Leukón abriu a boca para dizer algo, mas uma voz o
interrompeu:
― É isto que procura?
Giramo-nos bem a tempo de ver como Ambón trazia
Trovão pelas rédeas. O cavalo parecia nervoso, mas Ambón o
guiava com ar decidido.
― Sim, estava procurando-o ― admitiu Leukón.
Vi que os seus ombros se esticavam e temi o pior.
Ambón, por sua parte, entregou rédeas de Trovão a
Leukón.
― A minha esposa me contou tudo ― ele informou ―,
incluindo o pacto que fizeram.
― Não vou cumprir esse pacto, Ambón, você sabe disso
muito bem.
― Sei.

273
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Ambón olhou fixamente para o meu marido.


― Sei ― repetiu ―, e não esperava menos de você.
Leukón deu um tapinha no pescoço de Trovão, que
relinchou brandamente. Depois voltou a olhar para Ambón.
― Então você não quer que eu saia do seu caminho?
― Se a Assembleia me escolher e tiver o apoio do
Conselho, quero que seja pelos meus próprios méritos, não
por ter-me desembaraçado de meu rival.
O meu marido enrugou a testa.
― Eu não quero ser líder dos Belos e dos Arevacos,
Ambón. Não quero o poder.
― É nisso que somos diferentes ― o jovem guerreiro riu
― : eu sim quero o poder. Contudo…, você também aceitá-lo-
á. Se o seu povo precisar de você…
― Se o meu povo precisar de mim, lutarei por ele ―
declarou Leukón ―. Mas não sem antes pôr a minha família a
salvo.
Ambón lhe dirigiu um sorriso zombador, mas
murmurou:
― Que Lug guie o seu caminho, Leukón.
O meu marido ergueu Calias e a mim no cavalo e
montou atrás dos nós.
― Que Cernunnos o proteja, Ambón ― respondeu.
Então Ambón me olhou e, depois de um instante de
vacilação, inclinou a cabeça como despedida.
― Senhora.

274
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

O jovem guerreiro nos abriu as portas e as segurou para


deixar-nos passar. Momentos depois de Trovão cruzá-las,
ouvi como se fechavam nas nossas costas.
Eu não falei. Estava aturdida demais para dizer alguma
coisa. A minha mente era assaltada pelas imagens do que
tinha vivido nas últimas horas: Stena, Avaro, Calias, Kara…
Leukón também estava em silêncio, embrenhado em
seus próprios pensamentos. O vento lhe agitava o cabelo e o
sagum, mas os seus olhos olhavam para o bosque, e
continuaram fixados nele quando o cavalo nos introduziu no
mato. Como se pudessem ver mais à frente.

275
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Hispânia Ulterior, 153 a.C.

276
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

XXIX.
Às portas da Numância

“Mas não sem antes pôr a minha família a salvo “. Isso


foi o que Leukón tinha dito. Mas eu não soube a que se
referia até que vi que Trovão se desviava do caminho e se
dirigia para oeste, onde uma coluna de fumaça aparecia por
entre as árvores.
― Não! ― exclamei ao vê-la e ao adivinhar qual era o
nosso destino ―. Não, Leukón! Não irei!
Ele não respondeu. Só gritou ao seu cavalo para que
galopasse mais depressa.
O meu coração se descontrolou. Além da guerra e do
horror que tínhamos deixado para trás, um medo diferente
atendia à minha garganta. Um medo atroz, que mal me
deixava respirar.
Tive de lutar contra aquele medo. E dizer a mim mesma
que, apesar de tudo, Leukón não podia obrigar-me. Não podia
arrastar-me pelo chão até ao acampamento romano.
Não. Nada nem ninguém me faria voltar.
Nunca o abandonaria. Nunca.

