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Referência da publicação:

INDURSKY, Freda. A memória na cena do discurso. In:


INDURSKY, Freda; MITTMANN, Solange; FERREIRA, Maria Cristina
Leandro (Orgs.). Memória e história na/da análise do discurso. Campinas,
Mercado de Letras, 2011.

A MEMÓRIA NA CENA DO DISCURSO

Freda INDURSKY
UFRGS

Mémoire, Histoire: loin d´être synonymes… tout les oppose.


La mémoire est la vie...
Elle est en évolution permanente,
ouverte à la dialectique du souvenir et de l´amnésie,
inconsciente de ses déformations successives, ...
susceptible de longues latences et soudaines revitalisations.
L´histoire est la reconstruction toujours problématique
et incomplète de ce qui n´est plus…
L´histoire est une représentation du passé…
La mémoire s´enracine dans l´espace, le geste, l´image et l´objet.
L´histoire ne s´attache qu´aux continuités temporelles.1
Pierre Nora, Les Lieux de Mémoire,1984

Situando a reflexão
A reflexão sobre memória sempre esteve presente no quadro da Teoria da
Análise do Discurso, muito embora, nos textos fundadores, esta nomeação ainda não
tivesse tido lugar. Pensava-se sobre memória, mas sob outras designações, como, por
exemplo, repetição, pré-construído, discurso transverso, interdiscurso. Estas noções
foram formuladas no âmbito da Teoria da Análise do Discurso e encontram-se reunidas

1
Memória, História: longe de serem sinônimos...tudo as opõe. A memória é a vida... ela está em evolução
permanente, aberta à dialética da lembrança e da amnésia, inconsciente de suas deformações
sucessivas...suscetível de longas latências e repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre
problemática e incompleta do que já não existe mais. A história é uma representação do passado... A
memória se enraíza no espaço, no gesto, na imagem, e no objeto. A história se apega tão somente às
continuidades temporais. (A tradução é minha).
em Semântica e Discurso (Pêcheux [1975[1988]). Todas remetem, de uma forma ou de
outra, à noção de memória. Mais exatamente, trata-se de diferentes funcionamentos
discursivos através dos quais a memória se materializa no discurso. Vamos examiná-las
um pouco mais de perto sem, entretanto, procurar estabelecer uma cronologia exata para
esta trajetória teórica.
Diferentes funcionamentos discursivos e sua relação com a memória
Se nos reportarmos a um dos textos fundadores da Análise do Discurso, que
Pêcheux assina juntamente com Fuchs (1975[990]), veremos que a reflexão sobre
sentido inicia a partir das relações de parafrasagem que as diferentes expressões,
palavras e enunciados mantêm entre si no interior de uma matriz de sentido que se
organiza no âmbito de uma Formação Discursiva (FD). Os autores entendem que estas
relações consistem em uma operação em que umas retomam as outras.
Mas cabe frisar de imediato: se a matriz de sentidos se institui através do
processo de repetibilidade, ela também coloca os limites dessa repetição, pois a matriz
de sentido estabelece o que pode e deve ser dito no interior de uma FD. O que equivale
a dizer que há sentidos que nela não podem ser produzidos.
É igualmente interessante remeter a Achard (1983[1999, p.12-14]). Para o autor,
sob a repetição, ocorre um efeito de série de onde decorre a regularização de
determinados sentidos, a qual se institui pelo viés de diferentes funcionamentos
discursivos de retomada: implícitos, remissões, efeitos de paráfrase, os quais
evidenciam que “há repetições que fazem discurso” (Courtine e Marandin 1981, p. 28).
Vou examinar um pouco mais detidamente algumas noções que estão
diretamente relacionadas ao modo como o jogo de repetição discursiva se produz. A
partir dos estudos das relativas empreendidos por Henry (1975) e Pêcheux e Fuchs (s/d),
foi desenvolvida uma reflexão da qual resultou a noção de pré-construído. Esta noção
vai permitir melhor perceber os entrelaçamentos entre repetição, memória e sentidos.
Ou seja: todo o elemento de discurso que é produzido anteriormente, em um outro
discurso e independentemente, é entendido como um pré-construído. Segundo Pêcheux
(1975[1988, p.164]), “o pré-construído é o ´sempre-já-lá` da interpelação ideológica que
fornece-impõe a ´realidade` de seu ´sentido` sob a forma da universalidade”.
Há duas modalidades através das quais o pré-construído pode ser mobilizado. A
primeira delas ocorre por uma operação de encaixe sintático no interior do discurso do
sujeito. E, para ser aí encaixado, o pré-construído mobiliza uma operação sintática que
sinaliza a fronteira entre o que veio de outro lugar, o pré-construído, e o que foi
produzido pelo sujeito do discurso. No entanto, esse encaixamento, em lugar de ser
assim percebido pelo sujeito, produz o efeito de ter sido formulado no seu discurso.
Sobre isto, Pêcheux(1975[1988, p. 167]) afirma que o discurso do sujeito é “um efeito
do interdiscurso sobre si mesmo, uma ´interioridade` inteiramente determinada do
