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A INFLUÊNCIA DA MÚSICA

JESUÍTA NO BRASIL INDÍGENA


DOS SÉCULOS XVI, XVII E XVIII

Disciplina: História da Música de Portugal I

Professor: Filipe Mesquita

Aluna: Juliana Wady Lopes ex14156


SUMÁRIO

I. INTRODUÇÃO

II. OS JESUÍTAS

2.1 Origem da Companhia de Jesus e chegada ao Brasil

2.2 Objetivos na América Portuguesa e o processo de catequização indígena

2.3 A expulsão do território brasileiro e suas consequências

III. A MÚSICA NO TRABALHO JESUÍTA

3.1 A prática musical e a educação: registros e relatos

3.2 Instrumentação

IV. CONCLUSÕES E REFLEXÕES

V. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
I. INTRODUÇÃO

Os jesuítas chegaram ao Brasil em 29 de março de 1549, liderados pelo Padre


Manuel da Nóbrega, com o objetivo de catequizar e “civilizar” os índios, este processo
foi se desenvolvendo até 1759 quando estes foram expulsos do território brasileiro. A
troca de elementos culturais foi intensa, ainda que muito mais proveitosa para o lado
dos colonizadores, já a música foi ferramenta religiosa e também educacional essencial
na influência cultural imposta pelos portugueses, os jesuítas especialmente.

Os estudos musicológicos nesta área ainda são poucos, feitos especialmente


pelos musicólogos brasileiros Paulo Castagna e Marcos Holler, mas suficientemente
aprofundados para nos trazer um bom conhecimento do que foi a música euro-brasílica
neste período. Algo determinante neste aspecto foi o fato das aldeias indígenas não
serem estáveis, pois se agrupavam ao redor das vilas e cidades e assim, além do contato
direto com o colonizador, o índio não tinha um foco exclusivo na catequese, nem na
educação, mas também faziam serviços para população em geral e tratavam de proteger
as vilas de qualquer ameaça. Por todos estes motivos o desenvolvimento musical não foi
tão acentuado quanto na América Espanhola, por exemplo, já que lá os índios viviam
mais isolados em meio à selva. Além disso, com a expulsão dos jesuítas, em 1759 no
Brasil, os poucos resgitos e bens acabaram por ser abandonados ou destruídos pelos
próprios senhores de terra que já não gostavam de sua presença, em contraponto, na
América Espanhola, com a expulsão em 1767, ainda encontram-se registos até mesmo
de partituras (HOLLER, 2006a, p.192-199; HOLLER, 2005, p. 1134-1135).

Estes estudos já realizados com relação aos primórdios da integração entre Brasil
e Portugal, ultrapassam as questões musicais e buscam trazer uma nova perspectiva de
reflexão sobre o passado e o presente que ainda carrega marcas (positivas e negativas)
sobre as duas culturas:

Permitir que comunidades urbanas reflitam sobre a situação indígena


nas aldeias e missões jesuíticas, bem como permitir às comunidades
indígenas entrar em contato com o legado histórico-musical jesuítico
e compreenderem - livremente e ao seu modo - o significado do
trabalho jesuítico nas Américas e no mundo, é hoje uma das
principais tarefas dos administradores e curadores de ações culturais
relacionadas à Companhia de Jesus. (CASTAGNA, 2014, p.9)

Por fim, este trabalho busca, ainda que de forma singela, fazer uma revisão
bibliográfica capaz de sintetizar os principais aspectos da influência jesuítica no Brasil
indígena dos séculos XVI, XVII e XVIII e também, principalmente, colaborar para o
estreitamento das relações musicológicas entre Brasil e Portugal. Nas palavras do
grande compositor e maestro português Fernando Lopes-Graça:

Que fazer para chegar a este desiderato? Que medidas tomar para se
efectivar um necessário e desejado intercâmbio musical luso-
brasileiro? Que soluções tentar? a que portas bater?

