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A BRASILEIRA sicOLOG! SOLONIAL DAP: as OnIE AS pO PERIODO Marina Masson! 1, RAZOES DE UM DESCONHEGIMENTO : i i gmbito da cultura ; Avaliando a difuséo da eee Oe: uae ileira, 0 filésofo Farias Brito es e et cioicomcs) infelizmente, nada digno de mencdo. Se no: 5 ignifica¢ao, Mtarem: “Sobre este assunto, de tao alta sign! ; eae entre nds, incentiva o interesse dos homens mais eminentes de todos os paises cultos do mundo?’, a resposta deve ser esta: “Nada, absolutamente nada’. Temos, certamen- | te, pensadores isolados que devem conhecer profundamente 6 atual movimento da psicologia. Mas, quanto a estes, OU s nao se sentem encorajados para atacar as opinides corren- ‘ou entao ngo querem perder tempo devotando-se a traba- ra OS quais a atmosfera intelectual de nossa patria nao asiprepareda. Realmente, o solo da intelectualidade a0’ parece ser terreno propicio para a semente da incia (1912, p. 277). O jur, imi ; Be - O julZo pessimista a respeito i¢do brasileira, no campo di b icoldéai eMseSS: cinder Go saber psicoldgico, per- A z : joje é ica cologial apareceu ae J& © Convicgdo quase geral portada da Eur Primeira vez no Brasil neste fopa @ dos Estados Unidos Bolsista Fapesp OMPLEXO DE INFERIORIDADE Dog 11 O TELECTUAIS BRASILEIROS, Ao longo da histéria do Brasil, hé uma tendéncia si desvalorizar a originalidade da Contribuicaio naci s- tente em crt ue provém do exterior, Esta one) e a superestimar 0 q Tatalactdlargaat Postura, m especialmente entre os intel ectuais, ¢ assim descrita Pi fbr Cruz Costa: Na historia da nossa inteligéneig apare, 3 ne) @ mais completa e desequilibrada admiracéo por tig que é estrangeiro (... ) talvez uma espécie de ‘complex, de inferioridade’ que deriva do afastamento em que se mantiys, ram por muito tempo as nossas elites em relacdo aos proble. mas concretos da terra e do povo, e que, talvez também ge explique em funcdo da situa¢ao colonial em que por longo tempo vivemos. Descontiamos das nossas empresas, das nossas interpretacGes e preferimos sempre nos apoiar po pensamento alheio”. (1956, p. 18). ae A distancia entre intelectual e povo foi inicialmente devida ao processo de colonizacdo. De fato, sendo proibida pela Metrépole a constituic¢do de escolas de n{vel superior na Colonia, os jovens brasileiros que quisessem dar continuj- Gade aos seus estudos, deveriam emigrar para Portugal ou fa outros pafses da Europa, dos quais incorporavam as @ a sensibilidade. Se, de um lado, esta situacao criava indicoes para Uma frutuosa assimilacdo do patriménio izacho ocidental, de outro lado, a experiéncia do fazia com que nos jovens estudantes a consciéncia idade nacional se tornasse algo de abstrato, de idealis- ite das reais necessidades da propria patria. Em con- icia, muitos entre eles assumiram o Brasil como objeto stigagao cientifica, ou de acao politica, tendo como referéncia a Metropole e colocando-se, portanto, sujeito dominador, Eles julgavam que ‘os livros européia encerravam uma formula ideal e mila- recia ‘calhar’, como uma luva, ao Brasil’” (Cruz 81), Déssa forma, insinuou-se na cultura brasi- Visio entre intelectual e realidade nacional, ristica do mundo académico ocidental. Esta é a a! de algumas atituces de depreciagao de tudo 0 @lemento de originalidade, de diversida- Idadé com os modelos prescritos pelas ideologias dominantes, assuma ela a forma de de progressismo, de rejeicéo aberta Ou de crf destruidora dos ideais e dos simbolos enraiz mente ne mentalidade brasileira, Um aspecto grave desta tendéncia, em que o colonialisi transforma numa dependéncia introjetada, Saudosismoou tica sutilmente ‘ados profunda- Particularmente originais, elaborando, a partir destes de vida social e cultural. Por isso, como afirma Lucio Gera, “sdlo los pueblos que no tienen memoria no tienen futuro; ; a los ee que no recuerdam, no