277
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Detivemo-nos quando começou a chover. Leukón deixou


Trovão amarrado a uma árvore e esfregou os braços
dormentes. Depois se dirigiu a Calias, que parecia confuso, e
lhe pôs as mãos nos ombros.
― Espere-nos aqui, filho.
― Mas…
― Calias ― disse com firmeza ―, orgulho-me que me
chame “pai”. É algo de que sempre me orgulharei. Por isso
quero que confie em mim e espere. Não demoraremos.
O menino respirou fundo e respondeu:
― Sim…, pai.
E ficou junto ao cavalo.
Leukón se meteu entre dois carvalhos. Isso me fez
recordar do dia de nossas bodas: tínhamo-nos casado em
uma clareira feita com aquelas árvores, na presença de uma
mulher que já não caminhava sobre a terra e sob o amparo
dos deuses celtiberos.
Contemplei como a chuva caía sobre Leukón. Tinha
formado uma ligeira cortina entre ambos. À luz da tarde, as
gotas pareciam estrelas brilhantes.
Esperei até que o meu marido se detivesse. Devíamos
estar a mais de trezentos passos do lugar no qual tínhamos
deixado Calias e Trovão.
― Bem ― disse ele com voz rouca ―, temos algum tempo.
A sua respiração foi relaxando pouco a pouco. Só então
me dei conta de que tinha estado ofegante até àquele
momento.
Talvez ele tivesse tanto medo quanto eu.

278
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Não quero ir, Leukón ― insisti ―. O meu lugar é com


você.
Ele se deixou cair aos pés de um carvalho, apoiou as
costas no tronco e fechou os olhos.
― Não pode voltar, Cassia. Aunia me pediu algo em troca
de seu silêncio, mas não posso fazer o que ela quer. Quando
queimarem Karos, as coisas acalmarão… e as pessoas
começarão a fazer perguntas sobre Stena e Avaro.
― Diremos a verdade, ou algo próximo da verdade: que
eu matei Avaro porque ele matou Stena.
Ele abriu os olhos e me olhou com um pingo de doçura.
― Não nos escutarão, Cassia. Já me consideram um
assassino e você… é uma romana.
― Não…
― Agora que Karos morreu, já não tenho qualquer apoio.
Aunia não ajudará, mas… eu já estava perdido, de qualquer
maneira.
Eu me ajoelhei em frente a ele e apertei os punhos.
― Tudo isto é por minha culpa! ― estalei ―. Se não se
tivesse casado comigo para salvar-me …!
A minha garganta se fechou e já não pude continuar a
falar.
Mas Leukón se limitou a sorrir.
― E o que isso diz de mim? Sou culpado de tê-la
sequestrado, amarrado, ameaçado e virtualmente obrigado a
casar-se. Sou culpado de tê-la arrancado de seu lar para
levá-la para uma cidade estranha. E sou culpado de tê-la

279
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

posto em perigo, não uma, mas várias vezes. Odeia-me por


isso, Cassia?
― É óbvio que não.
― Bem ― suspirou ele ―, porque eu não me arrependo
de nada.
― Não irei ― voltei a dizer-lhe ―. Ficarei e, se você cair
em desgraça, eu cairei também.
― Sinto muito, mas não vou permitir isso.
― Então, venha conosco! ― supliquei ―. Não para Roma,
mas para qualquer outro lugar. Podemos partir os três e…
Continuei, mas sabia que era inútil. Leukón tinha
tomado uma decisão: os seus olhos me diziam isso. Não havia
irritação neles, só ternura… e uma pena infinita.
― Não. ― Inspirou profundamente ―. Hispânia está em
guerra. Não nos receberão em nenhum lugar: a você, porque
é romana; a mim, porque sou celtibero. Mesmo se
conseguíssemos chegar a um porto, para aonde nos
dirigiríamos? Os nossos povos são inimigos, e nenhuma tribo
guerreira quererá acolher um desertor. Aconteça o que
acontecer… ― suspirou ―, eu sou um homem morto.
― Não ― gemi.
― Sim. Mas posso salvar-vos, a você e a Calias, e isso é
precisamente o que vou fazer.
― Mas…
― Vi o seu pai, Cassio Aquila.
As suas palavras me cortaram a respiração.
― Você viu…?