exterior”. Para ele, isto é resultado do trabalho da forma-sujeito que “tende a absorver-
esquecer o interdiscurso no intradiscurso, de modo que o interdiscurso aparece como
puro já-dito do intradiscurso” (idib., p. 167).
Como se vê, sob a noção de pré-construído, encontramos um dos
funcionamentos discursivos que mostram de que forma pode ocorrer a repetibilidade.
Por seu intermédio, podemos observar como elementos provenientes do interdiscurso
são inscritos no discurso do sujeito. Estamos diante de práticas discursivas no interior
das quais saberes circulam e são apropriados/discursivizados em diferentes discursos.
Paralelamente a essa operação de encaixe, Pêcheux constatou que o pré-
construído também pode ocorrer sob a forma de discurso transverso. Sobre este
funcionamento, Pêcheux (1975[1988, p. 166]) afirma que ele “remete àquilo que
classicamente é designado por metonímia, enquanto relação da parte com o todo, da
causa com o efeito, do sintoma com o que ele designa etc.”.
Como se vê, trata-se ainda da retomada de saberes já-ditos em outro discurso,
em outro lugar e cujo eco ressoa no discurso do sujeito. Em um texto inédito, que
Pêcheux assina juntamente com Catherine Fuchs, encontrei a melhor formulação para
discurso transverso, porque explicita de que forma esta metonímia funciona
discursivamente. Segundo os autores, o discurso transverso funciona como “exterior ao
discurso considerado e o implícito que ele constitui é explícito alhures” (Pêcheux e
Fuchs s/d., p. 39). É com esta formulação que podemos nos acercar melhor do
funcionamento do discurso transverso e é ela que ilumina o modo como este processo
de retomada se faz no discurso do sujeito: o discurso-outro entra de viés no discurso do
sujeito, tangenciando-o e nele fazendo eco de algo que foi dito em outro lugar.
É também através dessa formulação que é possível perceber as diferenças entre o
encaixe do pré-construído e a linearização do discurso transverso no discurso do
sujeito. O primeiro é objeto de uma operação de apropriação que, através de um encaixe
sintático, estabelece co-referência entre o que é apropriado e encaixado no discurso do
sujeito e o que aí já se encontrava formulado, produzindo o efeito de que aquele pré-
construído foi produzido ali, no discurso do sujeito. O segundo retoma um pré-
construído que foi objeto de asserção em outro lugar e que, no discurso que dele se
apropria, ressoa metonimicamente, como um implícito. Dois funcionamentos diversos
de apropriação do pré-construído, dois modos distintos de retomada de discursos, duas
formas diversas de fazer ressoar discursos que já estão em circulação em diferentes
práticas discursivas.2
Assim, a noção de repetibilidade permite observar que os saberes pré-existem
ao discurso do sujeito: quando este toma da palavra e formula seu discurso, o faz sob a
ilusão de que ele é a fonte de seu dizer e, assim procedendo, ele funciona sob o efeito do
esquecimento de que os discursos pré-existem (Pêcheux e Fuchs 1975[1990, p. 172-
176]), que foram formulados em outro lugar e por outro sujeito, e que ele os retoma,
sem disso ter consciência. E, desta forma, encontramos uma característica essencial da
noção de memória tal como ela é convocada pela AD: o sujeito, ao produzir seu
discurso, o realiza sob o regime da repetibilidade, mas o faz afetado pelo esquecimento,
na crença de ser a origem daquele saber. Por conseguinte, a memória de que se ocupa a
AD não é de natureza cognitiva, nem psicologizante. A memória, neste domínio de
conhecimento, é social. E é a noção de regularização que dá conta desta memória.
Assim, chegamos às primeiras reflexões em torno de memória: se há repetição é
porque há retomada/regularização de sentidos que vão constituir uma memória que é
social, mesmo que esta se apresente ao sujeito do discurso revestida da ordem do não-
sabido. São os discursos em circulação, urdidos em linguagem e tramados pelo tecido
sócio-histórico, que são retomados, repetidos, regularizados.
Se o discurso se faz sob o regime da repetibilidade, no interior de certas práticas
discursivas, cabe questionar qual é a natureza desta repetição. Já sabemos que ela é não-
sabida, anônima, mas isto não é suficiente. Repetir, para a AD, não significa
necessariamente repetir palavra por palavra algum dizer, embora freqüentemente este
tipo de repetição também ocorra. Mas a repetição também pode levar a um
deslizamento, a uma re-significação, a uma quebra do regime de regularização dos
sentidos. Isto se dá porque o sujeito do discurso pode contra-identificar-se com algum
sentido regularizado ou até mesmo desidentificar-se de algum saber e identificar-se
com outro. Essa possível movência dos sentidos pode ser captada pelo viés dos
processos semânticos que se instauram no discurso. É ainda com Pêcheux que podemos
entender este tipo de movimentação dos sentidos: “um enunciado é intrinsecamente