siguem viviendo” (1984, p. 18). oh , UM projeto auténomo 1.2, UMA PSICOLOGIA QUE NEGA A SUA HISTORIA o Samuel Pfromm Neto escreve que “uma visdo su © apressada tem sido responsavel pela pobreza qua da andlise das matrizes filosdficas e religiosas e,noc brasileiro, literarias, a partir das quais evoluiu p.238). ae Esta ‘‘visio’’, na realidade, é fruto de frente a histéria da ciéncia, em geral, e particular, caracteristica do positivismo radi ambito da histéria da psicologia, com dos conhecimentos anteriores & afirm tifica. A historiografia recente da ciéne ao descobrir e apontar a exist ( cepcdo da histéria ‘em branco @ luzes’ contrapunha os assim substitui-se hoje um traball sa histériografica que, di censura aspectos desconh — 7, Jes 0 valor eurlstico e precursor, as vezes, de Conquistas neles é as. A wpisttas aee reduedo dos horizontes da hist m 1 miculer, depends) emer 2 i ia em particular, nde, em Git - ciéncia, & Se ao restrita da ciéncia e da Psicologe anélise, de sat 0 pensamento positivo se identificaria apensg segundo @ peeents cient/fico, e a psicologia, com a psicojg. com 0 Pica, Em consequéncia, é negada a relevancia de 1. gia pater racivas anteriores de conhecimento sobre o homem. das Elona para se afirmar enquanto ciéncia, parece ter de Be criciar a propria meméria. Todavia, Na memé6ria histérica estio contidas as proprias ra(zes de uma disciplina, as ques. "ties originais que determinaram seu surgimento. Portanto, o anti-historicismo pode determinar a esterilidade Ou a perda ‘de identidade de uma drea do saber. Talvez Nao seja casual 0 fato de que, exatamente no ambito da Psicologia norte-ame- “icana, alvo do método e da tecnologia cient/fica mais avanca- dos, observa-se atualmente uma proliferacado de interesses e estudos buscando redescobrir conhecimentos mais antigos acerca do homem e de seu comportamento. O fendmeno bem documentado pelas publicacGes do “Journal of the listory of the Behavioural Sciences’, fundado em 1965. | A retomada de consciéncia do valor da histéria 6 condi- Jara que haja um progresso efetivo da Psicologia. 2. RESGATE DA CONTRIBUICAO BRASILEIRA NO CAMPO DA PSICOLOGIA atitude nova presente no seio da historiogratia da a’ da psicologia aponta o interesse e a pertinéncia de rabalho de redescoberta e de valorizagdo da contribui- asileira no campo do conhecimento psicoldgico. Primeiro lugar, este constitui uma oportunidade preender mais profundamente a relagdo entre cultura nacional, Uma vez superado o precon- To ppsicologia deva repudiar sua memoria e seu ral! originério para se afirmar enquanto saber Universal, apresenta-se a questo de definir © luéncia das relages entre conhecimento psico- Stla cultural de cada nacéo. Sem cair no relativismo, é preciso Fale oisi ali ouie ara aleangar conhecimentos o mais po: a Se is, nio deve desconsiderar a presenga de dife tivos e Neat ite: préprias dos varios sujeitos e identida- onedhhatty Com efeito, a presenga desta orientacéo na Sorogcattl recente é documentada pelo numero Ce de publicagdes relativas a evolucao da psicologia nas vi ml enfoque permite encontrar as ra{zes do interesse pela psicologia no dmbito da cultura e da sociedade brasi- eira, indicar © papel que este interesse assumiu ao longo da historia do Brasil e as maneiras pelas quais se estruturou em formas de conhecimento. Em segundo lugar, se torna poss{vel enfrentar a questao da originalidade da psicologia brasileira, Existem duas leituras criticas das origens historicas da cultura brasileira que, apa- fentemente Opostas, convergem na formulagdo de um juizo negativo acerca de sua originalidade. De um lado, hd uma interpretacéo que, enfatizando a influéncia da civilizacdo ocidental implantada no Brasil através da colonizacdo, menos- s.. De outro lado, afirma-se uma sidera-a como fator necessdrio de indigena e da inautenticidade de Presente na época colonial. 