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O Projeto “Os Serafins”:

A flauta doce e suas possibilidades


Francisco Paulo Rodrigues Mestre1

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo refletir a educação musical sob uma abordagem
construtivista, com a utilização da flauta doce, a partir do projeto social “Os Serafins”, da cidade de
Serafina Corrêa – RS. O vínculo afetivo desenvolvido com o trabalho e, a partir dele, as
transformações sociais percebidas no grupo de participantes, estendidas aos seus familiares.
Também apresento a trajetória do projeto desde sua concepção, desenvolvimento, até a gravação de
seu primeiro CD.
,
Palavras-Chave: Educação musical, afeto, flauta doce.

Abstract: This work aims to reflect the musical education under a constructivist approach to the use
of the recorder from the social project Seraphins city Serafina Corrêa - RS. The emotional bond
developed with the job and, from it, the social changes perceived in the group of participants, their
extended family. I also introduce the trajectory of the project since its conception, development,
until the recording of their first CD.

Keywords: Music education, affection, flute.

Introdução
A música acompanha a humanidade há milhares de anos e seu acesso e sua
prática trazem benefícios que até hoje são alvo de estudo. Esses benefícios vão
além do simples prazer de escutar uma canção, podendo interferir beneficamente na
saúde física, emocional, cognitiva e à socialização. Hoje a música é um dos bens
mais consumidos no mundo inteiro e faz parte de nosso cotidiano. Está no rádio do
carro a caminho do serviço ou retornando dele, nos celulares, Mp3 (4, 5, etc) que
nossos filhos e alunos escutam o tempo todo, na trilha sonora de novelas e
comerciais, em espetáculos, sejam eles de música, teatro ou dança e muito mais.
A música desperta grande interesse seja em situações de lazer, de trabalho, de
relacionamentos sociais e de pesquisas mesmo aparentemente dissociadas de sua
natureza artística que é o caso do uso em terapias.
Mas a prática do fazer musical não é algo que se adquire da noite para o dia,
mas se constrói através de experiências musicais vividas e exploradas durante toda
a vida, pois se trata de conhecimento.

1 Músico, Pedagogo, Arte educador. e-mail: xykomestre@ig.com.br


Segundo Bréscia (apud Chiarelli e Barreto):
“[...] a musicalização é um processo de construção do conhecimento, que tem
como objetivo despertar e desenvolver o gosto musical, favorecendo o
desenvolvimento da sensibilidade, criatividade, senso rítmico, do prazer de
ouvir música, da imaginação, memória, concentração, atenção, autodisciplina,
do respeito ao próximo, da socialização e afetividade, também contribuindo
para uma efetiva consciência corporal e de movimentação.” (2003, p.2)

Os benefícios para a saúde física são apontados pela área da musicoterapia


e segundo Miranda e Godeli (2003):
“a atividade física acompanhada por música ocorre com muita frequência,
seja em situação de prática individual, pela utilização de fones de ouvidos,
seja em situação grupal, com música ambiente. Em ambas as situações, os
movimentos executados pelos praticantes podem estar sincronizados com a
música, ou esta funcionar simplesmente como fundo musical. Não se pode
negar, entretanto, que muitos a consideram como uma forma de prevenção
contra a monotonia existente na atividade física sistematizada. E em se
tratando de indivíduos idosos, a música tem um papel significante no sucesso
das sessões de exercícios, tornando relevante a escolha da seleção musical
que contribua para o prazer de estar naquele ambiente e para a motivação na
prática da atividade.” (p.90)

Ainda, a música pode simplesmente aliviar o “stress” cotidiano nas palavras


de Bréscia (2003), onde:
“a música é uma fonte abundante de harmonia. Quase toda música envolve
harmonia de algum tipo... Talvez essa seja outra razão pela qual as pessoas
desejam a música. A música pode bem ser um antídoto curativo e saudável
para as tensões e desarmonias da modernidade.” (p.28)

Há 36 anos aprendo, por meio de leituras na área da Educação e Educação


Musical das quais busquei a fundamentação teórica em livros, periódicos e artigos
de Becker (2009), Bréscia (2003), Cislaghi (2004), Ferreira ( 2004), Fonterrada
(1997), Miranda e Godeli (2003), Paula (2006), Souza (2004) e Vygotsky (2001).
Também busquei respaldo em projetos sociais como o grupo Salada Brasileira:
Grupo de percussão com instrumentos alternativos da cidade de Marau – RS;
Projeto RECRIARTE de Serafina Corrêa; Projeto Serafins: Orquestra de Flauta Doce
de Serafina Corrêa, objeto deste trabalho.
Em relação à flauta doce, instrumento que tive contato e aprendi a tocar na
minha adolescência ainda que de forma empírica, pois minha família não possuía
condições financeiras nem conhecimento para me oferecer um curso, partindo para
o autodidatismo. Também tenho aprendido por meio de seminários, palestras,
oficinas, “workshops” e através de conversas com educadores.
Sou músico concursado pelo município e contei com o apoio da administração
municipal no desenvolvimento do projeto por meio da cedência do local para os
ensaios e as flautas que foram ofertadas gratuitamente aos alunos que têm entre 8 e
17 anos de idade.
O presente trabalho tem por objetivo refletir sobre a importância social
docente, sobre as relações inter e intrapessoais que, no decorrer do processo,
auxiliem o aluno a resolver suas questões de cunho social, tendo como base o
processo de ensino aprendizagem musical na vivência do projeto “Os Serafins” 2.
A metodologia utilizada para o desenvolvimento deste artigo é de abordagem
qualitativa, na qual relato minha experiência no trabalho pedagógico-musical
desenvolvido com 24 crianças e adolescentes do projeto “Orquestra de Flauta Doce
Os Serafins” da cidade de Serafina Corrêa – RS, no período de 2009 a 2012.
Para coleta dos dados, utilizo-me de memórias e narrativas e da análise de
documentos relacionadas ao referido projeto.

