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GT n° 30: Sexualidade, Gênero: ética e política

As estratégias masculinas ao lidar com a dor da traição: associações de cornos,


criação de aforismos e sociabilidade em mesa de bar

Autora: Eronides Câmara de Araújo


1

Introdução

Este texto trata de uma pesquisa sobre masculinidade e a traição feminina. Estou
problematizando o estar masculino na contemporaneidade ao lidar com a traição feminina,
interrogando como os homens (re) elaboram estratégias para viver às exigências das
mudanças sociais, como por exemplo, os efeitos das conquistas das mulheres, as mudanças
dos dispositivos jurídicos, e como estão produzindo um perfil masculino para
operacionalizar a dor da traição.

As estratégias do masculino tanto dizem respeito à criação de Associações de Cornos e


as rodadas de cervejas em mesa de bar vivendo experiências ‘terapêuticas’, como criam
aforismos e piadas para representar as identidades do masculino corneado.

O estar masculino na contemporaneidade não ocupa um lugar hegemônico como


também não indica está em crise, pelo menos nos dados da minha pesquisa. O estar
masculino é plural, tanto pelas formas de lidar com a infidelidade feminina, como na
elaboração de estratégias [muitas vezes burlada pelo o feminino] para manter os lugares
viril, forte e honrado.

A pesquisa para a tese1 foi realizada em João Pessoa e Campina Grande no Estado da
Paraíba. Foram aplicados quatrocentos questionários a homens com perfil de camada social
popular em Campina Grande e entrevistas a homens e mulheres nas duas cidades2, além de
entrevistas ao presidente e a ‘psicóloga’ da Associação de Cornos do bairro da Torre em
João Pessoa. Também analisei as entrevistas do Presidente da Associação Potiguar de Natal
disponível na internet. Além disso, trabalhei o meu processo judicial de separação conjugal
datado de 1990, em que fui julgada como adúltera para análise dos discursos masculinos e
femininos. Neste texto, em particular, estou analisando as entrevistas dos membros das

1
A pesquisa foi desenvolvida para a minha tese de doutorado vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande e que está em fase de elaboração da escrita.
2
Os questionários e as entrevistas estão sendo analisados para os dois últimos capítulos da tese.
2

Associações de cornos. A análise dos dados, dos questionários e das entrevistas realizadas
com os homens e mulheres, serão aprofundadas no texto da tese.

1.Associações de corno: espaço estratégico e terapêutico do masculino

Canto esse brega rasgado


Só pra me vingar de um alguém que eu amei
Que me botou tanta ponta
E eu não sabia mas agora eu sei
Meu vizinho do lado
Um aposentado com cara de gay
Mas eu pra me vingar
Com a mulher dele também eu transei
Ei! Você meu amigo
Que está sorrindo com o que eu passei
Cuidado com a sua cabeça
Pois amanhã será sua vez
Você passa a noite fora
E quem é que garante que o Ricardão
Não come a sua comida
E dorme tranquilo no seu colchão
Ela não me respeitou
E tome gaia
(Vida de Corno Falcão Composição: Edel Reis)

A criação de associações de Cornos parece algo estranho e risível. Culturalmente, a


criação de associações, de uma forma geral, tem como propósito organizar pessoas em torno
de reivindicações. Em geral, são reivindicações do ponto de vista de ganhos econômicos e
políticos ou do reconhecimento identitário, como o étnico e o sexual.

A criação de associação de Cornos na Paraíba - particularmente em João Pessoa, está


aqui sendo considerada como uma estratégia que através do riso, da zombaria e da astúcia,
os homens traídos tentam relativizar a traição feminina e vivenciar neste espaço uma terapia
3

coletiva para amenizar a dor da traição. È uma arte de fazer3 no cotidiano para manipular
astutamente as representações que circulam socialmente sobre o homem cornudo. Esta arte
ao que tudo indica suaviza a identidade masculina na medida em que o modelo de homem
forte e macho é pulverizado pelas artes de fazer.

O riso, as brincadeiras e as conversas nas associações sobre a traição não só ajudam


suportar a dor, como segundo suas representações, não interferem na virilidade masculina. A
criação da Cornolandia é uma astúcia realizada com brincadeira e na traquinagem. È um
modelo de associação onde ninguém se associa, mas ela sobrevive pelo riso. È uma
associação que ‘oferece’ taticamente benefícios, como os cartões de créditos que não têm
validade, mas os ‘supostos’ sócios querem possuir; oferece acompanhamento psicológico e a
psicológica é a vendedora de tapioca que tem uma barraca em frente à Cornolândia e que
escuta a dor dos traídos. São artes de fazer, que burlam a suposta seriedade do masculino
como trágico e como vingador da honra, e reinventam homens com múltiplas
masculinidades que reivindicam a aceitação social, como estar cornos.

São invenções cotidianas que manipulam e reinventam novas subjetividades para


confrontar astutamente as composições de forças que têm ‘sustentabilidade’ na cultura. No
nordeste, culturalmente, temos como exemplo, a previsível sustentabilidade de que a traição
feminina é pecado, crime ou desonra. Quando isso acontece, em geral, está em jogo a sujeira
da ordem social e manchando a honra masculina. Historicamente muitos homens ‘lavaram a
honra’ com sangue4.

A criação da associação de cornos pode ser uma arte de burlar as subjetividades, em


especial, as subjetividades sobre a traição e sobre o próprio perfil do masculino. Não tem
sido comum os homens criarem associações para ser reconhecidos como traídos. São
situações do fazer e do dizer cotidiano que não estavam estabelecidas para homens. Para

3
Sobre a arte de fazer veja a obra de Certeau. Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução de
Ephraim Ferreira Alves.- Petrópolis, RJ : Vozes, 1994.
4
Cf. por exemplo, a dissertação de mestrado de Cipriano, Maria do Socorro. A adúltera no Território da
infidelidade: Paraíba nas décadas de 20 e 30 do século XX/ Maria do Socorro Cipriano .--- Campinas, SP:
[s.n], 2001.
4

NOLASCO (1993)5 se referindo a inserção dos homens em atividades que eram tidas como
naturalmente das mulheres, afirma: “[...] mediante uma autorização social que gera
reconhecimento e valorização, os homens podem entrar em contato com situações cotidianas
e sensações que até então lhes eram interditadas (p.17).

A tática na Cornolândia6 é apagar as mágoas, rir, viver feliz, ironizar o passado e


superar a dor. São homens, que ‘podem’ chorar e ironizar a valentia masculina, que brincam
da suposta firmeza do homem; homens que escancaram as traições sofridas e criam
associações de cornos para narrar e trocar as experiências, e afirmar que não perderam sua
virilidade, que não foram derrotados, que não efeminizaram-se, e rir da situação de ser
corneado.

È um perfil diferente do masculino e não é muito comum. È um perfil de homem que


não acredita na eficácia da defesa da ‘lavagem da honra’. Honra se lava com cachaça,
criando Associações de Cornos com humor ou tomando cachaça nas mesas de bar. Esta
tática cotidiana do masculino está projetada, tanto nos discursos dos homens traídos, como
nos aforismos que dão visibilidade na Cornolândia:

1°.Chifre é como caixão, um dia você vai ter o seu. 2°. Corno abelha é aquele
vai fazer cera e ‘volta cheio’ de mé. 3°.Um chifre só se cura com outro
chifre.4° Cada um tem o chifre que merece.5°. Corno só é solidário no
chifre.6° .Chifre é como ferida, se não tratar demora a curar.7°. Corno que
ama, não mata.8°.Chifre não é para todo mundo, mas está ficando cada vez
mais popular.7

As identidades do masculino, como Cornos, são representadas nestes seis aforismos


como plural. Cada corno tem as identidades pela suas experiências individuais. Os usos de
aforismos são táticas simbolizadas nos enunciados de aceitação, conformação, disfarce e de

5
Nolasco, Sócrates Álvares. O mito da masculinidade/ Sócrates Nolasco .- Rio de Janeiro : Rocco, 1993.
6
Associação de Cornos – CORNOLÂNDIA – está situada no mercado do bairro da torre em João Pessoa – Pb
e funciona em uma barraca que serve lanches que tem o nome de ‘Encontro dos Cornos’- Seu presidente é o
Sr. Mariano Corno da Silva.
7
Estes aforismos ficam expostos na Cornolândia.
5

zombaria sobre a corneação. È a arte de burlar o cotidiano e de ser aceitos como tal sem ser
desmoralizados. As tipologias do Corno, como o “Corno cebola: quando vê a mulher com
outro, chora”, “O corno banana: a mulher vai embora e deixa o homem com uma penca de
filhos”; “O corno prevenido: o que liga pra esposa antes de ir para casa”; “O corno cético:
quando vê a mulher com outro não acredita” e o “O corno justiceiro: aquele que se vinga,
dando”, constituem aforismos que têm múltiplos significados e representam o masculino
exercendo múltiplas formas de ser homem e que quer perder os atributos de macho.