Fáceis e difíceis são as respostas: fáceis, porque se não trata de


nenhuma utopia e porque não seria impossível nem complicado
assentar-se num plano concertado de realizações; difíceis, porque
haveria que pôr em acção, de parte a parte, boas-vontades,
inteligências, o quanto de entusiasmo e de cabedal necessário para
que se chegasse a algum resultado positivo, e isto não se consegue
apenas por meio de artigos jornalísticos nem de discursos oficiais”
(LOPES-GRAÇA, Fernando. Op. cit., p. 287. apud CASTAGNA, 1995, p.
18)

II. OS JESUÍTAS

A natureza toda era sagrada. Havia que se restaurá-la, conquistando a


terra, conquistando as gentes, plantando a cruz (portuguesa) e batizando
os índios, fazendo-os cristãos (i.e. portugueses). [...] A obra
colonizadora era querida pelo rei e, portanto, era obra de Deus. Tudo
que se operasse estaria justificado. A catequese dos índios, da forma
como a entendia a sociedade portuguesa de então, atenderia
necessariamente aos intentos da colonização, intentos de uma sociedade
sagrada.
(PAIVA, 2000, p.7-8)

2.1 ORIGENS DA CAMPANHIA DE JESUS E CHEGADA AO


BRASIL

A Companhia de Jesus foi criada pelo Padre Inácio Loyola, em 1534 (apesar de ter
sido oficializada somente em 1540), enquanto estudava em Paris, ele e mais seis
companheiros, inicialmente, fizeram o Voto de Montmartre “através do qual
professavam pobreza e castidade, e decidiram peregrinar até Jerusalém, onde passariam
suas vidas a ajudar as almas; se o plano não tivesse sucesso, iriam a Roma e ofereceriam
seus serviços ao Papa [...]” (HOLLER, 2006a, p. 34). Nascido em 1491, em Guipuzcoa,
Nordeste da Espanha, o Padre Loyola refletiu no decorrer de sua vida “os ideais dos
jesuítas: o altruísmo, o ideal de catequização e a dedicação ao estudo e à erudição.”
(HOLLER, 2006a, p. 32), mas, nem sempre Loyola esteve a serviço da religião, em
1521 foi atingido por uma explosão de bala de canhão enquanto servia ao exército
espanhol em guerra com a França. Durante sua recuperação, no Castelo de Loyola, o
futuro Padre dedicou-se às leituras relacionadas aos Santos e foi então, no monastério
beneditino de Montserrat (Catalunha), que Loyola trocou a espada pelo bastão e
prometeu enfim peregrinar para a Terra Santa (ALMEIDA, 2010, p. 29).

Uma das principais características do fundador que também foi base para a
formação religiosa e educacional jesuítica, foi o apreço pelos estudos. Loyola acreditava
que o conhecimento era uma das mais importantes ferramentas da vida cristã, por isso a
educação jesuítica, por meio dos Colégios em Portugal e no Brasil, aliou os princípios
filosóficos às bases cristãs, oferecendo uma educação essencialmente humanista e, mais
especificamente aristotélica (ALMEIDA, 2010, p. 42).

É importante percebermos a função da Companhia de Jesus frente ao


Protestantismo, que se espalhava pela Europa, por isso, o ideal missionário passa a
ganhar mais força e relevância, uma vez que é uma boa arma para combater a nova
corrente religiosa. Em meio a este contexto histórico-religioso, em 1539, o Rei de
Portugal D. João III, também preocupado com as terras recém-colonizadas, solicita a
Roma a ajuda dos jesuítas, e assim, em 29 de março de 1549, ao comando do Padre
Manuel da Nóbrega, a armada Tomé de Souza chega à Bahia.

Na formação dos estabelecimentos jesuíticos, era conveniente que os aldeamentos


indígenas se fizessem próximo aos centros urbanos, para que os índios fossem mais
facilmente “civilizados” e também pudessem prestar serviços aos colonizadores. Para
cada aldeamento havia um Colégio associado, estes colégios eram os principais
estabelecimentos jesuíticos, pois tratavam justamente da formação educacional/religiosa
e alcançavam não só a população indígena como também os centros urbanos, já que
com o passar do tempo ofereciam, além da educação básica (ler e escrever), ensino
superior (HOLLER, 2010, p. 11; HOLLER, 2006a, p.37-41).

2.2 OBEJTIVOS NA AMÉRICA PORTUGUESA E O PROCESSO DE


CATEQUIZAÇÃO INDÍGENA

O principal objetivo da Companhia de Jesus era garantir a salvação dos gentios, para
isto os jesuítas utilizavam-se principalmente da catequização e do ensino da Língua
portuguesa. Mas, este objetivo, que vingou efetivamente e de forma mais pacífica até o
fim do século XVI, também carregava consigo outros interesses na exploração indígena,
não só dos padres como também da Coroa Portuguesa, dentre eles “a coleta de
especiarias não cultivadas que cresciam nas matas, a condução de canoas em expedições
e, sobretudo, a atuação como guerreiros, tanto contra inimigos indígenas quanto
europeus” (HOLLER, 2006a, p.38).