2
Em A fala dos quartéis e as outras vozes (1997) formulei a noção de incisa discursiva para analisar uma
forma muito específica de discurso transverso marcado pela apropriação fragmentada e não-marcada
sintaticamente do discurso do outro.
suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, de deslocar-se discursivamente de
seu sentido para derivar para um outro” (Pêcheux 1983[1990, p.53]).
Se tais deslizamentos são da ordem do discursivo, já não é mais suficiente
pretender encontrar o sentido comportadamente circunscrito ao interior de uma matriz
de sentido. Faz-se necessário perceber que os sentidos, pelo trabalho que se instaura
sobre a Forma-Sujeito, podem atravessar as fronteiras da FD onde se encontram, e
deslizarem para outra FD, inscrevendo-se, por conseguinte, em outra matriz de sentido.
Ao migrarem, esses sentidos passam a ser determinados por outras relações com a
ideologia. Essa movimentação nas filiações dos sentidos só é possível porque, ao
migrarem, esses sentidos se ressignificam. Percebe-se, pois, que o fechamento das FDs
não é rígido e suas fronteiras são porosas, permitindo migração de saberes.
Por tudo quanto precede, pode-se dizer, juntamente com Pêcheux, que as FD não
existem isoladamente. Ao contrário. Elas relacionam-se entre si, constituindo um
complexo de Formações Discursivas das quais uma é dominante (Pêcheux 1975[1988,
p. 162]). E, a este propósito, o autor acrescenta:
propomos chamar de interdiscurso a esse “todo complexo com dominante” das
formações discursivas, esclarecendo que também ele é submetido à lei de
desigualdade-contradição-subordinação que caracteriza o complexo das
Formações ideológicas (idib., p.162).
Estas noções, construídas ao longo da década de 70, permitem-me afirmar, como
fiz na abertura deste trabalho, que todas elas constroem uma trajetória que conduz
inexoravelmente à formulação da noção de memória, o que vai ocorrer nos anos 80.
A memória em Análise do Discurso: teoria, análise e retorno à teoria
Vou estabelecer, como efeito de início para a formulação da noção de memória
no âmbito da Teoria da Análise do Discurso, o trabalho de Courtine (1981) que revisita
a Arqueologia do Saber de Foucault e dela retorna, trazendo para a AD a noção de
memória. Inspirado na reflexão de Foucault sobre os enunciados, o autor vai entender
que
toda produção discursiva faz circular formulações anteriores, porque ela possui
em seu domínio associado outras formulações que ela repete, refuta, transforma,
denega... Isto é: em relação às quais esta formulação produz efeitos de memória
específicos (Courtine 1981, p.52). (O destaque é meu).