O Projeto – Os Serafins

O projeto “Orquestra de Flauta Doce Os Serafins “, iniciou em junho de 2009


e tem o objetivo de proporcionar o desenvolvimento musical dos estudantes através
da experimentação, reflexão, criação e execução de arranjos e composições
coletivas, utilizando como instrumento de base a flauta doce soprano barroca. Além
do instrumento base, a flauta doce, o trabalho conta com uma banda de apoio
composta por adolescentes que tocam violão, guitarra, contrabaixo elétrico e bateria.
O projeto atende, prioritariamente, crianças e jovens que recebem o benefício
do programa Bolsa Família do Governo Federal. A estrutura dos ensaios, as flautas
e o transporte para as apresentações são oferecidos gratuitamente aos alunos.
Essa ação surgiu da necessidade de proporcionar aos estudantes uma
atividade extracurricular diferente, para motivá-los para o aprendizado de técnicas
musicais, para aprimoramento de sua atenção e motricidade. Além disso, essa
atividade favorece uma melhora na autoestima e, como consequência, um melhor

2
Projeto social desenvolvido no município de Serafina Corrêa – RS no qual buscamos ensinar um instrumento
musical – a princípio a flauta doce – como forma de amenizar os desconfortos causados pelos riscos sociais aos
quais as crianças e jovens do projeto estão sujeitos.
desenvolvimento cognitivo em sala de aula, uma maior integração na vida pessoal e
no convívio social.
O nome “Os Serafins” surgiu primeiramente da ideia de valorizar o nome do
município de Serafina Corrêa e, ao mesmo tempo, lembrar os anjos Serafins3. O
nome possui dupla interpretação na ideia de “ser afim” com o intuito de mostrar que
as pessoas possuem semelhanças e a música é uma ferramenta essencial para uni-
las.

Das dimensões da educação sob uma abordagem construtivista

São importantes as contribuições de Piaget, Vygotsky e Wallon para a


compreensão do desenvolvimento da criança e da dependência desta, com as
relações do meio, de pais e professores. De que as experiências e os laços afetivos
influenciam em todo o processo ensino-aprendizagem. A respeito nos diz Paula e
Mendonça (2006) ao afirmar que
“[...] Vygotsky (1896-1934) contribuiu para que seus estudos recebessem a
influência do socialismo e estivessem voltados para as interações sociais e a
construção coletiva do conhecimento. Para ele, o ensino não estava somente
centrado no professor, mas em todos os integrantes da sala de aula.” (p.13)”

Os mesmos autores continuam:


“Segundo Piaget, o conhecimento não pode ser concebido como algo
predeterminado desde o nasciento Iinatismo), nem como resultado do simples
registro de percepções e informações (empirismo): o conhecimento resulta
das ações e interações do sujeito no ambiente em que vive. Todo
conhecimento é uma construção que vai sendo elaborada desde a infância,
por meio de interações[...]” (p. 75)

Segundo Almeida (1999) apud Paula e Mendonça (2006):


“Wallon foi chamado de organizacionista no início de sua carreira. Todavia,
com o tempo, a sociedade científica foi reconhecendo que a sua produção
acadêmica fundamenta-se no materialismo dialético, que busca a
complementariedade dos aspectos biológicos e culturais no processo de
desenvolvimento. Wallon concebia o homem como um ser ‘biologicamente
social’.” (p.82)

Quando pensamos em abordagem construtivista que, segundo Becker (2009):


“a ideia de que nada, a rigor, está pronto, acabado, e de que,
especificamente, o conhecimento não é dado, em nenhuma instância, como
algo terminado. Ele se constitui pela interação do indivíduo com o meio físico

3
Esses, tidos como os mais sábios, responsáveis e mais próximos de Deus, constando das escrituras
sagradas que seus cantos eram cantos de criação.
e social, com o simbolismo humano, com o mundo das relações sociais; e se
constitui por força de sua ação e não por qualquer dotação prévia, na
bagagem hereditária ou no meio, de tal modo que podemos afirmar que antes
da ação não há psiquismo nem consciência e, muito menos, pensamento”.
(p.2)

o enfoque na forma de ensinar passa a ser tão importante quanto o que deve ser
ensinado. Devido a isso, os pressupostos para a construção do conhecimento
implicam em conhecer as dimensões afetivas e emocionais, a dinâmica das
relações, as formas como se dá a comunicação. Pois, segundo Damásio4 (2000)
apud Araújo (2003):
“[...] entre outras características, emoções são conjuntos complexos de
reações químicas e neurais, determinadas biologicamente e dependentes de
mecanismos cerebrais.[...] as emoções usam o corpo como teatro e afetam o
modo de operação de inúmeros circuitos cerebrais. Podemos entender assim,
que as emoções são estados internos dos organismos, e tem um papel de
regulação bastante flexível no funcionamento corporal e psíquico do ser
humano.” (p.153)

Seguindo essa abordagem (construtivista), o afeto também é concebido como


o conhecimento construído através de vivências, de inter-relações comunicativas,
que por si só demonstram comportamentos, intenções, crenças, valores,
sentimentos e desejos. A respeito disso, Vygotsky (2001) comenta que “Freud é
provavelmente o maior defensor do inconsciente, diz: “Porque a essência do
sentimento consiste em ser experimentado, ou seja, conhecido da consciência”.
Assim, para os sentimentos, sensações e afetos desaparecem inteiramente a
possibilidade de inconsciente” (p. 119).
Mas para percebermos o aluno como um ser que, além de intelectual é
também afetivo e social5, que além de pensar também sente e vive em sociedade6.
Para reconhecer que a afetividade e as inter-relações fazem parte do processo de
construção do conhecimento, preciso refletir a prática pedagógica musical também
sob a ótica da psicologia da educação, não a restringindo apenas à dimensão
cognitiva desse processo. Daí a opção de trazer autores da psicologia como Piaget,
Vygotsky e Wallon já citados anteriormente.