Além disso, atrelada aos ideais católicos, estava atribuída aos jesuítas a missão de
“civilização” dos indígenas, ou seja, o combate aos costumes “não europeus” que
envolveu todo um processo de aculturação. No início, muito deste processo foi movido
pela curiosidade dos índios, afinal, aquilo que os portugueses traziam consigo, desde os
objetos aos costumes, configurava-se como uma novidade estranha, mas, ao mesmo
tempo, encantadora. Apesar deste começo, como é claro, a aceitação da religião católica
por parte dos índios não foi tranquila, eles insistiam em manter os valores de sua cultura
(quando isso era possível) e quando não conseguiam fugiam. Muito da imposição física
foi utilizada e psicológica também, o medo do inferno e a promessa de salvação eterna
foram armas fortes na catequização (PAIVA, 2000). Como sintetiza José Maria de Paiva
(2000, p. 18):

A catequese serviu de instrumento para a imposição dos usos e costumes


portugueses. O índio, em todos os sentidos, sofreu a ação: teve voz passiva
porque as forças adversas eram incomparavelmente maiores. Ele sabia, na
carne, que costumes novos era destruição de sua tradição. Se cedeu, não foi
porque quis: foi por impotência. É isto que significa o “desejo” que tinha de
receber doutrina, de seguir os mesmos costumes cristãos. Faltavam-lhe
condições de debelar o intruso. Não podia fazer do português-invasor um
contrário como os outros contrários e dar-lhe guerra. O contrário era da
mesma raça e da mesma cultura, estava eminentemente presente, a cada gesto,
a cada passo, a cada momento; era o seu estímulo de vida social. Em
“linguagem contrária”, todo mundo se entendia. Com o português não se dava
o mesmo. Este veio como diferente. Diante dele o índio não tinha pontos de
contato que permanecessem inabaláveis: estremecia sua integração sócio-
cultural.

Na metodologia de catequização, que se inseria completamente na educação da


época, foi claro o papel da música: a partirmos do fato de que no início a música foi
proibida – “Segundo a Summa, nos estabelecimentos jesuíticos não se deveriam usar,
“na missa e em outras cerimônias sacras, nem o órgão e nem o canto” (SUMMA, 1539,
p. 19).” (HOLLER, 2011a) – podemos concluir que a igreja, especialmente o próprio
Loyola, já conhecia seu poder sobre o emocional humano (ALMEIDA, 2010, p.183),
por isso evitava o contato direto dos padres com a prática musical, como aponta
HOLLER (2007) “Segundo Loyola, a música absorveria os padres e tiraria sua atenção
do trabalho cotidiano. O próprio texto das Constituições deixa claro que haveria lugares
de sobra para os que desejassem ouvir música em um ofício, mas “aos nossos, porém,
convém que tratem do que é mais próprio à nossa vocação para a glória de Deus”
(CONSTITUTIONES, 1583 [1558], p. 210)”.
Portanto, foi com o pretexto do ensino religioso que grande parte da cultura
europeia foi inserida nos “brasis” (como eram chamados os índios), a língua e a música,
sendo estas grandes manifestações culturais, foram impostas, abrindo as portas para os
ideais e costumes dos colonizadores: “[...] a música europeia foi inicialmente cantada
pelos índios também como curiosidade, mas sem saberem que com esta música estavam
se entregando à deculturação e à catequese.” (CASTAGNA, 2010, p.9).

2.3 EXPULSÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO E SUAS


CONSEQUÊNCIAS

Os Jesuítas foram expulsos em 1759 devido à Lei decretada por Marquês de Pombal
em 3 de setembro. Dentre as várias possíveis causas, que aqui logo serão apresentadas,
uma pode ser particularmente curiosa: alguns estudiosos afirmam que haveria uma
questão pessoal entre Marquês de Pombal e os jesuítas, segundo as concepções de
Assunção (2004) e Cavalcanti Filho (1990) apresentadas por Holler (2006, p. 66):

A documentação da época torna evidente uma tentativa do Marquês


de Pombal de incriminar o máximo possível os jesuítas. Quando
ocorreu o atentado contra o monarca D. José I, em 1758, os
principais acusados eram os jesuítas, entre eles o Padre Gabriel
Malagrida, que havia feito duras críticas à Coroa (ASSUNÇÃO,
2004).