E, mais adiante, ele acrescenta: “a noção de memória discursiva diz respeito à existência
histórica do enunciado no seio de práticas discursivas, reguladas pelos aparelhos
ideológicos” (idib., p.53). Para Courtine, interessa saber como o trabalho da memória,
no âmbito de uma FD, permite a lembrança, a repetição, a refutação, mas também o
esquecimento destes elementos de saber quando são formulados pelo sujeito em seu
discurso. Ao que eu acrescento: como certos sentidos cristalizados podem se
transformar e tornarem-se outros.
Uma análise em três tempos
Neste ponto, proponho-me fazer um pouco de análise para melhor vislumbrar
estas questões. Para tanto, tomo o Discurso do Descobrimento do Brasil, e, em seu
interior, faço um recorte, dele retendo a Carta de Caminha (1500) e a Primeira Missa
no Brasil, quadro de Victor Meirelles (1861). Elegi estas duas materialidades
discursivas porque esta tela de Meirelles representa, como veremos a seguir, um recorte
pictórico da Carta de Caminha dirigida ao Rei de Portugal, contando a boa nova e
ambos os textos constituem um lugar de memória3 (Nora 1984) para os brasileiros.
Interessa-me examinar a representação que esta obra faz daquele distante abril de 1500
e de que modo ela povoa o imaginário dos brasileiros.
Primeiro tempo da análise

Fig. 1: A Primeira Missa no Brasil (Victor Meirelles)