4
Antônio Damásio, sobre as perspectivas que adota em seu livro O mistério da Consciência (2000).

5
Almeida (1999) apud Paula e Mendonça (2006), citando o pensamento de Wallon.

6
Paula e Mendonça citando o pensamento de Vygotsky.
A escola e sua relação com a música

A escola que vemos hoje, com raras exceções, não consegue suprir as
necessidades sociais dos alunos e tampouco dos professores que são atrelados a
currículos e conteúdos que não contemplam os espaços reais ao qual pertencemos
e mantemos nosso círculo de relações. A esse respeito nos fala Souza (2004) que:

“A realidade do currículo escolar, a forma-conteúdo no processo de ensino-


aprendizagem musical, não está ampliando as questões relevantes da vida
dos alunos para além do espaço da escola, deixando de representar um
espaço que permita a nós, alunos e professores, pensar o espaço real e
desvendar as complexidades da música como fato social”. SOUZA (2004,
p.10)

A autora também apontando um norte tanto para educadores quanto para os


educandos quando afirma que:
“Na relação entre as pessoas e música está o desafio que permeia o trabalho
cotidiano de tantos professores, na constante busca do aprendizado que
encontre ressonância na vida dos alunos. E, do outro lado do processo
educativo, os desafios que os alunos enfrentam ao aprender música: de
pensarem a realidade na relação com o mundo que os cerca no seu dia-a-dia,
ou perceberem como se dá a integração de cada um deles nas diferentes
realidades desse mundo”. (SOUZA, p. 9)

Aqui, então, não há mais espaço para aquele educador submetido apenas a
cumprir os conteúdos mínimos, encarcerado pelo currículo, mas ressignificando o
conceito sobre a função do educador que agora passa a integrar a função social
que, segundo Silva ( 2004 ):
“[...] é aqui tomado de uma visão de totalidade, da relação trabalho e
educação, da sua conexão com o todo social, para além da estrita função de
ensino. Não pode haver função docente desvinculada da ação dos homens e
mulheres que atuam nessa profissão. A função docente é vista aqui, portanto,
como exercício profissional, mas também humano. Educação e trabalho,
como atividade produtora da vida”. (SILVA, p.2)

Como seres sociais, também somos seres afetivos e esta dimensão deve
estar implícita no processo ensino aprendizagem. Isto implica a qualidade de
relações que se estabelecem entre os sujeitos envolvidos no processo –
professores, alunos, direção, funcionários e demais colaboradores.
Não se questiona mais que as funções gerais sob as quais se colocam os
fenômenos afetivos acompanham-nos desde a vida intrauterina, até a nossa morte,
manifestando-se como uma fonte geradora de energia e servindo de base sobre a
qual se constrói o conhecimento.
Já, considerar a educação musical como uma:
“comunicação sensorial, simbólica e afetiva, e portanto social, geralmente
desencadeia a convicção de que nossos alunos podem expor, assumir suas
experiências musicais e que nós podemos dialogar sobre elas. De todos os
valores que potencializam o ensino de música nos dias de hoje, esse parece
ser o mais importante” (SOUZA, p.9)

A flauta doce como instrumento principal do projeto

A opção pela flauta dentro do projeto foi pensada primeiramente pela


viabilidade financeira de se poder oferecer gratuitamente um instrumento musical
para cada criança e cada jovem participante. Em segundo lugar, por ser um
instrumento melódico, de mais fácil aprendizagem e afinação, possibilitando ao
aluno criar uma referência sonora e desenvolver um repertório com relativa
facilidade. Por ser “um instrumento musical facilmente adaptável a projetos de
introdução à leitura e grafia musical” (CUERVO, 2009.p.24). Ainda, por dominarmos
as bases teóricas, técnicas do instrumento e apresentarmos uma formação
pedagógica ampliando as chances de sucesso no processo ensino aprendizagem.
Há carência de material didático para a flauta doce no mercado nacional. As
publicações, muitas vezes, restringem-se a repertórios que, em alguns casos
apresentam uma organização por grau de dificuldade de execução, ou para grupos
de flautas (duos ou trios), utilizando normalmente a flauta soprano e, com raras
exceções, também a flauta contralto.
A respeito nos fala Cuervo (2009):
“Constata-se que são raras as pesquisas relativas ao uso e papel do
instrumento na área acadêmica e a presença da flauta doce como temática
central de artigos, monografias, dissertações e teses brasileiras ainda é
bastante discreta. Soma-se a isto o fato de existir pouco material didático
produzido, especialmente quando consideramos o repertório brasileiro do
instrumento em propostas que permitam interação com o aluno e valorização
de seu discurso musical.” (p.24)

O fato levou-me a refletir sobre as práticas já existentes de grupos musicais


em escolas e projetos sociais. Constatei que a formação de grupos musical no
formato similar ao de uma banda musical guardando suas proporções, tendo como
“pano de fundo”, uma bateria, uma guitarra, um violão e um contrabaixo elétrico e
como base a flauta doce, nos leva a refletir nessa prática de manifestação da
educação musical não formal que acompanha nossa sociedade há muitos e muitos
anos e está presente em festividades de cunho educacional, político e religioso.
Ainda, que estas manifestações contribuem para o desenvolvimento não só musical,
mas também social de crianças que têm a oportunidade de participar desses grupos.
Este fato também está presente nas reflexões de Cislaghi (2004) quando fala que:
“Atualmente estão em andamento diversas experiências com bandas de
música atendendo comunidades carentes, oportunizando o desenvolvimento
de ações sociais através da música, que contribuem para mudanças
significativas na conduta e na autoestima das pessoas que participam destas
experiências” (CISLAGHI, p.2)

