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Eronidas Riso PDF
Eronidas Riso PDF
Introdução
Este texto trata de uma pesquisa sobre masculinidade e a traição feminina. Estou
problematizando o estar masculino na contemporaneidade ao lidar com a traição feminina,
interrogando como os homens (re) elaboram estratégias para viver às exigências das
mudanças sociais, como por exemplo, os efeitos das conquistas das mulheres, as mudanças
dos dispositivos jurídicos, e como estão produzindo um perfil masculino para
operacionalizar a dor da traição.
A pesquisa para a tese1 foi realizada em João Pessoa e Campina Grande no Estado da
Paraíba. Foram aplicados quatrocentos questionários a homens com perfil de camada social
popular em Campina Grande e entrevistas a homens e mulheres nas duas cidades2, além de
entrevistas ao presidente e a ‘psicóloga’ da Associação de Cornos do bairro da Torre em
João Pessoa. Também analisei as entrevistas do Presidente da Associação Potiguar de Natal
disponível na internet. Além disso, trabalhei o meu processo judicial de separação conjugal
datado de 1990, em que fui julgada como adúltera para análise dos discursos masculinos e
femininos. Neste texto, em particular, estou analisando as entrevistas dos membros das
1
A pesquisa foi desenvolvida para a minha tese de doutorado vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande e que está em fase de elaboração da escrita.
2
Os questionários e as entrevistas estão sendo analisados para os dois últimos capítulos da tese.
2
Associações de cornos. A análise dos dados, dos questionários e das entrevistas realizadas
com os homens e mulheres, serão aprofundadas no texto da tese.
coletiva para amenizar a dor da traição. È uma arte de fazer3 no cotidiano para manipular
astutamente as representações que circulam socialmente sobre o homem cornudo. Esta arte
ao que tudo indica suaviza a identidade masculina na medida em que o modelo de homem
forte e macho é pulverizado pelas artes de fazer.
3
Sobre a arte de fazer veja a obra de Certeau. Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução de
Ephraim Ferreira Alves.- Petrópolis, RJ : Vozes, 1994.
4
Cf. por exemplo, a dissertação de mestrado de Cipriano, Maria do Socorro. A adúltera no Território da
infidelidade: Paraíba nas décadas de 20 e 30 do século XX/ Maria do Socorro Cipriano .--- Campinas, SP:
[s.n], 2001.
4
NOLASCO (1993)5 se referindo a inserção dos homens em atividades que eram tidas como
naturalmente das mulheres, afirma: “[...] mediante uma autorização social que gera
reconhecimento e valorização, os homens podem entrar em contato com situações cotidianas
e sensações que até então lhes eram interditadas (p.17).
1°.Chifre é como caixão, um dia você vai ter o seu. 2°. Corno abelha é aquele
vai fazer cera e ‘volta cheio’ de mé. 3°.Um chifre só se cura com outro
chifre.4° Cada um tem o chifre que merece.5°. Corno só é solidário no
chifre.6° .Chifre é como ferida, se não tratar demora a curar.7°. Corno que
ama, não mata.8°.Chifre não é para todo mundo, mas está ficando cada vez
mais popular.7
5
Nolasco, Sócrates Álvares. O mito da masculinidade/ Sócrates Nolasco .- Rio de Janeiro : Rocco, 1993.
6
Associação de Cornos – CORNOLÂNDIA – está situada no mercado do bairro da torre em João Pessoa – Pb
e funciona em uma barraca que serve lanches que tem o nome de ‘Encontro dos Cornos’- Seu presidente é o
Sr. Mariano Corno da Silva.
7
Estes aforismos ficam expostos na Cornolândia.
5
zombaria sobre a corneação. È a arte de burlar o cotidiano e de ser aceitos como tal sem ser
desmoralizados. As tipologias do Corno, como o “Corno cebola: quando vê a mulher com
outro, chora”, “O corno banana: a mulher vai embora e deixa o homem com uma penca de
filhos”; “O corno prevenido: o que liga pra esposa antes de ir para casa”; “O corno cético:
quando vê a mulher com outro não acredita” e o “O corno justiceiro: aquele que se vinga,
dando”, constituem aforismos que têm múltiplos significados e representam o masculino
exercendo múltiplas formas de ser homem e que quer perder os atributos de macho.