[...] Uma das explicações encontradas na literatura é o fato de o


Marquês de Pombal ter tido sua formação dentro do pensamento
iluminista do séc. XVIII, enquanto o ensino jesuítico representava os
ideais da escolástica medieval (CAVALCANTI FILHO, 1990)

Para além destas possibilidades, alguns outros motivos foram decisivos na


expulsão, entre eles os privilégios no sentido financeiro, como, por exemplo, o acúmulo
de bens, uma vez que os jesuítas eram isentos de muitos impostos pela Coroa
Portuguesa (HOLLER, 2006a, p. 67). Outro importante fator, e este mais diretamente
relacionado à produção musical, foi a proteção dos índios por parte da Companhia, em
razão do objetivo de catequização era preciso manter com o índio uma relação
minimamente amigável (se é que isto era possível) que “facilitasse” a imposição
religiosa/cultural, mas sem deixar de atender os interesses práticos como a realização de
trabalhos para a Companhia. Todos estes fatores despertaram grande descontentamento
nos grandes fazendeiros que também queriam poder fazer uso da mão de obra escrava
indígena, então, passaram a ver os jesuítas como verdadeiros inimigos.

As consequências desta expulsão se refletiram principalmente na perda de


registos históricos que hoje seriam essenciais para complementar as pesquisas das mais
diversas áreas sobre os primórdios da relação entre Brasil e Portugal. Sabe-se que houve
a destruição de diversos manuscritos, incluindo alguns referentes à música, assim como
o sequestro e abandono dos bens pertencentes aos jesuítas (depois doados ou leiloados
para outras instituições), como os instrumentos musicais (HOLLER, 2006b, p.54).
Como conta o Padre José Caeiro:

Quase toda a noite seguinte se passou em examinar os


objetos pertencentes aos jesuítas recém-chegados.
Quinhentos escudos que pertenciam a vários colégios, foram
roubados, assim como todos os livros, exceto os breviários e
todos os manuscritos, que desapareceram por completo. Das
outras coisas a maioria foi para o fisco, outras foram
roubadas e algumas foram restituídas aos jesuítas. (CAEIRO,
1936 [1777], p. 197 apud HOLLER, 2006a, p.201)

III. A MÚSICA NO TRABALHO JESUÍTA

E, tão logo se iniciava a aventura, seus representantes inauguravam, dentre


todos os métodos que utilizariam, uma prática que, com pequenas diferenças,
subsiste até hoje nos sertões do país: o ensino de orações e outros textos
cristãos cantados, na “língua brasílica” e na língua do conquistador.
(CASTAGNA, 1994, p.1)
3.1 A PRÁTICA MUSICAL: REGISTOS E RELATOS

Como já dito, no início a música foi proibida com a ideia de que ela poderia
desviar a atenção dos padres daquilo que deveria ser o objetivo principal da Companhia:
catequizar os índios. Após a morte do fundador, Loyola, em 1556, a utilização da
música ficou mais a critério particular de cada padre responsável por determinado
colégio, apesar de ainda haver restrições:

A prática musical é permitida como uma ferramenta de


conversão do gentio; nos estabelecimentos urbanos, pode ser
utilizada em eventos sacros, desde que seja restrita a
determinadas ocasiões, e que não seja realizada pelos
padres, para que estes possam ocupar-se do cuidado com o
bem espiritual (HOLLER, 2006a, p. 149)

A utilização, ou não, da música foi ainda motivo de polêmica por outros fatores,
que logo serão abordados, mas é importante ressaltar que “logo após a chegada no
Brasil, os padres jesuítas perceberam no uso do canto e de instrumentos uma ferramenta
eficiente na conversão de indígenas” (HOLLER, 2005,p.1133), e assim, com apenas 12
dias de vivência na nova terra, os padres já traduziam as principais orações católicas
para o Tupi (CASTAGNA, 2010, p.9).

Uma das principais estratégias desenvolvidas para aproximar os índios da


“salvação” foi a tradução destas orações que eram cantadas, ainda que em melodias
europeias, para o tupi. O contrário também aconteceu, ou seja, muitas canções já em
português eram executadas com melodias e instrumentos indígenas. O Padre Juan de
Azpilcueta Navarro foi um dos grandes responsáveis por este feito sendo um dos
primeiros padres que trabalhou com o ensino de música junto aos meninos índios e os
órfãos de Lisboa introduzindo, por exemplo, o “canto de órgão” (ALMEIDA, 2010, p.
81) e caracterizando a primeira hibridização musical euro-brasílica (CASTAGNA,
2014, p. 4).