7 Hoque entre doi i ar 7 B e Ols universos jue pase No regime colonial, Todavia, nestas aine oe esr fpr de elementos aglutinadores Permitiu, em teelaborag Paar entre identidades diferentes © uma incutesder as influéncias culturais Tecebidas oy Enfim, 6 precis termo ‘ori, 80 corrigir uma significa a Fadi aenpalcase ue exigiria uma ruptures ait do * 9 NOVO nfo © deting sponta anteriormente Narealta Como algo i WANto Negackio : " Uma histérigs UTA © presente langa praiuase ia sh : jo de splos que seguem elucidarSo de maneirg mai xen snsideracdes gerais relativas a histérig t ita estes sm Eles so parte de uma Pesquisa mai o era através da leitura e da andlise de vin oe he autores brasileiros NO perfodo coloniat Ose exo! Jogi ico" pecmgesenv0 * spvas escritas F e ERESSE PELO ESTUDO DAS EMOCOES E pg 2. 01NT £ SEU CONTROLE, NOS SECULOS XVII E XVI pRATICA D ns sermdes e escritos de edificas A Wire os XVII-XVIII e de tratados de fil seoatan Shuto XVIII, revela a presenca, no ambito da ¢ Ee resiaire colonial, de formas de descri¢do sisteméti fendmenos emocionais ¢ de ‘técnicas’ de controle ou d pia, visando educar 0 equilibrio psicolégico da Perso! ‘ Embora haja um amplo uso de referéncias fil trata-se de uma andlise dos efeitos comportamenta emocSes e das possibilidades de modificd-los que i existéncia, na época, de uma forma de conhecimento p gico diferente da tradicionalmente chamada de psi filoséfica, parte da metaf/sica ou da filosofia natu fato, segundo afirma VIEIRA (Lisboa, 1608 - Bahia em serm&o de 1676, ‘‘o conhecimento de si m Conceito que cada um faz de si (é considerado) ui Poderosa sobre as proprias acdes’ (ed, 1951, v.14, p Ao mesmo tempo, busca-se, para os conte! G05 da reflexo teoldgica e da Pratica da diregao uma base conforme as NogGes do saber cientifico ; explicita Frei MATEUS DA ENCARNAGAO | de Janeiro, 1687-1764), monge beneditino, em , 60 tratar a questdo dos “remédios" para | Permit mpto, recorreramos ao 101 das affli¢des prof estimulado por causas internas (os instintos) ou externas (por exemplo, a visfo de um objeto), A fenomenologia das emoodes ¢ amplamente descrita, abrangendo o estado subjeti- vo, a expressio comportamental e, as vezes, o nivel fisio- idaico. , " Apresentamos como exemplo a descrigo da tristeza feita por Vieira em serm&o de 1654, em Sao Luss do Mara- nhdo. A tristeza € “a enfermidade mais universal que padece neste mundo a fraqueza humana (...) de todos os homens e de todas as terras; porque nenhuma ha to sadia, e de ares téo benignos e puros, que esteja isenta d’este contagio, e nenhum homem hé tao bem acomplexionado de todos os humores, que quase habitualmente nao esteja sujeito aos tristes accidentes da melancolia’’ (1951, p. 239). Este humor esté depositado no corac&o, de que “‘saem todos os espiritos vitaes, que se repartem pelos membros do corpo, e d’alli, se 0 coracao € triste, todos os venenos mortaes que se lastimem, e ferem ... ferem a cabeca, e perfurando o cerebro, lhe confundem o juizo; ferem os ouvidos, e Ihes fazem dissonan- te a harmonia das vozes; ferem 0 gosto, e Ihe tornam amarga- s2 @ docura dos sabores; ferem os olhos e lhes escurecem a vista; ferem a lingua, e Ihe emmudecem a fala; ferem os bragos, e os quebrantam; ferem as maos e os pés, € os er tor Pecem; e ferindo todos os membros do corpo, neni : que ndo adoeca d‘aquelle mal, que maior molestia Causar, e maior pena e nao pode - | (1951, v.5, p. 296). ‘ pe O estado subjetivo da pessoa se e ela tori semelhante a “um cadaver \ Morto e nsivel para a gosto, vivo e sensitivo para partes de penas, de mole: imaginando todo o mal, bern; aborrecido de tu G8o para o pec nem pela luz i; isteza see. comportamental, a tris’ Xpressa No plano choro, mas, na sua forma mais graye aa do e ve eres a inteiramente no coragho, Entao alg ‘ yo, macilento, mirrado; as faces sumidas, os Oolhos ee