Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Menu
Resumo: A presente pesquisa investigou como as dimensões da aprendizagem criativa se articulam em atividades de
composição no contexto do ensino de música na educação básica. O método consistiu em estudo de caso, realizado em aulas
de música no ensino fundamental. Esta comunicação focaliza a perspectiva da professora na discussão das dimensões que
configuram o ensino criativo, segundo Jeffrey e Woods (2009): construção de relações sociais positivas nas aulas, engajamento
dos interesses dos alunos e valorização das contribuições das crianças nas atividades de composição musical.
Palavras-chave: aprendizagem criativa, ensino criativo, composição musical infantil, educação musical na escola básica.
Abstract: The aim of the research was to investigate how creative learning is articulated through musical composition
activities in the context of musical education in the elementary level. The method consisted on a case study carried out during
music lessons in a 2nd grade class. This paper focuses the teacher’s perspectives on the discussion about creative learning
dimensions (JEFFREY; WOODS, 2009): building positive social relations, engaging student’s interest and valuing children’s
contributions in compositional activities.
Keywords: creative learning, creative teaching, children musical composition, music education in the primary school.
1. Introdução
A pesquisa aqui relatada situa-se no campo das pesquisas sobre a aprendizagem criativa (CRAFT,
2005; CRAFT; CREMIN; BURNARD, 2008; JEFFREY; WOODS, 2009), conceito emergente nas áreas de
Educação e de Educação Musical que focaliza o desenvolvimento da criatividade de crianças e jovens em
situação de aprendizagem. O objetivo da pesquisa (BEINEKE, 2009)1 foi investigar como as dimensões da
aprendizagem criativa se articulam em atividades de composição musical2 no contexto do ensino de música
na educação básica.
O referencial do trabalho foi construído com base em dois eixos teóricos que se articulam na
análise dos dados. O primeiro é fundamentado no Modelo Sistêmico de Criatividade (CSIKSZENMIHALYI,
1997), discutindo as dimensões da criatividade na perspectiva das crianças: o domínio – ideias de música na
perspectiva das crianças; o campo – a comunidade em sala de aula; e o indivíduo – contribuições individuais
e coletivas em sala de aula. O segundo eixo, fundamentado nas dimensões do ensino criativo (JEFFREY;
WOODS, 2009), analisa a perspectiva do professor na aprendizagem criativa.
Esta comunicação apresenta um recorte da pesquisa, focalizando o segundo eixo, que discute as
concepções e práticas da professora participante da pesquisa na construção de relações sociais positivas em
sala de aula, no engajamento dos interesses dos alunos e na valorização das contribuições das crianças em
atividades de composição musical. Esse conjunto de fatores, segundo Jeffrey e Woods (2009), configuram as
dimensões do ensino criativo, discutidas neste trabalho.
A pesquisa foi realizada em uma escola comunitária da região central de Porto Alegre (RS), da
qual participaram uma turma da segunda série do ensino fundamental3, composta por 23 alunos com idades
entre 7 e 9 anos, e Madalena, a professora de música da turma. O ensino da disciplina estava previsto na
matriz curricular da escola, desde a Educação Infantil até a 8ª série do Ensino Fundamental, com uma aula
semanal de 50 minutos4.
Considerando o objetivo desta pesquisa, optei pelo estudo de caso (STAKE, 2003), por sua natureza
qualitativa. Com esse enfoque, procuro contemplar a complexidade da sala de aula, ouvindo as crianças e a
professora para discutir a criatividade em atividades de composição musical. O desenho da pesquisa incluiu: (1)
observação e registro em vídeo de dois conjuntos de atividades de composição musical na turma participante;
(2) grupos focais com os alunos; e (3) entrevistas semiestruturadas (ESE) e de reflexão com vídeo (ERV) com
a professora Madalena. Esse conjunto de instrumentos de coleta de dados foi organizado conforme a figura
abaixo (figura 1).
A ação pedagógica do professor em sala de aula é, segundo Jeffrey e Woods (2009), uma das chaves,
se não for o elemento central, para que a aprendizagem criativa ocorra. Nessa perspectiva, é fundamental
compreender a natureza do ensino criativo como aprendizagem relevante e significativa para os alunos. Craft
et al. (2008) também concordam que a forma como os adultos valorizam o agenciamento das crianças em sala
de aula promove a motivação e o engajamento na atividade criativa. Nessa abordagem, os professores dão
espaço e tempo às crianças para terem ideias, permitindo-lhes conduzir a ação pedagógica. Sob essa óptica,
Jeffrey e Woods (2009) identificam três áreas relativas à pedagogia do professor especialmente significativas
para o ensino relevante: garantir relações sociais positivas, engajar interesses e valorizar contribuições das
crianças. Partindo desse referencial, analiso a seguir algumas concepções e práticas da professora Madalena
em relação a tais dimensões do ensino criativo.
