Você está na página 1de 166

V COLÓQUIO INTERNACIONAL

"DISCURSOS E PRÁTICAS ALQUÍMICAS”


CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO POR JOSÉ MANUEL ANES:
O SAGRADO COMO CENTRO ORGANIZADOR: UMA PERSPECIVA TRANSDIS
CIPLINAR

COMUNICAÇÕES

ABERTURA DO CIBERCOLÓQUIO - MARIA ESTELA GUEDES (TRIPLOV) &


JOSÉ AUGUSTO MOURÃO (ISTA)
CONFERÊNCIA INAUGURAL - CLAUDIO WILLER (PRESIDENTE DA UBE) -
O MAGO, METÁFORA DO POETA
A.M. AMORIM DA COSTA - A ANATOMIA DO OURO:
O OURO POTÁVEL DOS IATROQUÍMICOS
ANTÓNIO DE MACEDO - EU E O PAI SOMOS UM: O
ETERNO FEMININO NA NOVA RELIGIOSIDADE
JÚLIO CÉSAR BITTENCOURT GOMES - A PALAVRA E O SILÊNCIO: O
ESOTERISMO DE CLARICE LISPECTOR
RICHARD KHAITZINE - LE REBIS...
DE GÉRARD NERVAL À RAYMOND ROUSSEL
REINHARD HUAMÁN MORI - EL
FAUSTO DE GOETHE: LA REFRACCIÓN DE UN MITO
MANUEL ANGEL SEOANE - CONTRA LOS ABUSOS DE LOS ALQUIMISTAS
(COMENTARIOS A B. FEIJOO)
ARMANDO NASCIMENTO ROSA - SINAIS DO DEMIURGO CEGO EM TODOS
OS QUE CAEM, DE SAMUEL BECKETT
FRANCISCO (MIGUEL) PROENÇA GARCIA - O AGENTE DUPLO
UMA ESPIRITUALIDADE NIETZSCHEANA? - GLEDSON SOUSA
A RELIGIÃO QUE ANDA NO AR OU QUE ARES ANDAM PELA RELIGIÃO? -
PAULO MENDES PINTO
O OUTRO DENTRO DE MIM LÁ FORA - FLORIANO MARTINS
O DUPLO NO TEXTO DO NATURALISTA - MARIA ESTELA GUEDES
ROMANTISMO, ULTRA-ROMANTISMO E... ALQUIMIA
NA PENA E NA REGALEIRA (1-3) - MÁRIO FORTES & CLÁUDIA
ÁVILA GOMES

1
REGALEIRA E PENA (FOTOS) - MÁRIO FORTES & CLÁUDIA
ÁVILA GOMES
PEDRO DE ANDRADE - O EFEITO PESSOA E A SOCIOLOGIA DOS
CONGRESSOS DIGITAIS
A RELIGIÃO QUE ANDA NO AR, OU A DOR DO DIÁLOGO - JOSÉ
AUGUSTO MOURÃO
RODRIGO PETRONIO - A DIALÉTICA DIABÓLICA DA POESIA

2
ABERTURA DO CIBERCOLÓQUIO

Organizado por dois escritores, um deles dominicano, o colóquio "Discursos e Práticas


Alquímicas", agora em quinta edição, primeira virtual, dificilmente seria um colóquio
de Alquimia, tomada esta em sentido estrito: em primeiro lugar, porque a regra do
segredo e do anonimato a que obedecem os alquimistas não é compatível com a sua
comparência em reuniões mundanas, por muito estudiosas e despojadas de vaidade e
interesses materiais; em segundo lugar, porque o nosso conhecimento da Arte é
paralelo, decorre sobretudo do contacto com a poesia, quer como críticos, quer como
poetas. Conhecemos, evidentemente, alguns textos alquimistas, entre eles dois livros
fundamentais sobre a igreja como obra de mestres construtores, "As mansões filosofais"
e "O mistério das catedrais". Fulcanelli é justamente um ponto de referência para
Richard Khaitzine, um dos participantes do colóquio, especialista da língua das aves,
discurso cifrado que não é específico da Alquimia, podendo encontrar-se em textos de
natureza vária em todos os tempos, incluídos alguns nossos. Khaitzine mostra o
contacto que os artistas parisienses, em particular surrealistas, estabeleceram com
Fulcanelli. Ora a conferência inaugural do colóquio deste ano compete a um surrealista,
Claudio Willer, e terá por tema a relação da poesia com a magia, forte e directa no
movimento desencadeado por André Breton nos anos 20.

Segundo se lê em certos esoteristas, o último grande mestre construtor foi Gaudi, facto
que dá resposta à estranheza de alguns arquitectos profanos perante essa mansão
filosofal tão revolucionária nas formas, mas tão exclusivamente tradicional nos
materiais de construção, como é a catedral da Sagrada Família, em Barcelona. Se esses
construtores acham em Gaudi um ponto final, outro ramo da construção, especulativo e
não operativo, surgiu de há muito e sobrevive, detendo o conhecimento da Tradição, a
dos construtores do Templo - referimo-nos às ordens maçónicas, congregadoras de
pedreiros-livres, os maçons. Neste campo temos contado com a participação constante
de José Manuel Anes, Grão-Mestre da Maçonaria Legal Portuguesa, e de outros
maçons.

Tradicionalmente, Igreja e Maçonaria, apesar de faces de uma só moeda, têm mantido


relações de mútua hostilidade. De resto, a hostilidade aos maçons manifestou-se
também por parte de regimes políticos e governos, embora tenha havido regimes e
governos abertamente maçónicos, como sucedeu nos primeiros anos da República
Portuguesa. Os tempos entretanto mudaram, e mudaram o suficiente para que o
qualificativo da Loja presidida por José Manuel Anes seja Legal; e também mudaram o
suficiente para que, sem preconceitos nem agressões, neste colóquio haja um salutar
convívio e troca de conhecimentos entre membros de ordens religiosas católicas, em
especial os Dominicanos, preste-se-lhes a justiça do seu desassombro e coração
generoso, espagiristas, gnósticos, artistas plásticos, poetas, historiadores das ciências, e
outros. Este ano contamos com a presença de um militar, historiador também, o Major
Francisco Miguel Garcia. Dele esperamos contributo valioso para o esclarecimento da
estratégia do agente duplo, habitual nos serviços de espionagem, por a questão da dupla

3
identidade ser também uma das características do iniciado. É ela que gera mistérios
como o de Fulcanelli, para voltar ao alquimista para quem as catedrais são livros
declamados na língua dos pássaros - Fulcanelli é pseudo-nome, fundado sobre o signo
do fogo/vulcão; acerca da pessoa que o usou, durante muito tempo nada se soube, e hoje
o que há são hipóteses de identificação.

Gnósticos, maçons e rosacruzes têm sido os principais herdeiros e transmissores do


testemunho alquímico, e os poetas também, claro. É grata por isso a presença habitual
de António de Macedo no colóquio. Este ano a sua conferência versa "O eterno
feminino na nova religiosidade", o que se perspectiva decerto do seu ponto de vista
rosacruciano.

Quanto às ciências, bem sabemos que se têm oposto à religião, à qual colam o rótulo de
obscurantista. Por paradoxo, debaixo de vários tipos de iluminação se pode dizer que
obscurantista é a ciência, ao eleger o homem unidimensional, como diria Umberto Eco.
Retenhamos agora o seu obscurantismo só naquele sentido em que, ao contrário do
alquimista, a ciência não sabe que a luz vem das trevas; a investigação em História da
História Natural é um dos mais fortes dinamizadores do colóquio, pela necessidade que
sentimos de procurar na língua das aves a explicação para o duplo na linguagem da
ciência, duplo que se exprime pelo erro colossal, impróprio da ciência. Divorciadas da
Tradição, as ciências não compreendem que a objectividade do discurso científico possa
ser sabotada pela informação secreta. "La lettre R était le monogramme de l‘hérésie au
Moyen Âge", escreve Richard Khaitzine na sua comunicação deste ano, acerca da
errância, o erro, as gralhas voluntárias. É num registo de heresia científica que esses
textos se situam, e não recuam à Idade Média, são nossos coevos. Porque amputou a
linguagem, e com ela o conhecimento, na zona de penumbra entre noite e dia, a ciência,
apesar de ter luz própria, à sua própria luz perdeu a capacidade de leitura.

Hoje, dia 13, é um dia mágico para nós, por ser virtual. As vantagens do virtual sobre o
presencial são muitas, deixemos nota de apenas duas: jamais o Colóquio Internacional
"Discursos e Práticas Alquímicas" poderia ser amplamente internacional, se
continuássemos a reunir meia dúzia de amigos numa sala, como até agora aconteceu.
Pela primeira vez, temos participação estrangeira variada e proporcional à portuguesa, e
na sala não há só meia dúzia de colegas a ouvir-nos: neste momento, o TriploV está
com uma média de mil e cem visitas (PCs), seis mil acessos e duas mil visualizações de
página por dia. Não caiu do céu uma audiência tão infinitamente superior à do colóquio
presencial - ela deve-se em grande parte ao facto de as comunicações aos colóquios
anteriores estarem em linha, o que demonstra grande avidez do público pelo esoterismo
e pelos temas religiosos.

Cabe-nos por isso agradecer aos participantes, com comunicações e sem elas; entre os
que não se inscreveram no colóquio foi agradável receber mensagens antes mesmo do
início, uma delas dos gnósticos, que ofereceram a todos dois e-books, "La Piedra
Filosofal" e "Tratado de Alquimia Sexual", de Samael Aun Weor. Outro agradecimento
vai para a Hugin Editores, que tem publicado em livro as comunicações, apesar da crise
no sector, crónica de há anos em Portugal.

E é isto enfim o colóquio "Discursos e Práticas Alquímicas" : um espaço de


convivialidade além-fronteiras, de permuta de conhecimentos oriundos de disciplinas
diversas, um esforço de concórdia entre os que até há bem pouco foram inimigos

4
mortais, a criação de uma plataforma de entendimento que permita olhar para trás, na
História, e para os lados, onde vivem os nossos contemporâneos, de modo a gerarmos
um futuro em que caibamos todos, e não apenas alguns tenham direito à fala.

Sede benvindos ao cibercolóquio, passamos agora a palavra ao escritor Claudio Willer,


Presidente da UBE, que profere a conferência inaugural, "O mago, metáfora do poeta"

Maria Estela Guedes (TriploV) & José Augusto Mourão (ISTA)


Lisboa, 13 de Maio de 2003

5
O MAGO, METÁFORA DO POETA

CLAUDIO WILLER

O texto a seguir, dividido em três capítulos, aproveita algo de um trabalho de maior


envergadura, uma tese que estou preparando sobre relações entre poesia e ocultismo.

Abrange um período definido, da segunda metade do século XVIII até meados do século
XX, que corresponde à vigência do Iluminismo e Enciclopedismo, à Idade Moderna e à
contemporaneidade. Equivale, em literatura, ao que vai do romantismo à modernidade,
passando pelo simbolismo. Nesse período há uma definição, em nossa civilização, do
lugar da poesia, assim como do saber científico e dos conhecimentos ocultos, que é
distinto daquele que teria em outras épocas e contextos. Para ser mais claro: há
neoplatonismo e gnosticismo em Dante Alighieri, e em Baudelaire e nos simbolistas;
mas só no segundo caso (de Baudelaire e dos simbolistas), pode ser interpretado como
rebelião antiburguesa, contra o realismo e cientificismo, algo que não teria cabimento
no tempo de Dante Alighieri.

Não serão consideradas diferenças entre termos como ocultismo, filosofia oculta e
ciências ocultas (para Alexandrian, filosofia oculta teria sido iniciada por Agripa von
Nettesheim no século XVI, enquanto a expressão ocultismo deveria ser utilizada com o
sentido que lhe foi dado por Éliphas Lévi no século XIX). De qualquer modo, a
expressão ocultismo é corrente na bibliografia (ver relação de títulos ao final) com um
sentido amplo, equivalente a esoterismo.

Como este é um trabalho a ser veiculado inicialmente na internet, evitei notas de


rodapé. Autores e títulos de obras são diretamente mencionados no texto, e, com a
referência completa, na bibliografia ao final. Havendo tradução disponível em
português do texto citado, a citação utilizará essa tradução, por sua vez devidamente
registrada na bibliografia. Não havendo, a tradução é minha.

1. Poetas e magos

Entre os ensaios que examinam ou sugerem relações entre literatura e o saber oculto, é
indispensável constar El Arco y la Lyra, O Arco e a Lira, de Octavio Paz, onde são
apresentadas semelhanças e diferenças entre o poeta e o mago. Seus capítulos
examinam, cada um deles, diferentes características da poesia, ou, melhor dizendo (e
interpretando Octavio Paz, atribuindo-lhe intenções), componentes do valor poético.
Serão comentados trechos do capítulo intitulado O Ritmo, porém comparando-os a
outras passagens e obras de Octavio Paz, e a outros autores. Precedendo-o, no parágrafo
final do capítulo sobre A Linguagem, há uma passagem freqüentemente citada:

O poeta, porém, não se serve das palavras. É seu servo. Ao servi-las, devolve-as à sua
plena natureza, fá-las recuperar seu ser. Graças à poesia, a linguagem recupera seu

6
estado original. (...) Purificar a linguagem, tarefa do poeta, significa devolver-lhe sua
natureza original.

Há duas idéias evidentes nesse trecho.

Uma delas transparece na repetição da palavra original, remetendo a um estado


originário, um illo tempore marcado pela unidade entre a palavra e a coisa, ou o signo e
seu significado, perdida ao longo do curso da história.

Outra, correlata, conseqüência de haver um estado original da linguagem, é a da sua


autonomia. Signos têm um anterioridade; portanto, uma existência própria, não se
limitando a ser meras conseqüências ou reflexos de propriedades das coisas, ou das
impressões provocadas pelas coisas sobre os sentidos.