Afirmar que o homem pode chorar e que é frágil (corno cebola) que também pode
cuidar das crianças, (corno banana) que quando necessário pode ter cautela, (corno
prevenido) que pode ceder ao coração e muitas prefere ignorar o que os olhos vêem, (corno
prevenido) são historicamente atributos dado ao feminino. Nesse jogo estratégico discursivo
estar a arte de dizer. Essas atribuições ao homem corneado não coloca em jogo sua
virilidade. As representações desses aforismos indicam que é melhor ter atributos femininos
do que ser homossexual, como a afirma ser o corno justiceiro, em outras palavras, é melhor
ser corno do que ser ‘bicha’, reforçando estereótipos para outras formas de estar masculino.

A corneação é também simbolizada na Cornolândia por aforismos que tanto


representam a universalização dos ‘chifres para todos’ como vulgariza o masculino que não
se separa da mulher diante da experiência de viver a traição:

1.°Corno ateu aquele que leva chifre e não acredita2.°Corno churrasco


aquele que bota a mão no fogo pela mulher. 3°. Chifre é como caixão, um
dia você vai ter o seu. 4°. Corno é feito bujão, na casa que não tem um, tem
dois.5°.Corno io-iô é aquele que vai e volta.6°.Corno ‘Xuxa’ é aquele que
não deixa a mulher por causa dos baixinhos.7°.Corno ‘Brahma’ é aquele
que pensa que é o número um 8°.Corno bateria: é aquele que diz: um dia
ainda vou tomar uma solução.

Mas não só pelos os aforismos, a arte de dizer representa o masculino corneado. A


religiosidade tem sua presença na Cornolândia, através da oração dos cornos: “Senhor, fazei
que eu não seja corno, se eu for, fazei com eu não saiba, se eu souber, fazei com eu não me
conforme. Nossa senhora das pontas finas defendei-me das pontas grossas”.
6

Além disso, na Cornolândia, o chifre é também alegórico.8 Tem chifres ornamentando


a parede e tem fotografias de homens com chifres. O quadro com a imagem de Nossa
Senhora de Fátima, foi dividido em uma das paredes da associação com uma foto do Corno
‘jibóia’. È uma foto de um homem com um chifre enorme na cabeça e abaixo, o titulo de
‘Corno jibóia’. O corno é então referenciado, homenageado e cultuado. Além da
publicização da corneação, os chifres são símbolos de masculinidade. Esta associação
identitária do chifre do touro com o homem que foi corneado lembra-nos os atributos
masculinos nas touradas, espanhola e portuguesa, de acordo com a fala de Vale apud Aquino
(2008) 9:

[...] o touro sacrificado na tourada espanhola e simbolicamente na


portuguesa, transmitem às pessoas seus atributos ideais masculinos
como agressão, coragem, frontalidade e nobreza, quando se
incorpora, a partir do sacrifício sangrento, as suas qualidades de
macho (p.134).
Assim, na tourada, os homens que sacrificam o touro se apropriam da sua capacidade
sexual. O uso dos chifres, como símbolos na Cornolândia, pode significar que a corneação
sofrida pelo masculino não significa a perda da sua virilidade, ao contrário, chifre tem sido
associado ao touro, portanto, não é desonra, significa força, poder e virilidade. Mas também
pode significar a perda da honra. A cabeça foi historicamente a parte do corpo que recebia a
simbologia das honrarias. Os chifres podem simbolizar a perda ou a ausência da honra.

Além disso, o ‘corno’ tem outra marca na associação: a identidade comercial. Uma
forma de reconhecimento identitário é na relação comercial10. A publicização comercial do
corno com sua autorização é outra forma identitária desse masculino que é leve, zombeteiro
das emoções. È aquele que brinca com as vulnerabilidades.

8
Os ‘chifres ou cornos’ dos animais são símbolos utilizados pelos homens e que têm uma forte relação com a
masculinidade.
9
Ver. Aquino, Francisca Luciana de. Homens “cornos” e mulheres “Gaieiras” Infidelidade conjugal, honra,
humor e fofoca num bairro popular de Recife –Pe. Francisca Luciana de Aquino. —Recife: O autor, 2008.
10
A associação – Cornolândia - ‘funciona’ na barraca onde Sr. Mariano negocia, fornecendo marmitas,
salgadinhos e lanches.
7

A arte de brincar com a situação de estar corno é a possibilidade de evitar a desonra do


masculino. Quanto mais seriedade for tratada a infidelidade feminina, mas desgaste da
identidade masculina. Reconhecer-se e publicizar a corneação na forma da brincadeira é uma
forma terapêutica de sentir a dor e ao mesmo tempo de manter supostamente intacto o lugar
do masculino como viril, e a mulher como a responsável pela desordem social.

O homem para entrar na associação precisa fazer o teste de identificação. È divertido e


é o aval para ser qualificado como corno, entrar na associação e fazer sua carteira de sócio.
Ele precisa descobrir as quantidades de pontos que faz a partir das respostas de uma única
pergunta: você encontra um papelzinho na bolsa dela (da mulher) com um número de um
telefone e o nome de um homem, e aí o que você faz? a) você acredita quando ela diz que o
número é de um amigo bicha; b) você enche o telefone de porrada; c) ou você liga para ele
pedindo dinheiro emprestado? Segundo o presidente da associação, boa parte dos iniciantes,
faz a opção pela letra a. Este ritual de iniciação garante a certeza de que todos os seus
membros são cornos assumidos e evita a infiltração na associação de homens que não têm
solidariedade com a causa.

Algumas dessas práticas simbólicas são ações de indisciplina como afirma Certeau
(1994)11. È uma arte do fazer, como a resistência do masculino aos dispositivos jurídicos e
médicos12 que contribuíram para formação masculina, mas é também uma forma de criar um
espaço lúdico em que homens e mulheres possam banalizar a corneação. A masculinidade
constitui uma produtividade no cotidiano. Burlar a produtividade masculina reinventando
outras formas de lidar com a infidelidade feminina contribui para que os homens corneados

11
Este conceito de antidisciplina é para Certeau, as astúcias dos consumidores aos procedimentos ou às
imposições sociais.
12
Ver por exemplo, Costa, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma familiar. –Rio de Janeiro: Edições Graal,
1979. Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil/ Roberto Machado...[ET
al.]. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978. Esteves, Matha Abreu de. Meninas Perdidas – Os populares e o
cotidiano do Amor no Rio de Janeiro da Belle Èpoque .- Rio de janeiro: Paz e Terra, 1989. Caulfield, Sueann.
Em defesa da Honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). – Campinas, SP:
Editora da Unicamp/ Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, entre outros.
8

não só reaprendam a lidar com a dor, mas também pode escancarar as múltiplas formas de
estar masculino.