A professora Madalena tem formação universitária nos cursos de Pedagogia e de Regência, com
experiência como professora de música na rede particular de ensino há mais de 20 anos. Para Madalena, a
educação musical na escola básica não tem o objetivo de formar músicos, mas despertar as crianças para uma
apreciação rica, almejando que, quando adultas, possam interagir de forma crítica e inteligente com o que está
acontecendo de música no mundo. Nessa perspectiva, ela explica que as atividades de composição em sala
de aula norteiam seu trabalho, estando intrinsecamente relacionadas aos seus modos de conceber a música e
a educação em sua vida. O engajamento afetivo e o comprometimento com o processo educacional na escola
são questões que emolduram suas concepções e práticas como professora de música. Suas aulas revelam um
ambiente de trabalho colaborativo, em que as crianças se sentem seguras para expressar suas ideias, o que
parece ser um reflexo da valorização e do respeito da professora pelos modos de fazer e pensar música das
crianças.
Para Madalena, as relações que se estabelecem entre as crianças no ato de compor são um ponto
chave para compreender a natureza da atividade de composição em grupo. Na relação que a professora constrói
com as crianças, percebe-se que ela procura identificar os processos de cada criança, buscando maximizar a
participação nas aulas. Compreender a maneira como as crianças interagem nos grupos também norteia sua
ação pedagógica, buscando garantir espaço para que elas possam fazer música mais livre e espontaneamente,
entendendo que esses momentos são muito importantes para a aprendizagem musical. Nesse processo,
Madalena demonstra um olhar sensível para cada criança, no grupo e individualmente, quando procura
compreender cada criança e engajá-la nas atividades. Muitas vezes seus objetivos vão além dos conteúdos
musicais, pensando em como seu trabalho pode contribuir para a vida das crianças.
A autonomia e o envolvimento com que os grupos trabalham é um dos aspectos que mostra como
as relações sociais em sala de aula são positivas, o que se reflete no engajamento das crianças nas atividades.
A dinâmica das aulas, com momentos que favorecem diferentes maneiras de se relacionar com a música –
compondo em grupos, ouvindo os trabalhos dos colegas, pensando e avaliando os trabalhos, abrindo espaços
para que as crianças falem sobre suas experiências como compositoras, executantes e ouvintes – também
parece contribuir para que as crianças se sintam seguras para se expor no grupo apresentando seus trabalhos
e suas ideias. Refletindo sobre questões que aguçam o interesse das crianças nas aulas, Madalena destaca: o
prazer de fazer música de forma livre e fluida; a relevância dos conteúdos que se relacionam com as práticas
musicais das crianças e com elementos que elas trazem nas suas produções; a relação dos conteúdos com
outras referências musicais; e a ressonância que o prazer em fazer música pode ter na vida das crianças.
Segundo Madalena, o uso dos instrumentos musicais também envolve as crianças no trabalho, porquanto elas
valorizam essa habilidade, considerando importante e desafiador tocá-los.
A apresentação das composições para os colegas parece conferir relevância às atividades
realizadas em classe, conectando as crianças ao “mundo real”, ao universo musical que elas vivenciam fora da
escola, em sintonia com suas ideias de música. As apresentações também são prazerosas por serem desafiantes
e envolverem uma situação de risco, motivando-as para realizar os trabalhos. Além disso, elas parecem
representar um momento de reconhecimento, num processo que se retroalimenta – ter seu trabalho valorizado
e reconhecido perante a turma confere credibilidade às atividades de composição e aumenta o engajamento
das crianças na realização de novas composições. Madalena também relaciona as experiências em aula com
as experiências que um artista tem no palco, conectando-as com eventos musicais que acontecem noutros
espaços.
A apresentação e a análise dos trabalhos constitui um dos principais momentos em que as
crianças expressam as suas ideias de música e constroem, com a professora, os processos de ensino e de
aprendizagem. Como salientam Burnard e Younker (2004), as experiências dos estudantes de falar e refletir
sobre a ação revelam como se diferenciam os processos de composição das crianças, mas tal processo precisa
ser promovido e compreendido pelo professor. Nesse sentido, as composições das crianças e suas críticas
musicais também permitiram que a professora adquirisse conhecimentos sobre o modo como as crianças
pensavam suas experiências musicais e como se engajavam nas propostas de sala de aula, fornecendo subsídios
importantes para o planejamento das próximas atividades e acompanhamento dos processos de aprendizagem
dos alunos.
Em outros momentos da aula, Madalena percebe que um grupo trouxe um elemento que é novo
para a turma e procura destacá-lo. Aí ela pede que toquem novamente: “olha, isso é de vocês, vocês podem
usar isso [essa ideia] também”. Segundo Gromko (2003), quando os estudantes apresentam suas composições,
eles podem aprender colaborativamente sobre a solução dos problemas composicionais apresentados nos seus
trabalhos e tocando-as várias vezes, agregam às suas experiências ideias com possibilidades de utilizá-las em
outras ocasiões. Madalena relata que muitas vezes as ideias apresentadas pelas crianças nas suas composições
são utilizadas em um próximo trabalho. No seu planejamento, a professora também propõe conteúdos para
os trabalhos tomando como base elementos que surgiram em atividade anterior, prática que valoriza as
contribuições das crianças em sala de aula, além de aumentar a relevância do ensino e engajar seus interesses.