Por isso, representa uma recusa do empirismo, situando-se no oposto diametral do


positivismo, do cientificismo ou da defesa do realismo e naturalismo em literatura.

Octavio Paz não é um pensador religioso. A ―outra‖ linguagem, originária, não está
situada em um tempo mítico, um Paraíso anterior à Queda, porém na História, em nossa
cronologia, e até mesmo em nosso tempo, nas culturas ditas primitivas, nas sociedades
tribais. Tanto é que, em outro de seus ensaios, Conjunções e Disjunções, cujo tema
central é a sublimação, busca evidência antropológica para mostrar como era a
linguagem na Antiguidade, ou, para ele, as antiguidades, posto que são várias:

As culturas chamadas primitivas criaram um sistema de metáforas e de símbolos que,


como mostrou Lévi-Strauss, constituem um verdadeiro código de símbolos, ao mesmo
tempo sensíveis e intelectuais: uma linguagem. A função da linguagem é significar e
comunicar os significados, mas nós, homens modernos, reduzimos o signo à mera
significação intelectual e a comunicação à transmissão da informação. Esquecemos
que os signos são coisas sensíveis e que operam sobre os sentidos. O perfume transmite
uma informação que é inseparável da sensação. O mesmo sucede com o sabor, o som e
outras expressões e impressões sensoriais. O rigor da ―lógica sensível‖ dos primitivos
nos fascina por sua precisão intelectual: não é menos extraordinária a riqueza das
percepções: onde um nariz moderno não distingue senão um cheiro vago, um selvagem
percebe uma gama definida de aromas. O mais assombroso é o método, a maneira de
associar todos esses signos até tecer com eles séries de objetos simbólicos: o mundo
convertido numa linguagem sensível. Dupla maravilha: falar com o corpo e converter a
linguagem em um corpo.

Tomando este trecho como poética, interpretando-o como pensamento sobre a criação
literária, temos, é evidente, a fundamentação das sinestesias baudelairianas. E mais:
resumida, aí está toda a crítica simbolista e decadentista a uma decadência da
linguagem, entendida como perda de seus sentidos originais, da sua dimensão sensível,
em favor da utilização instrumental, empobrecendo-a.

Adotar essa postura, e mais, falar em purificar a linguagem, remete a Mallarmé,


representante, quando não o avatar na tradição literária ocidental, da defesa da
autonomia da linguagem poética. Subentende seu tornar mais puras as palavras da
tribo.

7
Referindo-se ao autor de Igitur e Um lance de dados, qualificado como o mais elevado
dos poetas herméticos, que ainda retornaria à sua obra ensaística, reconhecido como
influência marcante e figura referencial, Paz afirma, em O Arco e a Lira, que:

Jamais as palavras estiveram mais carregadas e cheias de si mesmas; tanto que mal as
reconhecemos, como essas flores tropicais negras à força de serem tão encarnadas.
Cada palavra é vertiginosa, tamanha é a sua claridade.

Daí, da postulação da autonomia da linguagem, vem a importância dada ao ritmo,


entendido como visão de mundo e não só como medida; e, por isso, como elemento
constitutivo do poema e não apenas seu atributo. O ritmo precede o poema:

O poeta encanta a linguagem por meio do ritmo. Uma imagem suscita outra. Assim, a
função predominante do ritmo distingue o poema de todas as outras formas literárias.
O poema é um conjunto de frases, uma ordem verbal, fundados no ritmo.

A defesa da autonomia da linguagem está a um passo da atribuição de valor mágico. O


autor de O Arco e a Lira dá esse passo:

Ninguém pode se furtar à crença no poder mágico das palavras. (...) A confiança ante a
linguagem é a atitude espontânea e original do homem: as coisas são seu nome. A fé no
poder das palavras é uma reminiscência de nossas crenças mais antigas: a natureza
está animada; cada objeto possui uma vida própria; as palavras, que são os duplos do
mundo objetivo, são também animadas. (...) Algumas palavras se atraem, outras se
repelem, e todas se correspondem. A fala é um conjunto de seres vivos, movidos por
ritmos semelhantes aos que regem os astros e as plantas.

Falar em natureza animada já é celebração nostálgica da unidade, do Paraíso Perdido,


recuperação do paganismo, do mundo íntegro, indiviso, impregnado pelo sagrado de
outros períodos históricos ou de culturas e civilizações distintas da nossa.

Afirmar a correspondência entre palavras, e mais, de seus ritmos com aqueles que
regem a natureza e o cosmos, é entender a analogia não apenas como um modo de
pensar ou de expressar-se, mas como princípio geral:

A operação poética não é diferente do conjuro, do feitiço e de outros processos de


magia. A atitude do poeta tem muita semelhança com a do mago. Ambos usam o
princípio da analogia; ambos agem com fins utilitários e imediatos; não se perguntam
o que é o idioma ou a natureza, mas servem-se deles para seus próprios fins. Não é
difícil acrescentar outra característica: magos e poetas, diferentemente de filósofos,
técnicos e sábios, extraem seus poderes de si mesmos.

O paralelo entre poeta e mago é quase um corolário, a conseqüência de uma poética e


uma filosofia. Também o é a argumentação de que ambas, poesia e magia, decorrem da
ascese, de uma transformação interior:

Toda operação mágica requer uma força interior, conseguida através de um penoso
esforço de purificação. As fontes do poder mágico são duplas: as fórmulas e demais
métodos de encantamento, e a força psíquica do encantador, a afinação espiritual que
lhe permite fazer concordar seu ritmo com o do cosmos. O mesmo se verifica com o

8
poeta. A linguagem do poema está nele e só nele se revela. A revelação poética
pressupõe uma busca interior. Busca que em nada se assemelha à análise ou à
introspecção; mais que busca, atividade psíquica capaz de provocar a passagem
propícia ao surgimento de imagens.

Criação poética, ou, para usar os termos de Octavio Paz, revelação poética (título de
outro dos capítulos de O Arco e a Lira), é uma operação do sujeito, resultado de uma
atividade psíquica, mas que acaba chegando, através de um movimento paradoxal, uma
dialética especial, à anulação do sujeito.

Portanto, a aproximação não é apenas entre magos e poetas, mas também entre poetas e
magos e os místicos. Ao fazer tais paralelos, aponta limites e mostra diferenças:

O poeta não é um mago, porém sua concepção da linguagem como society of life –
segundo define Cassirer a visão mágica do cosmo – o aproxima da magia. Embora o
poema não seja feitiço nem conjuro, à maneira de bruxarias e sortilégios o poeta
desperta as forças secretas do idioma.

Um componente da analogia entre poeta e mago, de interesse para presente


argumentação, é a afinidade na rebelião luciferiana. Ou prometeico-luciferiana, pois
nela o anjo caído e o doador do fogo são identificados.

A valorização do anjo rebelde está em crenças gnósticas e em seus reflexos no


ocultismo do século XIX, lembrando que um dos livros de Stanislas de Guaïta é
intitulado Le Temple de Satan. Reingressa na literatura de modo mais evidente através
de William Blake, autor indispensável no presente contexto (porém antecipada, na ótica
do próprio Blake, por O Paraíso Perdido de Milton). De forma mais evidente, está em
suas ilustrações para O Paraíso Perdido, com representações de um Lúcifer apolíneo,
olímpico, como se tomasse o lugar do Cristo de Miguelangelo; e em O Casamento do
Céu e do Inferno, ao intitular aforismos e descrições de visões de Provérbios do Inferno
e A voz do Diabo.

Com plena consciência desses arquétipos e de um tal background, Octavio Paz observa
que:

Com freqüência se compara o mago com o rebelde. A sedução que sua figura ainda
exerce sobre nós provém de ter sido ele o primeiro que disse não aos deuses e sim à
vontade humana. Todas as outras rebeliões – aquelas, precisamente, pelas quais o
homem chegou a ser homem – partem dessa primeira rebelião. Na figura do feiticeiro
há uma tensão trágica ausente no homem de ciência e no filósofo. (...) A magia é uma
empresa perigosa e sacrílega, uma afirmação do poder humano diante do sobrenatural.
Separado do rebanho humano, de frente para os deuses, o mago está só.

O empreendimento do mago seria estéril, além de solitário, pois teria como finalidade o
poder, o domínio sobre os homens e o mundo, nisso diferindo da rebelião prometeica,
que é uma doação.

A solidão do mago é solidão sem retorno. Sua rebelião é estéril porque a magia – isto
é, a busca do poder pelo poder – acaba se aniquilando a si mesma. Outro não é o
drama da sociedade moderna.

9
Na poesia, o exemplo da solidão, da posição auto-reflexiva, auto-referente, seria, ainda
segundo Octavio Paz, o projeto poético de Mallarmé:

A tensão da linguagem poética de Mallarmé se consome nela mesma. Seu mito não é
filantrópico; não é Prometeu, aquele que dá fogo aos homens, mas Igitur – aquele que
se contempla a si mesmo. Sua claridade acaba por incendiá-lo. A flecha se volta contra
aquele que a atira, quando o alvo é a nossa própria imagem interrogadora.

Paz pode estar se referindo à crise de Mallarmé em 1866, que se seguiu à criação de
seus primeiros e enigmáticos poemas em prosa, como O Demônio da Analogia, quando
o poeta teve a visão abissal do Nada e declarou que via seu pensamento se pensando a si
próprio. Mas esse poema em prosa, O Demônio da Analogia, pode ser interpretado
como crítica ou alerta desta auto-consunção, antecipando Igitur. Nele, Mallarmé
advertiria com relação ao solipsismo nas experiências místicas ou místico-poéticas, a
perda ou errância sem chegar a lugar algum em um labirinto de símbolos, uma vez
perdidos seus referentes externos.

Examinar em detalhe as afirmações de Paz sobre poesia e magia justifica-se por várias
razões. Em poucos textos tratando de literatura a questão foi posta com tal clareza e tão
bem sintetizada. Contudo, reconhecer sua estatura não implica adotá-lo irrestritamente.
Especialmente, no que diz sobre a solidão do mago e o caráter especular de seu
empreendimento. Historicamente, a atuação de magos, e mais, de movimentos fundados
ou encabeçados por magos, ou que se apresentaram como fundamentados no Oculto,
proclamaram a comunhão, a fraternidade a traduzir-se na ação coletiva; enfim, tudo o
que, para citar um expoente do gênero, Éliphas Lévi em seu Dogma e Ritual de Alta
Magia, corresponderia à egrégora, requisito para a realização da magia, ou, ao menos,
para o acesso ao conhecimento oculto.

A coexistência do pensamento mágico e modos de sociabilidade é evidente em maçons,


rosacruzes e tantos outros grupos, ordens, seitas e fraternidades. O mesmo vale para os
poetas. O próprio Mallarmé acabou, perto do fim de sua vida, em 1896, sendo
proclamado Príncipe dos Poetas, com status, portanto, de celebridade. Está ligado a algo
coletivo, o simbolismo, associado por sua vez à interlocução com outros autores (no
caso de Mallarmé, basta lembrar seu diálogo com Villiers de L‘Isle Adam), e ao círculo
literário que comparecia às reuniões em sua casa, os célebres mardis.

Vultos como Lautréamont, os ―malditos‖ Rimbaud e Corbière e o brasileiro


Souzândrade destacam-se pelo isolamento ligado ao que seus empreendimentos
poéticos tiveram de avançado e transgressivo, e também a traços e idiossincrasias
pessoais (a exemplo das provocações sistematicamente encenadas por Baudelaire), e
não necessariamente à condição de magos ou ocultistas, ou à identidade com o Oculto.

O mesmo vale para místicos e magos que são pilares do pensamento analógico na
tradição ocidental, como Paracelso e Jacob Boehme. O médico e mágico sofreu
expulsões e perseguições por ser idiossincrático e entrar em choque com autoridades e
potentados locais; o místico foi confinado e viveu recluso, em virtual exílio por suas
idéias serem tidas como heréticas; portanto, sofreu banimento político.

Reciprocamente, poetas-magos, efetivamente praticantes ou iniciados, tiveram atuação


pública, e até política. Foi o caso de Yeats, do militante nativista irlandês da juventude

10
ao senador da Irlanda na maturidade; ou de André Breton e demais surrealistas, ao
quererem unir pensamento mágico e posições políticas; ou ainda, no âmbito brasileiro,
de alguém como o simbolista paranaense Dario Velloso, estudioso de ocultismo,
rosacruz, discípulo de Péladan, Guaïta e Papus, e também personalidade pública,
defensor pioneiro de nossos índios, além de socialista, anticlerical, pacifista e educador
voltado para uma modernização pedagógica. Isso, sem entrar naqueles paradoxos
tipicamente brasileiros, como o representando por Medeiros e Albuquerque, jurista
eminente que chegou a Ministro da Justiça, autor da primeira legislação brasileira de
Direito Autoral, e também difusor do simbolismo entre nós, beletrista e, como tal,
satanista baudelairiano.

Ao tomar Mallarmé como referência, a aproximação entre o poeta e o mago em O Arco


e a Lira permite observações adicionais. O autor de Igitur não praticava magia, ao que
consta. Embora fosse divulgado através das livrarias e editoras dos ocultistas, figurando
na Librairie de l‘Art Indépendant junto com outros expoentes de um simbolismo
literário, sequer freqüentava os salões ocultistas e cenáculos de Péladan e Guaïta, nisso
diferindo de autores que conviveram com ele e compareciam seus mardis.

É difícil demonstrar que obras herméticas ou ocultistas houvessem sido uma fonte direta
de sua criação e de suas idéias sobre o Livro, o Nada, a Palavra Pura. No ensaio de P.-
O. Walzer, no volume da coleção Poètes d‘aujourd‘hui dedicado a Mallarmé, na
passagem que relata sua crise de 1866, é citada uma carta de Villiers de l‘Isle Adam na
qual o autor de Axel indica para leitura o Dogma e Ritual de Alta Magia de Éliphas
Lévi. Ora, se Villiers a indicava, é porque Mallarmé não a conhecia, apesar do enorme
prestígio de Lévi, figura central do ocultismo no século XIX.