Afirmar que o homem pode chorar e que é frágil (corno cebola) que também pode
cuidar das crianças, (corno banana) que quando necessário pode ter cautela, (corno
prevenido) que pode ceder ao coração e muitas prefere ignorar o que os olhos vêem, (corno
prevenido) são historicamente atributos dado ao feminino. Nesse jogo estratégico discursivo
estar a arte de dizer. Essas atribuições ao homem corneado não coloca em jogo sua
virilidade. As representações desses aforismos indicam que é melhor ter atributos femininos
do que ser homossexual, como a afirma ser o corno justiceiro, em outras palavras, é melhor
ser corno do que ser ‘bicha’, reforçando estereótipos para outras formas de estar masculino.
Além disso, o ‘corno’ tem outra marca na associação: a identidade comercial. Uma
forma de reconhecimento identitário é na relação comercial10. A publicização comercial do
corno com sua autorização é outra forma identitária desse masculino que é leve, zombeteiro
das emoções. È aquele que brinca com as vulnerabilidades.
8
Os ‘chifres ou cornos’ dos animais são símbolos utilizados pelos homens e que têm uma forte relação com a
masculinidade.
9
Ver. Aquino, Francisca Luciana de. Homens “cornos” e mulheres “Gaieiras” Infidelidade conjugal, honra,
humor e fofoca num bairro popular de Recife –Pe. Francisca Luciana de Aquino. —Recife: O autor, 2008.
10
A associação – Cornolândia - ‘funciona’ na barraca onde Sr. Mariano negocia, fornecendo marmitas,
salgadinhos e lanches.
7
Algumas dessas práticas simbólicas são ações de indisciplina como afirma Certeau
(1994)11. È uma arte do fazer, como a resistência do masculino aos dispositivos jurídicos e
médicos12 que contribuíram para formação masculina, mas é também uma forma de criar um
espaço lúdico em que homens e mulheres possam banalizar a corneação. A masculinidade
constitui uma produtividade no cotidiano. Burlar a produtividade masculina reinventando
outras formas de lidar com a infidelidade feminina contribui para que os homens corneados
11
Este conceito de antidisciplina é para Certeau, as astúcias dos consumidores aos procedimentos ou às
imposições sociais.
12
Ver por exemplo, Costa, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma familiar. –Rio de Janeiro: Edições Graal,
1979. Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil/ Roberto Machado...[ET
al.]. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978. Esteves, Matha Abreu de. Meninas Perdidas – Os populares e o
cotidiano do Amor no Rio de Janeiro da Belle Èpoque .- Rio de janeiro: Paz e Terra, 1989. Caulfield, Sueann.
Em defesa da Honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). – Campinas, SP:
Editora da Unicamp/ Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, entre outros.
8
não só reaprendam a lidar com a dor, mas também pode escancarar as múltiplas formas de
estar masculino.
13
Para Simmel, apud Gastaldo (2005, p 108) [...] “[...] a sociabilidade é uma forma de interação na qual os
participantes se mostram a um só tempo interessados e descomprometidos, autonomizando suas atuações no
sentido de evitar qualquer demonstração de um interesse objetivo nos assuntos tratados – o tipo de conversa
ocorrente em festas seria talvez um bom exemplo”. Édison Gastaldo O complô da torcida: futebol e
performance masculina em bares - Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 24, p. 107-123,
jul./dez. 2005.
9
O perfil, associado ao homem tipo ‘macho’, é aquele que é realçado pela identidade de
viril, valente, forte, típico do masculino que não ‘leva desaforo para casa’ e quando ele
aceita a traição da mulher, ele perde quase todos esses atributos, menos é claro, o de viril. A
perda da virilidade significa afirmar que o homem foi traído porque não correspondeu aos
desejos sexuais da mulher, responsabilizando-o pela traição.