280
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Enquanto lutávamos, procurei os centuriões romanos


por entre os combatentes. Não me custou muito dar com ele:
os seus homens o chamavam de Aquila, e você me disse que
não havia nenhum outro centurião que se chamasse assim
nas legiões hispânicas. Aproximei-me dele e tivemos uma
conversa.
― Uma conversa… no meio da batalha?
Não sabia se ria ou chorava.
― A batalha nunca é o que parece vista de fora ― ele
explicou ―. No meio do caos, podem manter-se conversas
civilizadas. O seu pai e eu tivemos uma… e eu lhe fiz uma
promessa.
― Que promessa?
Um brilho de dor se apoderou de seu olhar.
― Prometi-lhe que, se chegasse o dia em que eu não
pudesse protegê-la, levaria a ele.
― Não ― repeti, desmoronada.
― É seu pai, Cassia. Ele a ama.
― E eu o amo. Com toda a minha alma. Mas… esta é a
minha vida agora. Numância, o seu povo, você.
― O seu povo? ― Soprou ele ―. Por Cernunnos, se já não
resta ninguém! Todos os nossos amigos morreram. Estamos
sozinhos… e eu estou condenado. Mas me nego a aceitar que
este seja o seu fim. Você ainda tem toda uma vida por diante.
― Não quero viver sabendo que o abandonei!
O meu grito se converteu em um soluço. Abracei
Leukón, estreitando-o com todas as minhas forças.

281
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Não me está abandonando ― ele me sussurrou,


rodeando-me com os seus braços ―. Está dando-me a
oportunidade de continuar a viver em você e em Calias. ―
Afastou-se um pouco de mim para beijar a minha testa, mas
logo voltou a sustentar-me contra o seu corpo ―. Está dando-
me a oportunidade de continuar a existir nos vossos
corações. Quando eu for apenas um montão de ossos, o meu
nome será pronunciado por vocês, durante anos e anos…, até
que se unam a mim no Além.
Eu chorava e tremia. Ele, no entanto, estava sereno.
― Sei que lhe estou pedindo algo muito difícil ―
acrescentou ―. Se eu tivesse de continuar a viver depois de
sua morte, morreria com você. Mas você tem de viver. É a
minha última vontade, e não vai negar algo assim a um
moribundo.
Sem separar-me de Leukón, joguei a cabeça para trás.
Um farrapo de céu rosado se abriu por entre as nuvens,
salpicado de diminutas estrelas brancas.
As lágrimas escorregaram até ao meu pescoço.
― Sim ― disse com firmeza ―. Voltarei. E levarei o seu
nome comigo. O seu nome, a sua cara e a lembrança do que
você foi…, Leukón de Sekaisa.
Muito devagar, o corpo de meu marido relaxou.
― Obrigado, querida ― murmurou ―. Então, já só fica
uma coisa por fazer.
As suas mãos levantaram as minhas saias. Soube o que
ia fazer assim que notei a pressão de seus dedos em meus

282
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

quadris, mas não protestei; a única coisa que fiz foi gemer
contra o seu ombro quando os nossos corpos encaixaram.
― Ah… Quero recordar-me de você assim ― sussurrou
ele ―. Quero que seja a última coisa da qual me lembre.
Afundou a cara no meu pescoço e foi deixando um
rastro de beijos úmidos na minha pele. Eu enredei os meus
dedos no seu cabelo e o abracei com as pernas.
― Sempre estará comigo ― prometi com um fio de voz ―.
Dentro de mim, em meu corpo e alma.
Leukón moveu os seus quadris para cima com tanta
força que tive de reprimir um grito. Ele me olhou com os
olhos entreabertos.
― Os deuses foram generosos comigo ― ofegou ―. Há
quem se vá deste mundo sem ter amado, nem ter sido
correspondido. Eu… posso partir em paz…
As suas palavras foram interrompidas por um grunhido
de prazer. Os meus foram afogados pelo retumbar de um
trovão.
Mas já estava tudo dito. E, enquanto a chuva
aumentava, dissemo-nos adeus sem palavras. Um adeus para
sempre.