Portanto, há indícios de que o autor de Um lance de dados não precisou de uma


formação hermética para vislumbrar o Nada e ver seu pensamento pensando-se a si
mesmo, nem para criar textos herméticos como Le démon de l‘analogie, já escrito
naquela época, ou desenvolver o projeto de Hérodiade. Nada devem, diretamente, a essa
fonte. Indiretamente, talvez sim, pelo modo como o ambiente cultural francês da época
estava impregnado de idéias ocultistas. No entanto, há diferença com relação a
Baudelaire e suas correspondências, ou ao modo como Nerval bebeu, desde a infância,
em fontes esotéricas.

E mais: nessa mesma carta, Villiers se refere às leituras de Hegel que Mallarmé já
estaria fazendo, o que permite a Walzer tentar uma aproximação entre o absoluto
hegeliano e mallarmaico. Sabe-se que Hegel foi matéria de estudo de Mallarmé e de
outros simbolistas, e, antes, de românticos e de Baudelaire. Segundo seus biógrafos
Pichois e Ziegler, Baudelaire e o grupo de jovens poetas que ele freqüentava eram
leitores do autor da Fenomenologia do Espírito. E aquilo que, genericamente, pode ser
denominado de ―filosofia romântica‖, de Schelling a Novalis, exerceu influência
marcante sobre o pensamento e a poética de sucessivas gerações românticas e pós-
românticas.

Enfim, na gênese da criação de Baudelaire, no período de formação e criação de seus


primeiros poemas importantes, entre 1841 e 46, é como se houvesse, somando-se a sua
cultura propriamente literária, uma combinação de leituras de pensadores herméticos,
notadamente Swedenborg e Wronski, de prosadores que adotaram o princípio da
analogia, como Hofmann e Balzac, e de filósofos, tudo isso combinado com as

11
experiências alucinógenas relatadas em O Clube dos Haxixins de Théophile Gautier e
em Os Paraísos Artificiais do próprio Baudelaire. Daí (acompanhando a argumentação
desenvolvida em Pichois e Ziegler e também em La mystique de Baudelaire de Jean
Pommier) nasce a poesia das correspondências universais e a poética do primado da
imaginação sobre as demais faculdades.

Portanto, há muitos modos de relação entre poesia e saber oculto, poetas e magos.
Mallarmé se insere em uma categoria distinta daquela representada por Yeats, este sim,
um iniciado, um praticante sistemático; ou por Pessoa, com seu interesse pela Ordem
Rosa + Cruz, sua atividade como tradutor dos teosofistas Blavastky e Leadbetter, sua
interlocução com Crowley, talvez fonte importante de seu neopaganismo e objeto de sua
admiração (conforme declarou em carta a João Gaspar Simões) e seu conhecimento de
astrologia e simbologia hermética. Não mantinha nem mesmo a proximidade com o
ocultismo de Baudelaire e Victor Hugo, em seus diálogos com Éliphas Lévi.

Em suma, há algo de intrinsecamente esotérico, por ser hermético e cifrado, resultado de


uma revelação, na criação poética, que independe da ligação efetiva com o esoterismo
histórico, ou seja, o hermetismo iniciático dos magos e ocultistas. Sabem-no, inclusive,
especialistas na conexão poesia – hermetismo, a exemplo de David Guerdon, autor de
Rimbaud, la clef alchimique, onde consta a seguinte observação:

Baudelaire acrescenta que aquilo que os poetas sabem, eles o aprenderam por si
mesmos, eles não têm necessidade de ler filósofos para se instruir: resposta direta, mas
abrupta aos métodos atuais de certos críticos que esquecem que a poesia é, antes de
tudo, inspiração. Bem entendido, Baudelaire fala da imaginação criadora, e não da
fantasia que não o interessa. ―Para o sábio, imaginar é ver‖, escreveu na mesma época
o mago Éliphas Lévi.

Por isso, esse autor descarta, de modo muito inteligente, em sua decodificação
alquímica da poesia de Rimbaud, a insolúvel questão do que o autor de Uma temporada
no inferno teria estudado, ou não, nesse campo, e de quais obras alquímicas teriam de
fato chegado a suas mãos. Há, sugere Guerdon, uma sincronia entre conhecimento
poético e hermético, inspiração e revelação:

Em realidade, o problema das fontes esotéricas de Rimbaud tem menos importância do


que parece. Temos confiança suficiente nos poetas para reencontrar neles as leis
harmônicas das correspondências universais. Existe, acreditamos, uma sabedoria
eterna, intangível, aquilo que chamam de Sophia perennis, a Tradição, a Gnose. Acede-
se a ela por dois métodos: seja de maneira indireta pela iniciação (transmissão oral,
freqüentemente através de um ritual), seja de maneira direta, pela intuição, a
contemplação e a inspiração através do mundo e de seus símbolos. Essa última
categoria agrupa os Videntes, os Gnósticos contemplativos e os poetas.

Certamente, Fernando Pessoa sabia disso, e o expressou com tamanha clareza em Natal:

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.


Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.

12
Baudelaire também sabia das analogias entre poetas e magos, e o disse em passagens
como esta, de Fusées (Projéteis, na edição brasileira):

A escrita e a linguagem enquanto operações mágicas, sortilégio evocatório.

E, em Meu Coração a Nu, aproximou poesia e alquimia (antecipando Rimbaud e sua


Alquimia do Verbo, texto no qual, por sua vez, reconheceria Baudelaire como vidente
máximo):

Há uma religião universal, feita para os Alquimistas do Espírito: uma religião que
emana do homem, considerado como um memento divino.

O esoterismo intrínseco, inerente à criação poética, é reconhecido por Octavio Paz em O


Arco e a Lira, em passagens freqüentemente citadas:

O poema hermético proclama a grandeza da poesia e a miséria da história. (...) Cada


vez que surge um grande poeta hermético ou movimento de poesia em rebelião contra
os valores de uma sociedade determinada, deve-se suspeitar de que essa sociedade, e
não a poesia, sofre de males incuráveis. (...) A solidão do poeta mostra a queda social.
A criação, sempre na mesma altura, acusa a descida do nível histórico. Daí que às
vezes nos pareçam mais elevados os poetas difíceis. Trata-se de um erro de perspectiva.
Não são mais elevados; simplesmente, o mundo que os cerca é mais baixo.

Assim, ao pôr Mallarmé em cena, como nos trechos já citados, associando-o à defesa do
hermetismo, Octavio Paz o trata como metáfora do mago. E vice-versa: o mago também
aparece como metáfora do poeta. Simbolizam-se mutuamente.

O próprio Mallarmé autoriza esta interpretação, em seu comentário sobre Là-bas de


Huysmans, intitulado Magie, ao referir-se a uma paridade secreta entre os velhos
procedimentos e o sortilégio que permanecerá a poesia. E mais, ao dizer que o verso,
traço incantatório, (...) abre uma similitude com as rondas, no meio da relva, da fada
ou do mágico.

Claudio Willer (São Paulo, 1940). Poeta, ensaísta e tradutor. Presidente da União
Brasileira de Escritores, UBE. Co-director da Agulha, Revista de Cultura

2. Tópicas do hermetismo: poesia e ocultismo, uma relação plural.

Não são examinadas, em O Arco e a Lira, relações reais, diretas, entre os dois campos,
o hermetismo ou ocultismo e a poesia (mas o seriam em uma obra subseqüente, Os
Filhos do Barro). Menos ainda, os casos em que um autor parece acumular as duas
funções, operando como elo entre ambos.

Por isso mesmo, oferece argumentos adicionais para justificar o rumo dado ao presente
ensaio. Se o mago é uma metáfora do poeta, então aqueles autores que podem ser
considerados poetas-magos a encarnaram. Seriam realizações de valores associados à
condição de poeta, representantes daquilo que a poesia é, ou de algo essencial na poesia
e na condição de poeta.

13
Isso vale, em grau especial, para os adeptos e os iniciados.

A bem da clareza, pode-se utilizar noções como a de iniciação e iniciado conforme o


que expõe Jean Richer em seu ensaio sobre Gérard de Nerval (também na coleção
Poètes d‘aujour‘hui):

É mesmo à iniciação, tal como a definiu René Guénon, que aspirava Nerval: trata-se de
uma liberação da condição individual do homem, culminando em um contato direto e
constante com o supra-humano. Aquele que é completamente iniciado, o adepto, o
libertado vivo, não está mais sujeito nem ao tempo nem ao espaço: ele primeiro
reintegrou a condição primordial do homem, e em seguida realiza estados supra-
humanos. À diferença do místico, o iniciado visa a ultrapassar os estados puramente
individuais. As condições e as modalidades da iniciação são as seguintes:

Ser qualificado, iniciável e entregar-se a um trabalho prévio que supõe uma ascese e a
aquisição de certos conhecimentos teóricos. É preciso, em seguida, ligar-se a uma
organização tradicional regular, e conhecer os métodos que facilitam o acesso a certos
estados interiores, em si mesmos incomunicáveis. A partir de uma iluminação primeira,
o iniciado poderá ordenar e desenvolver as possibilidades que ele traz em si. Para
chegar à liberação, o iniciado, apoiando-se quando necessário em suportes exteriores,
ao menos nos primeiros estágios, irá desenvolver-se progressivamente de grau em
grau.

Richer ainda observa que é necessária, no processo de iniciação, uma prática exotérica,
e distingue, nisso seguindo a doutrina e procedimentos de ordens como a Rosa + Cruz e
a maçonaria, entre pequenos e grandes mistérios, e entre o homem primordial e o
homem universal. Para esse crítico (dos mais qualificados, autor também de um
importante ensaio sobre simbologia alquímica em Rimbaud), a primeira crise de delírio
do autor de Aurélia, aos 33 anos, equivaleria a uma etapa na iniciação.

Contudo, o exemplo também mostra os limites desse paralelo; serve para apontar
diferenças, tanto quanto semelhanças e identidade. A crise de Nerval é como se fosse
uma etapa da transfiguração iniciática; análoga, mas não igual. O autor de Sílvia não se
limitou a colocar na forma de poesia os ensinamentos da Cabala, Alquimia, da doutrina
martinista dos ―iluminados‖. Desenvolveu uma mitologia própria e uma linguagem
pessoal. Estudando e pesquisando doutrinas iniciáticas, não chegou a ser propriamente
um adepto, menos ainda um simples divulgador. Recriou conceitos das doutrinas
esotéricas, e os recontextualizou. Sob uma ótica mais ortodoxa ou purista, os estaria
adulterando. Isso é bem observado por Max Milner em seu prefácio a Les Illuminés,
colocando em destaque o caráter pessoal, portanto presumivelmente poético, da
utilização do hermetismo e ocultismo. Milner lembra ainda a fabulação de Nerval, o
quanto inventava, atribuindo-se antecedentes e fatos biográficos inexistentes. Mas
reconhece que textos ocultistas fizeram parte da formação do poeta, desde sua infância.

Por isso, que não se veja rigidez doutrinária, nem mesmo coerência, em Nerval. É
correta a qualificação de um dos seus tradutores brasileiros, Contador Borges:

Livre pensador no sentido mais pleno do termo, Nerval não era ortodoxo nem de uma
religião, nem de uma heresia.

14
Assim, o ocultismo em Nerval pode ser visto a partir de diferentes ângulos. Pode-se
falar em ocultismos, pensando essa relação como plural. Alguns de seus poemas
expressam a crença na filosofia oculta e no gnosticismo; outros podem ser
decodificados através da simbologia hermética. Contudo, ele foi dúplice, ambivalente
ou ambíguo. Aliás, o próprio Nerval já havia observado isso em sua antecipação de
Rimbaud, a anotação de que eu sou um outro (feita em um de seus retratos).

Daí que, do mesmo modo como Baudelaire foi um ―pai‖ de parnasianos e neo-clássicos
de um lado, e de simbolistas e surrealistas de outro, em Nerval coexistem um precursor
do surrealismo e outro de Anatole France; um poeta agônico e, em momentos
importantes, delirante, e um narrador, autor de relatos históricos e crônicas de viagem.
Adotando a polaridade proposta por Octavio Paz em Os filhos do barro entre analogia e
ironia para caracterizar o romantismo, uma parte da obra nervaliana penderia para o
pólo da analogia, e outra, para o pólo da ironia. Ambos, o Nerval-surreal e o Nerval-
France, apresentando ligação estreita com Ocultismo; porém manifestando-se de modo
diverso em cada uma das faces do poeta de As Quimeras.

Na prosa, é tema tratado à distância, ironicamente. Por exemplo, em Les Illuminés, no


capítulo sobre Cagliostro, o fundador da Maçonaria Egípcia é satirizado, sugerindo-se
que seria um farsante, e seu ritual é visto como deboche. Um conto como A mão
encantada (extremamente precursor de Villiers e Maupassant) é para entreter,
impressionar, e não para revelar mistérios íntimos ou iniciáticos.

Já na poesia, não. Esta é confessional, apresentada como afirmação de crenças reais do


autor. Para ficar em três de seus principais poemas herméticos, El desdichado é uma
antevisão de sua própria destruição, de seu destino trágico, em um texto que se decifra
através da simbologia do tarô; O Cristo no Horto das Oliveiras é afirmação do
gnosticismo, da idéia do Deus decaído; e Versos Dourados retoma a idéia do universo
animado, do macrocosmo do qual o homem é uma parte, seguindo Swedenborg e Fabre
d‘Olivet.

Esses três poemas justificam chamar a atenção para o modo plural como esoterismo e
ocultismo aparecem em literatura. Aceita essa dualidade em Nerval, narrativas em prosa
como Silvia e Aurélia na verdade pertenceriam a sua face poética.