O Padre José de Anchieta também muito contribuiu para este processo, uma vez
que traduziu muitas músicas para a língua indígena, estendendo sua atuação para a
dança e para o teatro (que nem sempre eram bem vistos para autoridades católicas). A
síntese promovida pelo padre foi intensa e muito significativa, utilizando de elementos
da mitologia tupi, dançando e cantando “à moda” dos índios e compondo a partir de
uma de suas técnicas preferidas que “envolve a utilização de romances, vilancicos e
cantigas populares como base para a construção de novas versões em caráter religioso”
(BUBASZ, 1996, p. 73). Um exemplo interessante, exposto na dissertação de Budasz
intitulada “O cancioneiro Ibérico em José de Anchieta – um enfoque musicológico”
(1996) é o da canção “Venid a suspirar” (Cancioneiro de Belém) que foi comparada
com a versão de Anchieta nomeada “Venid a suspirar com Iesú amado”:

(BUDASZ, 1996, p. 46)

Como era de se esperar, logo a estratégia de utilização da língua, melodia e


instrumentos indígenas foi duramente criticada por autoridades da igreja que se
mantinham em Portugal, como explica Castagna:

A segunda técnica [cantar orações em melodias e instrumentos indígenas] foi


proibida em 1552 e, a partir de então, somente a maneira europeia de se
cantar foi permitida1 Tal maneira, esta sim considerada cristã, consistia
basicamente no “cantochão” ou “canto gregoriano” - tipo de canto plano e
sem ritmo musical definido - e nas “cantigas”, canto com ritmo musical bem
definido. O cantochão era mais apropriado para orações, enquanto as
cantigas eram mais apropriadas para textos que continham os ensinamentos
básicos da vida cristã. (CASTAGNA, 2010, p.09).

Porém, o Padre Manuel da Nóbrega (um dos líderes dos jesuítas em território brasileiro)
argumentou defendendo os interesses reais da Companhia:

Se nos abraçarmos com alguns costumes deste gentio, os


quais não são contra nossa fé católica, nem são ritos
dedicados a ídolos, como é cantar cantigas de Nosso Senhor
em sua língua e pelo seu tom, e tanger seus instrumentos de
música que eles [usam] em suas festas quando matam
contrários e quando andam bêbados; e isto para os atrair a
deixarem os outros costumes essenciais e, permitindo-lhes
estes, trabalhar por lhe tirar os outros. (Car.MaNob.6,
[1552], pp. 406-407 apud HOLLER, 2006a, p. 154 )

Outra estratégia para facilitar o contato com os índios de outras tribos era levar para
estas regiões índios-músicos, como percebemos no relato do Padre Manuel Gomes:

cantores que cantavam os ofícios divinos em canto de órgão,


com flautas, charamelas e outros instrumentos músicos, [...]
para que vendo os gentios tudo feito por índios de nossas
doutrinas se afeiçoassem a receber nossa Santa Fé e
entendessem que o mesmo faríamos ensinando seus filhos.
(Car.MaGom, 1621, pp. 274-275 apud HOLLER, 2006a, p.
152 )

Ainda sobre as estratégias de catequização, a educação foi de extrema


importância. O Ratio Studiorum, sistema educacional jesuítico, muito valorizava a
filosofia aristotélica e a temática humanista, mas não fazia referência ao uso da música
como recurso didático, apesar dos relatos apresentarem a forte presença da música na
educação devida principalmente à facilidade musical apresentada pelos nativos e seu
espanto (num sentido positivo) com as novas melodias (ALMEIDA, 2010). Como
explica Castagna:

O ensino musical, durante a permanência dos jesuítas no Brasil, sempre


foi intenso, desempenhando forte papel no ministério com os indígenas. Da
insistência nessa “arte”, surgiriam índios capazes de reproduzir todas as
manifestações musicais básicas do culto cristão, os “nheengaribas” ou
“músicos da terra”, como seriam conhecidos entre os portugueses.
(CASTAGNA, 1994, p. 1)

Em 1553, é fundada a primeira escola de música, em São Vicente, mas ainda era
nos Colégios que ocorria a formação musical de forma mais específica, estudo da
leitura, canto, instrumentos, música polifônica, etc. (ALMEIDA, 2010, p. 191).
Portanto, como já muito foi apontado neste estudo, a educação se configurou como
aliada de processo de catequização mas também, e principalmente, como arma da
aculturação.