Diferentes métodos de ensaios para grupos de instrumentos vão desde


exercícios físicos a repetição exaustiva das peças a serem executadas.
Compreendo que o ensaio também deve servir para visar ao nível técnico do
instrumentista - aprimorar seus conhecimentos no que diz respeito à preparação
física de seu corpo para produzir um som com qualidade e com menor esforço, no
caso utilizando-se da respiração diafragmática, explicando o funcionamento de tal e
oferecendo exercícios diários; mas é importante a contextualização das peças
musicais a serem trabalhadas para que estas possam ganhar “vida” e não
simplesmente ser reproduzidas; trabalhar a percepção auditiva quanto à afinação
junto ao grupo; oferecer a linguagem formal, mas que esta não seja fator de
impedimento para que alguma criança ou jovem deixe de tocar alguma peça por não
compreender o significado dos símbolos musicais e, para estes, no entanto,
encontrar um espaço para exercícios de solfejo rezado, a tempo, cantado.
Sempre considerei a flauta doce um instrumento de iniciação musical por ser
um instrumento melódico, oferecendo ao aluno uma referência precisa a respeito de
notas e escalas, alturas de sons, duração e intensidade, e que pode até servir de
base para o aprendizado de outros instrumentos.
Com dois anos de existência do projeto, conseguimos 20 violinos e 4
violoncelos e todos tentaram tocar. Nem todos continuaram com o aprendizado, pois
achavam muito difícil. Acredito serem instrumentos difíceis, mas eu próprio não
conhecia o suficiente para incentivar o aprendizado. Hoje, apenas quatro continuam
tocando violino e dois tocando violoncelo. O restante permanece tocando flauta doce
e alguns que se aventuraram na banda municipal, tocam saxofone alto e tenor.
A experiência com os Serafins e o desenvolvimento do trabalho

A “Orquestra de Flauta Doce Os Serafins” de Serafina Corrêa surgiu da


necessidade de proporcionar aos estudantes uma atividade extraclasse, em turno
inverso ao da sala de aula, uma vez que não possuímos no município escolas de
ensino fundamental com turno integral. Também tem como objetivo motivar os
participantes para o aprendizado da música; desenvolver a atenção; fortalecer a
coordenação motora; proporcionar melhora na autoestima e, como consequência,
um melhor rendimento no processo ensino aprendizagem em sala de aula, uma
integração maior na vida pessoal e no convívio social.
O objetivo do projeto também vai ao encontro dos Parâmetros Curriculares
Nacionais quando se refere à arte abordando o desenvolvimento do aluno,
“expressar-se e saber comunicar-se em artes, mantendo sempre uma atitude de
busca pessoal e/ou coletiva, articulando a percepção, a imaginação, a emoção, a
sensibilidade e a reflexão ao fruir produções artísticas” (pg.53).
O primeiro passo para iniciar o projeto foi apresentá-lo à secretária de
educação e de assistência social do município, buscando uma parceria para a
aquisição das flautas e a cedência do espaço físico. Após o aval das duas
secretarias, parti para a consulta nas escolas municipais e estaduais, procurando
identificar alunos preferencialmente beneficiados pelo programa federal Bolsa
Família, alunos com dificuldade de aprendizagem, crianças vulneráveis aos riscos
sociais e as que simplesmente tivessem interesse em aprender.
Em seguida, foi preciso conhecê-los e agrupá-los de acordo com os horários
escolares e das outras atividades que poderiam estar participando (catequese,
laboratório de informática, dança, teatro, escolinha de futebol, reforço escolar).
Quando os conheci e falei da flauta doce, eles não faziam ideia do que seria.
Peguei duas flautas que sempre levo comigo, uma soprano e uma contralto, toquei
algumas músicas e pedi que sugerissem músicas. Conforme os pedidos, fui tocando
e eles perceberam que poderiam tocar qualquer gênero musical com a flauta.
A euforia foi tomando conta e logo quando perguntei se algum deles gostaria
de aprender a tocar aquele instrumento, todos os braços levantaram-se e uma
inquietação instalou-se para saber quando, onde e como seriam ministradas as
aulas.
Distribuí um bilhete para que levassem aos seus pais ou responsáveis,
explicando sobre o projeto e do início das atividades para que retornassem
assinados, caso pudessem participar.
A orquestra iniciou suas atividades em junho de 2009, quando chegaram 50
flautas soprano barrocas, com alunos residentes nos bairros Cella, Santin,
Gramadinho, Santa Lúcia, De Costa, Rosário, Bela Vista, Pedregal e Linha Décima,
matriculados em escolas municipais e estaduais do município, conforme Mapa do
Município na imagem 01.
As aulas de flauta doce aconteciam nas terças-feiras, no turno da tarde e, nas
quartas-feiras, nos dois turnos (manhã e tarde). Os primeiros ensaios foram
marcados com muito entusiasmo, pois já tínhamos uma apresentação marcada.
Desenhei uma pauta no quadro onde expliquei sobre as cinco linhas e os quatro
espaços; desenhei a clave de sol e logo após desenhei uma semibreve na segunda
linha. Ao perguntar que nota era, foi unânime: “SOLLLLL”!
Partimos daí! Uma notinha acima, uma notinha abaixo, e o trabalho iniciou.
A mãe de Gabriel e Hélio chegou a comentar que a atividade estava sendo
levada muito a sério em casa também onde os dois ajudavam-se mutuamente ao
treinarem juntos. E continua: “Um deles é hemofílico e tem limitações na prática das
atividades físicas, mas aqui, sente-se igual aos outros e por isso, está muito feliz”.
A editora do jornal local, que também é musicista, gostou do projeto e buscou
acompanhar a evolução do trabalho, publicando-o e mostrando-o para toda a
comunidade. Quando saía uma matéria sobre o projeto, principalmente com foto,
cada aluno ganhava um exemplar. Era visível nos olhos e no sorriso, a satisfação de
cada um.
O repertório iniciou com músicas infantis, com três notas musicais e em
seguida, uma música com cinco notas musicais: Bambalalão, do folclore brasileiro e
Seu Lobato tinha um sítio. Escolhi a tonalidade de Sol maior por apresentar um
acidente que fosse fácil executar na flauta.
Imagem 01 - Mapa do Município de Serafina Corrêa.
Desde o princípio utilizei a linguagem formal musical, mas sem a preocupação
com muitos detalhes como duração, intensidade, sinais de expressão para evitar
muita informação de uma única vez. Detive-me a mostrar-lhes apenas a nota
musical que representava cada figura em sua linha ou espaço na pauta. Os alunos
já sabiam que a nota da segunda linha do pentagrama era o sol e acima desta, o lá
e que, encostado na pauta do lado de baixo era a nota ré. Eles sentiam-se
orgulhosos em desvendar o que até então parecia um mistério. Na segunda música,
já haviam outras notas musicais, um si e um mi e um sinal de ritornelo. Aos poucos
foram dominando a grafia musical, seus sinais de expressão, seus símbolos e,
mesmo sem explicar, perceberam que a “bolinha branca” era mais longa que a
“bolinha preta”.
Durante três aulas, ficamos na música Bambalalão e, a partir daí,
conseguimos acompanhar uma música por ensaio. Após um mês, duas ou três
peças.
O repertório, inicialmente, foi proposto por mim por estabelecer uma sequência
didática para atingir o objetivo da compreensão da escrita musical. Quando isso foi
atingido, busquei na cultura musical dos alunos músicas que pudessem integrar o
repertório. Como já tínhamos uma apresentação marcada para o dia 30 de setembro
do mesmo ano, dialogamos e selecionamos um repertório conjunto que fosse
possível para apresentarmos. A relação foi a seguinte:
1) Bambalalão – Parlenda infantil;
2) Seu Lobato tinha um sítio – Infantil;
3) Aquarela – Toquinho;
4) Frére Jacques – Anne-Marie Besse;
5) Ode à Alegria (Hino à Alegria) – Beethoven (nome do poema cantado no 4º
movimento da 9ª sinfonia);
6) Oh happy Day – Edwin Hawkins;
7) My heart will go on – (tema do filme “Titanic”) James Horner e Will Jennings;
8) Trenzinho caipira – Heitor Villa Lobos;
9) Deus e eu no sertão - Victor e Leo;
10) Tema da Vitória – Eduardo Souto Neto;
11) Prenda Minha;
12) Valsa da Despedida – Robert Burns;
13) Amigos para sempre - Andrew Lloyd Webber e Don Black;
Nos anos que se seguiram, o repertório foi acrescido levando em conta o
desejo/a vontade dos alunos e adicionado por algumas sugestões que eles podiam
aceitar ou não, mediante a minha justificativa.