283
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Já era quase de noite quando voltamos para Calias. O


menino estava adormecido, mas despertou assim que nos
ouviu.
― Onde estavam? Ouvi ruídos. Acredito que o exército
romano está perto daqui.
― Está ― assentiu Leukón ―, e a sua mãe e você vão ao
seu encontro.
Calias se sobressaltou:
― Não, pai! Os romanos são o inimigo, lembra-se?
Leukón o agarrou pelos braços e o ergueu no lombo de
Trovão, que sacudiu a cabeça ofendido.
― Há romanos bons e romanos maus ― disse o meu
marido ―, e celtiberos bons e celtiberos maus. Em todas
partes encontrará pessoas maravilhosas e pessoas
detestáveis. O importante ― suspirou ― é que nunca deixe de
dar-lhes uma oportunidade.
― Não entendo, pai ― protestou Calias ―. Por que fala
assim? Por que diz que a minha mãe e eu vamos ter com os
romanos? Não vem conosco?
― Não, eu tenho de voltar para Numância. Mas vocês
vão ter com os romanos e, quando eles ganharem a guerra,
voltarão para Roma.
― Os romanos não vão ganhar a guerra! Os celtiberos
são muito mais valentes!
― É possível ― concedeu Leukón ―, mas eles têm algo
que nós não temos.
O meu marido tirou algo de debaixo do sagum.
A moeda de Calias.

284
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

― Vi os elefantes, filho ― enquanto falava com ele, estava


olhando para mim ―, ao que parece, o rei da Numídia decidiu
apoiar o exército romano. Ah, e isso me lembra de uma
coisa… ― riu entredentes ―. Retiro o disse: não me pareço
com eles. Essas bestas dão medo.
Sem deixar de sorrir, pôs a moeda na mão de Calias.
Mas ele a devolveu.
― Não, pai, fique com ela ― murmurou ― e assim
lembrar-se-á de mim.
Como todos os meninos, Calias aceitou as coisas com
muito mais naturalidade do que os adultos.
Leukón assentiu com a cabeça, voltou a guardar moeda
e se inclinou para beijar a testa do moço.
Depois me agarrou pelos braços.
― Sangue de meu sangue ― murmurou, olhando-me nos
olhos.
― Sangue de meu sangue ― repeti com lentidão,
sustentando o seu olhar.
Os nossos lábios se roçaram pela última vez.
Então, enquanto uma lágrima furtiva ameaçava delatá-
lo, Leukón me colocou em cima do cavalo e lhe deu uma forte
palmada nos quartos traseiros.
― Até logo, amigo! Leve-os para casa sãos e salvos!
Trovão empreendeu galope com tanta energia que quase
caí. Agarrei-me com força a Calias, que quase tinha saído
cuspido, e tentei olhar para trás para ver o meu marido uma
vez mais.

285
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Mas o cavalo já estava em um atalho. E Leukón tinha


desaparecido do meu campo de visão.
Voltei a olhar em frente.
Trovão parecia saber perfeitamente aonde ia. Eu, no
entanto, sentia-me mais perdida do que nunca.
Pode ser que tivesse feito a vontade de meu marido,
Leukón de Sekaisa, e tivesse decidido continuar a viver,
enquanto ele se encaminhava para uma morte certa. Pode ser
que estivesse disposta a ser forte por Calias, o mais parecido
a um filho que ele e eu alguma vez teríamos. Pode ser que,
depois de tudo, fosse capaz de continuar em frente… sozinha.
Mas, enquanto Trovão nos conduzia para aquela triste
coluna de fumaça, compreendi que só estava arrastando o
meu corpo, uma frágil casca de ovo vazio.
Porque o meu coração já não estava comigo. Eu mesma
o tinha arrancado do peito e o tinha deixado para trás, em
outro lugar e em outro momento.
Às portas de Numância.