3.2 INSTRUMENTAÇÃO1

Os instrumentos durante o século XVI já se faziam muito presentes. A música


era principalmente executada pelos meninos índios, os "brasis", e também pelos órfãos
enviados de Lisboa para os colégios, cerimônias e missas. O uso destes instrumentos,
sejam indígenas (como ocorreu no início do processo) ou não, foi também visto como
estratégia para catequização, como afirma Holler (2006a, p. 71):

O uso de instrumentos por Nóbrega para atrair os índios seria um


fato bastante conhecido na Companhia de Jesus sendo mencionado
em vários documentos posteriores, até o séc. XVIII, como na História
da Companhia de Jesus na Vice-Província do Maranhão do ano 1607
a 1700, de 1770, atribuída ao Padre Matias Rodrigues, segundo a
qual “o Padre Manuel da Nóbrega, apóstolo do Brasil, não duvidava
que os instrumentos músicos, mesmo que bárbaros, trariam os índios
a Cristo” (His.ProvMar, 1770, p. 37)

O século XVII teve como principal característica a ampliação do domínio


português no Brasil, assim, os relatos sobre as práticas e instrumentos musicais
aumentavam significativamente. Novos instrumentos passaram a surgir, como as
charamelas, por exemplo, porém, os relatos que continham a presença da música foram

1
Todas as informações referentes à instrumentação da época foram retiradas especificamente dos três trabalhos
de Marcos Holler que datam 2006a, 2006b, e 2011b.
tornando-se cada vez mais escassos no século XVIII, e com a expulsão dos jesuítas, em
1759, perderam-se muitos vestígios de sua atuação musical como já foi discutido neste
trabalho.
Dentre os instrumentos de sopro podemos citar primeiramente as flautas, afinal
este foi o instrumento mais utilizado pelos jesuítas no início do processo de
catequização (do século XVI até início do século XVII), muito graças à facilidade para
sua construção e execução e também por ser um instrumento comum entre portugueses
e indígenas. As charamelas surgem nos relatos somente a partir do século XVII, e
poderiam se referir também aos instrumentos de metal:

"Essa dupla acepção do termo pode ser percebida no inventário dos


bens da igreja da Fazenda de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, que
descreve “oito charamelas”, sendo “um baixo de metal amarelo” e as
demais “de pau” (Inv.FazSCruz, 1768, p. 77 apud HOLLER, 2006, P.
91.)

O nome “trombeta” também foi bastante mencionado durante os três séculos


(XVI, XVII e XVIII), porém, sua especificidade (da forma que conhecemos hoje)
variou muito, já que na época os instrumentos de sopro eram muito utilizados e, por
isso, nem sempre correspondiam a um instrumento em particular. Outro bastante
mencionado, ainda que misterioso, foram as gaitas: apesar de muito utilizada em
Portugal, não se encontrou nenhum registo da utilização da Gaita de Fole no Brasil, por
isso acredita-se que o termo “gaita” poderia fazer referência aos instrumentos indígenas,
como percebido no relato do Padre João Daniel, em 1771:

"[Os índios] têm para isso suas gaitas e tamboris; pois ainda que não
têm ferro, lá têm habilidade de fabricarem as gaitas de algumas
canas, ou cipós ocos, ou que facilmente largam o âmago; e os
tamboris de paus ocos, ou se é necessário os ajustam com fogo. Uma
das suas gaitas muito usada é uma como flauta, a que podemos
chamar o pau que ronca, com três buracos, dois na parte superior e
um na inferior; e ordinariamente o mesmo, que a toca, bate com a
outra mão no tamboril. E não há dúvida que alguns o fazem com
perfeição, e com suave e doce melodia, ajustando as pancadas do
tamboril ao som da flauta, bailando juntamente compassados, de
modo que podem competir com os mais destros galegos e finos
gaiteiros. Nem é necessário que alguém os ajude; porque o mesmo
com a mão esquerda e dedos, sustenta, toca e floreia na gaita;
debaixo do braço pendurado o tamboril, e com a mão direita o vai
batendo e tocando. (Rel.JoDan, 1776, t. 1, p. 205 apud HOLLER,
2006, p. 93)

Gaitas (acima) e pífanos (abaixo) de metal, de Pernambuco e Alagoas.

