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Museu de Arte Romana, Mérida. Entrada


Diferentemente do que se tem visto na produção
contemporânea do ‘ ‘ ‘
arquitetônico, o
trabalho de Rafael Moneo não invoca uma imagem
arquetípica. Tão distante da deconstrução quanto da
arquitetura µsem forma¶ que marcaram os anos 90, os
edifícios de Moneo se esquivam das formas fortuitas
da fragmentação e da paisagem amorfa e se empenham
numa arquitetura que não esteja nem forçosamente
fragmentada nem reduzida à topografia. Eles estão
fundamentados numa relação orgânica com a paisagem
que os envolve, ecoando tanto o pensamento de Aalto
(1) quanto a crítica italiana à arquitetura
moderna, alavancada pelo pensamento de E. N. Rogers
(2). É assim que sua prática projetual reclama a
exceção como norma. Cada projeto pauta-se pelo
programa assim como pela especificidade descoberta
em cada lugar, pela linguagem arquitetônica
apropriada, pelo material e técnica construtiva
convenientes. Buscando amplamente respostas
projetuais que considerem µ ‘   ‘
    ‘
 ‘  ‘‘, as soluções formais
encontradas por Moneo são diretamente dependentes
destas condições específicas, pouco afeitas a uma
estética adotada a priori. Esta flexibilidade
pragmática e a abordagem eclética que Moneo vem
demonstrando ao longo de seu trabalho descortinam
sua rejeição aos imperativos de um µestilo¶
repetível.
É sabido o peso do repertório da história da
arquitetura na obra de Moneo, que, contudo, não
aflora mimeticamente, mas serve de referente
porquanto fomenta as investigações que antecedem o
projeto. A reelaboração de certos temas
arquitetônicos muitas vezes ± algumas mais
acertadas que outras ± é a estratégia que orienta a
solução projetual. Precisamente, me refiro aqui aos
projetos do aeroporto de Sevilha, que refaz
literalmente e sem muito êxito um sistema abobadado
mouro, e o aclamado museu de Mérida, que
compenetrou-se das estruturas locais nas decisões
do desenho.
O projeto do Museu Nacional da Arte Romana
inaugurado em 1986 em Mérida trata de evocar o
passado romano da cidade na arquitetura do
edifício, construindo uma ambiência mediadora entre
as peças do acervo, conhecido de antemão, e o
espaço que vai guardá-las sem tropeçar na imitação
estreita da arquitetura romana. O desejo de
aproximar o mundo romano, base do projeto, foi
enfatizado no interior do museu onde se ilustra o
sistema construtivo romano por excelência.
Esquematicamente, o museu está instalado num
sistema de muros paralelos, ortogonal à rua,
acolhendo nos seus interstícios as salas e os
nichos expositores. Paredes de concreto revestidas
com tijolos aparentes dão suporte formal a uma
arquitetura de muros na qual o problema dos
intervalos, das aberturas e das proporções é
questão fundamental. O sistema todo é vazado
ortogonalmente por uma seqüência de arcos de meio
ponto que abre a perspectiva para a nave onde ficam
as peças de maior vulto, na sua grande parte
artefatos de mármore branco que contrastam com a
cor e a textura dos tijolos, iluminados quase
sempre pela luz natural.
Ao lado desta nave, o pé-direito de grandeza
imperial definido entre os muros paralelos se
subdivide em três plantas, recortadas e nem sempre
coincidentes, acomodando espaços de dimensões e
proporções mais intimistas, a fim de expor objetos
menores e mais delicados. A disposição lateral
destas pequenas salas rompe a frontalidade
cenográfica da nave. A articulação estabelecida
entre elas por meio de recortes nos pisos, de
passarelas e de aberturas internas, dá uma dinâmica
qualificadora e vital a estes pequenos espaços de
exposição para mosaicos, vidraria, cerâmica,
moedas, e outros objetos romanos. Conciliando
investigação espacial e linguagem arquitetônica
específica, a solução revelou-se surpreendente.
Apesar da ortogonalidade do sistema estrutural
adotado para o museu, o edifício não impõe à malha
urbana um artefato intransigente na forma,
diferentemente do que chegaria a resultar uma
proposição que se emaranhasse nas idéias formais do
mundo romano, as de Le Corbusier por exemplo. Dois
blocos de três pavimentos, mais o subsolo onde se
visita o sítio arqueológico, assentados em direções
perpendiculares, ajustam-se discretamente ao
traçado viário existente e ao terreno irregular de
esquina. O maior é o que abriga o acervo e,
disposto longitudinalmente no lote como está, dá à
estreita rua lateral uma fachada erguida em tramos,
delineados pelas pilastras externas e forçados pela
acomodação da ortogonalidade do esquema interno à
irregularidade do contorno da área, fazendo crescer
a profundidade dos nichos laterais no interior do
museu na progressão em que aumenta a largura do
lote. O menor, destinado à pesquisa e conservação
das peças e demais serviços, está disposto na
esquina, ao longo da rua principal que limita o
terreno no seu lado menor e circunda o parque onde
estão circo, teatro e anfiteatro romanos, abrindo
ao longo do passeio uma seqüência de janelas com
venezianas de madeira com tratamento quase
residencial. Levanta-se a platibanda do bloco junto
à rua secundária para se desenhar um portal.
