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3.

A preexistência

a) As realidades previas e fundantes da ideia

A reflexão cristológica, tal como se inicia nos escritos do NT, pressupõe os seguintes
elementos: experiência do Cristo terrestre; pro-existência da sua vida, concluída com a
morte em favor dos homens; excesso do seu fazer superando toda espera humana e toda
potencia humana, de forma que faz exclamar assombrados e aclamar agradecidos num
hino de amor de Deus; convicção de que o que tem acontecido em Cristo provem de
Deus, pertence a Deus e é Deus mesmo na medida em que entre Deus e Cristo se dá
unidade de ação, palavra e destino. Estes quatro elementos conjugados fazem surgir uma
serie de categorias à luz das quais a cristología posterior compreenderá quem era, da onde
vinha e como conseguiu levar a cabo Cristo a redenção do pecado e a comunicação da
vida divina aos homens. As categorias claves para a cristología sistemática em diante
serão: preexistência, mediação na criação, missão, encarnação, kénosis, revelação,
divindade.

b) O ponto de partida: Cristo revelador escatológico

M. Hengel fala duma “necessidade interna” do conceito de preexistência. No ponto


de partida está a percepção refletida da autocomunicação definitiva e irrevocável de Deus
em Cristo, em solidariedade com o nosso destino de pecadores e em atração da nossa
existência à sua própria vida. A relação de Jesus com Deus no tempo, na medida em que
nele Deus se nos outorgou aos homens, levou a descobrir que essa relação de Jesus com
Deus não se iniciava no tempo nem estava condicionada pela ação salvifica mas que
pertencia ao seu ser mesmo. Si Cristo pertencia em quanto Filho ao ser de Deus e não só
ao tempo dos homens, então era normal que ele compreendesse a sua existência como um
“envio” pelo Pai, que fora vivida como “obediência” ao Pai, e que entre ambos se dera tal
unidade de ação que São Joao poda dizer que Jesus e o Pai são uma mesma coisa (10,30).
O descobrimento sob a ação do Espirito Santo dentro da Igreja e na luz da fé sobre como,
em Cristo, Deus nos estava dado tão irrevogavelmente que nele se consumavam as
mediações salvificas conhecidas do AT, levou à afirmação de que Cristo preexistia em
Deus antes da criação do mundo, que tinha sido enviado por ele, que a sua obediência e
fidelidade prolongavam no tempo a sua filiação eterna. Esta é a matriz religiosa e

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soteriológica da que nascem as categorias de preexistência, missão e encarnação. A Igreja
chega a elas fazendo memoria da vida, morte e ressurreição de Jesus, pensando o que
significa a salvação e como foi realizada por Cristo, ao mesmo tempo que indagando
quais são as condições de possibilidade para que essa salvação seja “escatológica”, quer
dizer, insuperável e irrevogável. A conclusão é que Deus estava em Cristo, que Cristo
tinha unidade de ser e não só de destino com Deus. Neste sentido podemos dizer que tais
convicções da Igreja são revelação de Deus. O Espirito va completando a verdade de
Jesus, desvelando à Igreja o fundamento da sua ação salvífica, mostrando a sua origem
divina e a identidade pessoal do homem Jesus com o Filho, junto com a sua preexistência
no seio do Pai.

Tudo isto não podia ser falado por Jesus mesmo, porque faltavam as condições
objetivas para o entender: a) Por parte de Cristo, já que ainda não tinha sido glorificado e
o seu ser não era ainda a plena expressão e manifestação de Deus. b) Por parte dos
discípulos, já que sem o dom do Espirito não “podiam” ainda compreender tais
afirmações de Jesus (Jo 16,12-13). A verdade completa de Jesus é fruto da ação
inspiradora do Espirito Santo, que foi legado por Jesus como a sua memoria eficaz e o
seu interprete autentico. Foi fruto também da ação reflexiva da Igreja que indagou os
fundamentos de possibilidade para a sua afirmação do caráter escatológico do Mediador
da nossa salvação.

c) O sentido soteriológico do binômio: preexistência-envio

A preexistência de Cristo não é uma teoria metafisica, surgida em contextos


filosóficos ou religiosos alheios à tradição bíblica e projetada desde fora sobre Cristo. As
afirmações sobre a preexistência têm um fundamento histórico e uma finalidade
soteriológica, tentam explicar o sentido da existência de Cristo na carne e sobretudo da
sua morte. Todas as formulações do “envio do Filho” vão acompanhadas da preposição
͑ίνα (= para, para que), sendo enunciadas como fundamento da redenção e da filiação que
Cristo faz possível aos homens por si mesmo e pelo Espírito (cf. Gal 4,4-5; Rom 8,3-4;
1Jo 4,9).