(Fonte: OHTAKE, 1988, p. 89 apud HOLLER, 2006a, p. 97)

Relativamente aos instrumentos de cordas podemos citar especialmente as


rabecas e as violas (dedilhadas). As referências aos instrumentos de corda e arco só
começam a surgir no fim século XVII e somente no século XVIII é que estes
instrumentos ganharam mais força, além disso, no século XX, foram encontradas
algumas aldeias em São Paulo e Tocantins nas quais as rabecas ainda eram utilizadas,
porém não se pode afirmar com certeza se essa utilização seria por influência
portuguesa.
Rabeca krahô

(Fonte: OHTAKE, 1988, p. 43 apud HOLLER, 2006a, p. 115)


Rabeca guarani

(Fonte: OHTAKE, 1988, p. 42. apud HOLLER, 2006a, p. 114)

Por fim, os teclados: com relação aos cravos, as referências são muitas durante o
século XVI, porém nos séculos XVII e XVIII os relatos tornam-se mais escassos, neste
último não houve nenhum cravo mencionado nos inventários. Era tocado, na maioria
das vezes, por estudantes e meninos índios durante as missas. O órgão, assim como o
cravo, aparece várias vezes durante o século XVI, no século XVII há somente um
registo, porém, no século XVIII aparecem novamente nos inventários. Estes estavam
presentes nos colégios jesuíticos, nas igrejas e também em algumas aldeias, os próprios
índios eram aprendizes do instrumento. Um termo importante para considerarmos é o
“canto de órgão” que nada tem a ver com o instrumento propriamente dito, mas se
refere à música polifônica:.

Celebram-se no decurso do ano as festas e na Quaresma os Ofícios


Divinos com música de canto de órgão com seus instrumentos
competentes, tudo executado pelos mesmos índios com notável asseio
e devoção, com que se edifica o povo circunvizinho que a eles
concorre. (Car.DioMach, 1689, f. 270 apud HOLLER, 2006a, p. 82)

A Capela de Nossa Senhora do Rosário, em Embu, próximo a São Paulo, tornou-


se um museu que, hoje, abriga diversos objetos da época jesuítica..Entre eles encontra-
se um pequeno órgão (provavelmente já do século XVIII) e possui como
características: apenas um teclado, não tem pedaleira, contém cinco registos e 234
flautas de metal e 32 de madeira (HOLLER, 2006a, p. 121):

Órgão da Capela de Nsa. Sra. do Rosário, no Embu.

(FONTE: HOLLER, 2006a, p.123.)


V. CONCLUSÕES

É possível refletirmos, em primeiro lugar, no poder de influência que a música é


capaz de exercer num processo de aculturação como o que ocorreu entre os jesuítas e os
indígenas. Através dos ritos religiosos e da educação (esta também completamente
atrelada à religião) a música foi inserindo valores culturais e dentre eles, e
principalmente, a língua portuguesa. Claramente isto não se restringiu ao Brasil e
Portugal, mas hoje, principalmente em virtude dos estudos etnomusicológicos, vê-se a
música não só como a grande manifestação cultural que é, mas como fonte de
descoberta das mais intrínsecas hibridizações.

Partindo desta ideia encontramos um paradoxo na história que requer atenção: a


imposição cultural por parte dos jesuítas (especificamente) com certeza alterou e
prejudicou toda uma tradição indígena que antes estava mais “pura” e conservada,
porém, a proteção dos índios por parte dos jesuítas para com os grandes senhores de
terra (ainda que somente até o período de expulsão em 1759) foi um fator positivo, e
hoje podemos ver, inclusive através de canções indígenas, várias referências ao
catolicismo, ou seja, a fusão de elementos culturais (A+B) possibilitou a formação de
uma terceira ideia de cultura (A+B=C), uma cultura híbrida em muitos aspectos.

É necessário pensarmos em até que ponto esta fusão foi positiva, se é que foi, e a
partir de qual momento tornou-se um etnocídio, no sentido de “esmagar” valores
culturais em detrimentos de outros ditos superiores. O objetivo desde pequeno trabalho
não é oferecer nenhuma conclusão neste sentido, mas partilhar de algumas ferramentas,
ainda que poucas, para fazer-nos refletir na história e no passado cultural e musical de
ambos os países estabelecendo relações com o presente. É verdade que atualmente, os
índios brasileiros ainda sofrem não só a opressão cultural como também física, os
diversos assassinatos devido à luta pela preservação de sua terra contra os grandes
agricultores e “novos” exploradores, o conhecimento e a valorização de sua cultura por
parte da população brasileira, assim como o direito de inserção na sociedade moderna,
como, por exemplo, na própria universidade.