À entrada do edifício informa-se aquilo que a que a
massa contingente não revela. Rompendo com a
discreta aparência dos muros externos de tijolos à
vista, a escultura e a inscrição MUSEU no mármore,
entre o arco na parede e a porta de bronze em
relevo, proclamam a função da edificação nada
aparente até então. No espírito da ÿ  ‘ de
Venturi, informação conjuga-se aqui a vestígio
daquilo que está depositado no interior do edifício
a fim de construir um detalhe ornamental, com o
qual se apresenta solenemente a mensagem desta
arquitetura. É neste sentido que aparecem as
contribuições teóricas do americano à arquitetura
de Moneo, uma arquitetura comunicativa, na acepção
venturiana do termo, com certa reserva, no entanto,
no emprego dos recursos figurativos convencionais e
na decoração pop a que Venturi recorre em suas
obras.
No caso da Fundação Pilar e Joan Miró, aberta em
Palma de Mallorca em 1992, a solução formal dada ao
projeto refere-se diretamente ao léxico formal da
arquitetura moderna. O esquema do edifício
implantado na pendente acentuada de um terreno que
outrora avistava o mar refere-se à reedição de uma
velha fórmula já conhecida dos modernos, a do
edifício-lâmina com uma massa justaposta,
empregadas várias vezes e com distintas roupagens
como o Pavilhão Suíço (1932), Cité de Refuge
(1933), Casa do Brasil (1959), construídos por
Corbusier, ou as lâminas retas e curvas de Niemeyer
com figuras orgânicas justapostas, para citar
apenas alguns exemplos.
A edificação retangular, na parte alta do terreno,
abriga o centro de estudos, cujo programa usual ±
biblioteca, auditório, administração, salas de
estudo ± está disposto em três andares, sempre
estruturados ao longo de uma galeria com aberturas
veladas para o jardim. Um edifício administrativo
formalizado no esquema comum salas-corredor.
Acoplada a este bloco, instalada num nível mais
baixo, aparece uma figura estrelada que expõe o
acervo da fundação, capturando nesta forma um pouco
da vivacidade da obra de Miró. A amplitude da sala
de exposições é articulada internamente pelos
cantos que vão formar as pontas da estrela e pelos
três patamares do piso. A disposição da linha
quebrada que desenham as paredes, associada ao
efeito da iluminação destas aberturas e do foco de
três clarabóias, estabelece uma profusão de paredes
para o museu.
Desde a parte alta do terreno, o prisma retangular
estabelece um limite físico e visual à perspectiva,
que é redirecionada pela abertura que traspassa o
bloco, onde se dá a entrada e de onde se descortina
à vista o mar ao longe, por sobre o espelho d¶água
na cobertura do bloco de exposições. À primeira
vista, o poder evocativo da sua figura se dissolve
no efeito do espelho d¶água instalado na sua
cobertura, pois a idéia de Moneo tencionava
recuperar a presença perdida do mar, bloqueado pelo
adensamento da zona, por meio deste tanque suspenso
que visualmente se conecta com as águas distantes.
Descolado dos limites do terreno e alienado da
vizinhança imediata, todo o conjunto está isolado
por brises de concreto que filtram a luz intensa da
ilha. A sala de exposições tem aberturas sem
peitoril que emolduram vistas do jardim e do
espelho d¶água externo, encimadas por outras que
apenas irradiam a luz através de painéis de
alabastro. Não é gratuitamente que o projeto vai
referenciar uma composição modernista. Com intensa
força centrípeta, o edifício de argamassa colorida
responde à sensível degeneração da encosta, causada
pela especulação negligente. Na perspectiva, o
edifício abstraído se engaja com o horizonte; no
plano, como uma figura que inventa o fundo que lhe
faz o jardim, seu figurativismo recria a paisagem
que se oferece às sacadas dos arredores.
A influência externa na conformação da solução
arquitetônica também pode ser notada no projeto
ganhador do concurso internacional restrito
convocado pela Seção de Arquitetura da Bienal de
Veneza em 1990 para a reconstrução do Palácio do
Cinema, sede do festival de Veneza, situado na ilha
do Lido (3). O projeto de Moneo acabou
distanciando-se das demais propostas apresentadas
por formalizar uma arquitetura de extrema
funcionalidade ao mesmo tempo em que dava vazão a
um lirismo enxuto de modo direto e parcimonioso. O
edifício sugere a tipologia de
um  veneziano, embora fora acertada a
decisão de que não cabia a esta arquitetura retomar
os motivos emblemáticos da paisagem veneziana ou
tentar sobrepujá-la. O respeito pelo contexto não
se dá pela recuperação nostálgica dos elementos
formais do passado arquitetônico circundante, nem
por uma postura preservacionista radical. Certo de
que o Cassino Municipal construído nos anos 30 na
vizinhança do Palácio é um fato urbano marcante,
Moneo opta por deixar clara sua preeminência,
interpondo uma certa distância entre os dois.