A ‘Cornolândia’ é um espaço de sociabilidades13, em que práticas simbólicas são


criadas, como por exemplo, a ‘assistência psicológica’ e o (simbólico) cartão de crédito
CHIFROCARD. Além disso, a associação tem a carteira de sócio. E os cornos comemoram
o seu dia em 25 de novembro. Uma tática risível na Cornolândia são os serviços da
psicóloga. O corno precisa de atendimento psicológico, ou seja, as subjetividades que
‘formam’ seus ‘eus’ estão em crise e necessitam de ‘tratamento’. A confidente e a
conselheira dos homens é uma mulher.

A ‘psicóloga dos cornos’ como é conhecida Livramento, participa desta nova


desapropriação masculina, em que distribui o tempo de ‘por a mão na massa da tapioca’ e a
reserva do tempo para as confissões masculinas. Ir ao ‘consultório psicológico’ é quebrar
com a idéia de que este é o lugar de homem fraco. È uma ação, embora seja simbólica, pode
contribuir para que novas subjetividades sobre o masculino sejam reinventadas. Usar a tática
de criar a associação, e de dizer que os homens precisam de atendimento psicológico porque
foram corneados é reconstruir um perfil que por muito tempo foi atribuído ao feminino, ou
seja, o de ser sensível, paciente, dócil e que reconhece suas limitações. È outra
desapropriação do masculino sobre o mundo masculinizado. O homem que levou chifre
toma a iniciativa de criar uma associação e indicar que seus pares precisam de ajuda
psicológica e que eles são tão fortes quanto fracos. É uma descontinuidade do perfil
masculino que tem sido valorizado a partir da infalibilidade da virilidade.

Entretanto, tanto o perfil considerado típico do masculino como o do feminino são


históricos. Foram construídos por vários saberes, entre eles, o saber médico que naturalizou

13
Para Simmel, apud Gastaldo (2005, p 108) [...] “[...] a sociabilidade é uma forma de interação na qual os
participantes se mostram a um só tempo interessados e descomprometidos, autonomizando suas atuações no
sentido de evitar qualquer demonstração de um interesse objetivo nos assuntos tratados – o tipo de conversa
ocorrente em festas seria talvez um bom exemplo”. Édison Gastaldo O complô da torcida: futebol e
performance masculina em bares - Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 24, p. 107-123,
jul./dez. 2005.
9

a diferenciação sexual (SOUZA, 2005)14. Em estudo recente Albuquerque Jr, (2008)15


apresentou também a influência de outros saberes, como a antropogeografia e a biogeografia
na construção do perfil do nordestino. È um perfil que foi associado à natureza tendo como
referência a seca, ou seja, tanto o nordestino como a natureza são considerados resistentes e
fortes. Agüentam as faltas e as ausências de ‘peito aberto’.

O perfil, associado ao homem tipo ‘macho’, é aquele que é realçado pela identidade de
viril, valente, forte, típico do masculino que não ‘leva desaforo para casa’ e quando ele
aceita a traição da mulher, ele perde quase todos esses atributos, menos é claro, o de viril. A
perda da virilidade significa afirmar que o homem foi traído porque não correspondeu aos
desejos sexuais da mulher, responsabilizando-o pela traição.

2. Trajetórias do dizer: encontrei o urso dentro de casa [...] mas ele foi quem quase me
matou

A minha intenção
Era acabar de vez com isso
Mas eu não consegui
Devido à intervenção do bispo
Não sei se foi o Voltaire
Ou foi um bodegueiro que disse
Que o mundo não se acaba
Quando se ganha um par de chifre
Porque nos grandes lances
Da história universal
Sempre tem um corno
Com algum problema conjugal

Um homem traído, iludido, enganado


Ou é um homem perigoso, ou então é um abestado

(Só É Corno Quem Quer - Composição: Falcão/Tarcísio Matos)

14
SOUZA Edinilsa Ramos de. Masculinidade e violência no Brasil: contribuições para a reflexão no campo da
saúde - Ciência & Saúde Coletiva, 10(1): 59-70, 2005.
15
Albuquerque JR. Durval Muniz de. Nos destinos das fronteiras – história, espaços e identidade regional.-
Recife, Bagaço, 2008.
10

O Sr. M. C dos Santos16 começou levar chifre em São Paulo onde viveu parte de sua
trajetória. “A minha história foi um das mais trágicas da Associação, pois quando descobri a
‘cangaía’ em 1988, encontrei o urso dentro de casa, tentei acabar com a vida dele, mas ele
foi quem quase me matou” 17. A valentia, como característica do masculino ‘viril’ e macho,
é escorraçada nessa fala de Sr. M. C. dos Santos. Ele constrói uma identidade de si em que a
valentia, a coragem e a vingança não são atributos indispensáveis para o masculino, como
ele. È uma relação de estranhamento em que ele burla as subjetividades que confirmam a
valentia e a coragem como atributos do masculino.

Uma das práticas culturais mais polêmicas nas relações conjugais é a prova da
‘infidelidade’ feminina. Em geral, quando ocorre a infidelidade, tanto homens como
mulheres negam. A mulher nega ‘para não cair na boca do povo’ e de alguma forma, ser
punida por ter manchado a honra masculina, a dela e da família, valores que circulam
socialmente e que tem como fonte de verdade, o discurso jurídico. O homem, quando traído,
camuflava ou escandaliza a traição. Em geral, no primeiro caso, ou separava-se da mulher ou
a perdoava; no segundo, agia com violência e muitas vezes, ‘lavava a mancha da honra’ com
sangue.

Para o Sr. M. C. dos Santos, a comprovação da cangaia é importante para o


reconhecimento social: “Quando eu cheguei aqui, foi logo [...] primeiro quando o meu amigo
começou a me botar cangaia [...] então eu disse: eu vou botar uma associação [...] assim
também tava demais né? Muita Cangaia em cima de mim e eu sem nada pra comprovar
[...]”.

Provar que foi corneado, para ele, traduz a situação em que o masculino parece
encontrar-se livre da pressão das subjetividades de seus pares, ou seja, são micros espaços de
liberdade burlados para poder dizer que levou chifre, sem perder o seu espaço no universo

16
Para abreviar o nome de Sr. Mariano usaremos daqui para a frente a sigla M.C dos Santos.
17
Depoimento de Sr Mariano no Jornal da Paraíba, domingo 30 de Março de 2008.
11

masculino. [...] “naquele intervalo de 92 pra cá foi que montei a associação [...] aí agora eu
18
fui fazendo o cadastro de um e de outro e botando o nome [...]” .

O Sr Mariano desapropria com a arte de dizer o lugar ‘cristalizado’ do masculino.


Rompe com este lugar na medida em que escancara que foi corneado e ainda promove a
organização do espaço de sociabilidade para comprovar a vitimização do ‘masculino’ pelo
masculino. È o outro, o masculino - o amigo - que lhe bota ‘cangaia’.

Esta quebra dos laços identitários do que é ‘ser masculino’, mas particularmente, ser
‘macho’, forte, duro, para Sr. Mariano, contribuiu para que ele pudesse transitar por outros
processos identitários, entre eles, está a identidade de estar ‘corno’ e amolecer. Sobre este
19
estudo, comenta Araújo (2008, p. 2) ao se referir as projeções, que socialmente, adquiriu-
se sobre a cangalha:

A forma de inscrever o ‘ato’ da ‘infidelidade’ [...] está associada à


‘cangalha’ termo construído para nomear a armação de ferro ou de
madeira em que se sustenta a carga das bestas, dando equilíbrio ao
peso, ou seja, metade do peso para cada lado. A ‘cangaía’, expressão
popular transferida para ‘traição’, representa segurar a pesada carga
que colocaram sobre seu dorso. O ‘urso’ é a representação do
traiçoeiro, aquele que de forma ‘mansa’ ou ‘oculta’ lhe colocou a
cangaia, violou o espaço de controle e governabilidade, e ainda, o
transformou em uma besta (p.2).