2. Trajetórias do dizer: encontrei o urso dentro de casa [...] mas ele foi quem quase me
matou
A minha intenção
Era acabar de vez com isso
Mas eu não consegui
Devido à intervenção do bispo
Não sei se foi o Voltaire
Ou foi um bodegueiro que disse
Que o mundo não se acaba
Quando se ganha um par de chifre
Porque nos grandes lances
Da história universal
Sempre tem um corno
Com algum problema conjugal
14
SOUZA Edinilsa Ramos de. Masculinidade e violência no Brasil: contribuições para a reflexão no campo da
saúde - Ciência & Saúde Coletiva, 10(1): 59-70, 2005.
15
Albuquerque JR. Durval Muniz de. Nos destinos das fronteiras – história, espaços e identidade regional.-
Recife, Bagaço, 2008.
10
O Sr. M. C dos Santos16 começou levar chifre em São Paulo onde viveu parte de sua
trajetória. “A minha história foi um das mais trágicas da Associação, pois quando descobri a
‘cangaía’ em 1988, encontrei o urso dentro de casa, tentei acabar com a vida dele, mas ele
foi quem quase me matou” 17. A valentia, como característica do masculino ‘viril’ e macho,
é escorraçada nessa fala de Sr. M. C. dos Santos. Ele constrói uma identidade de si em que a
valentia, a coragem e a vingança não são atributos indispensáveis para o masculino, como
ele. È uma relação de estranhamento em que ele burla as subjetividades que confirmam a
valentia e a coragem como atributos do masculino.
Uma das práticas culturais mais polêmicas nas relações conjugais é a prova da
‘infidelidade’ feminina. Em geral, quando ocorre a infidelidade, tanto homens como
mulheres negam. A mulher nega ‘para não cair na boca do povo’ e de alguma forma, ser
punida por ter manchado a honra masculina, a dela e da família, valores que circulam
socialmente e que tem como fonte de verdade, o discurso jurídico. O homem, quando traído,
camuflava ou escandaliza a traição. Em geral, no primeiro caso, ou separava-se da mulher ou
a perdoava; no segundo, agia com violência e muitas vezes, ‘lavava a mancha da honra’ com
sangue.
Provar que foi corneado, para ele, traduz a situação em que o masculino parece
encontrar-se livre da pressão das subjetividades de seus pares, ou seja, são micros espaços de
liberdade burlados para poder dizer que levou chifre, sem perder o seu espaço no universo
16
Para abreviar o nome de Sr. Mariano usaremos daqui para a frente a sigla M.C dos Santos.
17
Depoimento de Sr Mariano no Jornal da Paraíba, domingo 30 de Março de 2008.
11
masculino. [...] “naquele intervalo de 92 pra cá foi que montei a associação [...] aí agora eu
18
fui fazendo o cadastro de um e de outro e botando o nome [...]” .
Esta quebra dos laços identitários do que é ‘ser masculino’, mas particularmente, ser
‘macho’, forte, duro, para Sr. Mariano, contribuiu para que ele pudesse transitar por outros
processos identitários, entre eles, está a identidade de estar ‘corno’ e amolecer. Sobre este
19
estudo, comenta Araújo (2008, p. 2) ao se referir as projeções, que socialmente, adquiriu-
se sobre a cangalha:
18
Fragmento da entrevista do Sr Mariano (55 anos) gravada em 07/07/2008 à pesquisadora.
19
ARAUJO, Eronides Câmara de. Pavor e insegurança no controle da carne: corpo e infidelidade feminina.
Seminário Internacional Fazendo Gênero 8 – Corpo, Violência e Poder- (orgs) Mara Coelho de Sousa Lago -
Tereza Kleba Lisboa-Clair Castilho Coelho-Carmem Susana Tornquist - Universidade Federal de
Florianópolis, Florianópolis 2008- ISBN 978-85-86501-77-7-
12
cornos’ parecem revitalizar suas identidades, o que significa que elas não estão em crise
(SILVA, 2000) 20, mas (re) construindo espaços para (re) significação.