Primeira apresentação
No dia da apresentação, os alunos estavam no local de apresentação, quase
duas horas mais cedo. A cooperativa de costureiras da cidade, criada pela
Secretaria Municipal de Assistência Social, confeccionou camisetas para cada um,
com uma clave de sol bordada nas cores: azul claro para os meninos e rosa para as
meninas.
Montamos a estrutura do palco, a posição das estantes de partitura,
verificamos o espaço e o posicionamento de cada um, agrupamos os alunos em dois
a três por estante, já que não tínhamos uma estante para cada um.
O auditório estava lotado, todos os alunos ou como os chamava – “pequenos
grandes músicos”, estavam ansiosos, escondidos na biblioteca e o mestre de
cerimônias iniciou falando do projeto. Apagaram-se as luzes e fora anunciado a
presença da orquestra com o nome de cada um. Quando entramos perfilados, eu a
frente de mãos dadas com Samanta que tinha dificuldade para caminhar, mesmo
antes de tocar, alguns pais já começaram a chorar.
Entramos e nos posicionamos no palco em duas filas, deixando ao lado direito
de quem olha para o palco, a banda de apoio com a bateria, baixo e violão. As
estantes de partituras já montadas foram distribuídas uniformemente pelo grupo com
as partituras na ordem da apresentação.
O mestre de cerimônias, seguindo um roteiro escrito, anunciava cada música
através de um pequeno texto que a situava dentro do espetáculo e convidava a
plateia a compreender sua história dentro do programa e da história de cada um.
Além do enunciado do apresentador, o público também pôde acompanhar a
sequência de músicas através de um programa impresso e neste constava o nome
de cada aluno.
O texto que antecedia a última música era de agradecimento aos pais,
irmãos, amigos, administração pública, professores e todos que, direta ou
indiretamente, colaboraram para aquele momento existir. Tocamos então a música
Amigos para sempre.
Foi um espetáculo inesquecível para todos ali presentes e uma amostra do
que viria pela frente para os “pequenos Serafins”, conforme apontou o texto de
Deise Cristina Meneguzzi, editora do Jornal Local Gazeta Regional na edição do dia
2 de outubro de 2009:
“[...] intermináveis aplausos e lágrimas nos olhos e o sorriso da plateia foram
o resultado da primeira apresentação da Orquestra de Flautas de Serafina
Corrêa, na noite de quarta-feira (30), no auditório da Escola Leonora M.
Bellenzier. Depois de pouco menos de três meses de aulas e ensaios, os 29
estudantes serafinenses demonstram que talento e dedicação não faltam
para estes jovens músicos, que não apenas tocaram, como também
encantaram os convidados, pais e familiares que acompanharam as treze
canções do repertório. Diferentes ritmos, de diferentes nacionalidades e
épocas foram apresentados, todos porém, com energia e dedicação, com os
jovens atentos nas partituras e nos gestos do regente[...]” (pg.7).