Esta construção identitária por muito tempo indicou a ridicularização da cultura


masculina. Sr. Mariano não utiliza de táticas de ridicularização do masculino, mas de
suavização do homem que leva chifre. Suas narrativas contando suas trajetórias ‘como

18
Fragmento da entrevista do Sr Mariano (55 anos) gravada em 07/07/2008 à pesquisadora.
19
ARAUJO, Eronides Câmara de. Pavor e insegurança no controle da carne: corpo e infidelidade feminina.
Seminário Internacional Fazendo Gênero 8 – Corpo, Violência e Poder- (orgs) Mara Coelho de Sousa Lago -
Tereza Kleba Lisboa-Clair Castilho Coelho-Carmem Susana Tornquist - Universidade Federal de
Florianópolis, Florianópolis 2008- ISBN 978-85-86501-77-7-
12

cornos’ parecem revitalizar suas identidades, o que significa que elas não estão em crise
(SILVA, 2000) 20, mas (re) construindo espaços para (re) significação.

Neste sentido, a brincadeira, além de sociabilidade, serve como teia de construto para
novas formas de masculinidades, novas trajetórias culturais. “Trabalhar com a noção de
trajetórias culturais implica em pensar a cultura não como homogeneidade, mais por fluxos
multidirecionais.” (Albuquerque Jr, 2003, p.26) 21.

O Sr Mariano, não nasceu com o ‘destino’ de ser ‘corno’. Esta identidade foi
construída de forma relacional e em trajetórias ou fluxos culturais. Ele é paraibano e durante
muito tempo morou em São Paulo. Lá teve várias experiências afetivas, e em algumas delas,
foi construída a identidade de ‘corno’: “[...] deixei a vontade (a mulher) e achava que não ia
levar uma nunca e levei [...]”.

A construção de si na narrativa acima supõe a invenção do outro e arrasta consigo


relações de poder entrelaçadas no controle, na regulação, na perversão, na vigilância. A
expressão acima, “Deixei a vontade”, se referindo à mulher, configura-se como uma relação
de poder em que a regulação e a vigilância estão presentes e foram violadas – são elementos
discursivos- de demonstração do poder que circula para o que é ser homem. Aquele que
‘deixa’ a mulher à vontade, mas sob controle.
As suas narrativas sobre sua trajetória em ser corneado, são (re) significações das
experiências da (s) cultura(s) masculina (s), diferente do modelo de masculinidade que tem
força social, em que o homem ignora suas necessidades afetivas, conta vantagens destas
relações e atribui toda responsabilidade de obtenção sexual, à virilidade. Sr. Mariano faz
exatamente o contrário, ele quer comprovar a ‘cangaia’, quer provar que foi corneado e que
pode escandalizar o dizer do outro, como discreto, dissimulado.

20
Silva, Sergio Gomes da. Masculinidade na História. A construção cultural da diferença entre os sexos.
Psicologia, Ciência e Profissão, 2000, 20 (3). 8-15.
21
Albuquerque Jr, Durval Muniz. Nordestino Uma invenção do falo. Uma história do gênero masculino
(Nordeste – 1920- 1940) Maceió: Edições Catavento, 2003.
13

As identidades do ser (ou estar) ‘corno’ e do ser (ou estar) masculino (como qualquer
outra identidade) têm uma história de temporalidade, de rejeição, de controle e de poder. As
identidades nas tramas da cultura têm o poder de definir quem é o outro, a partir da
nomeação do eu, mas também, de regular o que devemos fazer de nossas vidas22.

A maioria dos homens foi, educado culturalmente para negar qualquer possibilidade de
fracasso, de derrota ou fragilidade, ao contrário, o homem deveria ser forte, vitorioso,
conquistador, governante das relações afetivas e acima de tudo, ‘respeitado’ pela parceira
conjugal23.

Além disso, a afirmação da identidade por ser ‘masculino’ se faz por se relacionar
sexualmente e exigir fidelidade do seu ‘Outro’, a mulher. Romper com tudo isso, do ponto
de vista da cultura masculina, é ‘ abrir mão’ da identidade construída, do seu lugar de
controle, de vigilante da ordem e da segurança, ou seja, de ser ‘homem de fibra’.

Sr. Mariano acha que a diferença entre os sexos é algo natural. O homem é para ‘pegar
no pesado’ e a mulher é ‘mais agradável’, revelando a ‘naturalização’ do ser homem e do ser
mulher. Por outro lado, no dizer abaixo, trabalhar só com mulher facilita (...) desta vez, ele
está falando da traição masculina.

[...] agora eu trabalhei sempre com mulher, trabalhava mais com mulher e
aí facilitava, a mulher (esposa) achava que eu tava botando ‘cangaia’
nela. Sempre que eu trabalhei com chefe de cozinha, sempre trabalhei com
mulher... a chefe de cozinha sempre era mulher ... não gostei de trabalhar
com homem, homem era só pra pegar nas panelas pesadas e a mulher é
mais agradável[...]

Ao mesmo tempo em que o Sr. Mariano cria a associação de cornos como uma tática
para suavizar a identidade do homem traído, ele utiliza da argumentação masculina que

22
Cf Silva, Tomaz T adeu da . Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Tomaz Tadeu da
Silva (org.), Stuart Hall, Kathryn Woodward.- Petrópolis, RJ: Vozes, 2000
23
Pinto, Andréia Dioxopoulos Carneiro. Stela Nazareth Meneghel / Ana Paula Maraschin Karwowski Marques
- Acorda Raimundo! Homens discutindo violências e masculinidade - PSICO, Porto Alegre, PUCRS, v. 38, n.
3, pp. 238-245, set./dez. 2007 v. Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
14

fortalece a expressão ‘homem é homem’, se for tentado ou sentir-se provocado, trai. È uma
astúcia para dizer, que ele foi corneado, mas continua sendo homem, masculino e gostando
de mulheres, ou seja, ser corno, não deixa de viril, nem deixa de ser homem.

Na narrativa abaixo, ele tanto quebra com a ‘qualificação identitária’ de que o homem
não conta suas intimidades e ‘que isso é coisa de mulher’, pois o ‘homem é mais discreto’,
como justifica a traição masculina como sendo resultante da provocação feminina.

[...] aí a mulher (esposa) ficava com ciúmes de mim..uma vez, minha


mulher soube que tinha uma dessas mulher que era apaixonada por mim, aí
a mulher (esposa) ligou pra lá...eu disse: quem ta falando? É a namorada de
Mariano?...era ela, fingindo... ela mudou a voz, ela era...e assim ela cada
vez mais provocava.. aí terminava Mariano caindo na cangaía também...
ia pra cangaia, ai quando terminava uma cangaia eu caia fora, arruma
outra.. caía fora e nessa brincadeirinha já foi 13 mulher que eu
convivi...com a mãe dela (apontando pra filha dentro do balcão) treze..24

È narrando sobre aquele que difere do ‘eu’ que as identidades do ‘outro’ são
elaboradas. Sr Mariano narra suas experiências como corno, mas também como um
‘excelente traidor’. Suas trajetórias indicam que suas identidades foram construídas por
existir a outra que lhe pôs uma cangalha. A outra foi colonizada e massacrada como a
‘domestica’, a ciumenta, a ‘rainha do lar’, a traída, a submissa, mas também a traidora.
Quando ocorre a traição feminina parece que os ‘papeis’ invertem-se e a ‘Outra’ deixa em
colapso a colonização masculina.
As identidades (também) são construídas no processo de alteridade, de diferenciação
e de forma provisória HALL (2001),25 e não como ‘elementos’ da natureza. Se a identidade e
a diferença não são ‘elementos’ da natureza ou criaturas transcendentais, elas são criaturas
da linguagem, sendo assim, o estudo sobre os sujeitos não garantem a revelação da sua
identidade, mas sugere que elas são produzidas. È o caso da construção identitária do corno.