O que acaba de ser dito sobre recriação do hermetismo e ocultismo por poetas vale, em
maior grau ainda, para Baudelaire. Seus vínculos com hermetismo e disciplinas ocultas
foram admitidos e comentados por diversos estudiosos, focalizando a influência de
Swedenborg e o interesse por Fourier. Ao fazê-lo, acompanham o próprio Baudelaire,
que menciona Swedenborg em diversas passagens. Mas, em acréscimo, há uma relação
entre Baudelaire e Éliphas Lévi, tal como examinada em um ensaio revelador,
Anotações de uma Bibliógrafa: Baudelaire e o Esoterismo, de Maria Lúcia dal Farra,
que vai além da influência. Trata-se de presumível colaboração entre o poeta e o mago,
ambos companheiros nas barricadas da insurreição antimonarquista de 1848 e, antes,
co-autores na coletânea Les mystères galans de Paris, de 1844. E, ainda, autores de
poemas sobre as correspondências, cabendo lembrar que em Baudelaire o soneto
Correspondências é central, por expressar uma cosmovisão e uma poética de fundo
esotérico, a ponto do poeta citá-lo em outros de seus escritos, como Os Paraísos
Artificiais e seu texto sobre Wagner. Citando o ensaio de Maria Lúcia dal Farra:

15
É na altura em que são publicados os Mystères que o abade Constant dá à luz La Mère
de Dieu, onde se lê que ―toda a natureza é um templo para nós.‖ No ano seguinte, ele
publicará Les Trois Harmonies (1845), do qual um dos melhores poemas tem por título
―Les Correspondances‖. As coincidências são espantosas!(...)

Outros poemas de um também podem ser aproximados aos do outro: o ―Sans amour‖
de Constant ao ―A celle que n‘est trop gaie‖ de Baudelaire; o ―Les promesses de
l‘amour‖ de Constant ao ―Chanson d‘après midi‖ de Baudelaire. Em Éliphas Lévi o
universo representa uma ―escritura vivente‖ onde ―as formas são uma linguagem‖,
cuja trama de símbolos pede para ser interpretada. Para ele, o Logos preserva a
unidade da substância cósmica através da multiplicidade do sensível e funda um
sistema de analogias que traçam o elo entre a natureza e o sobrenatural, a tudo
harmonizando estreitamente.

Portanto, a relação Baudelaire – Lévi se destaca, mesmo no contexto da cultura


hermética da época, embora faça parte de um todo, seja indissociável desse contexto,
conforme bem observado por essa estudiosa:

Que a tradição esotérica tenha coabitado com a literatura não é novidade. Sem falar da
influência do hermetismo junto à arte em geral e à filosofia, são numerosos os exemplos
colhidos em escritores como Virgílio, Ovídio, Dante, Milton, Shakespeare, Cazotte,
Rabelais, Cyrano de Bergerac, Goethe, William Blake, Novalis, Arnim, Victor Hugo,
Balzac, Gérard de Nerval, Edgar Allan Poe, Villiers de l‘Isle Adam, Huysmans,
Strindberg, Maeterlink e naturalmente em Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e nos
surrealistas. Entretanto, em Baudelaire – e a partir dele –, ela não transparece somente
nas alusões, citações e mesmo nas claras infiltrações da matéria hermética no assunto
dos textos literários. Ao contrário: na sua obra conhece-se a tentativa de aplicar sobre
o funcionamento da linguagem poética os ensinamentos e os rituais das práticas
esotéricas, quer sejam eles a lei da analogia (fundamento da ―teoria das
correspondências‖), quer sejam eles a lei do ―solve et coagula‖, subsídio essencial
para a obtenção da Grande Obra Hermética, no sentido de suscitar a existência de um
novo universo através da transmutação daquilo que o inventa e lhe dá vida: a
linguagem.

Contudo, Baudelaire não repetiu, na forma de poesia e crítica, as correspondências de


Swedenborg, Lévi e tantos outros integrantes de sua bagagem de leituras esotéricas.
Antes, ao projetá-las na criação poética e, de modo mais evidente ainda, na crítica de
artes plásticas e de música (especificamente de Wagner), ele as recriou e revitalizou.

Tais considerações cabem, ainda, para William Blake. A exemplo de Nerval, que teria
aprendido a ler em uma biblioteca de obras herméticas, teve educação, dada pelo pai e
não na escola, pautada pelo pensamento de Swedenborg. Mas o que está em
Swedenborg é uma coisa, e os mitos de Blake, seus Loos, Urizem, Zoas, Tirzah e
Nobodaddy, são outra, uma versão personalíssima do gnosticismo.

Particularmente expressivo e ilustrativo da complexidade das relações entre o


hermetismo e a poesia, é o que sabemos sobre Rimbaud. Ao escrever sobre Alquimia do
Verbo, referia-se à alquimia histórica, por ele estudada, conforme seus biógrafos.
Contemporâneos de sua Carta do Vidente, entre uma fuga e outra a Paris, são suas

16
leituras da matéria, escandalizando o bibliotecário de Charleville. Dessas fontes também
veio a adesão ao princípio da analogia e das correspondências.

Justificam-se decodificações à luz do hermetismo de passagens de sua obra, como esta,


do soneto Vogais, proposta por Alberto Marsicano no Rimbaud por ele mesmo que este
autor preparou junto com Daniel Fresnot:

Essas experiências sinestésicas (transmutação do som em cor, poesia, perfume, ou vice-


versa) já haviam sido profetizadas por Baudelaire em seu antológico ensaio sobre o
haxixe e o ópio, Os Paraísos Artificiais. Imerso o tempo todo nesses sublimes estados de
percepção, Rimbaud compõe o poema Vogais, inspirado no cromatismo musical do
século XVII e nos antigos tratados de alquimia, como L‘Ars Auriferae, de 1610.
Vislumbra no som das vogais seu cristalino espectro cromático: A negro, E branco, I
rubro, U verde e O azul!

Existe uma relação profunda entre a alquimia e a obra de Rimbaud. As primeiras


vogais de seu poema enunciam as cores iniciáticas da Grande Obra: A negro: fase
primordial, putrefação, caos inicial, a rosácea esquerda de Notre Dame que jamais é
atingida pelo sol. E branco: a calcinação, a purificação do ―albedo‖, a rosácea que
brilha ao sol do meio-dia. I rubro: o púrpura da pedra filosofal, a grande rosácea do
portal que incandesce com os raios do poente.

E uma observação sobre a troca de lugar do O e U acaba por validar a decodificação


alquímica:

Rimbaud não inverte por acaso a ordem das duas últimas vogais: a Ars Magna tem
como extremos o alfa e o ômega. Podemos vislumbrar o ciclo iniciático das vogais à luz
do quaternário alquímico.

A passagem é ilustrada por esse quaternário, um diagrama em forma de cruz, encimado


pelo U verde, ar, mercúrio; embaixo, o E branco, água, lua, prata; à esquerda, A negro,
terra, saturno, chumbo; à direita, o I rubro, fogo, marte, ferro; ao centro, O azul,
quintessência, sol, ouro. Portanto, a pedra filosofal, central e solar, equivale à letra O.
Aceito o diagrama alquímico, passa a fazer sentido a inversão das vogais O e U. E
torna-se plausível a interpretação do soneto como retratando as etapas da transmutação,
do nigredo, a matéria orgânica, seguido pelo albedo, mais o aquecimento e sublimação,
até a perfeição.

O próprio Rimbaud comenta o soneto das vogais, na passagem intitulada Delírios II -


Alquimia do Verbo de Uma temporada no Inferno, com a transcrição, no texto em
prosa, do início daquele poema, escrito presumivelmente dois anos antes (Vogais está
compilado, na edição Pléiade, como de 1871; Uma temporada no Inferno seria de
1873):

Inventei a cor das vogais! - A negro, E branco, I rubro, O azul, U verde. - Regulei a
forma e o movimento de cada consoante, e, com ritmos instintivos, me vangloriava de
inventar um verbo poético acessível, mais dia menos dia, a todos os sentidos.

Note-se: todos os sentidos. É uma reafirmação clara das correspondências e sinestesias


baudelairianas.

17
Ao citar, na seqüência de Alquimia do Verbo, os versos do poema sobre a Eternidade,
mostra aonde vai dar esse processo, e o que é encontrado através da iluminação:

Achada, é verdade?!
Quem? A Eternidade.
É o mar que o sol
...............Invade.

Com esses complementos de Alquimia do Verbo, pode-se colocar o soneto das vogais
no mesmo patamar de Versos Dourados de Nerval e Correspondências de Baudelaire,
como exemplos elevados de poesia hermética, fundamentada no ocultismo. Contudo,
sem esquecer que Rimbaud fala em alquimia do verbo. Deixa claro, portanto, que se
refere a uma poética, a seu próprio caminho no plano da criação, análogo, porém ao
mesmo tempo distinto da ascese dos místicos e magos, a começar pelo chamado ao
desregramento dos sentidos, pelo caráter rigorosamente pessoal de sua busca.

Portanto, falar, com relação a Blake, Nerval, Baudelaire, Rimbaud, em iniciação


equivale, sempre, a usar o termo de modo aproximativo.

Contudo, nesse sentido, Yeats, por mais que sua poesia fosse, como não poderia deixar
de ser, pessoal, pode ser qualificado como iniciado, na acepção plena conferida ao
termo. E, em acréscimo, como autor de obras especificamente ocultistas, como o foram
algumas de suas peças teatrais e, principalmente, o enigmático livro A Vision, redigido
por sua mulher em transe mas com a autoria atribuída a ele, no qual é elaborada uma
tipologia com base hermética, que coincide com a busca de conhecimento empreendida
pela ordem da Aurora Dourada.

Assim, dentro do tema geral aqui abordado, há uma diversidade de modos de relação, e
mais, uma pluralidade de modos de expressá-la através da criação literária. O vínculo
com a tradição hermética é constantemente reafirmado através da poesia, e ao mesmo
tempo recriado.

Pode-se, a partir desses comentários, avançar no exame da relação entre poesia e


ocultismo e na condição de poeta-mago.

Esta se manifesta através de alguns núcleos temáticos ou topoi. Supõe, conforme já


visto, a crença na autonomia da linguagem, e, por decorrência, em seu valor ou poder
mágico. Associada a essa crença, há uma tópica da linguagem primordial, equivalente a
uma simbologia universal, fundamento da Cabala, da Ars Magna, a combinatória de
Ramon Llul e doutrinas afins, conforme bem exposto por Umberto Eco em A Procura
da Língua Perfeita.

Sobre essa tópica, é de especial interesse um ensaio de Octavio Paz, Leitura e


Contemplação (publicado no Brasil na coletânea Convergências – Ensaios sobre arte e
literatura), no qual o poeta-ensaísta vai das glossolalias e do ―falar línguas‖ de seitas e
doutrinas religiosas até o relativismo lingüístico, a tese de Whorf-Sapir. Nesse percurso,
observa como o ―falar línguas‖, a presumível língua primordial, fala do Espírito Santo,
reaparece nas glossolalias da poesia moderna, no Huidobro de Altazor e em Klébnikov,
bem como em Artaud e Michaux. E, ainda, mostra a influência direta de um texto de
Fabre D‘Olivet sobre a língua primeira - intitulado Les vers dorés de Pythagore,

18
expliqués et traduits por la première fois en vers eumalpiques français, precedés d‘un
discours sur l‘essence et la forme de la poésie chez les principaux peuples de la terre –
como fonte de inspiração do soneto Versos Dourados de Nerval. Vale a pena, pelo que
acrescenta ao tema aqui examinado, transcrever a passagem do ensaio de Paz:

Em seus estudos bíblicos, Whorf descobriu Antoine Fabre d‘Olivet, um dramaturgo,


lingüista e filósofo ocultista que escreveu, no limiar do século XIX, um curioso livro, La
Langue hébraïque restituée. É surpreendente como as leituras e os destinos se cruzam:
Fabre d‘Olivet produziu também grande impressão em André Breton, especialmente
por suas teorias sobre lingüística e poesia. Fabre d‘Olivet, com base na Cabala,
acreditava na existência de uma língua hebraica de bases universais. O velho sonho de
uma linguagem primeira e universal, dotada de propriedades extraordinárias como a
correspondência entre o som e o sentido, foi transmitido pelo hermetismo neoplatônico
e pela Cabala, e recolhido no início do século XIX por escritores como Court de
Gebelin e Fabre d‘Olivet. Ambos influíram em Nerval. O soneto Vers Dorés, em que o
poeta lê a natureza como se fosse uma escrita a um tempo indelével e cambiante, se
inspiram diretamente numa obra de Fabre d‘Olivet sobre os versos de Pitágoras (...).

A recuperação da unidade, a superação da ruptura entre signo e seu significado,


converte a palavra em duplo simbólico. Portanto, em cifra de um universo tal como
descrito pela crença gnóstica, de fundo neo-platônico, na regência do estágio ou escalão
do universo em que nos encontramos pelo Demiurgo, uma divindade decaída ou
intermediária, e na possibilidade do conhecimento revelado, alcançado através da
ascese.

Mas esta ascese poderia ser o reverso do ascetismo cristão, como o foram as práticas
dos assim-chamados gnósticos dissolutos, sendo lícito associá-las ao desregramento dos
sentidos de Rimbaud, seu caminho, conforme já observado, para a alquimia do verbo.

A analogia ou identidade de poesia e gnose foi declarada de modo especialmente feliz


por William Blake, em versos famosos, cujo pleno sentido se revela se forem lidos
como uma poética:

Num grão de areia ver um mundo


Na flor silvestre a celeste amplidão
Segura o infinito em sua mão
E a eternidade num segundo.

Em Fernando Pessoa a cosmovisão gnóstica, com a tópica do Deus degradado, e, por


conseqüência, de uma decadência ontológica, é reapresentada de modo magistral, pela
extrema concisão. Por exemplo, no primeiro verso do aqui já citado Natal:

Nasce um deus. Outros morrem. A Verdade


Nem veio nem se foi: o erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

E em No túmulo de Christian Rosencreutz:

19
Deus é o homem de outro Deus maior:
Adam supremo, também teve queda;
Também, como foi nosso Criador,

Foi criado, e a Verdade lhe morreu...