Neste sentido, a brincadeira, além de sociabilidade, serve como teia de construto para
novas formas de masculinidades, novas trajetórias culturais. “Trabalhar com a noção de
trajetórias culturais implica em pensar a cultura não como homogeneidade, mais por fluxos
multidirecionais.” (Albuquerque Jr, 2003, p.26) 21.
O Sr Mariano, não nasceu com o ‘destino’ de ser ‘corno’. Esta identidade foi
construída de forma relacional e em trajetórias ou fluxos culturais. Ele é paraibano e durante
muito tempo morou em São Paulo. Lá teve várias experiências afetivas, e em algumas delas,
foi construída a identidade de ‘corno’: “[...] deixei a vontade (a mulher) e achava que não ia
levar uma nunca e levei [...]”.
20
Silva, Sergio Gomes da. Masculinidade na História. A construção cultural da diferença entre os sexos.
Psicologia, Ciência e Profissão, 2000, 20 (3). 8-15.
21
Albuquerque Jr, Durval Muniz. Nordestino Uma invenção do falo. Uma história do gênero masculino
(Nordeste – 1920- 1940) Maceió: Edições Catavento, 2003.
13
As identidades do ser (ou estar) ‘corno’ e do ser (ou estar) masculino (como qualquer
outra identidade) têm uma história de temporalidade, de rejeição, de controle e de poder. As
identidades nas tramas da cultura têm o poder de definir quem é o outro, a partir da
nomeação do eu, mas também, de regular o que devemos fazer de nossas vidas22.
A maioria dos homens foi, educado culturalmente para negar qualquer possibilidade de
fracasso, de derrota ou fragilidade, ao contrário, o homem deveria ser forte, vitorioso,
conquistador, governante das relações afetivas e acima de tudo, ‘respeitado’ pela parceira
conjugal23.
Além disso, a afirmação da identidade por ser ‘masculino’ se faz por se relacionar
sexualmente e exigir fidelidade do seu ‘Outro’, a mulher. Romper com tudo isso, do ponto
de vista da cultura masculina, é ‘ abrir mão’ da identidade construída, do seu lugar de
controle, de vigilante da ordem e da segurança, ou seja, de ser ‘homem de fibra’.
Sr. Mariano acha que a diferença entre os sexos é algo natural. O homem é para ‘pegar
no pesado’ e a mulher é ‘mais agradável’, revelando a ‘naturalização’ do ser homem e do ser
mulher. Por outro lado, no dizer abaixo, trabalhar só com mulher facilita (...) desta vez, ele
está falando da traição masculina.
[...] agora eu trabalhei sempre com mulher, trabalhava mais com mulher e
aí facilitava, a mulher (esposa) achava que eu tava botando ‘cangaia’
nela. Sempre que eu trabalhei com chefe de cozinha, sempre trabalhei com
mulher... a chefe de cozinha sempre era mulher ... não gostei de trabalhar
com homem, homem era só pra pegar nas panelas pesadas e a mulher é
mais agradável[...]
Ao mesmo tempo em que o Sr. Mariano cria a associação de cornos como uma tática
para suavizar a identidade do homem traído, ele utiliza da argumentação masculina que
22
Cf Silva, Tomaz T adeu da . Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Tomaz Tadeu da
Silva (org.), Stuart Hall, Kathryn Woodward.- Petrópolis, RJ: Vozes, 2000
23
Pinto, Andréia Dioxopoulos Carneiro. Stela Nazareth Meneghel / Ana Paula Maraschin Karwowski Marques
- Acorda Raimundo! Homens discutindo violências e masculinidade - PSICO, Porto Alegre, PUCRS, v. 38, n.
3, pp. 238-245, set./dez. 2007 v. Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
14
fortalece a expressão ‘homem é homem’, se for tentado ou sentir-se provocado, trai. È uma
astúcia para dizer, que ele foi corneado, mas continua sendo homem, masculino e gostando
de mulheres, ou seja, ser corno, não deixa de viril, nem deixa de ser homem.
Na narrativa abaixo, ele tanto quebra com a ‘qualificação identitária’ de que o homem
não conta suas intimidades e ‘que isso é coisa de mulher’, pois o ‘homem é mais discreto’,
como justifica a traição masculina como sendo resultante da provocação feminina.