No ensaio seguinte ao da apresentação, fizemos um círculo com as cadeiras


e perguntei como foi para eles a apresentação, o que sentiram, o que acharam da
resposta do público e todos quiseram expor seus sentimentos. A grande maioria
achou “muito legal” porque as pessoas fizeram silêncio enquanto eles tocavam e
depois aplaudiam muito. Impressionaram-se ao ver pessoas emocionadas, inclusive
o prefeito municipal que é um homem conhecido pela sua seriedade e rispidez, e
que se emocionou muito para não dizer que chorava copiosamente, e todos ainda
queriam saber quando seria a próxima apresentação.

Mais apresentações
No dia 11 de outubro de 2009 participamos do Festival de Folclore de
Serafina Corrêa, que contou com a participação de grupos etno-folclóricos de outras
cidades, fazendo a abertura do evento.
No dia 23 do mesmo mês, também abrimos a Conferência Intermunicipal de
Cultura, recepcionando oito municípios.
Outro momento marcante foi a primeira apresentação fora do município. Esta
foi em uma cidade vizinha, União da Serra, direcionada a alunos e professores das
escolas municipais e estaduais. Ocorreu na igreja matriz pela acústica e por poder
acomodar a todos. O local ficou lotado com aproximadamente trezentas pessoas
que ficaram maravilhadas com o espetáculo. Para nossa surpresa, ao anunciarmos
a última música, todos levantaram, se deram as mãos e cantaram junto com a
orquestra, pois conheciam a letra. Após a apresentação, sentamos nos degraus do
altar e abrimos para um diálogo e as perguntas foram muitas. Perguntas sobre quem
era o mais novo, quantos anos tinha, o mais velho, se era difícil tocar flauta, entre
outras tantas. Logo após, foi-nos oferecido um lanche com muito refrigerante,
cachorro-quente. Lógico que o grupo se lembrou e preparou o lanche do Bernardo,
que é alérgico a lactose e ovos. Na volta, fizeram muita festa, cantando e tocando
durante a viagem.

Imagem 02 – Primeira apresentação em outro município – União da Serra – RS

O período natalino teve muitas apresentações somente com o grupo e outras


juntamente com o Coral Municipal e Banda Municipal.
A Orquestra de Flauta Doce Os Serafins também abrilhantou eventos em
Garibaldi, Passo Fundo, e muitas outras localidades. Foram eventos regionais,
municipais, escolas, lares de idosos, assaltos musicais em empresas e bancos do
município de Serafina Corrêa, o que consolidou o grupo.
Durante os três anos, alguns componentes saíram, pois os pais mudaram-se
de cidade em busca de emprego ou os mais velhos integrantes foram estudar em
Passo Fundo e outros desistiram por preferirem outra atividade (o município oferece
uma gama muito grande de atividades artísticas e esportivas como dança, CTG,
futebol, capoeira, taekwondo). Mantiveram-se no projeto 24 crianças e adolescentes
que fortaleceram ainda mais o seu laço com a orquestra e com a gravação do
primeiro CD.
Gravação do CD

Sugeri a gravação de um CD para a secretaria de educação que levou o


projeto ao prefeito municipal e este não viabilizou financeiramente o projeto, pedindo
que procurássemos por patrocínios.
Não foi difícil a empresa CREDEAL, maior produtora de cadernos do país,
prontamente ofereceu-nos ajuda quase que na totalidade necessária. Outras
empresas complementaram o montante e, dessa forma foi possível preparar as
músicas e gravamos no estúdio.

Imagens 03 e 04 – Gravação do CD

Imagens 05 e 06 – Gravação do CD
Conseguimos da prefeitura o transporte e a alimentação no dia da gravação
que ocorreu na cidade de Guaporé – RS.
Durante a gravação, os alunos pareciam profissionais, pois não reclamavam
do cansaço, de repetir, repetir, repetir, esperar, escutar, corrigir e ficar em silêncio
quando outro grupo estivesse gravando. Na hora do almoço, eram somente sorrisos
e, igualmente, um comportamento impecável.
Na volta para casa, nossa avaliação rotineira. Estavam maravilhados e loucos
para contar em casa e na escola, como era um estúdio de gravação onde os
“artistas” gravam CDs.
Para o dia do lançamento do CD, convidamos os patrocinadores e familiares.
Cada patrocinador foi homenageado com uma música em um espetáculo permeado
de som e luz e “conduzido por anjos” que brilhavam naturalmente. Após o
espetáculo, todos foram convidados para um coquetel com sessão de autógrafos, os
CDs foram distribuídos gratuitamente.