24
Fragmento da entrevista concedida por Sr Mariano em 07/07/2008.
25
Cf. Hall, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade; tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes
Louro- 5 ed.- Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 12.
15

Ser/estar ‘corno’ na cultura masculina é uma das atribuições para o homem que, em
tese, não teria cumprido com sua virilidade. Muitos deles são insinuados a honrar a ‘calça
que veste’, como uma simbologia da masculinidade. Chamá-lo de dominados/frouxo/fraco é
compará-los ao ‘outro’ que foi construído na relação de alteridade com ele – o feminino. E
associá-los ao feminino é pôr no palco das ‘desonras’ o seu lugar de masculino. São perfis
elaborados, ordenados a partir da diferenciação do sexo, subjetividades (re) elaboradas em
muitas das artes de fazer e de dizer na Cornolandia.

3. Batendo foto com ele na cama: o estranho no espaço do mesmo

Teve ‘uma’ que eu peguei um cara batendo foto


com ela na cama [...] só sentado [...] ela disse era
primo [...] e naquele dia (incompreensível) [...] fui
embora, quase doido, correndo [...] com vontade de
morrer [...] ai passei numa avenida na carreira
quase que o carro me pega, aí peguei [...] expulsei
ela de casa[....] mulher, ela ia fazer 15 anos, bem
novinha, 14, anos...bem novinha... e eu tava com
28, ...28 anos, tava começando na cangaia ....

Para o modelo de masculinidade, baseado no perfil de homem como macho, forte e


viril, encontrar a sua mulher ‘sentada’ na sua cama ‘batendo foto’ com outro, é considerado
pela acepção da economia masculinista uma afronta à honra. A espacialidade da diferença,
para Skiliar (2003)26 está desordenada. A casa parecia ser o lugar da intimidade, do privado.
A cama, o lugar da sexualidade dos dois, mas também, é em tese, o espaço hierárquico entre o
masculino e o feminino. È o espaço, supostamente construído, como da colonização do
masculino sobre o feminino. Com a presença do estranho, do outro, o espaço desordena-se,

26
Sobre a discussão da (s) espacialidades do outro, Cf. SKILIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença:
e se outro não tivesse aí? [Tradução, Giane Lessa]. Rio de Janeiro: DP&A 2003. O autor não trabalha com a
noção entre o privado e o publico. Sua discussão nos ajuda a compreender a espacialidade do Outro e do
mesmo, ou espacialidades da diferença. Aqui está sendo pensada a espacialidade do masculino e do feminino.
16

fragmenta-se. Não é o ‘espaço físico’ que se fragmenta, mas o espaço da certeza, da


tranqüilidade e da segurança, do pacto e da fidelidade.

È considerado um estranhamento, alguém desconsiderar a experiência de ‘bater foto


na cama com um primo’ não ser uma ‘cangalha’. A casa, e o quarto em particular, é um
espaço colonial27, de dominação do ‘outro’ pelo ‘eu’, e que o estranho quer se hospedar. È um
espaço de acontecimentos, de gestos, de olhares, e que está sendo violentado, desordenado. È
a perda do espaço, da colonização. O espaço colonial vigiado e controlado foi violado pelo o
hospede, um estranho, com o consentimento da colonizada. Funciona como uma tática da
colonizada, (o feminino) para quebrar relações hierárquicas e de poder. Para SKILIAR
(2003):

O espaço colonial supõe também a idéia de que, efetivamente, alguns


territórios e alguns povos querem ou precisam ser colonizados. E é por
essa razão que o espaço colonial, suas práticas e seus discursos
desenvolvem formas de conhecimento, modalidades de representação e
dispositivos de poder que são, em seguida, vinculados ao ditado de leis e à
criação de instituições novas (p.111).

È na relação com sua mulher e com a presença do estranho que a identidade de


‘corno’ é realçada. O estranho, para o Sr. Mariano violou o espaço dele. O fazer do estranho,
do diferente, (o ‘urso’) é tudo aquilo que Sr Mariano, supostamente, também faz no espaço do
outro, mas não quer que viole o seu. È nesta relação de presença e ausência que se inaugura
uma experiência de alteridade, de amor, desespero e ódio, mas também de conformação.

Ver sua mulher na cama ‘batendo foto’ com outro com a alegação de que era primo,
não o acalmou que em tom de desespero quase foi atropelado. È a demonização do espaço e
do corpo de sua mulher que quase o deixou assumir o personagem de louco e o desejo da
morte. É a desnaturalização do poder e o fim da ilusão da casa e do corpo como ‘espaços
eternos’ de dominação do masculino.

27
Concepção construída pela separação entre o publico e o privado.
17

Traços e fios da cultura masculina ‘hegemônica’ ainda costuram a linguagem do Sr.


Mariano. Ele ao tomar conhecimento de que ela o traia, expulsou-a de casa, mostrando-a sua
independência e seu lugar de provedor, e em tom de realce de uma masculinidade machista,
afirmou: ela era bem novinha, tinha 14, 15 anos.

4. A cangaia com outro primo: castigo?

[...] ai vim do lado da Teodoro Sampaio (uma rua de São Paulo) uma
vontade de morrer...eu gostava dela, o coração todo cheio de amor...mas
num deu outra não...fui embora pra casa ...naquele dia eu chorei viu?....por
causa da ‘cangaia’ que eu levei ....passou, passou, arrumei outra de
novo...uma menina da Bahia, quando cheguei em casa ela tava abraçada
com outro primo dela, que não era ..... mas que castigo é esse? aí arrumei
essa outra e casei...essa menina do Paraná, dentre de 6 meses, namorei
noivei, casei...28

A modernidade construiu a disciplinarização dos impulsos, através dos sentimentos de


culpa e do ideal de ordem. A ordem da dominação masculina foi violentada pelo poder do
outro. ‘Mas que castigo é esse’? Ao que tudo indica, o Sr. Mariano sentiu o mal – estar da
modernidade que não pára de atormentá-lo. È a mesmidade29 que o persegue. Sr. Mariano
tornou-se refém da sua própria dominação. Ela o educou para dominar o outro, a mulher, e
através do arquétipo de uma razão perfeita, associou os desejos e os instintos humanos ao
seu controle. Para ARAÚJO (2008):

Os sentimentos, quando narrados, em geral, são associados à emoção30 e os


ressentimentos, como o ódio, o rancor e a vergonha ao conhecimento
animalesco31 do ser humano. Durante muito tempo as emoções foram
consideradas fragilidades do nosso interior e os ressentimentos como
representação maléfica, instintiva do conhecimento humano. Essas
concepções contribuíram para camuflar a diferenciação histórica entre o

28
Fragmento da entrevista concedida por Sr Mariano em 07/07/2008 à pesquisadora
29
Permanência da identidade de traído.
30
Emoção concebida como separada da razão ou como a parte frágil da “natureza humana”
31
Comportamento associado à não razão, instintivo, atitude animal presente na ‘natureza’ humana
18

bom e o ruim; o bem e o mal; o racional e o irracional, o normal e o


anormal, entre tantos outros binarismos (p.8).32

Na dominação masculina o mais forte não pode chorar, não pode publicizar a sua parte
‘mais fraca’, ‘não racional’ que durante muito tempo foi associada ao feminino. As emoções,
de acordo com o modelo de racionalidade ocidental, precisavam ser interiorizadas e
deveriam ser colocadas em lugar de segurança sob a vigília da ‘consciência’.