È narrando sobre aquele que difere do ‘eu’ que as identidades do ‘outro’ são
elaboradas. Sr Mariano narra suas experiências como corno, mas também como um
‘excelente traidor’. Suas trajetórias indicam que suas identidades foram construídas por
existir a outra que lhe pôs uma cangalha. A outra foi colonizada e massacrada como a
‘domestica’, a ciumenta, a ‘rainha do lar’, a traída, a submissa, mas também a traidora.
Quando ocorre a traição feminina parece que os ‘papeis’ invertem-se e a ‘Outra’ deixa em
colapso a colonização masculina.
As identidades (também) são construídas no processo de alteridade, de diferenciação
e de forma provisória HALL (2001),25 e não como ‘elementos’ da natureza. Se a identidade e
a diferença não são ‘elementos’ da natureza ou criaturas transcendentais, elas são criaturas
da linguagem, sendo assim, o estudo sobre os sujeitos não garantem a revelação da sua
identidade, mas sugere que elas são produzidas. È o caso da construção identitária do corno.
24
Fragmento da entrevista concedida por Sr Mariano em 07/07/2008.
25
Cf. Hall, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade; tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes
Louro- 5 ed.- Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 12.
15
Ser/estar ‘corno’ na cultura masculina é uma das atribuições para o homem que, em
tese, não teria cumprido com sua virilidade. Muitos deles são insinuados a honrar a ‘calça
que veste’, como uma simbologia da masculinidade. Chamá-lo de dominados/frouxo/fraco é
compará-los ao ‘outro’ que foi construído na relação de alteridade com ele – o feminino. E
associá-los ao feminino é pôr no palco das ‘desonras’ o seu lugar de masculino. São perfis
elaborados, ordenados a partir da diferenciação do sexo, subjetividades (re) elaboradas em
muitas das artes de fazer e de dizer na Cornolandia.
26
Sobre a discussão da (s) espacialidades do outro, Cf. SKILIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença:
e se outro não tivesse aí? [Tradução, Giane Lessa]. Rio de Janeiro: DP&A 2003. O autor não trabalha com a
noção entre o privado e o publico. Sua discussão nos ajuda a compreender a espacialidade do Outro e do
mesmo, ou espacialidades da diferença. Aqui está sendo pensada a espacialidade do masculino e do feminino.
16
Ver sua mulher na cama ‘batendo foto’ com outro com a alegação de que era primo,
não o acalmou que em tom de desespero quase foi atropelado. È a demonização do espaço e
do corpo de sua mulher que quase o deixou assumir o personagem de louco e o desejo da
morte. É a desnaturalização do poder e o fim da ilusão da casa e do corpo como ‘espaços
eternos’ de dominação do masculino.
27
Concepção construída pela separação entre o publico e o privado.
17
[...] ai vim do lado da Teodoro Sampaio (uma rua de São Paulo) uma
vontade de morrer...eu gostava dela, o coração todo cheio de amor...mas
num deu outra não...fui embora pra casa ...naquele dia eu chorei viu?....por
causa da ‘cangaia’ que eu levei ....passou, passou, arrumei outra de
novo...uma menina da Bahia, quando cheguei em casa ela tava abraçada
com outro primo dela, que não era ..... mas que castigo é esse? aí arrumei
essa outra e casei...essa menina do Paraná, dentre de 6 meses, namorei
noivei, casei...28
28
Fragmento da entrevista concedida por Sr Mariano em 07/07/2008 à pesquisadora
29
Permanência da identidade de traído.
30
Emoção concebida como separada da razão ou como a parte frágil da “natureza humana”
31
Comportamento associado à não razão, instintivo, atitude animal presente na ‘natureza’ humana
18
Na dominação masculina o mais forte não pode chorar, não pode publicizar a sua parte
‘mais fraca’, ‘não racional’ que durante muito tempo foi associada ao feminino. As emoções,
de acordo com o modelo de racionalidade ocidental, precisavam ser interiorizadas e
deveriam ser colocadas em lugar de segurança sob a vigília da ‘consciência’.