Imagens 07 e 08 – Capa e Contracapa do CD

Imagem 09 – Encarte do CD
Imagem 10 – Estampa do CD

Os participantes da pesquisa: Os Serafins

Os nomes utilizados neste trabalho são fictícios justamente para proteger os


alunos quanto a quaisquer constrangimentos posteriores.
1) Andrey - Iniciou o projeto com 12 anos, família muito humilde, o pai trabalha
na secretaria de obras da Prefeitura e a mãe trabalhava como operária na
indústria de alimentos, hoje desempregada. Perdeu um irmão para o tráfico
há cerca de 3 meses. O sonho desse menino era ser como Mário Quintana.
Tímido e calado, escrevia muitos poemas de acordo com sua idade.
Demonstrou muita habilidade e concentração desde o início. Hoje, toca flauta,
violino, saxofone tenor na banda municipal e iniciou no coro municipal como
tenor apesar de estar na muda vocal;
2) Bernardo – Chegou ao projeto com 10 anos, com alergia a lactose e ovos, era
necessário saber com a mãe um lanche especial quando saíamos para
apresentações. Mais agitado que Andrey e um tanto quanto infantil para sua
idade, talvez devido ao seu tratamento pela família em função dos problemas
de saúde;
3) Cristina - Com 9 anos iniciou no projeto, menina meiga, tímida e atenta. O pai
era vigia de uma empresa de segurança e a mãe fabricava produtos de
limpeza junto com a irmã mais velha. Hoje, com 12 anos, tem em mente que
deseja ser musicista e é apoiada pelos pais. Estes, por sua vez, conferem ao
projeto uma integração maior com a família, pois todos se reúnem para as
apresentações e são presenteados com os ensaios da Cristina em casa que
larga a flauta e pega o violino, sai deste e pega o violão e sonha em ganhar
um saxofone;
4) Daniela - Chegou a nós com 10 anos. Menina muito tímida, de família
humilde, frequentadora do programa de reforço escolar oferecido pela APAE,
onde foi diagnosticada com DDA (Distúrbio de Déficit de Atenção). A maior
parte das pessoas que descobrem ser portadores de DDA, sejam crianças ou
adultos, sofrem muita dor. A experiência emocional do DDA é preenchida com
obstáculos, humilhações e autopunição. Na ocasião em que o diagnóstico de
DDA é realizado, muitas das pessoas com DDA já perderam a sua
autoconfiança. Muitas consultaram-se com numerosos especialistas, não
tendo encontrado ajuda verdadeira. Como consequência, muitos perderam
sua esperança. Redobrei minha atenção para Daniela para compensar o
déficit da sua aprendizagem;
5) Éric – Quando o conheci tinha 12 anos, com um olhar perdido no horizonte, a
tristeza estampada no rosto misturada com indiferença, desesperança. A
diretora da escola o encaminhou por não estar indo bem na escola. Aos
poucos, fui descobrindo que tinha uma irmã com 4 anos, que a mãe acabara
de falecer e que o pai, por desespero, os abandonou, deixando-os com a avó.
Era um menino que não sorria e percebi que precisaria de muito mais ajuda,
pois não bastaria ser apenas o professor de música. Senti a responsabilidade
social em, através da música, permitir que ele se reestruturasse como pessoa
capaz de lidar com seu sofrimento, suas perdas e criasse forças para seguir
sua vida de cabeça erguida na certeza de que fez o seu melhor;
6) Felipe – 10 anos, participava de uma igreja evangélica na qual o avô era
pastor. Menino muito ativo e atento. Uma facilidade enorme de compreensão
e assimilação. Já veio com uma noção rítmica e melódica muito grande. Dono
de uma voz afinadíssima e com recursos vocais bem desenvolvidos. Sempre
auxiliava os outros na execução das peças novas. Um líder natural;
7) Gabriel – Com 10 anos, veio fazer companhia ao irmão gêmeo e por
insistência da mãe. Nunca demonstrou muito interesse, mas não reclamava
disso. Conversava muito com ele, principalmente quando a mãe não
permanecia no ensaio (que era comum alguns pais levarem os filhos para o
ensaio e permanecer até o final);
8) Hélio – Iniciou o curso com 10 anos junto com o irmão. Portador de hemofilia
apresentava muita dificuldade em atividades motoras. Mas era muito
esforçado e interessado. Os pais viviam buscando tratamento em Porto
Alegre e outras cidades, pois a medicação era importada e os médicos da
região não tinham a especialização necessária;
9) Inês – Com 12 anos iniciou no grupo, ficou uma semana, desistiu e retornou.
Família humilde, com mais dois irmãos, dedicava-se ao estudo,
principalmente das músicas que não sabia. Não tinha vergonha de perguntar
quando não sabia. Era bem decidida e um pouco intolerante quando alguém
interrompia o ensaio com assuntos que não eram pertinentes a este;
10) João Carlos – Iniciou no projeto com 10 anos. Menino tímido com um pouco
de dificuldade motora e de relacionamento. Família instável, com os pais
vindos a se separarem litigiosamente alguns meses após o projeto iniciar;
11) Karine – 9 anos, menina meiga, tímida, com um irmão de 6 anos. Muito
atenta, demonstrando muita compreensão acerca do que tocava. O Pai
possui uma barbearia masculina e a mãe, enferma, acabou falecendo durante
o projeto;
12) Larissa – Chega ao projeto com 10 anos, órfã de pai, com uma irmã
professora. Muito ativa e dispersa, com dificuldades de compreensão e
motora, porém disposta a aprender;
13) Maicon – Chega com 14 anos, frequentando a 4ª série, com muitos
problemas de aprendizagem e utilizando medicação. É o maior da turma, com
dificuldades de se comunicar, porém, consegue tocar todas as músicas;
14) Nelson – Iniciou no projeto com 11 anos, incentivado pelo pai que também é
músico. A mãe é advogada. Tem uma família estável e bem estruturada.
Possui uma boa noção rítmica e melódica. Aprende fácil tanto a teoria quanto
a prática do instrumento. É prestativo e gosta de auxiliar os colegas;
15) Olivia – Começou no projeto com 13 anos. Menina de família muito humilde,
tímida e colega de Inês. Tem um pouco de dificuldade, não de compreensão,
mas na questão motora para mudar de uma nota para outra;
16) Paulo – Já tinha 12 anos quando iniciou sua participação no projeto. Menino
muito tímido. No primeiro mês não consegui escutar sua voz. Os pais
possuem uma pequena loja de materiais de construção. É um bom aluno na
escola, porém não se socializa com os demais. Apresentava um pouco de
dificuldade em executar as partituras e como não se manifestava para pedir
ajuda, eu estava sempre por perto;
17) Rafaela – Também com 12 anos, talvez a mais “adulta” do grupo em relação
as suas atitudes, interferências e perspectivas. Os pais operários, um irmão
envolvido com álcool e drogas, tem na música, talvez, uma válvula de escape.
Deixou o projeto a cerca de um ano por questões familiares e pessoais, mas
retornou em setembro de 2012;
18) Samanta – Começou no grupo com 16 anos. Samanta há alguns anos
passou por uma cirurgia para retirada de um tumor no cérebro, o que resultou
na perda parcial de movimentos do lado esquerdo do corpo. O restante do
tratamento inibiu o seu crescimento físico e mental. Em função dos
movimentos reduzidos na mão esquerda, faço partituras separadas para ela;
19) Tamara – Com 9 anos ingressou no projeto. Menina tímida, de família
humilde. Nasceu com um problema imunológico, necessitando um tratamento
à base de corticóide. Muito esperta, assimila fácil todas as noções musicais e
as notas na flauta. Também iniciou o aprendizado de teclado;
20) Vitória – Veio para o projeto com 12 anos. Colega de Rafaela, Olivia e Inês,
agrupam-se a parte, buscando sua faixa etária. Mais tarde divide o turno da
tarde, cuidando de crianças (prática comum no interior para complementar a
renda familiar), reduzindo sua presença nos ensaios;
21) Weslei – Com 9 anos o “rebelde” aporta no projeto, carregado pela mãe,
família desestruturada, pais separados e possui uma irmã mais velha. A mãe
é operária da indústria de alimentos e no turno de folga vende cachorro-
quente na porta de uma escola. Weslei é disperso, mas compreende e
consegue realizar as atividades propostas e tocar as canções;
22) Airton – Já tinha quinze anos e veio integrar a banda de apoio. Começava a
tocar contrabaixo eletrônico. De família humilde, a mãe cabeleireira e o pai
operário da indústria de alimentos, Airton nasceu sem uma veia na perna,
necessitando várias cirurgias e tratamentos semanais. Menino alegre,
sorridente, exemplo de superação para os outros;
23) Benson – Veio para o grupo com 16 anos. Filho de família bem estruturada.
Mãe professora e pai professor universitário. Veio integrar a banda de apoio
tocando violão e guitarra. Menino responsável e educado, sempre pronto a
aprender;
24) Gabriel – (Miguel) Com 13 anos veio com a banda de apoio tocando bateria.
Excelente senso rítmico. Um alto grau de concentração e dedicação;
25) Heitor - Veio para o projeto com 9 anos. Menino tranquilo, mas um pouco
disperso. Dificuldade com a compreensão da teoria. Família humilde com pais
operários da indústria de alimentos;
26) Iloni - Chega ao projeto com 8 anos, frequentadora de sala de recursos e
reforço oferecido pela APAE, também detectado DDA. Aluna com dificuldades
de compreender e assimilar notas musicais. Segundo a mãe, ela não dedica
tempo nenhum para exercitar em casa;
27) Jader - 16 anos, faz parte da banda de apoio, tocando violão. Irmão da
Rafaela, é um menino que apresentou problemas de aprendizagem e
disciplina na escola. Envolveu-se com álcool e drogas e foi incluído no projeto
com intuito de oferecer alternativas para sua busca pessoal;
28) Kailane - Veio para o projeto com 9 anos e paralelamente participa de um
grupo de dança de um dos CTGs do município e catequese. Os pais são
separados e mora com o pai e a madrasta;
29) Lourenço - Com 9 anos, frequenta regularmente a APAE. De família muito
humilde, com muitos irmãos, apresenta problemas na fala e de
aprendizagem, porém, há seu tempo, consegue tocar as peças com certa
facilidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A música, como linguagem artística culturalmente construída, também é