pall “gs sobrancelhas caidas, a cabeca derrubad, para ae estatura toda do corpo encurvada, acanhadg ding , ., p- 294). ru sepa Soe para restabelecer a harmonia psico-fisica, afetada Pela tristeza, 0s autores sugerem “remédios”, que agem em dois niveis: pe a) no plano intelectual, consistindo no afastamento do objeto penoso, de maneira que a memoria n&o possa mais Produzir sua lembranca (Pinna, 1739; v.3, ed. 1746); e b) no plano da comunicac&o, manifestando-se a eMocio penosa de duas formas: em primeiro lugar, através do charo (Pinna, id.), pois com as lagrimas, “sahe pelos olhos o Mais distillado da pena, e o mais apurado do sentimento” (id., p. 161), tendo elas a “‘virtude de extrahir e trazer a si a qualida- de que achdo no coracéo”’ (id., p, 188). Segundo Pinna, este Processo seria semelhante ao usado na extracdo artificial da esséncia perfumada das flores. Uma segunda forma de expres- sdo é a comunicacdo verbal: a esse respeito, Os autores formu- lam dois princfpios fundamentais: que “'as paixoens so copio- Za fonte, de onde emango as palavras’” (Pinna, 1750; v.4, 1755, p. 333) e que buscar algum amigo prudente, a quem dar parte da pena he diminuir e aliviar a pena" (Sequeira, 1754, p. 369). - Fe e leitura destes trechos Podemos retirar algumas consi- rages acerca da concepcao de emocao por eles documenta- a z praites de mais Nada, observa-se que nio existe uma dife- erdo entre o fisico, 0 psiquico e o moral. Assim nao ¢ Gistinguir entre enfermidade corporal, doenca mental 40, Tal unidade deriva da filiaggo destas doutrinas com antiga, ainda néo atingida pelo dualismo cartesiano. QUEIRA, nascou em Sio Paulo (om data desconhes! det Jesultas @ depois de tor exercidio a profisslo tica, Faleceu no Rio de Jeneiro em 17 estilo do discurso revela sua fungé ae na forma de serméo ou def um publico amplo e diferenciado (a co Bo de ume cidade). De fato, na época, «. catequese representaram instru giv joacbo de uma cultura cuja infl adente na vida do povo. Sr Enekrentt) poder-se-ia perquntar a esnec (fico Gestes autores pela emogao di meire resposta é fornecida pelo fato de rtir da Renascenga (Delumeau, 7 enomeno peculiarmente brasileiro, ssionérios e viajantes apontam sicSo entre as populagdes dos ind. s vivéncias de desterro ou da ite, 1938). udanca de horizonte cultural se nm emocao expressa pela filosofia mo} etivo do conhecimento nao 6 mais d te subjetivo, como declara exp! MATIAS AIRES RAMOS DA SIL °, 1705-1770), na introdugao di & 2 vaidade dos homens (1752): “ 5 para instru¢do minha, que para do para distinguir as minhas paixdes, ¢ outros distinguem as suas’ (p, I), A defini¢éo de emo¢gfo reflete a per certesieno: ela 6 considerada um “fa Ge disposicio do corpo" (id., p.3 ) Pnoritério pela vaidade, entra as vdrias Gente sTO AMBIENTALISTA E A CONFIANG a 2,0 BoESsome DE MODIFICAR O COMPORTAMENT M OBRAS DE JESUITAS DOS SECULogs INFANTIL, E XVIL-XVIIE , os primeiros missiondrios e viajan Os al ‘dgcumentam, de varias formas wae sects a tadas pelos (ndios com relacao as Criancas. O mg Se om elas e com sua educacdo é evidenciado if dado pare Con NAO CARDIM (Viana de Alentejo, 1583. historia a): “Os pais ndo tem cousa que mais amem Bahia, 1620); em a seus filhos faz algum bem tem an. que os filhos, @ 9 ; 1939 274). 0 em dos. pais quanto quer (1625; ed. Ag » ©) mesmo autor informa que a crianga participa desde cedo da vida da familia e da comunidade; que ela, embora nunca seja submetida 4 punicao, é muito obediente a seus pais; e que a mae a ama- menta, em muitos casos, até a sete, oito anos de idade. interesse das povoacées indigenas para com a infancia converge, na época colonial, com a obra educativa dos jesur- tas, como testemunha F. Cardim: “Os Indios estimgo mais fazerem bem aos filhos que a si proprios, e agora estimao muita e amo os padres, porque lh’os criao e ensindo a ler, escrever, e