È a consciência quem deveria vigiar e cuidar para que o homem não chorasse, não
fragilizasse diante da ameaça do outro. Portanto, para Araújo (2008), os sintomas de
sentimentos, de ressentimentos, de dor, de angústia eram para a modernidade, atitudes
vergonhosas. Segundo ainda ARAÚJO (2008):
Quando não podemos conter esta desordem, a saída criada pela própria modernidade é
procurar os especialistas em estudos sobre a ‘interioridade’, aqueles que se
profissionalizaram para resolver o mal-estar causado, por ela, à nós.
32
Araújo, Eronides Câmara. Os ressentimentos identitários: a dor do ser/estar na fala do outro. Texto ainda não
publicado./2008.
33
Veja a discussão sobre o descentramento do sujeito em Hall 2001.
19
[...] depositário de todos os males, como portador das falhas sociais. Este
tipo de pensamento supõe que a pobreza é do pobre; a violência, do
violento; o problema da aprendizagem, do aluno; a deficiência, do
deficiente, e a exclusão, do excluído (p. 124).
Teve uma história de um rapaz que era caminhoneiro e quando ele tava
trabalhando, aí a esposa ligou para conversar com ele...ele tava ocupado e
34
Fragmento da entrevista concedida por livramento em 05/07/2008 à pesquisadora
35
O nome dos outros. Narrando a alteridade na cultura e na educação In Habitantes de Babel - Políticas e
poéticas da diferença- - Jorge Larrosa e Carlos Skiliar (orgs) Tradução de Semíramis Gorini da Veiga. Belo
Horizonte: Autentica, 2001.
20
O caminhoneiro com seu mal-estar de ter sido traído pelo amigo, só conseguiu voltar
para a mulher e perdoá-la, quando controlou ‘suas emoções e seus instintos’ na Cornolândia.
È uma forma de teatralizar o cotidiano, de vivenciar sociabilidades e de rir da própria
dominação. Aqui quem é ‘punido’ é subjetividade produzida na economia masculina que
sustenta o perfil do masculino imbatível.
36
Fragmento da entrevista concedida por Livramento em 05/07/2008 à pesquisadora.
37
Trecho da entrevista concedida pela ‘psicóloga’ em 05/07/2008
38
Trecho da entrevista concedida por psicóloga em 05/07/2008
39
Goldenberg, Mirian. Infiel- Notas de uma antropóloga. – Rio de Janeiro: Record, 2006; Viveros, Lìlian. O
livro da traição feminina. — São Paulo, Matrix, 2003.
21
Alguns homens afirmam que as mulheres traem [...] “ porque o que elas não acham em
casa vão procurar fora”, se referindo às mulheres que traem porque os maridos não foram
viris. Entretanto é inútil procurar causas. As causalidades são traços de uma história
evolutiva e nós estamos tentando encontrar as descontinuidades, é o caso do ‘urso’ que com
o sentimento de culpa vai ao confessionário.
40
Trechos da entrevista concedida pela’ psicóloga’ em 05/07/2008.
22
comigo, mas não conte a ninguém não. Eles têm vergonha, sempre é um vizinho, um colega, um
amigo41.
Mas também há situações em que a mulher não trai com o urso, mas com aquele da
mesmidade, ou seja, com outra mulher. È uma situação em que o jogo partilhado entre
homens é desviado para outro lugar, é um duplo desvio. È o desvio da traição e com o
mesmo gênero. Vejamos a fala da psicóloga: “Tinha outro rapaz que pegou a noiva com uma
amiga, e quando ele viu não acreditou e desmaiou... só acordou 12 horas depois do fato acontecido
no hospital[...] gostou tanto que casou com ela, faz 10 anos que estão casados... é a perdição dele,
que ele fala né?. No próximo item farei uma análise de um discurso de outro perfil masculino,
como o do presidente da ACP- Associação dos Cornos Potiguar.
41
Trecho da fala da “psicóloga”.