De além o Abismo, Sprito Seu, Lha veda:
Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.

Satanismo, com a atribuição de traços prometeicos, de uma atuação como libertador ao


anjo caído, também é um componente dessa relação. É a tópica mais diretamente ligada
à dimensão propriamente política da adesão ao Oculto, por ser uma signo da rebelião,
um símbolo da negação do ―bem‖, da positividade tal como encarnada na realidade
imediata, na sociedade com a qual o poeta convive, em seus valores e estilo de vida.

A atenção para as relações com ocultismo e hermetismo enriquece a leitura da poesia.


Permite entender melhor ou atribuir mais significado a poemas como estes aqui citados
ou mencionados, Natal e aquele escrito diante do túmulo de Christian Rosenkreutz por
Fernando Pessoa, ao soneto das Correspondências de Baudelaire, a Versos Dourados ou
El desdichado de Nerval. Em cada um deles – na reafirmação da cosmovisão gnóstica
em de Pessoa, na celebração da analogia em Correspondências, na apresentação dos
arcanos do tarô em El desdichado – o vínculo com o ocultismo se manifesta de modo
diverso.

As possibilidades abertas pela decifração são enormes. Poemas em um tom lírico,


dirigidos à amada, uma bela mulher, também falam da uma encarnação feminina da
sabedoria gnóstica, uma Sophia ou entidade mítica aparentada, ou uma Eurídice
conduzindo-o através do processo iniciático. Ou então, entre tantas variações do ―eterno
feminino‖, da idealização romântica da mulher, dirigidos a uma noiva, mas sem referir-
se apenas a uma relação conjugal, porém a núpcias alquímicas. Outros poemas falam de
pedras preciosas, não só por sua beleza, mas pela correspondência com planetas e outras
de suas propriedades mágicas. E, ainda, revelam relações mais complexas, permitindo
por exemplo interpretar a degradação tematizada por Baudelaire como etapa de uma
sublimação ou transformação alquímica, uma passagem pelo nigredo para chegar à luz.
Isso, além de poderem conter cifras, chaves numéricas e outros símbolos que vão
adquirindo sentido à luz da Alquimia, Cabala, Astrologia, da leitura do tarô, etc.

Nada disso equivale a propor o reducionismo, a interpretação unívoca. A poesia é


polissêmica. O bom poema não diz ―isto‖ ou ―aquilo‖. Diz (adotando o estilo de Paz)
isto e aquilo. Pode ser, nos exemplos citados, lírico, gnóstico, teosófico, cabalístico, e
muito mais. A poesia já é, por sua própria natureza, hermética, cifrada, admitindo
múltiplas decifrações, diferentes leituras. Nisso reside sua diferença fundamental com
relação a um ocultismo doutrinário, no qual, ao fim, o símbolo quer-se unívoco,
equivalente à cifra ou chave remetendo a um determinado significado, por mais
complexo ou intangível que possa ser.

Há um jogo ou tensão dialética entre duas relações de significação, uma delas


propriamente simbólica, com um sentido oculto, porém definido, e outra multivalente,
aberta a diversos sentidos e interpretações.

20
Um ensaio de Julia Kristeva sobre Nerval, Sol negro, que focaliza o poema El
desdichado, apresenta interesse, no presente contexto, por invocar fontes herméticas e
ocultistas de modo não-redutor. Nele é mostrado como tais fontes e símbolos interagem,
contribuindo para a multivalência de conotações, como diz essa autora, da esfera do
propriamente poético:

A polivalência do simbolismo no interior dessa nova ordem simbólica que é o poema,


ligada à rigidez dos símbolos no seio das doutrinas esotéricas, confere à linguagem de
Nerval um duplo privilégio: por um lado, assegurar um sentido estável tanto quanto
uma comunidade secreta, onde o inconsolado é ouvido, aceito e, em suma, consolado;
por outro, abandonar esse sentido monovalente e essa própria comunidade, para
chegar o mais próximo possível do objeto do pesar especificamente nervaliano, através
da incerteza da nomeação.

Essa complexa relação de símbolos polivalentes e monovalentes, da incerteza da


nomeação vs. rigidez dos símbolos, pode ser associada a uma dialética do particular (o
objeto do pesar especificamente nervaliano) e do universal (o sentido estável).

Contribuem para entendê-la reflexões de Octavio Paz, desta vez em um ensaio mais
recente, A outra voz, no qual distingue, baseando-se em The allegory of love de C. S.
Lewis, entre símbolo e alegoria:

... C. S. Lewis nos adverte sobre uma confusão freqüente: ler uma alegoria medieval
como um símbolo. A alegoria e o símbolo são irmãos, mas os dois são também
manifestações do pensamento analógico; tanto a alegoria quanto o símbolo postulam
uma relação secreta entre isto e aquilo, o mundo das idéias e das coisas. Mas Lewis
introduz uma distinção fundamental: ―a equivalência entre o material e o imaterial
pode ser usada pela mente de duas formas (...) Diante de um fato imaterial, como a
paixão que sentimos, se inventa visibilia para expressá-la. (...) Sentimos cólera e
imaginamos a Ira, com o rosto desfigurado e uma tocha na mão. Isso é o que se chama
alegoria.‖ Por outro lado, também podemos ver nossas paixões como uma cópia ou um
reflexo de um mundo imaterial. Esta foi a idéia de Platão; é uma idéia implícita –
embora poucas vezes consciente – em todo simbolismo. Ver através da cópia o
arquétipo, vislumbrar no mundo daqui o de lá, diz Lewis, ―é o que chamo simbolismo
ou sacramentalismo‖. Para o simbolista, a realidade que vemos não é inteiramente
real; é um símbolo da outra realidade, a verdadeira: a idéia, a essência.

Portanto, é estabelecida a distinção entre o símbolo, unívoco, sacramentalista, que


remete a um arquétipo, e a alegoria, multívoca, por ser fluida, dinâmica, pois, como
ainda diz Paz em A outra voz,

Na alegoria desaparece a distância entre o ser e o sentido: o signo devora o ser.

Para entender o que seria essa devoração do ―ser‖, ou, ao menos, do sentido, da relação
de significação pelo signo, basta pensar em algumas das obras de Mallarmé, como Um
lance de dados, Igitur e sua série de poemas em prosa. Ou, melhor ainda, nas imagens e
perífrases de Os Cantos de Maldoror de Lautréamont, notadamente em seus belos como
e outras invenções do mesmo calibre.

21
A obra dos poetas esotéricos, herméticos, ocultistas, seria um lugar de encontro entre
essas duas dimensões, simbólica e alegórica, e de uma tensão entre ambas.

Houve coexistência, no final do século XIX, de dois simbolismos, em um período no


qual a relação entre o oculto e o poético se tornou frenética, cujo ideólogo e grande
cronista foi, sem dúvida, J.-K. Huysmans, respectivamente em Às Avessas (À rebours) e
em Là-bas. O relato desse encontro de simbolismos está, em detalhe, na biografia de
Alfred Jarry por Noël Arnaud.

Um deles é o simbolismo literário, aquele dos poetas, dos autores da poesia


propriamente simbolista, sustentando a abolição ou superação da relação de
significação, ou da função significativa, em favor da sugestão, ou do império da
―palavra pura‖, desligada e liberada de referências externas. Outro, o simbolismo
hermético, aquele dos textos propriamente ocultistas, revelador de uma significação
oculta e transcendental, arquetípica.

Pode-se introduzir noções bipolares que se tornaram moeda corrente em estudos


literários, as de sintagma e paradigma, para avançar na questão. Um simbolismo
esotérico teria sua decodificação ou decifração voltada para o paradigma, para um
sentido exterior, por ser arquetípico, conforme a doutrinas esotéricas. O simbolismo
literário opera, notoriamente, no eixo do sintagma, das relações entre os signos que
compõem o poema, voltando as costas para o referente externo.

O encontro desses dois simbolismos, literário e hermético, dá-se de modo mais rico,
além de paroxístico, em Alfred Jarry, ponte entre poesia simbolista e vanguardas. Isso,
pelo modo como recorreu a ocultismo, heráldica, além de conhecimentos filosóficos e
científicos. Sua obra inclui o Doutor Faustroll, na qual propõe a Patafísica, "arte das
soluções imaginárias"; O amor absoluto, sugerindo amor incestuoso entre o Cristo e a
Virgem; César Anticristo, afirmação de Nero como santo; Messalina, onde vê a grande
prostituta como santa. Nessas e em outras obras, promove inversões ao tomar cada
episódio ou personagem por seu contrário. Aplica, a seu modo, a coincidentia
oppositorum, conforme aponta Henri Béhar em Les Cultures de Jarry, remetendo, com
propriedade, ao decálogo hermético de Éliphas Lévi. Portanto, o que poderia ser tomado
como excentricidade ou manifestação de loucura, as inversões de valores e símbolos,
substituições de signo e significado, tem intenções precisas, fundamentadas em estudos
sistemáticos. Pleno conhecedor do gnosticismo, em uma de suas obras, a peça teatral
L‘Autre Alceste, reescreve e parafraseia a história da união entre Simão o Mago e sua
profetisa Helena. Conforme o demonstra Noël Arnaud, a peça, impregnada da doutrina
gnóstica, é adaptada de fontes como Hipólito de Roma. Na criação e encarnação de
Ubu, e em tantas outras ocasiões e episódios, Jarry pôs em ação o pensamento mágico,
ao identificar linguagem e realidade, querendo que o símbolo fosse ativo no plano do
real. De modo assistemático e anárquico, um empreendimento assemelhado àquele do
mago.

Uma figura como Jarry representa a Belle Époque. Portanto, foi um homem de seu
tempo, do ―grande banquete‖, entre 1885 e 1918, marcado pela intensa exteriorização
da vida cultural, quando, argumenta Roger Shattuck, a obra de arte passa a ser vista, não
mais como reprodução de uma norma, mas como desvio das normas, iniciando-se o
primado vanguardista da experimentação. Correlatamente, o artista não é mais quem

22
eterniza, a seu modo, o cânone, o ideal estético à maneira do classicismo, mas aquele
que rompe com esse ideal, afirmando-se como diferença, como individualidade radical.

Essa concepção do artista e esse encontro de simbolismos acaba por realizar-se, de


modo pleno, na poesia surrealista, em obras das quais a mais representativa, sem
dúvida, é Arcano 17 de Breton. Nesse poema em prosa é praticada a liberdade de
criação de imagens tipicamente surrealista, e, ao mesmo tempo, há uma presença
definida de simbologia hermética (a começar pelo título, remetendo ao arcano 17 do
tarô). Contudo, no surrealismo há um acréscimo, algo novo enriquecendo a relação
entre ocultismo e poesia, que vem a ser uma magia da própria poesia. É a emergência do
acaso objetivo, do poema profético, dos acontecimentos que parecem sobrederminados,
interpretados por Breton como encontros entre o acaso e necessidade em O Amor
Louco, e bem catalogados em André Breton et les donnés fondamentales du
surréalisme, de Michel Carrouges.

3. Poesia, ocultismo e sua dimensão política

Além das chaves para a decodificação sugeridas por doutrinas herméticas, esotéricas ou
ocultas, interessa sua relação com aquilo que constitui o poema, e não apenas com sua
temática e componentes do conteúdo. O predomínio do pensamento analógico é
associado por Octavio Paz, entre outros autores, ao ritmo, a correspondências sonoras,
ao valor prosódico. Seu fundamento é o desconhecimento ou a crítica do princípio da
identidade, de que uma coisa, sendo o que é, não pode ser outra.

É preciso rejeitar a qualificação, tão freqüente, da criação poética fundada no


pensamento analñgico em geral, e no ocultismo em especial, como ―irracionalismo‖.
Trata-se antes de um outro pensar, de um modo alternativo com relação à razão
discursiva. Entre tantos outros de seus defensores, cabe citar André Breton, no prefácio
á coletânea de poemas Signe ascendant:

O método analógico, homenageado na antiguidade e idade média, desde então


grosseiramente suplantado pelo método ―lógico‖ que nos conduziu ao impasse que se
sabe, o primeiro dever dos poetas, dos artistas, é restabelecê-lo em todas as suas
prerrogativas, às custas de arrancá-lo a seus subentendidos espiritualistas que, tendo
sempre se comportado com relação a ele como parasitas, viciam ou paralisam seu
funcionamento.

Uma de suas derivações é a crença, não só nas correspondências em geral, mas em uma
relação especial, aquela entre macro e microcosmo, e, por decorrência, o que está ―no
alto‖ e ―em baixo‖, como é dito no texto atribuído a Hermes Trimegisto, a Tábua
Esmeralda:

É verdade, sem mentira, certo e muito autêntico.

O que está em baixo é como o que está em cima, e o que está em cima é como o que
está em baixo; por estas coisas se fazem os milagres de uma só coisa.

E como todas as coisas são e provém de Um, pela mediação de UM, assim todas as
coisas nasceram desta coisa única, por adaptação.

23
Tudo isso emerge em um contexto de especial importância, freqüentemente obscurecido
ou deixado de lado por análises exclusivamente formais: aquele da rebelião, da
expressão enfática da contradição entre poesia (e o poeta) e sociedade.

Poetas foram a favor do ocultismo, da visão mágica do mundo, por serem contra seu
tempo e sua sociedade. A politização, até mesmo de autores mais reacionários sob o
prisma de doutrinas propriamente políticas, é sugerida por Octavio Paz em O Arco e a
Lira, e examinada em maior detalhe, na obra que o prossegue, Os Filhos do Barro. E
isso, já no prefácio desse ensaio sobre a tradição da ruptura:

Em sua disputa com o racionalismo moderno, os poetas redescobrem uma tradição tão
antiga como o próprio homem, a qual, transmitida pelo neoplatonismo renascentista,
além das seitas e correntes herméticas e ocultistas dos séculos XVI e XVII, atravessa o
século XVIII e chega a nossos dias. Refiro-me à analogia, à visão do universo como um
sistema de correspondências e à visão da linguagem como o duplo do universo.