È a consciência quem deveria vigiar e cuidar para que o homem não chorasse, não
fragilizasse diante da ameaça do outro. Portanto, para Araújo (2008), os sintomas de
sentimentos, de ressentimentos, de dor, de angústia eram para a modernidade, atitudes
vergonhosas. Segundo ainda ARAÚJO (2008):

Associar os ressentimentos às atitudes vergonhosas do ser/estar humano é


na moral ocidental rejeitar que a razão é imperfeita; é compreender a
racionalidade como o progresso inevitável do homem - meta narrativa
iluminista - que foi bastante criticada e pulverizada pelo debate
acadêmico33; foi desmoralizada pelas experiências desastrosas das guerras
ocorridas na modernidade e pelas violências cotidianas, enfim, qual a razão
que pode assegurar a perfeição humana? Ou melhor, o que é a perfeição,
senão a ilusão de ser/estar em um lugar que não existe? A razão ocidental
foi construída, e instrumentalizada para inventar valores para dar sentido à
existência humana (p.10).

Quando não podemos conter esta desordem, a saída criada pela própria modernidade é
procurar os especialistas em estudos sobre a ‘interioridade’, aqueles que se
profissionalizaram para resolver o mal-estar causado, por ela, à nós.

32
Araújo, Eronides Câmara. Os ressentimentos identitários: a dor do ser/estar na fala do outro. Texto ainda não
publicado./2008.
33
Veja a discussão sobre o descentramento do sujeito em Hall 2001.
19

4. O masculino no confessionário da psicóloga: a terapia da dor da traição

[...] me escolheram como psicóloga porque eu


tinha paciência de ouvir as histórias, enquanto eu
fazia a tapioca, aí o pessoal chegava, contava
histórias e no final, dava minha opinião,
conselhos, e ai, pronto (...) fui ficando como
psicóloga até hoje..34

A Modernidade criou os saberes da ‘psi’ para através de seus especialistas escutar


aqueles que estão em crise com o seu ‘eu’, com o objetivo de tranqüilizar suas consciências.
O homem racional era aquele que tinha ‘controle’ dos seus impulsos e de seus desejos. A
criação da função da psicóloga na Cornolândia ‘é para ouvir as histórias dos homens
traídos’. Enquanto Livramento faz tapioca, os homens confessam suas histórias. Ela escuta e
dá conselhos com uma paciência peculiar de uma psicóloga.

A modernidade, com o conjunto de aparato discursivo, simbólico e prático fabrica o


discurso de sujeito ideal. Quando as subjetividades sobre nós entram em crise, ela cria a
cura, o ‘confessionário dos psicólogos’. O ‘outro’, (a mulher), que no discurso masculino,
provocou a dor e a crise do masculino é considerada a ‘fonte de todo mal’. Segundo
DUSCHATZKY E SLIAR (2001)35 o outro funciona como:

[...] depositário de todos os males, como portador das falhas sociais. Este
tipo de pensamento supõe que a pobreza é do pobre; a violência, do
violento; o problema da aprendizagem, do aluno; a deficiência, do
deficiente, e a exclusão, do excluído (p. 124).

E a infidelidade, como problema, como falsidade, como desonra é da mulher. Como


satisfação, impulso, virilidade e desejo pertencem ao homem. Quando o impulso passa a
ameaçar a racionalidade é a psicóloga que entra em ação, foi o que aconteceu com um
caminhoneiro, segundo Livramento:

Teve uma história de um rapaz que era caminhoneiro e quando ele tava
trabalhando, aí a esposa ligou para conversar com ele...ele tava ocupado e

34
Fragmento da entrevista concedida por livramento em 05/07/2008 à pesquisadora
35
O nome dos outros. Narrando a alteridade na cultura e na educação In Habitantes de Babel - Políticas e
poéticas da diferença- - Jorge Larrosa e Carlos Skiliar (orgs) Tradução de Semíramis Gorini da Veiga. Belo
Horizonte: Autentica, 2001.
20

mandou o amigo atender o celular; o amigo ficou puxando assunto com a


esposa ... nessa história, ele deu uma cantada nela e ela gostou...aí no dia de
folga dele, se encontraram, aí o marido dela ficou sabendo, quase que
matava ela, mas depois ele veio aqui, desistiu, ficaram separados e depois
(eles) voltaram de novo.36

O caminhoneiro com seu mal-estar de ter sido traído pelo amigo, só conseguiu voltar
para a mulher e perdoá-la, quando controlou ‘suas emoções e seus instintos’ na Cornolândia.
È uma forma de teatralizar o cotidiano, de vivenciar sociabilidades e de rir da própria
dominação. Aqui quem é ‘punido’ é subjetividade produzida na economia masculina que
sustenta o perfil do masculino imbatível.

A ordem do presente, do acontecimento não ‘adianta mais, foi vencida’. Os


sentimentos masculinos estão se modificando. Eles publicizam a dor e compreendem que a
prova de continuar sendo machos parece ser o sofrimento. “Eles ficam tristes [...] mas depois
começam a sorrir, faz brincadeiras, esquece o passado e agora é só bola pra frente [...] aí
esquece o passado [...] agora o importante é o presente e o futuro [...] o passado não adianta
mais”37 .

O rapaz tava construindo a fossa, aí chegou o final de semana caiu na farra,


na gandaia; aí a mulher com raiva chamou o vizinho, quando ele chegou da
farra, encontrou a mulher com o vizinho... ele saiu com tanta raiva que
bateu a porta, esqueceu que a fossa tava aberta e caiu dentro da fossa... a
sorte dele é que a fossa tava seca, senão seria um desastre total.38

De acordo com a pesquisa de Goldenberg (2003)39 a mulher trai, em geral, por


vingança [...] “ se ela aprendeu a perdoar, por outro lado, também se mostra capaz de ‘pular
a cerca’ por pura vingança” (p.225). Na nossa pesquisa, particularmente nos questionários
são apresentados uma multiplicidade de motivos, desde a tese da vingança, da covardia, da

36
Fragmento da entrevista concedida por Livramento em 05/07/2008 à pesquisadora.
37
Trecho da entrevista concedida pela ‘psicóloga’ em 05/07/2008
38
Trecho da entrevista concedida por psicóloga em 05/07/2008
39
Goldenberg, Mirian. Infiel- Notas de uma antropóloga. – Rio de Janeiro: Record, 2006; Viveros, Lìlian. O
livro da traição feminina. — São Paulo, Matrix, 2003.
21

imperfeição da mulher, até a falta de conhecimento da palavra de Deus, mas também, há


depoimentos que expressam sentimentos de culpabilidade do masculino, como por exemplo,
[...] quando as mulheres se sentem mal amadas e desprezadas. Outros afirmaram ‘que os
namorados fazem por onde;’ ou ainda, tem aqueles, que afirmam que “elas querem fazer
com seus parceiros o que tem direito, ou então, porque não são correspondidas”.

È o que confirma Livramento, escutando os homens traídos: “Dizem que a maioria


deles gosta muito de farra, são farristas, não dão atenção pra elas [...] não têm carinho, ai elas
ficam aborrecidas, falta de apoio, atenção, aí elas com raiva, arrumam outro [...] por
vingança.” 40

Alguns homens afirmam que as mulheres traem [...] “ porque o que elas não acham em
casa vão procurar fora”, se referindo às mulheres que traem porque os maridos não foram
viris. Entretanto é inútil procurar causas. As causalidades são traços de uma história
evolutiva e nós estamos tentando encontrar as descontinuidades, é o caso do ‘urso’ que com
o sentimento de culpa vai ao confessionário.

Na Cornolândia, até o urso vai ao confessionário como uma forma de se libertar da


culpa e de explicar a situação culpabilizando o masculino que não dá carinho à mulher e ele
faz a função de cumprir essa necessidade: “Porque as vezes ele (o esposo) sai, não dá atenção a
mulher, nem carinho [...] aí [...] eu chego como amigo vou lá e pronto[...] era o que ela tava
precisando, de um apoio (...) um ombro amigo (risos).