23
5. Mulher bonita é que nem melancia, ninguém come sozinho, mas fica com um ‘nó na
goela’
Agüentei porque era uma mulher linda e gostosa. Descobri que ninguém
consegue comer sozinho uma “melancia grande e uma mulher bonita”,
frisou [...] que passou um tempo sofrendo, sem acreditar no que acontecia -
característica de um corno ateu. Passei mais de um ano aperreado,
querendo que ela voltasse e sentindo uma dor de corno danada.
“Ninguém consegue comer sozinho, uma melancia grande e bonita.” Esta frase está
associada à idéia de que na prática heterossexual quem ‘come é o homem e a mulher é a
comida’. È a divisão, a mecanização e a banalização da sexualidade. A mulher é comparada
como sendo portadora de uma sexualidade inferior ao homem. È uma leitura freudiana da
ausência, da leitura inconsciente da perda do pênis.44
Não é de estranhar que a posição considerada tradicional, na prática sexual, é o
‘homem por cima’, como ‘bombeiro, apagando o fogo’, e a que é o que homem que come,
42
Cf http://www2.uol.com.br/omossoroense/130806/conteudo/entrevista.htm visitado em dezembro de
2008.
43
Sobrenome do Personagem do filme “O homem que desafiou o diabo”, baseado na obra As pelejas de Ojuara
de Nei Leandro de Castro. Na entrevista ao jornal “Ojuara brinca com o leitor: “O ministério dos Cornos
adverte: ao terminar de ler esta entrevista, se não desaparecer os sintomas do seu chifre, procure imediatamente
um psicanalista. Seu caso é patológico e perigoso”.
44
ROCHA, Zeferino. Feminilidade e castração seus impasses no discurso freudiano sobre a sexualidade
feminina In Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., V, 1, 128-151
24
embora seja a vagina que ‘engole o falo’. Bourdieu (2003),45 discute que um dos princípios
de oposição entre o feminino e o masculino e da dominação masculina são as oposições
binárias:
Resulta daí que a posição considerada normal é aquela que o homem “fica
por cima”. Assim, como a vagina deve, sem dúvida, seu caráter funesto,
maléfico, ao fato de que não é só vista como vazia, mas também como o
inverso, o negativo do falo, a posição amorosa na qual a mulher se põe por
sobre o homem é também explicitamente condenada em inúmeras
civilizações (p. 27).
Chifres foi (sic) feito para homem, o boi usa de atrevido, rebate Ojuara,
justificando que a fidelidade no casamento tem que ser facultativa. [...] A
mulher moderna, desse novo milênio, tem um lema em relação a chifre:
botou, levou, disse.
Em tom de brincadeira, Ojuara, afirma que o chifre foi feito para homem,
compreendendo a fidelidade como facultativa. Se ‘botar, leva’, parece ser o lema da mulher
moderna, segundo Ojuara. Na produção de outras subjetividades, a dor da infidelidade foi
trocada pela alegria de formar uma associação de ‘corno’ e brincar:
45
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina/Pierre Bourdieu; tradução Maria Helena Kühner.- 3 ed. – Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
46
Cf. O MOSSOROENSE http://www2.uol.com.br/omossoroense/130806/conteudo/entrevista.htm visitado em
Dezembro de 2008.
25
O corno já virou categoria na fala de Ojuara. Para ele, o corno é discriminado, mas ‘o
corno também é gente’. Esta expressão indica que criada a associação, o corno passa a ser
respeitado. E parece segundo, seu presidente, adeptos é que não faltam:
47
Ver entrevista de Ojuara disponível no site
http://www2.uol.com.br/omossoroense/130806/conteudo/entrevista.htm visitado em 12 de agosto de 2009.
26
Os cornos, em associação, têm direito a um advogado para que a ‘mulher não tome
tudo dele’. Levar chifre não significa perder patrimônio, defende Ojuara:
Para OJUARA o ‘corno’ Potiguar tem o melhor perfil de ‘corno’ do Brasil. Os estudos
realizados por ela indicam que o ‘corno’ Potiguar não é violento, e nem vive em crise
psicológica, diferente dos ‘cornos’ de São Paulo, Rio Grande Sul e Paraná. Isso significa
que a associação faz bem aos homens traídos, conforta-os e amansa-os. È um ‘corno light’
que conversa abertamente sobre o seu problema, convive com a mulher mesmo sabendo que
está levando chifre’.