contar, cantar e tanger, cousas que elles muito estimao” (id., p.150). A contribuicao dos jesu{tas nao se limita apenas a cria- G80 de “escolas para ler e escrever’’ e de colégios, da qual um exemplo famoso é o “‘Colégio dos Meninos de Jesus’, ‘na Bahia, fundado por Ndbrega em 1550, primeira tenta- iva de integracao entre filhos de indios, portugueses e mamelucos. Hé também um trabalho de sistematizacao e da psicologia desenvolvidas nessas institui- ido em alguns tratados dirigidos a pais da fam|- A leitura destas obras revela contetidos curiosos Iai Um aspecto muito importante a ser salientado, € 0 pres mbientalista com relacdo a personalidade infantil ifianga absoluta no poder da educacéo como ‘ator Fi do) comportamento, ALEXANDRE DE 629 - Bahia, 1725), jesuita, pedeaoe” jo Colégio de Belém, afirma no live filhos na idade da puericia (1689) 44° ; 6 como uma “taboa rasa, disposta para se formarem crianga oi Ti nella quaesquer imagens”’ (id., p.4). Portanto, ‘conforme for a primeira doutrina, conforme a primeira educacdo, que deres a vossos filhos, podereis conhecer o que ham de vir a ser’’ (id., p.4). Consequéncia deste postulado, é a crenca na possibilidade de manipular e corrigir a conduta infantil: “Nam ha condicam de minino tam ruim, que nam possa ser domada pela boa creagam” (id., p. 134); “nenhum minino ha de tam ruim condigam, que nam possa ser corrigfvel, e domesticavel’’ (id., p. 138). A mesma atitude é expressa por MANOEL DE ANDRA- DE FIGUEIREDO (Espirito Santo, 1665 - Lisboa, 1735), caligrafo, de formacdo jesuftica, que na Nova Escola para ensinar a ler, escrever e contar (1722) afirma: “Se a natureza € poderosa para persuadir, mais poderosa ainda he a doutrina; Porque a boa doutrina emenda a ma natureza”’ (id., p.2). Nos textos sao explicitadas também algumas consequén- cias dessa postura. Uma primeira é que o comportamento da crianga — enquanto ser “‘domesticavel, disciplindvel e corre- givel” (Gusm&o, 1685, p. 138) — torna-se objeto de conheci- mento e de manipulac4o: cria-se, a partir disso, uma literatura Pedagégica com o objetivo de instruir pais e educadores. O interesse nao 6 pela crianca em si, mas pelo seu desenvolvi- mento em fungdo do modelo de homem adulto que ela é destinada a realizar. Um segundo resultado é que é atribuida grande relevan- Cia a influéncia dos pais e do mestre. A personalidade da crianga € concebida como algo de totalmente dependente do Processo de sua formac¢3o e, portanto, de seus educadores. Manoel de Andrade Figueiredo alerta: “assim como todos os acertos se atribuem aos mestres que ensindo, e nado aos Giscipulos que aprendem, assim tambem os erros que se ach3o nos mininos, sio nodoas, que se poem na fama dos mestres, que néo ensinaram bem" (1722, p.6). Alexandre de Gusm§o, considerando o caso em que os pais nao se reconhegam aptos a fornecer uma educag§o adequada aos ilhos, sugere: “nam devem os pays desamparar os filhos, que sentiram de més condigoens, desconfiando de fazer nelles fruto, porque nenhum Pode ser de tam mdo natural que doutrinado, e domado, nam possa sar de proveito por meyo da boa creagam |...) Mas Porque as condi¢des dos 105 m varias (...) quando o pay na i alld al 0 filho, consulte outro officta i inh Soe te os politicos previstos nesta materia; isto he os que ee yeram politicas de mininos ou como ®xPerimentadgs 5 m dar conselho” (1685, p. 139-140), he Enfim, a crenga na possibilidade de modificar g cone da crianca implica no uso de varias prdticas de controle. pe mo por exemplo a punicao corporal e psicoldgica e 4 Vigilan. cia exercida nas horas de atividade ludica. 