3
Lugares de memória, noção forjada por Pierre Nora (1984), se apresentam sob a forma de objetos,
instrumentos, instituições, documentos, vale dizer, traços vivos constituídos no entrelaçamento do
histórico, cultural e simbólico.
Nessa representação, é possível explorar questões diversas. Aqui, desejo colocar
o foco de observação em dois diferentes planos deste quadro. Tomo como primeiro
plano, o altar, representado pela cruz de lenho, que remete à celebração da missa. Junto
ao altar, encontram-se portugueses, religiosos, militares e uns poucos civis que faziam
parte da esquadra de Cabral.
Se observarmos o entorno desta cena, que tomo aqui como o segundo plano da
tela, sem nenhum propósito de hierarquizar estes dois planos, veremos que os índios aí
são representados em atitudes bastante diversas: há os que estão sentados em um galho
de árvore, olhando com espanto a cena do primeiro plano; há os que estão mais
afastados, como se estivessem indiferentes; há uma índia amamentando, um índio
curioso, apontando alguma coisa e um índio muito desconfiado, quase de costas, em
atitude de retirada, com uma arma na mão. Ou seja: estes dois planos pictóricos indicam
o imaginário projetado por Victor Meirelles a propósito do modo como teria
transcorrido a primeira missa na nova terra, sobretudo como os índios teriam
visto/interagido com aquela cena.
Lendo a Carta de Caminha, vemos que este quadro é uma representação
pictórica de uma passagem específica dessa Carta. Vejamos algumas seqüências
discursivas dela recortadas:
SD1 - Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e
sermão naquele ilhéu.......
SD2 - Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e dentro levantar um altar mui bem
arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei
Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres
e sacerdotes que todos assistiram, a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida
por todos com muito prazer e devoção (...)
SD3 - Enquanto assistimos à missa e ao sermão, estaria na praia outra tanta gente,
pouco mais ou menos, como a de ontem, com seus arcos e setas, e andava
folgando. E olhando-nos, sentaram. E depois de acabada a missa, quando nós
sentados atendíamos a pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou
buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço (...)
SD4 - Ao sairmos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz que
estava encostada a uma árvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã, sexta-
feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o
acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze que lá
estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beijá-la (...)
SD5 – Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a
nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma,
segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar
aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a
santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé (...)
À luz da teoria da AD, podemos dizer que a tela de Meirelles (1861) faz uma
paráfrase deste recorte da Carta de Caminha (1500). Por conseguinte, a Carta de
Caminha funciona como um lugar de memória que reverbera na tela de Meirelles.
Mais acima afirmei que este quadro representa o imaginário de Victor Meirelles
a respeito dos índios durante aquela cerimônia religiosa. Isto pode agora ser retomado
nos seguintes termos: a tela de Meirelles representa de fato o imaginário de Caminha
sobre o modo como aquele ritual religioso repercutiu sobre os habitantes da terra. Este
imaginário é, de certa forma, o imaginário fundador de uma memória discursiva sobre a
chegada dos portugueses à nova terra, o qual ficou impresso no discurso da
“descoberta” do Brasil. Esse discurso apresenta-se revestido do que estou chamando de
regime de repetibilidade devido ao fato de ter sido repetido com persistência através dos
tempos e, em função disso, ganhou regularização, passando a fazer parte da memória
coletiva4 dos brasileiros. Ou seja, pelo viés do regime de repetição tornou-se
memorável.
Trabalho igualmente com a hipótese de que foram os livros didáticos de História
do Brasil, tomados aqui também como lugares de memória, que consolidaram este
imaginário e tornaram possível este jogo de repetição discursiva que alimenta o que é
memorável para um grupo social. Lembro do livro de história em que estudei. Nele
encontrava-se uma reprodução da tela de Victor Meirelles. E, para mim, quando este
tema vem à tona, a Carta de Caminha cruza-se com o quadro de Meirelles, de tal forma
que não consigo dissociá-los. Ou seja: estes dois textos5 – a carta e o quadro –
juntamente com os livros didáticos de História funcionam como lugares de memória e
seus sentidos passaram a ser objeto de repetição e de repetição da repetição, até
cristalizarem e, por conseguinte, regularizarem um conjunto de sentidos e saberes que
discursivizaram esse acontecimento histórico. Tais saberes se organizam em redes
discursivas de formulações que garantem o regime de repetibilidade destes saberes,
sustentando, dessa forma, as redes de memória que sustentam o memorável.
De volta à teoria
4
Memória Coletiva é uma noção formulada pelo sociólogo Maurice Halbwachs. Segundo o autor, “a
memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte um conjunto de
homens...enquanto membros do grupo” (Halbwachs, 1950 [1990, p. 51]). Mais adiante, o autor acrescenta
que a “memória coletiva...retém do passado somente aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na
consciência do grupo que a mantém” (idib., p.81).
5
Há já algum tempo que considero que toda e qualquer materialidade que dê suporte a um discurso pode
ser considerada Texto. É nesse sentido que considero tanto a Carta de Caminha quanto a tela de Meirelles
como textos. Por conseguinte, TEXTO é uma categoria teórica que não se confunde com texto empírico.
A categoria TEXTO deve ser compreendida como o suporte através do qual um discurso se materializa,
podendo ser tal suporte verbal ou não-verbal.
Com isto não estou pretendendo afirmar que os sentidos, depois de cristalizados/
regularizados, não podem mais se alterar. Ao contrário. Os sentidos, à força de se
repetirem, podem acabar por se modificar, de modo que as redes discursivas de
formulação, formadas a partir de um regime de repetibilidade, vão recebendo novas
formulações que, ao mesmo tempo que vão se reunindo às já existentes, vão atualizando
as redes de memória. Tais formulações podem trazer o mesmo sentido e, nesse caso,
produzem uma relação de metáfora em que uma palavra é tomada pela outra, mas
produzindo o mesmo sentido, tal como ocorre em uma família parafrástica que funciona
como uma matriz de sentido.
Frequentemente, no entanto, essas novas formulações produzem alterações nos
sentidos cristalizados, provocando desestabilização nos processos de regularização. É
ainda Pêcheux, com seu texto o Papel da Memória, que possibilita melhor entender essa
aparente contradição entre regularização do sentido e desvio de sentido: a memória
constitui, diz ele, “um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de
retomadas” (Pêcheux 1999, p.56). Vale dizer: se, por um lado, a repetição é responsável
pela cristalização dos sentidos, por outro, também é a repetição que responde por sua
movimentação/alteração6. Ou seja, os sentidos se movem ao serem produzidos a partir
de outra posição-sujeito ou de outra matriz de sentido.
Nossa primeira análise flagrou uma formulação diferente, na medida que passou
do discurso verbal de Caminha para o discurso pictórico de Meirelles. Essa foi a
modificação que o discurso fundador sofreu no percurso de 365 anos que separam os
dois textos analisados. No entanto, os sentidos de ambos estão em relação de
repetibilidade, afetados pela mesma FD, e inscritos na mesma família parafrástica,
produzindo efeito de sentido idêntico. Ou seja, em que pese a textualidade ser diferente,
ambos os textos pertencem, de direito, à mesma matriz de sentido.
Segundo tempo da análise
Para observar a movência dos sentidos no âmbito desse discurso, vejamos de que
forma o “descobrimento” é retomado em uma marchinha de carnaval, composta por
Lamartine Babo, em 1934, intitulada História do Brasil.
Esta marchinha, ao retomar o discurso do descobrimento, 434 anos depois, ou
seja, quase meio século após a “descoberta” do Brasil, acionou a memória coletiva que