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Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Roma, 150 a.C.

287
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Epílogo

Nunca retornei à Hispânia. Não tinha conseguido fazê-


lo. Sabia que naquele lugar jaziam os ossos do homem que eu
tinha amado, solitários sob um montão de terra parda e flores
amarelas. Sob a chuva e sob o vento, arrulhados pelo
murmúrio do rio que rodeava Numância ao qual os seus
habitantes chamavam Douro.
Os numantinos ganharam a guerra. Pelo menos, no
início. O cônsul Nobilior teve de empreender uma vergonhosa
retirada; os elefantes que o rei da Numídia lhe tinha enviado
se voltaram contra o seu exército, e a ferocidade dos
celtiberos fez com que muitos legionários desertassem,
conferindo assim o golpe de misericórdia às forças invasoras.
Numância resistiu.
Não obstante, a cidade ainda teria de travar outras
batalhas. Roma nunca esquecia uma ofensa: os romanos
voltariam, e fariam dispostos a vencer. Mas teriam de passar
anos até que isso acontecesse.
Eu, de minha parte, mudei-me para Roma com Calias e
tentei seguir em frente. Melpómene nos acompanhou; contei-
lhe sobre a minha viagem à Hispânia, omitindo apenas uns
quantos detalhes, e tenho de admitir que foi a única que

288
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

fingiu acreditar em meu relato. O resto das pessoas pensou


que, simplesmente, eu tinha sido capturada pelos celtiberos e
tinha inventado uma história de amor e traição para consolar
a mim mesma.
Obviamente, Máximo e eu rompemos o nosso
compromisso. Ele se casou com uma jovem chamada Valéria;
eu não fui às bodas, mas os vi no forum e os felicitei. Não
senti absolutamente nada ao vê-los juntos. Fazia muito
tempo que não era capaz de sentir absolutamente nada.
Calias, contudo, conseguiu recuperar-se. Deixou de
comportar-se como um celtibero e adotou os costumes
romanos. Não me incomodou: afinal de contas, era apenas
um menino. Os meus pais se negavam a aceitar que era meu
filho, mas eu me mostrei obstinada: tinha-o adotado e não ia
voltar atrás. Foi essa a única coisa em que não cedi.
E assim passei três anos: desfrutando da serena
companhia de Calias, de Melpómene e de meus pais, e
deixando passar os dias com lentidão. Obrigando-me a não
seguir os passos de um fantasma… e comprovando, noite
após noite, que era o fantasma quem me perseguia .
― Sangue de meu sangue ― murmurava ao acordar,
como se voltasse a fazer-lhe a mesma promessa.
Assim passaram três anos.

289
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Três anos depois de um navio me conduzir de novo a


Óstia, Calias me fez uma estranha petição:
― Quero que me leve ao forum, mãe.
Eu o olhei com ceticismo.
― Ao forum?
― Sim…, por favor.
Não era uma petição típica dele. Ao contrário de mim,
Calias possuía o espírito guerreiro dos celtiberos, mas nunca
tinha gostado dos combates de gladiadores. Tinha estado lá
uma vez, aos treze anos, e o tinha indignado comprovar que
nem os gladiadores mais fortes tinham muitas hipóteses de
sair dali com vida.
Agora era um moço de quatorze, mais corpulento que eu
e quase tão alto quanto Melpómene, e de vez em quando
aparecia em casa com um olho arroxeado por ter andado aos
murros com outro menino. Mas era a primeira vez, nesse
último ano, que me falava do forum.
― Eu não gosto daquele lugar, Calias ― suspirei.
― Por favor! ― insistiu ele em seu vacilante latim ―. É
importante para mim.
― Não pode ir com Melpómene?
― Preciso ir com você, mãe. A sério.
― Iremos amanhã, então.
― Tem de ser hoje.
Parecia tão angustiado que, finalmente, acedi. Agarrei o
meu xale grande, pus-lhe a fíbula de Leukón com forma de
cavalo e me dirigi para a porta. Calias vinha atrás de mim,
muito sério e embrenhado em seus pensamentos.