4 Punigéo nao ¢ concebida como expiacdo da culpa e sim como Correcdio remédio da conduta, conforme documenta este trecho dg Progyamnasma Literario e Thesouro de Erudigéo Sagrada @ Humane, pare _enriquecer 0 animo de prendas e a alma de virtudes (1737), de JOAO ALVARES SOARES (Bahia, _ 1676 — s.d.), tedlogo de formacao jesuftica: “A maior desdita de hum filho he, quando o deixa por incorregive| _ em seus appetites seu pay. Hum pouco atraz dissemos, que nao se mudam os vicios com a idade, porém isso se entende, quando se deixdo converter em costume, e se Ihe nao applica 0 remedio com efficacia; e este devem applicar os Pays, ainda que Ihes pareca sem proveito, por satisfazerem ao que devem. Ndo se desepere do remedio; nam se deixe por incor- regivel; cultive-se com a doutrina, cortem-se e atalhem-se _ 0s descaminhos, acoutem-se, castiguem-se, huma, e muitas vezes, que alguma vez se colherdo de sua emenda (.. .) frutos de boas obras, de virtude, de santidade’”’ (id., p. 125-126). Por outro lado, Manoel de Andrade Figueiredo se Feocupa com os efeitos psicolégicos do castigo, sobretudo telacéo a crianca carente (o “‘menino rude’’): “‘Com este deve © prudente mestre usar de menos rigor no castigo, POIs vemos que o demasiado mais Ihe redunda em ruina, gue @m proveito; porque afflicto de nao poder perceber € temeroso ao mesmo tempo do castigo, que o intimi- © mortifica, Ihe confundem estas consideragées, de tal @, 0 fragil entendimento, que confuso e aereo, muitas Ceede, que abragando s6 0 medo natural, se ausenta da Escola; © com estes melhor he que o mestre sé manele Fespectivo, que justiceiro, levando-os com castigo sentte® Ye288 fingindo, applicando-hes a grandeza ¢2 do @ Capacidade dos talentos, até de Ihes irem purificando os nervos da rudeza ¢ alcancarem, com o exerci cio, mais clareza de engenho.”* (1722, p.11), Observa-se, em suma, que, muito antes da criacio do behaviorismo e da sua introdu¢So no Brasil, a consciéncia das determinagSes do comportamento e da possibilidade de mo- dificfto apsrece na prdtica e na reflexdo tedrica dos primel- ros educadores brasileiros. 2.3, A DISCUSSAO ACERCA DAS CAPACIDADES INTELECTUAIS DAMULHER E A QUESTAO DA INSTRUGAO FEMININA NO BRASIL DO SECULO XVIII O papel social da mulher constitui um elemento de dife- renga entre a cultura indigena e a cultura portuguesa. Com efeito, a mulher em algumas tribos dos Indios chega a assumir cargos de chefia, como informam os escritos dos missiondrios (Leite, 1938); a relagdo entre homem e mulher no se canfor- ma aos modelos da familia monogamica ocidental e, em vd- rios casos, assume um cardter de respeito e de igualdade; “Costumdo estes Indios tratar bem as mulheres, nem lhes dZo nunca, nem pelejio com ellas, tirando o tempo dos vinhos, porque entfo se vingdo dellas, dando por desculpa depois o vinho que beberdo e logo ficda amigos como dantes, enZo duro muito os odios entre elles, sempre andac juntos e quando vao féra a mulher vai de traz e o marido diante para que se acontecer alguma cilada ndo caia a mulher nella, e tenha tempo para fugir enquanto o marido peleja com 0 contrario; ete ..., mas a tornada da roca ou qualquer outra parte, vem a mulher diante, e o marido de traz, porque como tenha j4 tudo seguro, sé acontecer algum desastre, possa a muther que vai diante fugir para casa, e o marido ficar com os contrarios, ou qualquer outra cousa (...) As mulheres bailZo juntamente com os homens e fazem com os bra¢os € corpos grandes gatimanhas e momos” (Cardim, 1939, p. 153-155). A elas é confiada a tarefa de receber os hdspe- des e de vigiar os prisioneiros, A maternidade parece nio constituir a fun¢do determinante da mulher: quando “as fecundas acabam de parir, camo se o nio fizessem, conti- nugo em seu mesmo servico, e occupacdo, como dantes” Wasconcelos, 1. ed, 1668; ed, 1824, p, 83). 