prática social, pois nela vamos encontrar valores e significados presentes na vida
dos indivíduos que a constroem e constantemente a transformam.
O ensino de flauta doce dentro do contexto de projetos sociais de forma
“tradicional” ou “alternativa” como nos fala Fonterrada (1993), corrobora com a
formação integral da criança, ampliando sua visão de mundo e sua musicalidade,
podendo transformar-se em desde um ouvinte consciente, um amador intérprete ou,
ainda, um músico profissional não necessariamente utilizando a flauta doce como
preparação para outro instrumento, mas como possibilidades a vislumbrar.
Na pesquisa do projeto “Os Serafins” percebi que, entre educador e
educando, existe uma “estrada de duas mãos”, onde circulam diferentes
possibilidades e saberes. Estes se multiplicam a partir do momento em que
educador e educando se permitem criar vínculos afetivos, buscando alternativas
para que todos consigam tocar seu instrumento (lendo ou não uma partitura) e
ampliando assim seus conhecimentos. Com a utilização da escrita musical formal ou
criando paisagens sonoras, disponibilizando nosso conhecimento e, mais ainda,
nossos ouvidos para que possamos compreender a cultura musical de nossos
alunos e ofertá-los a nossa, ampliando, sempre que possível, este conhecimento.
A flauta doce, para os alunos do projeto em estudo, tornou-se quase
inseparável, levada a diferentes espaços (casa, escola, projeto, passeios,
apresentações, visitas e a familiares) provando que o instrumento, além de
ferramenta importante na musicalização, provoca um sentimento de respeito e
posse, funcionando como catalisador de autoestima, animosidade e
responsabilidades sociais.
O emprego da flauta doce em projetos sociais mostra-se relevante para a
formação integral da criança e do jovem, devendo servir de estímulo a futuras
pesquisas e a produção de material didático na área.
O educador musical não deve ser visto nem se conformar em ser apenas
aquele que ensina códigos ou a história musical. O educador musical deve ser
aquele que aborda uma análise global e um entendimento geral dos fenômenos
relacionais a cada aluno, tendo como função primeira educar e aprimorar o aluno
como pessoa. Essa postura servirá de impulso para que o próprio aluno sinta-se
seguro para desbravar os caminhos sinuosos do conhecimento e suas relações e
até o seu próprio fazer musical.
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