290
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Percorremos as ruas de pedra até chegar ao forum.


Como eu não tinha chegado a casar-me com Máximo, os
meus pais e eu continuávamos a ser plebeus, mas não
tínhamos perdido o nosso status, pelo menos não totalmente.
Embora a presença de Calias provocasse olhadelas e
cochichos, todo o mundo sabia que eu não tinha podido ficar
grávida aos dez anos, por isso deduzo que cada um tinha
uma teoria diferente a esse respeito.
Isso não me importava. Poucas coisas me importavam
já. A Cassia que tinha zarpado rumo à Hispânia no porão do
“Quimera” não era a mesma que tinha voltado a cruzar o
Mediterrâneo.
Ao pensar no “Quimera”, recordei-me de Alexis. Não
tinha morrido doente em Ampúrias, mas um ano depois, no
naufrágio que arrastou o “Quimera” para o fundo do mar.
Calias me tirou de meu ensimesmamento:
― Por aqui, mãe.
Conduziu-me até uma das primeiras filas. Não gostava
muito de presenciar o combate tão de perto, mas Calias
insistiu.
― O que se passa hoje com você? ― perguntei-lhe com
inquietação.
― Quero que veja uma coisa.
O forum se foi enchendo e o combate começou.
Eu já sabia no que consistiam os combates de
gladiadores, e me desagradavam profundamente. Primeiro se
abria a grade que dava passagem aos guerreiros; depois estes

291
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

saudavam as autoridades que estivessem presentes;


finalmente, lutavam até à morte entre eles.
Uma voz áspera foi anunciando-os por seus nomes ou
apodos15:
― Eis aqui Flamma, o vencedor do último combate!
Um gladiador de tez escura e grevas reluzentes levantou
uma lança por cima de sua cabeça. Eu torci o gesto: não
gostava de ver como a usava.
― E aqui têm Trácio, recém-chegado do Oriente!
Um homem grego de meia idade se colocou junto a
Flamma. Diferentemente deste, ele usava uma armadura
ligeira e uma espada curta.
― Não sei se quero ver isto ― sussurrei a Calias.
Mas ele me disse:
― Espere, este combate não é de dois gladiadores, mas
de três!
― E o que tenho eu com isso? Calias, não tenho vontade
de…
Mas então aquela voz afogou a minha:
― E, finalmente, aqui têm Belo, um bravo guerreiro
celtibero que está desejoso por matar!
O forum rugiu.
Eu senti que me falhavam os joelhos. Tive de agarrar-me
ao braço de Calias.
O homem avançou lentamente, como se estivesse
reconhecendo o terreno. A primeira coisa que me chamou a
atenção foi o seu tamanho. Tinha os ombros largos e as

15 Alcunha ofensiva.

292
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

pernas musculosas, embora parecesse mal alimentado.


Usava o cabelo comprido, e um cacho lhe caía solto ao longo
da bochecha. Afastou-o com um movimento impaciente.
― É ele, mãe? ― Calias estava-me perguntando ―. É ele?
Eu acredito que sim, que é ele!
O gladiador elevou o queixo.
E, embora o forum estivesse cheio de gente, teria jurado
que os seus olhos se cravavam nos meus.
E todo o meu universo voltou a oscilar.
― Deuses ― suspirei ―. É ele.

293
Às Portas de Numancia – Africa Ruh

Agradecimentos

Obrigada à minha família: a mon roi, à minha mamãe,


ao meu irmãozito, a Dário, Hector e Rober. Gosto muito de
vocês.
Obrigada a Miriam e Diana, guardiãs de Numância, que
me guiaram nesta inesquecível viagem no tempo.
Obrigada Jordi. Foi com você que tudo começou.

294

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