6
E, para retomar minha hipótese sobre os livros didáticos, devo dizer que examinei dois livros didáticos
contemporâneos de História do Brasil, ambos de 1997. Nesses dois livros, a história da chegada dos
portugueses à terra nova já é narrada através do filtro ideológico da colonização e da exploração que na
colônia se fez, o que produz efeitos de sentido diversos.
os livros didáticos consolidaram, garantindo que a repetibilidade pudesse se estabelecer.
Essa rede de memória precisou ser acionada para fazer ecoar os sentidos já-sabidos por
todos os brasileiros. Assim, os versos dessa marchinha, ao mesmo tempo que garantem
o regime de repetibilidade, vão produzindo alguns efeitos de sentido que fazem deslizar
o sentido inscrito na memória discursiva, como podemos ver nos versos de Lamartine
que se seguem.
Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral!
No dia vinte e um de abril 7
Dois meses depois do carnaval
Entendemos que Cabral inventou o Brasil parafraseia Cabral descobriu o Brasil.
Trata-se, entretanto, inicialmente de entender se esta paráfrase inscreve-se na mesma
FD do discurso fundador ou não. Se considerarmos que estes dois enunciados
discursivos inscrevem-se na mesma FD, cabe fazer mais um questionamento: teriam
sido esses dois enunciados produzidos a partir da mesma posição-sujeito? Em caso
positivo, estaremos afirmando que se trata de uma palavra pela outra, tal como vimos
em nossa primeira análise, porque, nesse caso, os três textos fazem parte da mesma
matriz de sentido. Cabral inventou o Brasil, inscrito na mesma FD e produzido a partir
da mesma posição-sujeito em que Cabral descobriu o Brasil, remeteria para uma
relação metafórica, em que uma palavra pode ser tomada pela outra, produzindo o
mesmo efeito de sentido. Entendo, entretanto, que essa análise não se aplica a esse
nosso terceiro texto. Há, nesse caso, uma outra possibilidade que passamos a examinar,
a seguir.
Se considerarmos que esses dois enunciados remetem a mesma FD, porém
produzidos a partir de posições-sujeito diversas, estaremos entendendo que estes
enunciados relacionam-se diferentemente com a ideologia e produzem efeitos de sentido
diversos. Senão, vejamos: a paráfrase produzida por Babo mobilizou saberes
cristalizados através dos tempos, mas com sentidos diversos. Não se trata mais de uma
construção metafórica simples, tal como vimos mais acima, na análise dos dois
primeiros textos. O enunciado Cabral inventou o Brasil pode ser desdobrado em
paráfrases como: nada do que foi dito corresponde à verdade; não havia
desprendimento, não havia casualidade; os índios não se converteram docilmente, o
discurso sobre o descobrimento é uma lenda etc. Ou seja: ainda estamos diante de um
7
É interessante, igualmente, observar a data: 21 de abril. Por aí, vê-se como as datas da história do Brasil
vão se embaralhando, o que sucede até os nossos dias, em que muitos confundem o 21 de abril de
Tiradentes, com o 22 de abril da chegada dos portugueses à nova terra.
efeito metafórico. Mas, nesse caso, a metáfora se produz pelo deslizamento de
descobriu o Brasil para inventou o Brasil, indicando que o processo metafórico
deslocou-se de uma posição de sujeito para outra, embora ambas ainda se inscrevam no
interior da mesma FD, a do Descobrimento. Dizendo diferentemente: esse processo
metafórico não trabalha mais a partir da modalidade de uma palavra pela outra,
produzindo o mesmo efeito de sentido, que é o que ocorre no âmbito da matriz de
sentido. No caso de que ora nos ocupamos, um efeito de sentido é tomado pelo outro
efeito de sentido, e isso indica que ocorreu um deslizamento de sentidos. E esse
deslizamento aponta para o modo como os lugares de memória funcionam
discursivamente. Percebe-se, pelo trabalho do sentido sobre o sentido, que se instaurou
um movimento de contra-identificação em relação aos saberes da FD do
Descobrimento. Ou seja, os saberes desse domínio de conhecimento estão sendo
interrogados.
Esse funcionamento discursivo dos lugares de memória permite avaliar a
diferença que se estabelece entre o processo metafórico, que ocorre no âmbito de uma
matriz de sentido, e o efeito metafórico que se instaura pelo deslizamento entre saberes
produzidos a partir de diferentes posições-sujeito, inscritas numa mesma FD.
Entretanto, a contra-identificação sinalizada pelo enunciado Cabral inventou o
Brasil não chega a instaurar uma relação de tensão com Cabral descobriu o Brasil. A
relação que entre esses dois enunciados se estabelece é muito mais da ordem do lúdico.
Trata-se da irreverência própria das marchinhas de carnaval e não de um tratado de
História8. Nesse passo, interessa perceber que sentidos cristalizados podem se repetir,
mas que nem sempre reaparecem exatamente da mesma forma; que, à força de serem
repetidos e, em função das condições de produção em que essa repetição ocorre (no
caso, uma marchinha para foliões cantarem e brincarem no carnaval), os sentidos vão se
modificando, se ressignificando, produzindo contra-discursos. Ou seja: a regularização
dos sentidos, decorrente de sua repetição, não impede que a movência dos mesmos,
ainda que em pequeno grau, como é o caso que aqui estamos examinando.
De volta à teoria
Encontramos aqui uma certa forma de retomar o já-dito. A repetição discursiva,
nesse caso, se faz pelo viés do discurso transverso. A marchinha faz soar o discurso do
8
Mais recentemente, o carnaval de rua, onde todos cantavam as marchinhas, deu lugar aos desfiles das
escolas de samba. Esta mudança abriu espaço para os sambas-enredo que substituíram as marchinhas. Os
enredos das escolas freqüentemente elegem temas oriundos da história do Brasil e, mais uma vez, é
possível ver que os sentidos cristalizados pela narrativa histórica na escola influenciam sua elaboração.
descobrimento mas este, ao ser retomado, já o faz com deslizamento, re-significado.
Descoberta desloca-se para invenção, de forma que faz ressoar, desde o interdiscurso,
mas transformado, o sentido cristalizado que é da ordem do memorável. E, ao fazê-lo,
traz o diferente que aciona o mesmo: em lugar de “achamento” 9, como pode-se ler na
Carta de Caminha, ou “descobrimento”, como apontam os livros didáticos de História
do Brasil de então, vemos aqui aparecer “invenção”. Mas para que o efeito de sentido de
inventar se produza, este convoca, necessariamente aderido ao seu, embora
formalmente intangível, o efeito de sentido de descobrir que aqui está ausente, mas que
ressoa transversamente porque ele é da ordem do memorável e é ele que sustenta a nova
interpretação. Estamos, nesse caso, diante de um efeito metafórico que se institui entre
saberes enunciados a partir de diferentes posições-sujeito inscritas na mesma FD: a FD
do Descobrimento.
Ou seja: o sentido do primeiro enunciado – Cabral descobriu o Brasil – que
discursivizou o acontecimento histórico de 1500, não se apaga para que o outro sentido
se produza. Ao contrário. O sentido do enunciado fundador necessita soar ali, apesar de
ausente, para que seu deslocamento seja entendido. Dito de outro modo: a rede de
memória funciona, em casos como este, como pano de fundo, possibilitando que se
perceba que houve um distanciamento em relação aos sentidos pré-construídos, e que
esse recuo possibilitou a instauração de novos sentidos. Sem a memória fazendo ressoar
aí o efeito de sentido fundador, decorrente do processo de regularização, que é social , a
re-significação deste enunciado talvez não fosse interpretada como uma retomada da
primeira formulação. A rede de memória faz ressoar esse sentido e trabalha por traz
desse deslizamento, fazendo o sentido primeiro reverberar por trás do novo sentido,
produzindo-se, desse modo, o que Courtine (1981) designou de efeito de memória.
Terceiro tempo da análise
Tomemos mais uma paráfrase desse discurso fundador. Desta vez, vamos
considerar como objeto de observação um cartoon produzido por Uberti, por ocasião
dos festejos dos quinhentos anos da Descoberta do Brasil, e publicado no Catálogo da
Exposição Humores Nunca Dantes Navegados: o Descobrimento segundo os
Cartunistas do Sul do Brasil, em 2000. Esse cartoon é o resultado de uma manipulação
sobre a pintura de Victor Meirelles e chama-se A Primeira Árvore. Pelo nome que
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Como podemos verificar nessa outra passagem da Carta de Caminha: “Acabada a missa, desvestiu-se o
padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação, da
história evangélica; e no fim tratou da nossa vida, e do achamento desta terra, referindo-se à Cruz, sob cuja
obediência viemos, que veio muito a propósito, e fez muita devoção”.
Uberti lhe atribuiu, já é possível perceber para onde navegam os humores de seu criador
e em que sentidos vai aportar. Vejamos o cartoon.