Ainda no confessionário da psicóloga os homens ainda estão sob o efeito da


construção identitária masculinista, arrogante. O mal-estar da modernidade contribui para
que eles contem suas histórias como se fossem de outros homens. São os ‘Cornudos’ nos
confessionários com as identidades forjadas. Eles contam [...] sempre, falam que aconteceu com
amigos, mas nunca com eles, mas no finalzinho acabam confessando: essa história aconteceu

40
Trechos da entrevista concedida pela’ psicóloga’ em 05/07/2008.
22

comigo, mas não conte a ninguém não. Eles têm vergonha, sempre é um vizinho, um colega, um
amigo41.

A infidelidade feminina, muitas vezes, funciona para o masculino como os lugares de


‘vencidos e vencedores’ em que o animal de maior força e maior poder econômico pode
garantir a ‘presa’. Essa disputa funciona em uma relação de força em que a vaidade
masculina não mede as conseqüências de atitudes competitivas:

[...] Mariano arrumou uma menina novinha né ? aí ele (o dono da barraca


vizinha) ficou cantando a menina e contando vantagem: Mariano, vou
tomar essa menina de vc! Aí, como ele tinha dinheiro, ofereceu dinheiro
pra ela sair com ele, ai ela saiu...com tempo ela apareceu que tava grávida e
até hoje ele paga pensão... a menina, a filha tá com 12 anos e ele é casado.
Ele diz hoje que até não quer saber de arrumar menina nova não (risos)...
na época ela tinha 18 anos ai vivia aqui acerando Sr Mariano...

Mas também há situações em que a mulher não trai com o urso, mas com aquele da
mesmidade, ou seja, com outra mulher. È uma situação em que o jogo partilhado entre
homens é desviado para outro lugar, é um duplo desvio. È o desvio da traição e com o
mesmo gênero. Vejamos a fala da psicóloga: “Tinha outro rapaz que pegou a noiva com uma
amiga, e quando ele viu não acreditou e desmaiou... só acordou 12 horas depois do fato acontecido
no hospital[...] gostou tanto que casou com ela, faz 10 anos que estão casados... é a perdição dele,
que ele fala né?. No próximo item farei uma análise de um discurso de outro perfil masculino,
como o do presidente da ACP- Associação dos Cornos Potiguar.

41
Trecho da fala da “psicóloga”.
23

5. Mulher bonita é que nem melancia, ninguém come sozinho, mas fica com um ‘nó na
goela’

Neste fragmento acima extraído da fala em um jornal eletrônico o Mossoroense42, o


presidente da Associação de Cornos Potiguar, - ACP - no Rio Grande do Norte, Fábio
Ferreira da Silva, conhecido por Fábio di Ojuara43, associa a infidelidade ao fato da traição
ocorrer quando a mulher é bonita. Por outro lado, ele utiliza de uma metáfora para associar a
sexualidade ao prazer de comer e a mulher é considerada, o alimento. Suas experiências,
levando por oito anos consecutivos chifre da mulher, ele usa a tática do dizer masculino
baseada em leitura fálica do mundo.

Agüentei porque era uma mulher linda e gostosa. Descobri que ninguém
consegue comer sozinho uma “melancia grande e uma mulher bonita”,
frisou [...] que passou um tempo sofrendo, sem acreditar no que acontecia -
característica de um corno ateu. Passei mais de um ano aperreado,
querendo que ela voltasse e sentindo uma dor de corno danada.

“Ninguém consegue comer sozinho, uma melancia grande e bonita.” Esta frase está
associada à idéia de que na prática heterossexual quem ‘come é o homem e a mulher é a
comida’. È a divisão, a mecanização e a banalização da sexualidade. A mulher é comparada
como sendo portadora de uma sexualidade inferior ao homem. È uma leitura freudiana da
ausência, da leitura inconsciente da perda do pênis.44
Não é de estranhar que a posição considerada tradicional, na prática sexual, é o
‘homem por cima’, como ‘bombeiro, apagando o fogo’, e a que é o que homem que come,
42
Cf http://www2.uol.com.br/omossoroense/130806/conteudo/entrevista.htm visitado em dezembro de
2008.
43
Sobrenome do Personagem do filme “O homem que desafiou o diabo”, baseado na obra As pelejas de Ojuara
de Nei Leandro de Castro. Na entrevista ao jornal “Ojuara brinca com o leitor: “O ministério dos Cornos
adverte: ao terminar de ler esta entrevista, se não desaparecer os sintomas do seu chifre, procure imediatamente
um psicanalista. Seu caso é patológico e perigoso”.
44
ROCHA, Zeferino. Feminilidade e castração seus impasses no discurso freudiano sobre a sexualidade
feminina In Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., V, 1, 128-151
24

embora seja a vagina que ‘engole o falo’. Bourdieu (2003),45 discute que um dos princípios
de oposição entre o feminino e o masculino e da dominação masculina são as oposições
binárias:

Resulta daí que a posição considerada normal é aquela que o homem “fica
por cima”. Assim, como a vagina deve, sem dúvida, seu caráter funesto,
maléfico, ao fato de que não é só vista como vazia, mas também como o
inverso, o negativo do falo, a posição amorosa na qual a mulher se põe por
sobre o homem é também explicitamente condenada em inúmeras
civilizações (p. 27).

O rompimento das fronteiras construídas para a sexualidade envolve a


desnaturalização dos saberes que envolvem a diferença sexual a partir do sistema binário,
como frio-quente, em cima - em baixo, dentro-fora, frente - trás, e tantos outros binarismos.

A questão principal no dizer de Ojuara é assumir a condição de ‘corno’. “Fábio foi


pesquisar o assunto e descobriu que chifre nunca foi um problema: ele chegou à conclusão
que tudo não passava de uma simples terminologia do universo da traição conjugal” 46.

Chifres foi (sic) feito para homem, o boi usa de atrevido, rebate Ojuara,
justificando que a fidelidade no casamento tem que ser facultativa. [...] A
mulher moderna, desse novo milênio, tem um lema em relação a chifre:
botou, levou, disse.

Em tom de brincadeira, Ojuara, afirma que o chifre foi feito para homem,
compreendendo a fidelidade como facultativa. Se ‘botar, leva’, parece ser o lema da mulher
moderna, segundo Ojuara. Na produção de outras subjetividades, a dor da infidelidade foi
trocada pela alegria de formar uma associação de ‘corno’ e brincar:

[...] se todos os cornos resolvessem aderir à associação, poderia se


configurar a maior categoria organizada em funcionamento. Como
presidente, OJUARA disse que perdeu as contas do número de associados,
mas promete atualizar o cadastro.”Vi que o número de cornos era grande
no Estado e além do mais, há associações de prostitutas, de empregadas

45
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina/Pierre Bourdieu; tradução Maria Helena Kühner.- 3 ed. – Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
46
Cf. O MOSSOROENSE http://www2.uol.com.br/omossoroense/130806/conteudo/entrevista.htm visitado em
Dezembro de 2008.
25

domésticas, de gays, enfim, de tudo no mundo há alguma associação”.


Então, pensei: “corno também é gente” e resolvi criar a nossa associação
47
que vem aumentando o número de filiados a cada dia.

O corno já virou categoria na fala de Ojuara. Para ele, o corno é discriminado, mas ‘o
corno também é gente’. Esta expressão indica que criada a associação, o corno passa a ser
respeitado. E parece segundo, seu presidente, adeptos é que não faltam:

Eu já perdi as contas. No início, eu ainda controlei o cadastro, mas agora


perdi as contas. Todo mundo quando me encontra na rua diz que quer
entrar na Associação dos Cornos Potiguar e possuir uma carteirinha de
corno oficial. Contei até 350 associados, depois, perdi a conta. Agora, estou
empenhado para organizar toda a papelada, transformando a Associação
dos Cornos Potiguar em uma associação de utilidade pública com sede,
estatuto e tudo mais. É necessário que o corno colabore também com uma
entidade que pertence a ele mesmo.

Além disso, a associação funciona como espaço de sociabilidade de ‘categoria’ ou


mesmo de ‘classe’. O “corno’ associado tem direito à advogado, ao trabalho psicológico e à
creche. Essa é uma associação que cuida para que o corno mantenha seu patrimônio, cuide
de seu mal - estar identitário e ainda tenha espaço para abrigar as crianças deixadas pela
mulher quando foge com o ‘urso’.