As mitologias mais ou menos pessoais, feitas de retalhos de filosofias e religiões, como


diz Paz, também em Os Filhos do Barro, apontam para a unidade dentro da diversidade:

Apesar dessa vertiginosa diversidade de sistemas poéticos – isto é: no centro mesmo


dessa diversidade – é visível uma crença comum. Essa crença é a verdadeira religião
da poesia moderna, do romantismo ao surrealismo, e aparece em todos os poemas, às
vezes de uma maneira implícita e outras, em número maior, de maneira explícita.
Denominei-a analogia.

Retomando o que havia dito em O Arco e a Lira sobre a situação marginal do poeta na
sociedade contemporânea, prossegue, equiparando os poetas-magos a uma cultura
underground:

A poesia moderna oficia no subsolo da sociedade e o pão que divide entre seus fiéis é
uma hóstia envenenada: a negação e a crítica. Mas essa cerimônia entre trevas é
também uma procura do manancial perdido, a água da origem.

Enquanto em O Arco e a Lira há uma comparação geral entre poetas e magos,


convertendo, conforme observado, uns em metáforas dos outros, em Os Filhos do
Barro, apesar desta obra não se propor a ser uma história da literatura, é apontado onde
e quando tais relações ocorrem:

A analogia entre magia e poesia é um tema que reaparece ao longo dos séculos XIX e
XX, mas que nasce com os românticos alemães. A concepção da poesia como magia
implica uma estética ativa; quero dizer, a arte deixa de ser exclusivamente
representação e contemplação: é também uma intervenção sobre a realidade. Se a arte
é um espelho do mundo, esse espelho é mágico: transforma-o.

Portanto, é na adoção do que Paz chama de estética ativa, e não apenas em


componentes formais, em modos de versificar, ou temáticos, como a recuperação da
Antiguidade e Idade Média, ou ainda na utilização de um vocabulário mais amplo,
popular ou folclórico, que reside o corte, a ruptura e diferença fundamental entre
romantismo, de um lado, e o Barroco e classicismo, de outro:

24
A poesia romântica não foi só uma mudança de estilo e linguagens: foi uma mudança
de crenças, e é isto o que a distingue dos outros movimentos e estilos poéticos do
passado.

Semelhante conceito de poesia romântica e romantismo reescreveu a história da


literatura. O romantismo deixa de ser, nessa ótica, mais um movimento circunscrito no
tempo, cobrindo o período que iria das Noites de Young e do Sturm und Drang até,
possivelmente, Baudelaire, porém uma postura. E, como tal, um continuum que se
estende até a contemporaneidade:

Na realidade, os verdadeiros herdeiros do romantismo alemão e inglês são os poetas


posteriores aos românticos oficiais, de Baudelaire aos simbolistas.

A mesma revisão havia sido proposta no Segundo Manifesto do Surrealismo de André


Breton. Ao referir-se a

...um pequeno número de obras muito modernas, as mesmas das quais o mínimo que se
possa dizer é que nelas o ar é particularmente insalubre: Baudelaire, Rimbaud (a
despeito das reservas que fiz), Huysmans e Lautréamont, para ficar só na poesia,

Breton propõe erigir em lei essa insalubridade. Afirmava ainda, a propósito do


centenário do romantismo, que:

... na hora em que os poderes públicos na França preparam-se para celebrar


grotescamente com festas o centenário do Romantismo, nós dizemos que esse
romantismo, do qual aceitamos, historicamente, ser considerados como cauda, mas
então cauda de tal modo preênsil, por sua essência mesmo em 1930, reside inteiramente
na negação desses poderes e dessas festas, que ter cem anos é para ele a mocidade, que
isso, que se chama erradamente sua época heróica não pode mais, honestamente,
passar senão pelo vagido de um ser que mal começa a dar conhecimento de seu desejo
através de nós, e que, admitindo-se que aquilo que foi pensado antes dele -
―classicamente‖ - era o bem, quer, incontestavelmente, todo o mal.

Tanto Paz quanto Breton acentuam, portanto, a negação ou negatividade do romantismo


como seu traço distintivo. Conseqüentemente, politizam-no: Com toda a sua diversidade
de autores e fases, em seu fundamento foi um movimento, crença ou atitude contra a
ordem estabelecida. Há indicações de que esta seria uma visão moderna do romantismo,
pelo que sustentam em um livro mais recente os estudiosos de Baudelaire, Pichois e
Ziegler, sobre a origem romântica do socialismo:

O socialismo ou antes os socialismos designam uma série de facetas do romantismo,


sob condição de que também se esqueça a acepção mesquinha que davam a esse termo
os manuais de literatura francesa. O romantismo tem dois rostos, um nostálgico,
voltado para o passado, o outro enérgico, voltado para o futuro, até a Utopia e
prolongando a tendência ao progresso do século das Luzes. Esses dois rostos bem
pertencem ao mesmo Ser, que procura recriar a unidade do mundo, unidade que desde
o Renascimento a ciência moderna o fez perder. Essa unidade só pode ser reencontrada
por um pensamento sintético, simbólico e analógico, totalmente diferente do
pensamento analítico, determinista e lógico, que funda a ciência. O pensamento

25
analógico estrutura o mundo nele incluindo o homem pelas sinestesias e pelas
correspondências.

Em seguida, Pichois e Ziegler tocam nas noções de unidade e harmonia em Fourier,


antes de entrarem no que os interessa diretamente, a participação de Baudelaire em
clubes e associações de orientação socialista antes de 1848.

Nessa perspectiva histórica ampla, que repensa o romantismo, vê-se um trajeto das
manifestações e metamorfoses da analogia ao longo dos tempos. Vai da magia
―primitiva‖ e da Antiguidade, passando por gnósticos, até românticos e simbolistas.
Retornando a Os Filhos do Barro de Octavio Paz:

A analogia aparece tanto entre os primitivos como nas grandes civilizações do começo
da história, reaparece entre os platônicos e os estóicos da Antiguidade, desenvolve-se
no mundo medieval e, ramificada em muitas crenças e seitas subterrâneas, converte-se
desde o Renascimento na religião secreta, por assim dizer, do Ocidente: cabala,
gnosticismo, ocultismo, hermetismo. (...) A influência dos gnósticos, dos cabalistas, dos
alquimistas e de outras tendências marginais dos séculos XVII e XVIII foi muito
profunda, não só entre os românticos alemães, como no próprio Goethe e seu círculo. A
mesma coisa deve-se dizer dos românticos ingleses e, claro, dos franceses. De seu lado,
a tradição ocultista dos séculos XVII e XVIII entronca-se com vários movimentos da
crítica social e revolucionária, simultaneamente libertária e libertina.

Octavio Paz não está sozinho ao propor esse traçado histórico e essa genealogia, do
gnosticismo à poesia. Acompanha André Breton, no ensaio-manifesto Flagrant délit (na
coletânea La clé des champs) ao registrar a importância da então recente descoberta dos
―evangelhos gnñsticos‖ no Egito (em 1949), e observar:

Sabe-se, com efeito, que os gnósticos estão na origem da tradição esotérica que consta
como tendo sido transmitida até nós, não sem se reduzir e degradar parcialmente ao
correr dos séculos. (Os Templários teriam recebido seus preceitos na Ásia, na época
das primeiras cruzadas, de um resto de Maniqueus que lá encontraram). Ora, é notável
que, sem haverem de modo algum combinado isso, todos os críticos verdadeiramente
qualificados de nosso tempo foram levados a estabelecer que os poetas cuja influência
se mostra hoje a mais vivaz, cuja ação sobre a sensibilidade moderna mais se faz sentir
(Hugo, Nerval, Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, Mallarmé, Jarry), foram mais ou
menos marcados por essa tradição. Não, é certo, que se deva tê-los por ―iniciados‖ no
sentido pleno do termo, mas os uns e os outros pelo menos foram submetidos fortemente
a sua atração e nunca deixaram de testemunhar-lhe a maior deferência.

Nesse comentário, Breton faz alusão, ou parece fazer, a La poésie moderne et le sacré,
de Jules Monnerot, obra precursora (de 1945) ao salientar a importância dos gnósticos,
especialmente dos dissolutos, e sua presença na poesia moderna. Monnerot chega a
fazer um inteligente paralelo entre, de um lado, cristãos e gnósticos, e de outro
comunistas e surrealistas, no qual os comunistas soviéticos estariam para os cristãos
assim como os surrealistas estariam para os gnósticos dissolutos.

Falar de poesia romântica, nesse sentido amplo, seria falar da relação entre poesia e
filosofias ocultas, conforme, novamente, observa Octavio Paz, desta vez citando, com
total propriedade, o Breton de Arcane 17:

26
...de Blake a Yeats e Pessoa, a história da poesia moderna do Ocidente está ligada à
história das doutrinas herméticas e ocultas, de Swedenborg a madame Blavatsky.
Sabemos que a influência do abade Constant, aliás Éliphas Lévi, foi decisiva não
apenas em Hugo como em Rimbaud. As afinidades entre Fourier e Lévi, diz André
Breton, são notáveis e se explicam porque ambos ―inserem-se em uma imensa corrente
intelectual, que pode ser seguida desde o Zohar e que se bifurca nas escolas iluministas
dos séculos XVIII e XIX. Tornamos a encontrá-la na base dos sistemas idealistas,
também em Goethe e, em geral, em todos aqueles que se recusam a aceitar como ideal
de mundo a identidade matemática.‖

Um percurso histórico como este desemboca forçosamente em dois herdeiros de


Swedenborg, o cientista e visionário que pensou o universo como unidade e organismo
vivo. Um deles, um pensador político; outro, um poeta: Fourier e Baudelaire. Em Os
Filhos do Barro, Fourier é o passo

...do misticismo erótico de um Restif de la Bretonne à concepção de uma sociedade


movida pelo sol da atração apaixonada.

E Baudelaire é quem fez da analogia o centro de sua poética.

Na discussão sobre ocultismo e literatura, Baudelaire é mesmo a figura central, assim


como o é com relação a tantos outros temas: crítica, estética do horror, o específico da
modernidade, o poeta na metrópole, o primado da imaginação, a obra de arte como
sistema de relações e não como representação, etc. O paralelo entre Fourier e Baudelaire
é correto, assim como é situá-los, aos dois, na genealogia swedenborguiana, e, ainda,
acrescentar as indicações dos estudos citados acima. São trabalhos, esses aqui
utilizados, que contribuem para cobrir a lacuna, observada por Sarane Alexandrian em
seu apreciável História da Filosofia Oculta, e que consiste na falta de estudos
abrangentes da relação da literatura com ocultismo. Mostram que ainda há muito a ser
dito sobre as relações entre criação literária e o interesse ou efetiva participação de
escritores em grupos de estudo, doutrinas, ordens e seitas vinculados à Filosofia Oculta
ou Ciências Herméticas.

BIBLIOGRAFIA
Livros

Alexandrian, Sarane, História da Filosofia Oculta, Edições 70, Portugal, s/d. A edição
francesa, da Seghers, é de 1983.

Arnaud, Noël, Alfred Jarry - d‘Ubu roi au Docteur Faustroll, Editions de la Table
Ronde, 1974.

Baudelaire, Charles, Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, diversos
tradutores, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995;

Béhar, Henri, André Breton, Le grand indésirable, Calmann-Lévy, 1990.

Béhar, Henri, Les Cultures de Jarry, PUF, 1988.

27
Blake, William, Escritos de William Blake, tradução de Alberto Marsicano e Regina de
Barros Carvalho, L&PM Editores, Porto Alegre, 1984;

Blake, William, O matrimônio do Céu e do Inferno, O livro de Thel, tradução de José


Antônio Arantes, Iluminuras, São Paulo, 1987;

Blake, William, The Poems of William Blake – The Poetical Works of William Blake,
introduction and notes by John Sampson, Oxford University Press, London, 1960
(reimpressão da edição de 1913 e sucessivas reedições);

Bonnet, Marguerite, André Breton - Naissance de l‘aventure surréaliste, Librairie José


Corti, Paris, 1988;

Bordillon, Henri, Gestes et opinions d´Alfred Jarry, écrivain, Editions Siloé, Laval,
1986.

Breton, André, Anthologie de l‘humour noir, Jean-Jacques Pauvert, éditeur, Paris, 1966;

Breton, André, Clair de terre, coleção Poésie, Editions Gallimard, Paris, 1966;

Breton, André, La clé des champs, Societé Nouvelle des Éditions Pauvert – Le livre de
Poche, 1979;

Breton, André, Manifestos do Surrealismo, tradução de Jorge Forbes, prefácio de


Claudio Willer, Editora Brasiliense, 1985;

Breton, André, Signe ascendant, coleção Poésie, Editions Gallimard, Paris, 1975;

Campos, Augusto de, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, Mallarmé, Editora


Perspectiva – Universidade de São Paulo, 1974;

Carrouges, Michel, André Breton et les données fondamentales du Surréalisme,


collection Idées, Gallimard, Paris, 1971;

Ellman, Richard, Yeats – The man and the masks, Penguin Books, 1987.

Falbel, Nachman, Heresias Medievais, Editora Perspectiva, Coleção Kronos, São Paulo,
1976

Gautier, Théophile, O Clube dos Haxixins, introdução e tradução de José Thomaz


Brum, L&PM Editores, Porto Alegre, 1986;

Guerdon, David, Rimbaud, La clef alchimique, Éditions Robert Laffont, Paris, 1980;

Hermes, Zózimo, Geber, Bacon et al, Alquimia e Ocultismo, seleção de textos de Victor
Zalbidea et al, Edições 70, s/d, Lisboa (a edição espanhola, da Seix Barral, é de 1972);

Huysmans, J. K, Às avessas, tradução e estudo crítico de José Paulo Paes, Companhia


das Letras, São Paulo, 1987;

28
Huysmans, J. K, Là-bas, Le livre de poche – Plon, 1961;

Kristeva, Julia, Sol Negro – Depressão e melancolia, Edita Rocco, Rio de Janeiro, 1989.