Portanto, o que podemos depreender deste estudo é que apesar de tratar dos
primórdios do encontro entre Brasil e Portugal, os estudos musicais que investigam as
relações entre estes devem se fazer cada vez mais presentes na musicologia. É preciso
reconhecer que através da história da música (e cultura) brasileira, Portugal se conhece
melhor e de forma mais completa, e assim também o contrário. A busca por esse
conhecimento não deve ser só pela riqueza particular que cada um apresenta, mas pelo
tesouro conjunto que se constrói nas pontes históricas entre os dois países e para maior,
e melhor, compreensão dos aspectos musicais que se desenvolveram pelo processo de
hibridização cultural. Finalizando com as palavras do musicólogo Paulo Castagna
(1994, p.11):

Desse passado, de particular interesse para a musicologia, resta


recuperar e estudar os documentos mais importantes, principalmente
os documentos sonoros, para incorporá-los à história de nossa
prática musical. Não como “peças de museu”, mas como exemplos
vivos de um tempo ainda não tão distante, para não ter o que nos
ensinar.

VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Ana Cristina (2010). A música no embate metodológico entre a educação


jesuíta e a educação pombalina: os acordes finais. Tese apresentada ao programa de
Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para a obtenção do
título de Doutor em História Social. São Paulo.

BUDASZ, Rogério (1996). O cancioneiro Ibérico em José de Anchieta – um enfoque


musicológico. Dissertação apresentada à Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre
em Musicologia.

CASTAGNA, Paulo (2014). Vivenciando o paradoxo musical jesuítico. Simpósio


nacional realizado por ocasião do bicentenário da restauração da Companhia de Jesus
(1814-2014), São Paulo, 8-10 mai. 2014. Anais. São Paulo: Loyola. p.233-240. ISBN:
978-85-15-04212-8.

__________________ (2010). Música na América Portuguesa. In: MORAES, José


Geraldo Vinci; SALIBA, Elias Thomé. História e Música no Brasil. São Paulo:
Alameda. Capítulo 1, p.35-76. ISBN: 978-85-7939-020-3.

__________________ (1995). Musicologia portuguesa e brasileira: a inevitável


integração. Revista da Sociedade Brasileira de Musicologia, n.1, p.64-79, São Paulo.

__________________ (1994). A música como instrumento de catequese no Brasil dos


séculos XVI e XVII. D.O. Leitura, ano 12, n.143, p.6-9, abr., São Paulo.

HOLLER, Marcos (2011a) A. O mito da música nas atividades da Companhia de


Jesus no Brasil colonial. Universidade do Estado de Santa Catarina. Apresentação de
Trabalho/Congresso. Florianópolis.

________________ (2011b) . O órgão no Colégio dos Jesuítas em São Paulo no séc.


XVIII: a pesquisa histórico-musicológica em documentos do Arquivo Nacional. Acervo
Rio de Janeiro, v. 24, p. 89-98

________________ (2010). Os jesuítas e a música no Brasil colonial. Campinas:


Editora da Unicamp, p. 1-20.

________________ (2007). O mito da música nas atividades da Companhia de Jesus


no Brasil colonial. Revista Eletrônica de Musicologia , v. 11, p. 2.

________________ (2006a). Uma História de Cantares de Sion na Terra dos Brasis: A


Música na Atuação dos Jesuítas na América Portuguesa. Tese em 2 volumes
apresentada ao Curso de Doutorado em Música do Instituto de Artes da UNICAMP
como requisito parcial para a obtenção do Título de Doutor em Musicologia. Campinas.

________________ (2006b). Os instrumentos musicais no processo de expulsão dos


jesuítas em 1759. Em Pauta (Porto Alegre), Porto Alegre, v. 16, p. 49-74.

________________ (2005). A música na atuação dos jesuítas na América Portuguesa.


Apresentação de trabalho. ANPPOM – Décimo Quinto Congresso.
Paiva, José Maria de (2000). Transmitindo a cultura: A catequização dos índios no
Brasil, 1549-1600. Revista Diálogo Educacional, vol. 1, núm. 2, julio-diciembre, 2000,
pp. 1-22 Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Paraná.

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