Na formação da Associação dos Cornos Potiguar indica haver a preocupação com a


racionalização dos bens materiais, do ‘bem-estar’ mental do masculino e com a própria
manutenção da paternidade, ao criar espaços simbólicos jurídicos, atendimento psicológico e
espaços para cuidar das crianças, diferente da Cornolândia, em que a principal preocupação
parece ser com a produção das subjetividades.

47
Ver entrevista de Ojuara disponível no site
http://www2.uol.com.br/omossoroense/130806/conteudo/entrevista.htm visitado em 12 de agosto de 2009.
26

Os cornos, em associação, têm direito a um advogado para que a ‘mulher não tome
tudo dele’. Levar chifre não significa perder patrimônio, defende Ojuara:

O Ministério Público oferece um advogado ao corno, mas tudo fica mais


lento. Agora, eu mesmo dou conselhos aos cornos, fazendo um trabalho
psicológico, falando sobre minha experiência e mostrando que chifre não é
nada de mais. Nossa associação também quer criar uma creche para aqueles
cornos que são deixados com uma ruma de crianças, enquanto a mulher
48
foge com o pé de lã ” .

Para OJUARA o ‘corno’ Potiguar tem o melhor perfil de ‘corno’ do Brasil. Os estudos
realizados por ela indicam que o ‘corno’ Potiguar não é violento, e nem vive em crise
psicológica, diferente dos ‘cornos’ de São Paulo, Rio Grande Sul e Paraná. Isso significa
que a associação faz bem aos homens traídos, conforta-os e amansa-os. È um ‘corno light’
que conversa abertamente sobre o seu problema, convive com a mulher mesmo sabendo que
está levando chifre’.

É o melhor corno do Brasil, o mais consciente. Em todo lugar do mundo


há cornos de todos os tipos. Vejo relatos que chegam em nossa associação
de muitos casos de homicídios em São Paulo, onde o corno mata a mulher
no meio do desespero. No Rio Grande do Sul e Paraná já houve casos de
suicídio porque o coitado do corno não agüentou a pressão na cabeça. Hoje,
o corno potiguar é um “corno light”, que conversa abertamente sobre seu
problema, convive com a mulher, mesmo sabendo que está levando chifres.
Em andei pesquisando em delegacias da cidade e o índice de crimes
passionais é quase zero por cento.49

Os homens interessados em participar não precisam acreditar que são cornos, podem,
segundo Ojuara, continuar sendo ‘corno ateu’. Por outro lado, chifre desperta curiosidade,
qualquer um pode participar. Aquele que gosta do assunto, mesmo sem ser corno (o ateu),
pode ‘participar da nossa confraria’. Alguns têm curiosidade para saber a reação de um
corno quando está levando chifres. Outros preferem ouvir as conversas entre os associados

48
Fala de Ojuara extraída do Jornal já citado.
49
Idem
27

para saber a resenha das últimas novidades na cidade. Afinal, chifre sempre despertou a
curiosidade alheia.

De forma divertida, Ojuara apresenta as várias identidades de cornos e os aforismos


que tornaram populares50. São identidades associadas às profissões (Garçom, Padeiro,
Perito) à coisa (cofre) à religião, etnia (religioso, cigano) à atividade de lazer e de trabalho
(turista, vidente) e outros. Essa é uma particularidade das Associações de Cornos, em que
são apresentados os ‘tipos de cornos’ associados a situações cotidianas. Todos os tipos
construídos sobre o corno brincam com a sexualidade e afirmam a conveniência do homem
com o ‘chifre’.

7. Deu um ‘nó na goela’: As múltiplas dores do masculino quando traídos

Eu passei quase um ano chorando feito um menino novo, com saudades e


uma dor no peito que não se acabava. Quando conto a história, muita gente
não acredita. Um dia, cheguei em casa às nove da noite, cansado do
trabalho, doido prá tomar um banho, dá um cheiro na mulher e dormir.
Mas, logo escutei um barulho e fui olhar devagarzinho. Vi o cabra
fungando em cima da mulher. Na mesma hora, deu um nó na goela, fiquei
sem saber o que fazer, mas não fiz nada. Eles não me viram. Ela nunca
falou em me deixar, mas continuava se encontrando com o vizinho. Nessa
época, eu não estava preparado para ser corno e sofri uma barra pesada
muito grande até me acostumar.

Nas ‘confissões’ de Ojuara sobre o chifre, sua experiência é publicizada, sem receios.
Mas o ‘chifre’, como aberração no discurso da dominação masculina, foi construído para se

50
Corno Vidente: tem pressentimento toda vez que leva chifre; Corno Perito: examina a mulher quando ela
chega em casa; Corno Cofre; cheio de segredos; Corno Garçom: vive entregando a mulher de bandeja; Corno
Turista: a mulher fica planejando viagens pra ele; Corno Camaleão: quando vê a mulher, muda de cor; Corno
Religioso: no dia que leva chifre, entrega a Deus; Corno Cigano: muda de lugar a cada chifre que leva; Corno
Padeiro: além de corno, queima a rosca; Corno Consórcio: vive ansioso, esperando ser contemplado com um
par de chifres. Provérbios para cornos: Um chifre só se cura com outro chifre; Cada um tem o chifre que
merece; Corno só é solidário no chifre; Chifre é como ferida, se não tratar demora a curar; Corno que ama não
mata; Chifre não é para todo mundo, mas está ficando cada vez mais popular.
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esconder no próprio sujeito e não ser publicizado, pois é considerado como uma forma de
desonra e difamação, enquanto mais escondido e discreto, melhor para a moral burguesa.
Ojuara ‘escandaliza’ sua experiência: Na mesma hora ‘deu um nó na goela’[...] não fiz nada
[...] ela nunca falou em me deixar, mas continuava se encontrando com o vizinho’. O lema
‘mulher bonita é como melancia’ parece ter sido confortável para Ojuara. O ‘nó na goela’,
ele sentiu, mas não fez nada, diz ele. A primeira vez parece ser muito difícil, mas depois se
acostuma e vive feliz com a mulher, tudo é uma questão de saber experimentar:

Depois que o corno alcança certa experiência no assunto e descobre que


chifre não é nada demais, ele vive feliz com qualquer mulher. Atualmente,
vivo com uma mulher que não quer botar chifres em mim. Ela diz que quer
ser diferente das outras mulheres.

Por que para Ojuara [...] ser ‘corno‘é um sentimento que fica enraizado feito cicatriz
na memória’. Seria uma analogia à idéia de que chifre sai na cabeça? Pode ser também algo
que não se esquece, que virou um sentimento ou um ressentimento. Ao que tudo indica, para
ele, é um ressentimento. “O cabra quando é corno vai ser corno pelo resto da vida. É um
sentimento que fica enraizado feito uma cicatriz na memória”.

Para Ojuara, ser ‘corno’ é uma identidade que se carrega para o resto da vida. E que de
acordo com as subjetividades que justificam a dominação masculina, a visibilidade e a
dizibilidade deveriam ser censurada, escondida, ao contrário, deu um ‘nó na goela’ e foi
publicizada, escacarada, afrouxada.

São experiências distintas (Cornolandia e ACP) do masculino. Ambas são invenções


para exorcizar a infidelidade como trágico e prenuncio da violência. São artes de fazer e
dizer do cotidiano que muitos ‘machos’ envergonhariam se fizessem. Estas artes cotidianas
são astúcias masculinas para quebrar a universabilidade, a fortaleza e a ‘imbatível honra’
masculina. São formas plurais de dizerem-se homens, masculinos. São formas sutis de
fragmentar e desapropriar cotidianamente as subjetividades que ainda têm sustentabilidade
na produção do sujeito homens.
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