Lacarrière, Jacques, Les gnostiques, Éditions Gallimard, 1973;

Lautréamont – Obra Completa, prefácio, tradução e notas de Claudio Willer,


Iluminuras, São Paulo, 1997.

Mallarmé, Oeuvres Complètes – Poésie – Prose, introduction, bibliographie,


iconographie et notes par Henri Mondor et G. Jean-Aubry, Bibliothèque de la Pléiade,
NRF, Éditions Gallimard, Paris, 1961;

Marsicano, Alberto e Fresnot, Daniel, Rimbaud por ele mesmo, Editora Martin Claret,
São Paulo, 1996;

Matarasso, Pierre, e Petitfils, Henri, A vida de Rimbaud, tradução de Antonio Carlos


Viana, L&PM Editores, 1988;

Mesquita, André, Fernando Pessoa – O Ocultismo na ótica poética, Uapê, Rio de


Juaneiro, 1996;

Monnerot, Jules, La poésie moderne et le sacré, Gallimard, Paris, 1945;

Nerval, Gérard de, As Quimeras, tradução de Alexei Bueno, Topbooks, 1996;

Nerval, Gérard de, Aurélia, tradução e prefácio de Luís Augusto Contador Borges,
Iluminuras, São Paulo, 1991;

Nerval, Gérard de, Les Illuminés, préface de Max Milner, Éditions Gallimard, col.
Folio, Paris, 1976;

Nerval, Gérard de, Silvia – La mano encantada – Noches de Octubre, Colección


Austral, Espasa Calpe Argentina S. A., Buenos Aires, 1949;

Nerval, Gérard de, Sílvia, tradução de Luís de Lima, Rocco, Rio de Janeiro, 1986;

Osakabe, Haquira, Fernando Pessoa, resposta à decadência, Criar edições, Curitiba,


2002;

Paz, Octavio, A dupla chama – Amor e Erotismo, tradução de Wladyr Dupont, Editora
Siciliano, 1993;

Paz, Octavio, A outra voz, tradução de Wladyr Dupont, Editora Siciliano, 1990;

Paz, Octavio, Conjunções e Disjunções, tradução Lúcia Teixeira Wisnik, Editora


Perspectiva, São Paulo, 1979;

Paz, Octavio, Convergências – Ensaios sobre arte e literatura, tradução de Moacir


Wernek de Castro, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1991.

29
Paz, Octavio, El Arco y la Lira, Fondo de Cultura Economica, México-Buenos Aires,
1956; edição brasileira, O Arco e a Lira, tradução de Olga Savary, Nova Fronteira, Rio
de Janeiro, 1982;

Paz, Octavio, El Signo y el Garabato, Ed. Joaquim Mortiz, México, 1975;

Paz, Octavio, La búsqueda del comienzo, Editorial Fundamentos/ Espiral, Madri, 1974

Paz, Octavio, Los Hijos del Limo, Editorial Seix Barral, 1974, edição brasileira Os
Filhos do Barro, tradução de Olga Savary, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984;

Paz, Octavio, Signos em Rotação, tradução de Sebastião Uchoa Leite, Editora


Perspectiva, São Paulo, 1972;

Pessoa, Fernando, Rosea Cruz, textos estabelecidos e apresentados por Pedro T. Mota,
Edições Manoel Lencastre, Lisboa, 1989;

Pessoa, Fernando, Obra Poética, organização, introdução e notas de Maria Aliete Dores
Galhoz, Editora José Aguilar, Rio de Janeiro, 1960;

Pichois, Claude, e Ziegler, Jean, Charles Baudelaire, Fayard, Paris, 1996;

Pommier, Jean, La mystique de Baudelaire, Les Belles Lettres, Paris, 1932;

Praz, Mario, La carne, la muerte y el diablo en la literatura romántica, tradução para o


espanhol de Jorge Cruz, Monte Avila Editores, C. A., Caracas, 1969, original italiano
La carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica, Sansoni Editore, Firenze,
1948.

Puech, Henri-Charles (org), Historia de las religiones, editora Siglo XXI, 1979; em
especial volume 5, Las religiones en el mundo mediterráneo e en el oriente próximo,
com o ensaio El fin del Paganismo, de Pierre Hadot. Trata-se da edição espanhola da
série Histoire des Religions, da Encyclopédie de la Pléiade, Gallimard, 1972.

Raymond, Marcel, De Baudelaire ao Surrealismo, EDUSP, Editora da Universidade de


São Paulo, 1997; a edição original é de 1940;

Richer, Jean, Gérard de Nerval, col. Poètes d‘aujourd‘hui, Seguers, 1972;

Rimbaud, Arthur, Oeuvres Complètes, texte établi et annoté par Roland de Renéville et
Jules Mouquet, Bibliothèque de la Pléiade, Librairie Gallimard, Paris, 1954;

Rimbaud, Arthur, Poesia Completa, organização e tradução de Ivo Barroso, Editora


Topbooks, Rio de Janeiro, 1994;

Rimbaud, Arthur, Prosa Poética Completa, organização e tradução de Ivo Barroso,


Editora Topbooks, Rio de Janeiro, 1998;

Scholem, Gershom G, Les origines de la Kabbale, Aubier- Montaigne, col. Pardés,


Paris, 1966 (a edição original alemã é de 1962);

30
Scholem, Gershom G, Major Trends in Jewish Mysticism, Thames and Hudson,
Londres, 1955;

Scholem, Gershom G, On the Kabbalah and its Symbolism, Schockem Books, New
York, 1965 (edição original alemã de 1960);

Shattuck, Roger, The Banket Years, The Origins of the avant-garde in France; na
edição francesa, Les Primitifs de L‘Avant-garde, Flammarion, Paris, 1974;

Vellozo, Dario, Cinerário e outros poemas, introdução, organização e notas, Cassiana


Lacerda Carolo, Prefeitura Municipal de Curitiba, Coleção Farol do Saber, .Curitiba,
1996;

Walzer, Pierre-Olivier, Essai sur Stéphane Mallarmé, col. Poètes d‘aujour‘hui, Editions
Pierre Seguers, 1963;

Willer, Claudio, Volta, narrativa em prosa, Iluminuras, São Paulo, 1996.

Wilson, Colin, O Oculto, Livraria Francisco Alves, 1981, dois volumes (The Occult é
de 1971);

Yeats, W. B., A Vision, Papermac, 1989.

Ensaios em periódicos:

Dal Farra, Maria Lúcia. Anotações de uma Bibliógrafa: Baudelaire e o Esoterismo, em


Remate de Males, Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da
Linguagem, 1984.

Números especiais de revistas:

Europe, revue littéraire mensuelle, Mars – Avril 1981, Alfred Jarry.

Revue des Sciences Humaines, 1986 – 3, Alfred Jarry.

Magazine Litteraire, Les énervés de la Belle époque (dossiê), mai 1991, nº 288

Sites, páginas na internet, publicações eletrônicas:

Khaitzine, Richard, Les Mystères de Montmartre - Peinture, Littérature et Hermétisme,


em Triplo V, periódico eletrônico, http://www.triplov.com/surreal/khaitzine.html

Vega, José Luis, Notas sobre el ocultismo en la poesía hispanoamericana moderna,


revista eletrônica Agulha nº 10, em http://www.secrel.com.br/jpoesia/ag10vega.htm

Willer, Claudio, O cosmos invertido: algumas anotações sobre poesia, ocultismo e


gnose, revista eletrônica Agulha nº 12, em
http://www.secrel.com.br/jpoesia/ag12willer.htm

31
A ANATOMIA DO OURO:
O OURO POTÁVEL DOS IATROQUÍMICOS
A.M. AMORIM DA COSTA
Dept. de Química – Faculdade de Ciências e Tecnologia
Universidade de Coimbra –Portugal

1.Introdução

1.1 - A partir da segunda metade do século XVI, sob a influência de Paracelso (1493-
1510), a então reinante prática alquímica deu progressivamente lugar a uma prática
química que em 1663, Christophe Glaser (1628-1672), no seu Tratado de Química
definia como a arte científica cujo objectivo era dissolver os corpos para deles extrair as
várias substâncias de que são compostos, e juntá-las de novo de modo a formar
compostos mais puros e superiores [1]. Neste extrair e juntar de novo as substâncias que
compõem os corpos, na tentativa de preparar corpos mais puros e superiores àqueles de
que se partira, estava presente a procura da quinta-essência da matéria, o sopro divino
emanado do sistema solar que vivifica os três princípios de que cada um dos quatro
elementos primordiais, a terra, o ar, a água e o fogo, seriam constituídos, o sal, o
enxofre e o mercúrio. Toda a procura dessa quinta-essência estava orientada por um
objectivo bem preciso e fundamental: a cura das enfermidades humanas. O
restabelecimento da saúde perdida só seria possível atacando as ―sementes específicas‖
da doença, administrando ao doente os ingredientes químicos que contivessem os
arcana que haviam sido afectados, rompendo a harmonia global entre o microcosmos e
o macrocosmos, privados da qual, ambos estão doentes. Todo o exercício da arte
química visava, pois, a preparação desses arcana, no isolamento da quinta-essência de
todos os mistos.

A Química foi então totalmente enquadrada na arte médica, constituindo o que ficou
conhecido por medicina espagírica, iatroquímica ou farmacoquímica. Ela é aquilo a que
foi chamado ―a química dos princípios‖ [2]. Toda ela se funda em Princípios activos e
passivos em que se baseiam todas as suas manipulações e artefactos. Nela se considera
pelo mercúrio, o evaporável; pelo enxofre, o inflamável; e pelo sal, o solúvel. Nela
sobressaem, entre muitos outros, os nomes de João Baptista van-Helmont (1577-1644),
Robert Boyle (1627-1691), John Mayow (1641-1679), Nicasius Lefebvre (c.1610-
1669), Jean Béguin (?-1620), Christophe Glaser (1628-1672), Nicolas Lémery (1645-
1715) e Johann Joachim Becher (1635-1682).

Desenvolvida e aprofundada ao longo de todo o século XVII, esta orientação da prática


química perdurou até ao terceiro quartel do século XVIII, ao tempo em que Lavoisier
lançou as bases da ―Química Pneumática‖, ponto de partida para uma nova química, a
Química Moderna.

32
No elenco das coisas úteis à medicina e à farmácia encontramos o ouro, o mais nobre e
perfeito dos metais, o metal que não enferruja nem perde a cor, que resiste à acção do
fogo e se não dissolve nos liquidos do dia a dia. Analisá-lo e procurar isolar a sua
quinta-essência numa complexa operação anatómica, foi tarefa árdua dos químicos
espagíricos que acreditaram no seu valor medicinal.

1.2 – Não é possível dissociar o exame e a procura da quinta-essência do ouro, ou o


exame e procura da quinta-essência de qualquer outro corpo, da ideia ou crença que se
tem sobre a sua composição. Em contacto muito próximo com as práticas alquímicas
que pelo século XV se encontravam espalhadas por toda a Europa e nela atingiram o seu
apogeu nos séculos XVI e XVII, os primeiros químicos espagíricos acreditavam que
todas as substâncias eram feitas de uma mesma matéria prima, à mistura com os quatro
elementos de Aristóteles, a terra, o ar, o fogo e a água, e os três princípios de Paracelso,
o enxofre, o mercúrio e o sal. Da mistura desses elementos e princípios, em diferentes
proporções, com uma mesma matéria prima resultariam substâncias diferentes, pois que
das diferentes quantidades de fogo, ar, água e terra, resultariam, respectivamente,
diferentes qualidades de quente e seco; quente e húmido; húmido e frio; seco e frio. E
do mesmo modo, das diferentes proporções de enxofre, mercúrio e sal, resultariam
diferentes qualidades de cor e combustibilidade, de carácter metálico e de resistência ao
fogo.

Feitas todas de uma mesma matéria prima, todas as substâncias seriam susceptíveis de
se transformarem umas nas outras por mera adição ou subtracção da quantidade
apropriada de qualquer dos quatro elementos ou dos três princípios nelas presentes, em
cuja diferente proporção estivesse a causa da sua diferença. Assim pensada, toda a
natureza seria uma série de transmutações e a sua existência, um eterno fluxo [3] .

No seio da terra, todos os metais e minerais se teriam formado duma mesma semente
inicial a partir da qual se foram e vão desenvolvendo, em crescimento contínuo, por
contínua combinação com diferentes quantidades dos diferentes elementos e princípios
primordiais. Essa semente seria a semente do ouro, já que o ouro seria a intenção da
natureza que presidiria à formação de qualquer metal. Ao longo dos tempos, dessa
mesma e primordial semente teriam resultado diferentes metais por acção das diferentes
condições que determinaram o seu crescimento. A suma perfeição do ouro quando
comparado com todos os outros metais exige condições muito especiais para que o
desenvolvimento dessa semente nele resulte. Impedimentos acidentais, por pequenos
que sejam, à sua combinação perfeita com os elementos e princípios elementares são a
causa da sua degenerescência em metais menos nobres que o ouro. Em qualquer
momento do desenvolvimento e crescimento destes será, todavia, possível proceder à
correcção da errada proporção dos elementos juntos à semente inicial que originaram a
sua individualidade, operando a sua transmutação. Trata-se, porém, duma correcção tão
complexa e delicada e com tão elevado número de variáveis que na prática, só um poder
verdadeiramente divino a poderá realizar em tempo humano; para a conseguir por
simples conjugação das forças naturais, a Natureza precisará dum tempo infindo que o
Homem não descobriu ainda como encurtar. A procura da Pedra Filosofal, essa Pedra
cujo poder consiga consumar a desejada correcção, mais não é que o perseguir dessa
realização.