Fig. 2: A Primeira Árvore (Uberti)

Num primeiro momento, nosso olhar um tanto disperso talvez não perceba o que
o cartunista fez. Uma primeira leitura vai constatar que ele mobiliza os mesmos dois
planos anteriormente descritos, a propósito da Primeira Missa de Meirelles. O mesmo
altar, o mesmo sacerdote, o mesmo ritual, os mesmos objetos, a mesma cruz, o mesmo
baú, os mesmos fiéis. E, no segundo plano, também tudo idêntico: os mesmos índios, a
mesma atitude curiosa, de espectadores; as mesmas posturas: índios cercando, um
pouco mais distantes, a cena religiosa: a índia amamentando, índias e seus filhos às
costas, o índio olhando de sobre o galho da mesma árvore; o velho índio apontando com
o dedo algo que lhe parece curioso; o mesmo índio armado e desconfiado. E é possível
afirmar que se trata do mesmo com base no memorável.
Em decorrência disso, é possível pensar que a paráfrase se situa unicamente no
nome dado ao Cartoon: Primeira Missa remete à tela de Meirelles e A Primeira
Árvore, ao cartoon de Uberti. Se mais não fosse, esta renomeação já seria interessante
de ser analisada, pois o título da tela de Meirelles remete ao ritual religioso que celebra
a “descoberta”. Ao nomear sua tela de Primeira Missa, Meirelles relaciona o
descobrimento, pelo viés da celebração da missa, à Igreja Católica. A nova terra nasce
sob a égide da Coroa Portuguesa e da Igreja Católica. E essa seria apenas a primeira de
muitas outras missas que se seguiriam e esse marco religioso aponta para a missão
dessa igreja: salvar aquelas almas que não tinham crença alguma, segundo Caminha,
convertendo-as ao cristianismo.
Já a renomeação para A Primeira Árvore poderia estar referindo a primeira
árvore abatida para obter o lenho destinado à primeira cruz, à qual se seguiria o abate de
inúmeras outras árvores para a instalação dos portugueses na nova colônia.
Mas, se o olhar deixar de ser vago, certamente irá perceber que a imagem
também sofreu deslocamentos. Um olhar atento para o grupo que se encontra à esquerda
do altar, logo atrás do grupo de freis que ali estão ajoelhados, verá que há um português
que, na Primeira Missa, segura um chapéu na mão direita e que, na Primeira Árvore,
segura, nesta mesma mão, uma moto-serra. Ou seja: não apenas o nome da tela foi
ressignificado. A imagem também materializa um outro discurso. E esse novo discurso
coloca os sentidos à deriva, rumo a outras redes de memória.
Por conseguinte, tanto o discurso imagético como o enunciado discursivo foram
ressignificados e estes dois textos certamente não se inscrevem na mesma FD.
Enquanto A Primeira Missa remete para o discurso português do Descobrimento, a
Primeira Árvore produz um discurso que denuncia, no mínimo, a ação predadora dos
colonizadores que, para obter o valioso corante vermelho, acabaram por exterminar todo
o pau Brasil. Ou seja, o texto A Primeira Árvore, tanto em sua materialidade verbal
quanto pictórica, produz um deslizamento do discurso português da descoberta para os
saberes dos brasileiros sobre a ação predadora dos portugueses durante a colonização,
onde a árvore simboliza todas as riquezas que foram carreadas da colônia para a
metrópole.
Dois textos imagéticos tão próximos, em relação de parafrasagem quase perfeita,
não fosse pelo título e pela substituição do chapéu pela moto-serra. Não é possível mais
pensar que essa paráfrase se fundamente na regularização de sentidos ocorrida ao longo
do século e meio que separam a Primeira Missa e a Primeira Árvore. Ao contrário.
Houve aí uma ruptura, uma desidentificação por parte do sujeito do discurso em relação
ao discurso do descobrimento e um conseqüente deslizamento, bastante importante, em
direção ao discurso sobre a colonização portuguesa. Trata-se da desidentificação desse
sujeito com uma FD e sua identificação com outra que, com a primeira, estabelece uma
relação de sentidos bastante tensa. No entanto, o efeito de sentido produzido pela
Primeira Árvore só pode produzir esse sentido forte e crítico se o discurso regularizado
sobre o descobrimento aí ressoar transversamente. Ou seja: tanto em casos de contra-
identificação quanto em casos de desidentificação, a relação dentro da rede de memória
ou entre redes de memória se faz indispensável. E isso é da ordem do memorável.
Quero deter-me um pouco mais sobre essa deriva dos sentidos. Já examinei a
renomeação. Vejamos, agora, um pouco mais detalhadamente a operação de
substituição do chapéu pela moto-serra. Examinando esses dois elementos pictóricos,
proponho considerá-los como seqüências discursivas pictóricas10 recortadas dos dois
textos imagéticos em exame e, enquanto tal, cada uma delas remete para saberes de
diferentes FD. Enquanto o chapéu na mão indica o respeito com que o português está
assistindo à Missa que celebra o achamento da nova terra e uma conquista da Coroa
Portuguesa, a moto-serra sinaliza a afetação desse texto por uma FD distinta. Mas não
apenas. Examinemos.
Passar do chapéu na mão para a moto-serra na mão aponta não apenas a deriva
dos sentidos e a identificação com uma FD diferente e antagônica. Essa substituição
aponta também para o que Pêcheux entende como “o ponto de encontro de uma
atualidade com uma memória” (Pêcheux, 1983[1990, p.17]) É esse encontro que leva o
sujeito do século XIX para o século XX, para a sua atualidade. Enquanto o chapéu na
mão do português representado na Primeira Missa conduziu Meirelles do século XIX
para o século XVI, colocando-o no tempo e no espaço do Descobrimento e assim o
inscrevendo no lugar discursivo de Caminha, a moto-serra na mão do português produz
o movimento contrário, deslocando o sujeito do século XVI para o XX, mais
precisamente para o ano 2000, o limiar do século XXI.
Esse salto no tempo não apenas atualiza a memória, mas também reorganiza os
saberes. Para pensar essa movência dos sentidos, é preciso percebê-la como a passagem
10
Da mesma forma como um texto verbal pode ser recortado para dele extrairmos seqüências discursivas
de referência do discurso em análise, entendo que um texto pictórico também pode ser seccionado para
dele extrairmos seqüências discursivas para análise.
da FD do Descobrimento para a FD do Pós-colonialismo. E a inserção da moto-serra
não apenas aponta para a ação predadora dos colonizadores, como vimos acima, mas, ao
mobilizar a atualidade, inscreve o sujeito desse discurso em um outro lugar discursivo, o
lugar discursivo de um brasileiro, a partir do qual ele denuncia a ação predadora que,
desde 1500 não cessou jamais e que, agora, é realizada por brasileiros de todas as
ascendências que, 500 anos depois do “descobrimento”, desmatam em nome do
desenvolvimento e do progresso e devastam, legal e ilegalmente, as florestas, acabando
com toda a madeira nobre do país e provocando alterações climáticas importantes.
Como é possível perceber, estamos diante de uma FD extremamente heterogênea que
trabalha várias questões referentes ao pós-colonialismo, mas que, além disso, recebe
saberes produzidos em uma outra FD, de natureza preservacionista. Assim podemos
perceber que o memorável é bastante heterogêneo e não corresponde a uma única
formação discursiva. Ele aponta para diferentes regiões do interdiscurso.
Aqui cabe um questionamento: se ocorreu uma ruptura de tal envergadura, ainda
assim é possível pensar em paráfrase? Para refletir sobre isso, convoquemos uma vez
mais Achard:
um texto dado trabalha através de sua circulação social, o que supõe que sua
estruturação é uma questão social e que ela se diferencia seguindo uma diferenciação
das memórias e uma diferenciação das produções de sentido a partir das restrições de
uma forma única (Achard 1999, p. 17). (O destaque é meu).