Solene desde o acesso principal e austero pela
aparência que não faz concessões a ornamentos ou
adereços, o projeto que prevê a demolição do antigo
Palácio do Cinema revigora-se na arquitetura
rigorosa, que constrói seu discurso através da
própria da forma tectônica, sem cair na retórica
descartável ou na mera publicidade. A partir de uma
solução funcional, o projeto realiza alguns lances
poéticos na marquise, na iluminação zenital do
vestíbulo-pátio, no arranjo estudado das salas, na
estrutura metálica que dá à fachada principal um
aspecto menos severo, mais festivo.
Situado no Passeio Marítimo, o edifício dá as
costas ao Adriático e o faz solenemente: é intenção
do projeto olhar para Veneza e nesta direção está
orientado o prisma que se abre ao canal que limita
o terreno sob uma enorme marquise que se projeta
sobre as águas a fim de resguardar embarcações que
chegarão para as sessões dos festivais. O arquiteto
reforça o sentido desta marquise, criada não apenas
para atender esta finalidade, mas imaginada como um
piso suspenso para criar um terraço desde onde
apreciar o cenário excepcional de Veneza,
prolongando até o exterior o clima animado de um
café-bar. Salas de cinema ganham o papel principal
quando no escuro; entretanto, são coadjuvantes dos
ambientes variados sugeridos na amplitude do prisma
retangular que esquematiza o edifício. As caixas
escuras das salas de projeção agrupam-se de modo a
criar contornos favoráveis ao encontro, às relações
sociais, ao passeio. O espaço protagonista é um
imenso vestíbulo-pátio, de onde se acede às demais
dependências do Palácio.
Há um bem dosado equilíbrio entre a disciplina
modernista e a sensibilidade pós-moderna aos
elementos extra muros, à luz das idéias de Rossi,
na medida em que os projetos de Moneo, imbricados
em contextos historicamente densos, operam também
com a memória e a analogia, embora a ênfase na
tradição, a questão tipológica e os elementos
lingüísticos tenham dado à arquitetura do italiano
um caráter mais restritivo na forma e acadêmico na
composição. Entrementes, os edifícios desenhados
por Moneo têm respondido apropriadamente à paisagem
urbana e às preexistências e, de certo modo, todos
eles reconhecem o lugar e presumem estar incluídos
neles, criando uma nova percepção das condições
dadas. Foi assim em Mérida, em Veneza, em San
Sebastián.
Inaugurado em 1999, o Auditório Kursaal de San
Sebastián é conformado por dois blocos a a a,
referentes ao auditório e à sala de convenções,
dispostos como rochas gigantescas diante da praia,
junto à foz do rio Urumea. Um µacidente quase-
geográfico¶ a complementar a preexistência. Neste
caso, o edifício não pertence à cidade, faz parte
da paisagem. Ao fundo a cena urbana, construída em
quadras monolíticas de cota regular, contrasta com
a ortogonalidade inclinada dos dois volumes, o
maior com aproximadamente 60x48m com 27 de altura e
o menor medindo 43x32x20m. A simplicidade
minimalista dos volumes tombados diante do mar e a
superfície totalmente envidraçada dos dois prismas
reforçam a solução escultórica do conjunto. Os dois
volumes, embasados por uma plataforma que contêm as
demais instalações necessárias ao funcionamento de
um empreendimento deste porte, na verdade são duas
salas cegas, caixas com acabamento em madeira,
resguardadas pela estrutura metálica que sustenta
uma película dupla de vidros, planos do lado
interno e curvos no exterior, que as envolve,
criando internamente uma atmosfera cálida e neutra
para o foyer.
Desde estas obras, e estendendo-se a outras,
reconhece-se um enfrentamento da arquitetura com
uma atitude menos dogmática, de maneira que a ação
projetual rejeita o autoritarismo seja ele de forma
ou de estilo, deixando de lado a solução formal
como categoria a priori, e esquiva-se de um
discurso teórico restritivo, o que vai dar lugar a
uma arquitetura da diversidade, ausente de
generalizações.

1
De acordo com Aalto, "a arquitetura não pode se livrar
das contingências humanas, naturais; não deve fazê-lo
jamais, pelo contrário, deve aproximar-se da Natureza,
dando a este termo uma acepção tão ampla que compreenda a
sociedade, a cidade e os costumes". In: REGO, R. L. A
palavra arquitetônica. São Paulo, Arte & Ciência, 1999.
2
"Devemos tratar de harmonizar nossas obras com as
preexistências ambientais, seja com as da natureza, seja
com aquelas criadas historicamente pelo engenho humano".
E. N. Rogers. In: MONTANER, J. M. Arquitectura y crítica.
Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 1999.
3
Publicado em Domus, 730, setembro, 1991, p. 54-77.
  
Renato Leão Rego é doutor em Arquitetura pela Universidad
Politécnica de Madrid e professor adjunto do Departamento
de Engenharia Civil da Universidade Estadual de Maringá,
UEM.
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