Outra situação observada é que as crianças não conseguem tocar de maneira muito precisa sua composição,
por falta de habilidade motora, por exemplo. Aí Madalena relata que costuma pedir que toquem novamente
e explica à turma que faltou ensaio, mas que a ideia é boa. Essa possibilidade de revisar as composições é,
segundo Webster (2003), um elemento chave para o desenvolvimento criativo em música, porque possibilita
que as crianças percebam todo o seu potencial como compositoras. Dependendo de cada situação, o autor
avalia que o professor precisa desempenhar diferentes funções quando interfere nas composições dos alunos,
porquanto as dificuldades podem ser de ordem técnica, estética ou conceitual.
Avaliando o trabalho realizado com a classe, Madalena destaca o engajamento dos alunos, a
autonomia das crianças na realização das composições e a importância que os momentos de apresentação e
crítica das composições têm para as crianças. Ela percebe também o ambiente de produção colaborativa que se
estabelece enquanto as crianças fazem seus trabalhos e sua expectativa sobre a apresentação das músicas para
a turma, momento em que são ouvidos pelos colegas e podem obter reconhecimento pelas suas produções.
Nesse processo, as crianças desenvolvem confiança em sua capacidade de compor e tocar suas próprias
músicas, trabalhando com motivação e comprometimento.
Considerações
as aulas é muito importante para o professor, que tem a oportunidade de revisar a sua prática e retomar
questões que não haviam sido percebidas durante as aulas: “Essa música que vocês fizeram outro dia, que eu
não valorizei... eu quero valorizar agora!”. Assistindo aos vídeos, ela também tem ideias sobre músicas que
poderia propor para os alunos ouvirem: “Muitas coisas pra pensar... quanta coisa vem daí [dos vídeos] pra
mim, como educadora. Perguntas para continuar o trabalho. Muito legal isso: participar de uma pesquisa em
que eu possa me perguntar coisas”.
Notas
1 Pesquisa de doutorado realizada no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
sob orientação da profa. Dra. Liane Hentschke.
2 Neste trabalho a composição é entendida de forma bastante ampla, incluindo arranjos e improvisações musicais, pequenas
ideias musicais organizadas espontaneamente com a intenção de comunicar pensamentos musicais ou peças mais elaboradas, com
ou sem a utilização de notação ou outra forma de registro da música (SWANWICK, 1994).
3 Quando foram realizadas as observações em sala de aula, o ensino fundamental na escola ainda era estruturado no sistema de
oito anos. Embora pertença à rede particular de ensino, a escola é administrada comunitariamente.
4 As aulas de música foram realizadas em uma sala equipada com vários instrumentos musicais de percussão, como xilofones,
metalofones, pandeiros, triângulos, chocalhos, tambores e flautas doces, além de um violão e um piano. O espaço físico utilizado
era pequeno - aproximadamente 20m 2 -, mas nas atividades de composição em pequenos grupos os alunos utilizavam também o
espaço do saguão, que fica em frente à sala de música.
5 O software NVivo 8 é produzido pela QSR International Pty Ltd. (copyright © 2008).
Referências:
BURNARD, Pamela; YOUNKER, Betty Anne. Problem-solving and creativity: insights from students’
individual composing pathways. International Journal of Music Education, v. 22, n. 1, p. 59-76, 2004.
CRAFT, Anna. Creativity in Schools: tensions and dilemmas. London: Routledge, 2005.
CRAFT, Anna; CREMIN, Teresa; BURNARD, Pamela. Creative learning: an emergent concept. In: CRAFT,
Anna; CREMIN, Teresa; BURNARD, Pamela (Eds.). Creative learning 3-11: and how to document it. Sterling,
Trentham Books Limited, 2008. p. xix-xxiv.
CRAFT, Anna et al. Possibility thinking with children in England aged 3-7. In: CRAFT, Anna; CREMIN,
Teresa; BURNARD, Pamela (Eds.). Creative learning 3-11: and how to document it. Sterling: Trentham Books
Limited, 2008. p. 65-73.
CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. Creativity: flow and the psychology of discovery and invention. New York:
Harper Perennial, 1997.
GROMKO, Joyce Eastlund. Children composing: inviting the artful narrative. In: HICKEY, Maud (Ed.). Why
and how to teach music composition: a new horizon for Music Education. Reston: MENC - The National
Association for Music Education, 2003. p. 69-90.
JEFFREY, Bob; WOODS, Peter. Creative learning in the Primary School. London: Routledge, 2009.
STAKE, Robert E. Case Studies. In: DENZIN, Norman; LINCOLN, Yvonna S. Strategies of qualitative
inquiry. 4th ed. Thousand Oaks: Sage Publications, 2003. p. 134-164.
SWANWICK, Keith. Musical knowledge: intuition, analysis and music education. London: Routledge, 1994.
WEBSTER, Peter R. “What do you mean, make my music different”? Encouraging revision and extensions
in children’s music composition. In: HICKEY, Maud (Ed.). Why and how to teach music composition: a new
horizon for Music Education. Reston: MENC - The National Association for Music Education, 2003. p. 55-65.