Como podemos ver, os sentidos não pré-existem à filiação às redes de


significação. Eles precisam inscrever-se em uma FD para lá receberem seu sentido. Em
função disso, tanto a marchinha de carnaval História do Brasil, de Babo, quanto o
cartoon A Primeira Árvore, de Uberti, convocam, num primeiro momento, a memória
que subjaz aos sentidos produzidos pela Carta de Caminha e pela Primeira Missa, e que
se encontram inscritos no interdiscurso em função de sua repetição e regularização.
Mas, ao mesmo tempo em que isso sucede, percebe-se que, enquanto a marchinha fica
no Discurso sobre o Descobrimento, a construção discursiva dos sentidos das duas
materialidades pictóricas remete ao filtro de FD diversas. A Primeira Missa se inscreve
no Discurso fundador do Descobrimento e a Primeira Árvore, no Discurso Pós-
Colonialista Brasileiro. Ao se inscrever nessa outra FD, tais sentidos podem ser
questionados, polemizados, criticados e denunciados, eles deslizam e novos sentidos se
produzem pelo trabalho de determinação sócio-histórica dos sentidos sobre os sentidos.
Resumindo
As análises precedentes permitem visualizar de que maneira pré-construídos
como “Primeira Missa” e “Descobrimento do Brasil”, provenientes do interdiscurso,
são apropriados e como a forma-sujeito trabalha tais sentidos, visando incorporá-los aos
demais saberes que ela abriga. Essas análises mostram como o trabalho do sentido sobre
o sentido se faz pelo viés do discurso transverso que ecoa nesse discurso como uma
presença-ausente, sem a qual tais sentidos seriam não-sentidos.
Deste encontro/desencontro entre o dizer cristalizado pelas práticas discursivas,
que faz ecoar um sentido que circula na memória social, e sua ressignificação pelo
sujeito do discurso, que se desidentifica, no caso de Uberti, e se contra-identifica, no
caso de Babo, com os saberes do discurso fundador do/sobre o descobrimento do Brasil,
dá-se a ressignificação dos pré-construídos aqui analisados. Tal ressignificação sustenta
todo um conjunto de discursos que critica o discurso fundador. E para que esta
ressignificação possa ser interpretada como um questionamento e/ou uma denúncia a
respeito do discurso fundador, é preciso que o sentido primeiro ressoe junto com os
novos sentidos, funcionando como uma presença-ausente. É o memorável que aí ressoa.
Não dá para interpretar uma atualidade sem mobilizar a memória.
Interdiscurso, memorável, memória discursiva: semelhanças e especificidades
Neste ponto, impõe-se uma comparação entre interdiscurso e memória
discursiva. Se o interdiscurso remete, como nos diz Orlandi, à memória do dizer, isto
significa que tudo o que já foi dito inscreve-se no interdiscurso e, se isso ocorre é
porque o interdiscurso constitui-se de um complexo de formações discursivas. Ou seja:
todos os sentidos já produzidos aí se fazem presentes, e não apenas os sentidos que são
autorizados pela Forma-Sujeito. E, se é assim, nada do que já foi dito pode dele estar
ausente. O interdiscurso não é dotado de lacunas. Ao contrário. Ele se apresenta
totalmente saturado. Esta é a natureza do interdiscurso: reunir todos os sentidos
produzidos por vozes anônimas, já esquecidas. E é por comportar todos os sentidos que
ele se distingue da memória discursiva.
Voltemos a Courtine e à sua formulação de memória discursiva: “A noção de
memória discursiva diz respeito à existência histórica do enunciado no seio de práticas
discursivas reguladas pelos aparelhos ideológicos” (Courtine 1981, p.53). Mais adiante,
ele questiona
como o trabalho de uma memória coletiva, no seio de uma FD, permite a
lembrança, a repetição, a refutação, mas também o esquecimento destes
elementos de saber que são os enunciados? Enfim, sobre que modo material
uma memória discursiva existe? (idibid., p.53)
Se a memória discursiva se diz respeito à existência histórica do enunciado no
seio de práticas discursivas reguladas pelos aparelhos ideológicos, isto significa que ela
diz respeito aos enunciados que se inscrevem nas FD, no interior das quais ele recebe
seu sentido. E mais: se a memória discursiva se refere aos enunciados que se inscrevem
em uma FD, isto significa que ela diz respeito não a todos os sentidos, como é o caso do
interdiscurso, mas aos sentidos autorizados pela Forma-Sujeito no âmbito de uma
formação discursiva. Mas não só: a memória discursiva também diz respeito aos
sentidos que devem ser refutados. Ou seja: ao ser refutado um sentido, ele o é também a
partir da memória discursiva que aponta para o que não pode ser dito na referida FD. A
memória discursiva ainda tem um outro funcionamento: é em função dela que certos
sentidos são “esquecidos”, ou seja, certos sentidos que, em um determinado momento
podiam ser produzidos no seio de uma FD, em função de mudanças conjunturais, não
podem mais aí ser atualizados, lembrados. E o contrário também é verdadeiro:
determinados sentidos que não podem ser ditos em uma FD, em função das mudanças
conjunturais, a partir de um determinado momento passam ser autorizados.
Em suma: constata-se que uma FD é regulada por uma memória discursiva que
faz aí ressoar os ecos de uma memória coletiva, social. Por outro lado, a memória
discursiva que se depreende de uma FD não é plena, não é saturada, pois nem todos os
sentidos estão autorizados ideologicamente a ressoar em uma FD. Essa é a diferença que
se estabelece entre o memorável, que é da ordem do “todos sabem, todos lembram”, e a
memória discursiva que é de ordem ideológica. É o ideológico que responde pela
natureza lacunar de uma FD e da memória discursiva por ela representada.
E ainda: se determinados sentidos precisam ser “esquecidos”, significa que eles
desaparecem do âmbito de uma FD. Quando isto sucede, é preciso questionar a
natureza desse esquecimento. Significaria ele um “apagamento”?. Entendo que, se o
sentido não pode mais ser relembrado no interior de uma FD, isto não significa que,
num passe de mágica, este sentido desaparece. O “apagamento” de um sentido em uma
FD não implica o apagamento deste sentido ao nível do interdiscurso, que funciona
como uma memória de todos os dizeres. Dessa forma, percebe-se que um sentido pode
desaparecer de uma FD, mas não pode ser apagado do interdiscurso, onde ele
permanece recalcado.
Por tudo quanto precede, entendemos que tanto memória discursiva como
interdiscurso dizem respeito à memória social, mas não se confundem. Há diferenças
importantes entre as duas noções. A memória discursiva é regionalizada, circunscrita a
uma FD e, por essa razão, é esburacada, lacunar. Já o interdiscurso abarca a memória
discursiva referente ao complexo de todas as FD. Ou seja, a memória que o
interdiscurso compreende é uma memória ampla, totalizante e, por conseguinte,
saturada.

Concluindo

Como vimos ao longo desse texto, a repetibilidade está na base da produção


discursiva. É ela que garante a constituição de uma memória social que sustenta os
dizeres, pois só há sentido porque antes já havia sentido. Entretanto, essa repetibilidade
não é capaz de cristalizar os sentidos, pois, à força de repetir, os sentidos vão deslizando
e se transformando. Por conseguinte, a repetibilidade sustenta a um só tempo a
regularização dos sentidos que se encontram em circulação no social e sua
desregularização e transformação. Os dois processos embasam a produtividade dos
sentidos sociais e se fazem presentes na cena do discurso, embora com ênfases diversas.
Certamente, a regularização dos sentidos é um processo mais presente, enquanto a
desregularização dos sentidos é menos comum. E não poderia ser diferente, pois se os
sentidos estivessem em constante deriva não haveria discurso possível. Ao mesmo
tempo, sem a deriva dos sentidos, o discurso se mostraria inútil, pois os sentidos
entrariam em um moto contínuo. Assim sendo, regularização e desregularização são
processos que sustentam a discursividade social.

Referências Bibliográficas

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