107 iferente & o conceito da roe ‘Specs, como é documentado part 2 CUltury lose mies BARROS (Espetho cos Casados, citage q Feliciano Joaquim de Sousa unes): "Algu Praguen assacaram que Deus fez a mulher tudo © que bem pares ssim como rosto e tudo o mais apraztvel, Mas que a e mmandou fazer a outrem |...) E por isso foi Ordenade gue ae pregassem nem dissessem missa, Porque nuneg acal {...) Nem podem elas ter oficio de tabeliao, nem de ine i outro nenhum oficio publico, Por sua inconstancia ¢ vatiedade, e mudanga continua da Qual a meude usam Ld E comumente vivem por paixlo e nao por Fazo" (Nunes led. 1758; ed. 1931, p. 33-34), __ . . O choque entre estas duas visdes Manifesta-se no Brasil logo depois da colonizago, com relacSo 4 questo da edueg. fo feminina e permanece, no século XVII, na discuss acerca das capacidade intelectuais da mulher, J& no século XVI, Nobrega, valorizando a tradicgg, indigena, luta em pro! da instrucdo da mulher, Opondo-se 20 governo da Metrépole, que proibe sua ese, . Olarizagag, Nos séculos sucessivos, o Projeto da instrucio feminina i No Brasil: em que respondo que nam s6 he conveni Para 0 sexo feminino” (1685, p. 383 Todavia, o Prec da mulher Permanect ‘onceito acerca dos dotes intelectusis € Na mentalidade comum e, no século XVII, 0 filésofo autodidata FELICIANO JOAQUIM DE SOUSA NUNES (Rio de Janeiro, 1734-1808) se preocupa de refutéto em um dos Discursos politicos e moraes con undo os vicios mais inveterados, introdu- zidos ¢ dissimulados (1768; ed. 1931 }. Considerando a ore da “desordem da Organica composig&io do cerebro da eyiner" (id., p, 178), Feliciano a declara “sem fundamento ® Wdeol6gic arriscar o discurso, para sustetar 108 ‘a, querendo * um errado capricho”™ libid.). Doutrin Feliciano, “desprezando o que lhes. ritncia, trazendo & memoria as j sbominaveis erros de alguma i provar a incapacidade de todas” ibid). Parone ariamente verdade contraria, Sousa Nunes cita exemplos de mulne ‘ cultas, documentados pela histéria Sagrada, a hi: ria de filosofia, da ciéncia e da medici ‘a que ee ; na, € afirma que “se este admiravel sexo é tao fecundo nas Produces do entendimen- to, que jd mais deixou de fertilizar o orbe, quando applica a cultura das artes @ das sciencias, com evidence gperagbes do entencmento Ge cae ees, oareics " que s3o capazes os ho- mens, € conseguinte que nelles achard um e outro sexo iguaes utilidades"’ (id. p. 171}. Portanto, o motivo da aparen- te inferioridade mental da muther nfo seria sua constituiso natural, mas a falta de instrucdo: “as suas puerilidades no tem origem na desigualdade ou na imperfeigao do cerebro (...) mas na falta de applicag3o e uso do entendimento” (id., p. 173). Em seguida, Sousa Nunes frisa que, mesmo sem possuir recursos para o aperfei¢oamento intelectual, a mulher mani- festa as suas capacidades. Isto é visivel, por exemplo, em ca- sos famosos de mulheres cultas e autodidatas, entre as quais 6 citada a carioca Angela de Amaral: ‘Sem outras artes que es do proprio entendimento, sem outros mestres mais que o seu mesmo discurso, sem outras aulas mais que as de sua natural compreensdo, apartada do commercio dos homens, vivendo no retiro dos montes , vence de tal sorte a nossa heroina no sé a falta da vista, sendo todas essas faltas da applicagaéo, que cabalmente prava o quanto no seu sexo sZo maturaes as luzes do discurso, e resplandecem, ainda sem necessidade das artes, os progressos do seu entendi- mento” (id., p. 177). Além do mais, mesmo para o simples “governo economico de suas casas’, as mulheres devem set “‘discretas e entendidas” (id., p. 172). Concluindo seu discurso, Feliciano afirma que “ nao s6 tem as mulheres a mesma aptiddo e capacidade de enten: dimento e discurso, que nos homens se acha, sendo também que sem comparacdo os excederiam se as applicassem as artes e sciencias a que elles ordinariamente se applicam; ¢ at semelhantes, segund. dicta a razio e ope. ars ‘ex vi' disto, seriam tanto mais uteis e admirdye; aos operacdes do discurso melhor fossem instruidaes Mo p. 188 - 189), ” O interesse deste documento nhecimento da dignidade intelectual da mulher e na Feiving. cagdo de seu direito & instrucdo para a utilidade DUbtica, mag também no apontar o posstvel componente ideoldgico de um saber que se ocupa da medicSo e da avaliaggo da ‘inteli. géncia’. Neste, como em outros casos, o jufzo de inferiorida. de mental acaba por justificar um estado de sujeiggo Cultural, Outra etapa interessante, na histéria da Psicologis a3 mulher brasileira e, em Particular, de seu direito a instrucao, 6 a fundacdo do “Recolhimento de Nossa Senhora da Glo. ria", em Pernambuco, destinado a educagdo feminina, e a elaborac3o de seu método Pedagdgico, por obra do bispo ¢ economista JOAQUIM JOSE DA CUNHA DE AZEREDO COUTINHO (Campos de Goitacasez, 1742 - Lisboa, 1821}, Os Estatutos (1798) go Recolhimento constituem um texto muito interessante de andlise psicolégica e de inova- $40 pedagdgica, Cujo valor pode ser plenamente apreciado, considerando-se que ainda em 1821 Auguste de Saint Hilaire lamenta a auséncia quase absoluta de colégios femininos no Brasil (Bruschini, 1980). As Paginas introdutérias dos Esta- ai do papel da mulher na vida da Sociedade e da Consequente necessidade de uma formacdo adequada; “A. educac3o dos Mastres Pouco, ou nada, apro- Veita aos filhos, quando ela ou nao é fomentada pelas Maens, ou é por élas contrariada; pois que em fim por iso que elas S80 Maens, slo as Primeiras Mestras e os primelros modelos Bara a imitac3o dos filhos; nao serio completos os nosos de- S€]08, se as nosas vistas Se ndo extendesem tambem é boa educacto das filhas, que a Providencia desde 0 bergo desti- NOU para serem Maens, Mestras, Religiozas, ou Diretoras dos primeiros Pasos daqueles, que um dia 40 de formar 0 Corpo da Sociedade Umana. Aqueles, que nfo conhecem 4 Srande influxo que as mulheres tem no bem, ou no msl ‘ as Sociedades, Parece que até nem querem, que elas tenhio Suma educasto; mas Isto 6 um engano, 6 um erro, que se ng se Pulaciplo da lonorancla, As mulheres, ainda ae teria dye "80 para fazer a guerra, nem para ocupsr om * Colas sagradas, nig tem com tudo ocupasoe! nao esta apenas ng fetg. 110 oo menos impartantes ao Publico. Elat tem uma cara qua go- verpar, marido que fazer feliz, ¢ filhos jue educar na virtuce, cos dmens, que tem toda & auloridade no Publica, nJo pocam por si mesmos estabelecer nas suas famili algum bem efeti- vo, #¢ ab Mulhers of ndo ajudio 8 execut em jamais pode- tho eles esperar vida tranquila em suas cazas, se a estralta sociedade do matrimonio se tornar em amargura: alas pelos deveres, que thes s3o proprios, fazem fundamento da Umana Sociedade, e so metade do genero umano egualmente destinadas para a vida eterna, e temporal; e por iso, dignas de igual cuidado de uma sd instrusio, em que muito se intere- sao bem publico” (1798, p. 1 - 3). 2.4, A ORIGEM DA PSICOLOGIA MEDICA NO FIM DO SECULO XVIII A psicologia médica na cultura ocidental se propde a ser uma invers8o radical do saber tradicional sobre o homem, de maneira particular, do elaborado pela teologia moral, O representante da nova corrente no Brasil ¢ o médico mineiro FRANCISCO DE MELLO FRANCO (Piracatu, 1757 - Ubatuba, 1822}, seguider do iluminismo e do empl tismo filoséfico. Entre as varias obras deste autor, trés mere: cem destaque pelo seu contetdo de conhecimentos psicold- gicos: 0 Tratado de Educacao Fisica dos Meninos (1790), sobretudo o cap(tulo XI, dedicado ao “modo de aperfeicoar os sentidos da crianga", primeiro texto de puericultura em ifngua portuguesa; a Medicina Theologica {1794}, obra polémica dedicada aos confessores; e Elementos de Hygie- ne, ou Dictames Theoréticos e Précticos para conservar a satde e prolongar a vida (1813; ed. 1823). O ponto de partida da psicologia médica de Mello Franco 6 0 postulado da dependéncia dos fendmenos psl- quicos e morais das condigdes do organismo do sujelto, intpirado por uma solugto monista da teoria mente

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