Os homens interessados em participar não precisam acreditar que são cornos, podem,
segundo Ojuara, continuar sendo ‘corno ateu’. Por outro lado, chifre desperta curiosidade,
qualquer um pode participar. Aquele que gosta do assunto, mesmo sem ser corno (o ateu),
pode ‘participar da nossa confraria’. Alguns têm curiosidade para saber a reação de um
corno quando está levando chifres. Outros preferem ouvir as conversas entre os associados
48
Fala de Ojuara extraída do Jornal já citado.
49
Idem
27
para saber a resenha das últimas novidades na cidade. Afinal, chifre sempre despertou a
curiosidade alheia.
Nas ‘confissões’ de Ojuara sobre o chifre, sua experiência é publicizada, sem receios.
Mas o ‘chifre’, como aberração no discurso da dominação masculina, foi construído para se
50
Corno Vidente: tem pressentimento toda vez que leva chifre; Corno Perito: examina a mulher quando ela
chega em casa; Corno Cofre; cheio de segredos; Corno Garçom: vive entregando a mulher de bandeja; Corno
Turista: a mulher fica planejando viagens pra ele; Corno Camaleão: quando vê a mulher, muda de cor; Corno
Religioso: no dia que leva chifre, entrega a Deus; Corno Cigano: muda de lugar a cada chifre que leva; Corno
Padeiro: além de corno, queima a rosca; Corno Consórcio: vive ansioso, esperando ser contemplado com um
par de chifres. Provérbios para cornos: Um chifre só se cura com outro chifre; Cada um tem o chifre que
merece; Corno só é solidário no chifre; Chifre é como ferida, se não tratar demora a curar; Corno que ama não
mata; Chifre não é para todo mundo, mas está ficando cada vez mais popular.
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esconder no próprio sujeito e não ser publicizado, pois é considerado como uma forma de
desonra e difamação, enquanto mais escondido e discreto, melhor para a moral burguesa.
Ojuara ‘escandaliza’ sua experiência: Na mesma hora ‘deu um nó na goela’[...] não fiz nada
[...] ela nunca falou em me deixar, mas continuava se encontrando com o vizinho’. O lema
‘mulher bonita é como melancia’ parece ter sido confortável para Ojuara. O ‘nó na goela’,
ele sentiu, mas não fez nada, diz ele. A primeira vez parece ser muito difícil, mas depois se
acostuma e vive feliz com a mulher, tudo é uma questão de saber experimentar:
Por que para Ojuara [...] ser ‘corno‘é um sentimento que fica enraizado feito cicatriz
na memória’. Seria uma analogia à idéia de que chifre sai na cabeça? Pode ser também algo
que não se esquece, que virou um sentimento ou um ressentimento. Ao que tudo indica, para
ele, é um ressentimento. “O cabra quando é corno vai ser corno pelo resto da vida. É um
sentimento que fica enraizado feito uma cicatriz na memória”.
Para Ojuara, ser ‘corno’ é uma identidade que se carrega para o resto da vida. E que de
acordo com as subjetividades que justificam a dominação masculina, a visibilidade e a
dizibilidade deveriam ser censurada, escondida, ao contrário, deu um ‘nó na goela’ e foi
publicizada, escacarada, afrouxada.
Bibliografia:
ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de. Nos destinos das fronteiras – história, espaços e
identidade regional.- Recife, Bagaço, 2008.
GOLDENBERG, Mirian. Infiel- Notas de uma antropóloga. – Rio de Janeiro: Record, 2006;
Viveros, Lìlian. O livro da traição feminina. São Paulo, Matrix, 2003.
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JORNAL DA PARAÍBA- Eles são mais felizes na Cornolândia - João Pessoa, domingo 30 de
Março de 2008.
SKILIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: e se outro não tivesse aí? [Tradução,
Giane Lessa]. Rio de Janeiro: DP&A 2003.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais.
Tomaz Tadeu da Silva (org.), Stuart Hall, Kathryn Woodward.- Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.