Os outros textos fundadores da ideia de preexistência aparecem nos hinos


cristologicos, especialmente Flp 2,6-11. O qual é uma peça literária de origem pre-
paulino, que tem o seu modelo nos salmos e os relatos sapienciais que no AT narram as

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ações salvificas de Yhvh, surgida no contexto ou com a finalidade litúrgica, é uma
parábola do destino de Jesus, quem existindo na forma de Deus não retém como si fosse
um rapto essa condição divina, senão que se despossui dela. A encarnação é a primeira
forma de humilhação que caracterizará toda a vida de Cristo. A resposta de Deus a essa
kénosis é a glorificação, com a entrega duma forma divina de existência (nome) e a
potestade de santificação e juízo sobre os homens (kyrios). Mas a kénosis pode se
entender também num outro sentido: Cristo, existindo com poderes divinos neste mundo,
não reclama honras divinas nem se manifesta como Deus (ocultamento) mas como
homem. Cristo seria então a figura antitética de Adão, aquele que sendo de condição
divina escolhe viver de forma humilhada, em quanto que este, sendo de condição
humana, reclama ser como Deus. O final do cmainho kenótico é a morte na cruz, suprema
degradação do homem até no seu corpo, que Cristo comparte com os escravos
crucificados do mundo.

d) A preexistência em São João

O texto central para afirmar a preexistência de Cristo é o prologo de São João, que se
tem apropriado os conceitos veterotestamentarios de Sabedoria, Palavra, Shekinah, para
colocá-los no termo grego Logos. Essas figuras mediadoras da ação criadora, salvadora e
santificadora de Deus no mundo, encontram a sua culminação em Cristo, descoberto
desde o final da sua historia como Logos existente em Deus. Agora bem, no prologo a
encarnação (1,14) tem uma ultima significação soteriológica, não só porque a ultima
função do Filho é nos dar a possibilidade de ser “filhos” (1,12), mas porque ele tem sido
desconhecido e rejeitado pelos seus (1,11). Essa rejeição é a morte na cruz por nós. Desta
forma o Logos assume ou atrai para si também a mediação sofredora do Servo de Yhvh
(Is 52,13-53,12), e pode aparecer perante os homens como a plenitude da qual todos os
anteriores e os posteriores participam (1,16). A lei, a sabedoria, a palavra, a interpretação,
o sofrimento vigário de profetas e servos ficam referidos a ele e consumados nele
“Porque da sua plenitude recebemos todos graça sobre graça. A Lei foi dada por Moises,
porém a graça e a verdade vieram por Jesuscristo. A Deus ninguém lhe viu jamais. O
Filho unigênito que está no seio do Pai, esse nos o tem dado a conhecer” (1,16-18). Os
dois versículos primeiros e os dois últimos dão as chaves do prologo e se correspondem:
o Logos estava em Deus, e por ele foram feitas todas as coisas – o Logos estava no seio
do Pai e por ele têm sido reveladas e comunicadas ao mundo a verdade e fidelidade de

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Deus. À preexistência na origem como criador (1,3) e nascente da vida-luz (1,4),
corresponde a proexistência no final como revelador e redentor escatológico (1,16-18). O
fundamento é o mesmo: a sua pertença ao ser (seio) de Deus, porque só Deus pode
revelar definitivamente a Deus. As formas desta referencia dupla à realidade e à historia
estão conexas: porque está na origem do ser como Criador, pode estar no meio do tempo
como Revelador e no final como Consumador. Nele é Deus mesmo quem se dá e se
manifesta, insertando-se de forma nova na sua criação e humanidade. Deus foi um “sim”
criador e esse sim originário chega até o final: Cristo é definido por São Paulo como o
“Sim” = “o Amem” de Deus. Amem significa a afirmação de que Deus é fiel até o final à
sua criação, ainda quando tenha sido quebrada pelo pecado e o homem na liberdade se
tenha afastado dele.

e) Os modelos prévios da tradição judia

As afirmações sobre a missão cobram, com a preexistência, tudo o seu peso e


importância. Hengel mostra como todas as figuras de mediação que implicam alguma
preexistência no AT (Sabedoria, Torah, Templo, Filho do homem, Messias...) preparam a
Cristo e a partir delas começou a reflexão da Igreja sobre ele. A convicção da
autorevelação de Deus nele tinha que transcender esses enunciados, convertendo-se na
fonte da afirmação duma preexistência personalizada e não só funcional, eterna em Deus
e não só ao serviço da criação do mundo ou da revelação na historia. A preexistência
ideal ou as personificações de Deus (Sabedoria, Anjo de Yhvh...) cediam o seu lugar à
preexistência real do Filho, as aparições do AT são então vistas como antecipações da sua
ação reveladora e salvadora. Os evangelhos deixam cair afirmações do próprio Cristo
estabelecendo uma relação com a Sabedoria. Segundo alguns autores a fonte Q coloca a
Jesus em conexão com a sabedoria preexistente, lhe faz o seu porta-voz, mais ainda, lhe
identifica com ela. São Paulo, remitindo a certa exegese rabínica, escreve: “os israelitas
bebiam duma rocha espiritual que os seguis: esta rocha era o Cristo” (1 Cor 10,4).

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