Cientificamente, hoje sabemos que essa transmutação é possível e sabemos em que


consiste. Sabemos que, de facto, os diferentes elementos são transmutáveis uns nos

33
outros por alteração dos átomos, em particular, por alteração dos núcleos atómicos, com
introdução ou remoção de protões e neutrões. Sabemos que ela se realiza todos os dias,
ao natural, no seio do planeta em que vivemos e em muitas outras partes do nosso
universo, onde um restrito número de elementos, por um processo de fissão nuclear com
decaimento radioactivo se transforma continuamente noutros. E sabemos que nas
condições prodigiosas de pressão e temperatura verificadas no interior de muitas
estrelas, os átomos de vários elementos mais leves (por exemplo, o hidrogénio e o hélio)
se transformam também continuamente, agora por um processo de fusão nuclear,
noutros átomos mais pesados

Confrontados com o ―nascer‖ diário de novos elementos no nosso universo a partir de


outros já existentes, não podemos rejeitar a filosofia alquimista da transmutação dos
metais, pressuposto das canseiras em que gastavam parte preciosa de suas vidas,
tentando descobrir o modo de transmutar os metais ―vis‖ nos metais nobres, a prata e o
ouro. Que o ómega da transformação natural de uns elementos em outros seja o ouro é
uma crença que podemos viver com maior ou menor convicção; que essa transformação
é um facto é dado inegável que se impõe comungar com a mais pura filosofia alquímica.

1.3 – No contexto alquímico da origem comum de todas as coisas, a semente que estaria
na origem de tudo teria sido gerada por acção divina e atirada pelo movimento
indefinido dos quatro elementos para o centro da terra onde, sob a acção do Arqueu, o
servo da natureza, é digerida e de seguida atirada para a periferia, pois que o centro da
terra é um lugar vazio onde nada pode permanecer eternamente. Assim como a semente
depositada pelo homem no ventre da mulher não mais tem repouso e, instante a instante,
sob o impulso do movimento que a anima, cresce e harmoniosamente se desenvolve,
assim a semente de todas as coisas ejectada do centro da terra para a periferia na forma
de um vapor húmido não cessa de se desenvolver, originando cada dia novas e
diferentes substâncias. Na sua combinação com diferentes quantidades de ar, terra, fogo
e água, nos múltiplos e diferentes contactos e acção com a diferente natureza dos
lugares onde cai e se fixa, ela pode tornar-se numa erva, num animal, ou num mineral. E
em qualquer destas categorias, numa erva ou planta bem específicas, como num animal
ou metal bem precisos. Atingido o seu crescimento e desenvolvimento numa forma
específica, torna-se, na generalidade dos casos, muito difícil alterá-la para outra
qualquer forma específica.

A semente dos metais não é, pois, diferente da semente de todas as demais substâncias
existentes no universo. E por sua vez, a semente do ouro, tido como o mais puro e nobre
dos metais, não é diferente da semente de qualquer outro metal. Ela transformou-se em
ouro quando, em locais adequados e sob condições favoráveis, teve a possibilidade de
se combinar com os diferentes elementos primordiais dispersos por todos os lugares, no
seu grau máximo de acção subtil e pura, o máximo de calor e de humidade. Se a acção
de algum dos elementos sobre a semente original não se concretizou no seu máximo, o
metal obtido terá necessariamente algum grau de imperfeição, traduzido numa matéria
prima com diferente grau de humidade, viscosidade, combustibilidade e terra subtil.
Quanto maior for o grau de imperfeição, mais o metal formado, numa escala de
ordenação dos diferentes metais por relação com a sua proximidade ao ouro, mais
afastado dele estará.

Neste contexto, a aproximação da natureza de qualquer metal à natureza do ouro terá de


envolver sempre uma purificação. Do mesmo modo, porque o ouro aparece em muitos

34
locais misturado com metais menos perfeitos, a procura da sua acção máxima carece
também ela do recurso a uma acção de purificação pela qual dele se separem as
imperfeições dos elementos a ele associados. A sua utilização como remédio exige esse
processo de purificação, procurando isolar a sua quinta-essência. Fazê-lo é proceder à
sua anatomia, similar à anatomia de qualquer outra substância química que fazia parte
do objectivo primeiro que se propunham os químicos espagíricos na sua arte de resolver
os corpos naturais nos princípios de que são feitos, de modo a torná-los mais puros e
fortes para serem utilizados como remédios maximamente eficazes..

Se várias técnicas há que podem servir para realizar essa anatomia, a tida como mais
eficaz e adequada sempre foi a destilação, tida pelos alquimistas e seus sucessores na
prática laboratorial da química, como uma arte sublime.

2. Em busca do ouro potável

2.1 - Na sua generalidade, os metais não faziam parte do elenco do receituário medicinal
da Química Galénica, ao longo dos vastos séculos em que no Ocidente, foi praticada em
regímen de prática exclusiva. Por um lado, eram conhecidas as dificuldades da
solubilização da maioria daqueles que se conheciam e consequente assimilação pelo
organismo que os ingerisse; por outro lado, eram conhecidos muitos efeitos perniciosos,
nomeadamente efeitos tóxicos, resultantes da ingestão de alguns deles, em doses
inadequadas. E era muito difícil encontrar o doseamento correcto.

Sobre este assunto, refere Duarte Madeira Arraes (? - 1652), médico do Rei D. João IV
de Portugal, no seu Tratado das Virtudes dos Óleos de Enxofre, Vitríolo,
Philosophorum, Alecrim, Salva e Agoa Ardente (1648): o médico metódico e douto
deve abster-se quanto for possível de usar os medicamentos metálicos pois que embora
sejam ―especiosos catárticos e façam efeitos admiráveis em gravíssimas e extremas
doenças‖, ―por mais que lhe pareçam que têm a decente preparaçam‖, ―he impossivel
que ainda assim não escape alguma qualidade venenosa e perniciosa de que os mineraes
são bem aquinhoados‖. Daí – continua – ―até agora poucos foram os que
particularmente usaram delles que chegassem a morrer velhos. E se lá chegaram,
viveram cachéticos e hydropicos‖. Por isso, na sua prática médica, ele os ―deixa de
parte (salvo a extrema necessidade o peça)‖ e se cinge aos ―catharticos brandos tirados
dos vegetaveis ainda muito bem preparados‖ [4].

A quase nula utilização dos metais para fins terapêuticos estendia-se também ao ouro,
não obstante ser por todos tido como o mais nobre, perfeito e ambicionado bem.
Acreditava-se que ele não podia ser dissolvido a não ser por acção de um ácido
altamente corrosivo [5], e cria-se que ―nele o enxofre está fixo e incombustível duma
maneira tal que o torna invencível contra todas as forças do fogo‖ [6]. Sñ nos finais do
século XVI e princípios do século XVII, com a múltipla contestação movida a muitas
das práticas da Química Galénica, se verificou um crescente recurso a fármacos
preparados utilizando metais. Na lista deles aparece o ouro.

Em 1571, Guinther defendia que prepará-lo para esse efeito seria ―o maior contributo
que os preparadores químicos poderiam oferecer à medicina, pois o seu poder era divino
e servia para curar a maioria das doenças [7]. Anos depois, em 1610, com a publicação
do seu tratado Medicinae Chymiae, Francis Anthony (1550-1623), citando Paracelso,
Penotus e Duchesne, defendia que o ouro adequadamente tratado poderia ser utilizado

35
em solução, tornando-se no mais nobre dos remédios, na forma de ouro potável. E, em
1616, voltava ao assunto, insistindo na sua apologia[ 8]. Para o mesmo efeito, poderia
ser também usado noutras formas, como, por exemplo, o óleo de ouro, o vitríolo de
ouro, o ouro diaforético, o mercúrio vivo, etc...

Nesses mesmos anos, o químico italiano Alexandre Quintillo, estabelecido em Madrid,


publicava a sua Relacion y Memoria de los maravillosos effectos y notables provechos
que han hecho y hazen los polvos blancos solutivos de la quinta esencia del oro‖ [ 9]
em que sem usar nunca a terminología de ouro potável refere as preparações
medicamentosas feitas, como o indica o próprio título da publicação, com os pós
brancos da quinta essência do ouro que ele próprio preparava a partir de ouro e
antimónio, para satisfazer às numerosas encomendas que lhe chegavam das Indias e de
vários países. Pela descrição que faz, essas preparações serviam para curar as mais
diversas doenças. Pela sua composição e pela eficácia que lhes era atribuida, tratava-se
do mesmo tipo de preparado medicamentoso a que Francis Anthony chamara aurum
potabile, uma infusão de ouro no máximo da sua pureza, traduzida no máximo da sua
matéria constituinte em Mercúrio, Enxofre e Sal puríssimos e maximamente activos.

A sua preparação passou, então, a ser tentada por grande número de Médicos e
Farmacêuticos, cada qual guardando ciosamente segredo sobre o modo como o fazia,
mesmo quando o descrevia publicamente. É que, neste caso, a descrição é de tal modo
cabalística que nem os melhores iniciados estão de acordo quanto á sua leitura e
interpretação. Toda a arte está no isolamento da quinta-essência do ouro. Por muitas
operações químicas, o objectivo é tentar ―abrir‖ o ouro, separando o seu sal e o seu
enxofre, isolando o seu mercúrio. Só conseguida esta separação se teria o ouro potável:
separados o sal e o enxofre que entram na sua constituição, estes dissolver-se-iam num
licor que seria o ouro potável, capaz de se dissolver por todo o corpo enfermo, curando
qualquer enfermidade que nele encontrasse. Esta é a anatomia do ouro metálico, de
maior ou menor grau de pureza, com obtenção da sua quinta-essência, o mercúrio
filosñfico, na forma de ―pñ de ouro‖ ou na forma de ―ñleo de ouro‖, cujos infusões são
o ouro potável.

Em 1651, John French (ca.1616 ? 1657), no Livro VI do seu tratado sobre a Arte da
Destilação, apresenta uma receita, que com algumas variações, se tornou comum entre
os receituários da época. Em traços largos, é do seguinte teor :

Dissolva-se o mais fino e puro ouro em água régia até se obter uma solução límpida.
Coloque-se esta solução num balão de vidro de gargalo largo e junte-se-lhe gota a gota
óleo de tártaro até que a solução que antes era amarelada se torne totalmente clara e
transparente, sinal que toda a cal do ouro se depositou no fundo do balão. Deixe-se essa
solução em total repouso durante toda a noite e, na manhã seguinte, separe-se a cal de
ouro depositada da solução. Lave-se o resíduo de cal de ouro quatro ou cinco vezes com
água morna muito pura e seque-se sob aquecimento brando. Junte-se-lhe então meia
porção de pó de enxofre. Misture-se tudo muito bem e, num cadinho aberto, queime-se
o enxofre presente, primeiro sob fogo brando, depois sob um fogo mais intenso, por
mais de uma hora, até que a cal de ouro se torne brilhante e fina. A esta junte-se um
licor preparado a partir de urina humana repetidamente destilada, durante longos dias,
em condições diversas de temperatura e usando diferentes tipos de destilador. Deixe-se
a mistura digerir sob fogo brando durante algum tempo até ficar da cor do sangue. Faça-
se a decantação desta tintura e junte-se-lhe mais quantidade do licor preparado a partir

36
da urina humana e decante-se novamente e novamente se junte ao decantado uma outra
porção desse licor, repetindo a operação tantas vezes quantas as necessárias para extrair
toda a tintura. Juntem-se então todas as porções de tintura extraida e faça-se a sua
digestão durante doze dias, finda a qual se proceda à sua destilação. Obter-se-á assim
uma cal de ouro parecida com um óleo vermelho como o sangue, de odor agradável e
solúvel em qualquer licor. Esse óleo deve ser guardado como um tesouro precioso; ele é
a quinta-essência do ouro com a qual se podem preparar diversas infusões que mais não
serão que outras tantas variedades de ouro potável. A mais comum dessas infusões será
aquela que se prepara dissolvendo essa essência do ouro em álcool de vinho; mas
também o é quando se dissolva em água e noutros liquidos mais apropriados ao tipo de
doença em cuja cura se queira utilizar. Pequenas porções da quinta-essência de ouro
assim preparada serão suficientes para preparar grandes quantidades de ouro potável de
efeitos maravilhosos nos mais diversos tipos de enfermidades [10].

No mesmo capítulo deste seu livro sobre a Arte da Destilação, J. French descreve vários
outros processos de preparação de outros óleos e tinturas de ouro, todos eles a partir de
ouro puro dissolvido em água régia e tratado depois com licores diversos. De todos
esses óleos e tinturas se diz possuirem propriedades inigualáveis e de suprema eficácia
no campo medicamentoso. E outro tanto refere quanto à preparação de idênticas
soluções a partir da prata pura, designadas de modo semelhante por prata potável, óleos
de prata e tinturas de prata, também elas de muita eficácia quando utilizadas como
remédios.

2.2 - Em Portugal, não encontramos grandes referências ao ouro potável preparado a


partir da sua quinta-essência, o Mercúrio filosófico, isolado pelo tipo de operações
químicas descritas por J. French. Os medicamentos tidos como preparações de ouro
com virtudes de máxima eficácia, como preparados do mais nobre e divino dos metais,
que encontramos nas nossas Farmacopeias ficam-se, em geral, por preparados à base
dos já referidos pós de Quintilho, com muitas dúvidas sobre a sua verdadeira natureza.
Zacuto Lusitano (1575-1642), em 1629, na sua historia de Medicina, De Medicorum
Principium Historia [11], faz uma referência a esses pós de ouro comercializados e
relacionados por A.Quintillo, dizendo que numa análise que deles fizera, não encontrara
na sua composição quaisquer vestígios de ouro. Como ele, muitos outros Médicos de
então, consideraram que era um abuso e um perigo usar como medicamento as infusões
preparadas com esses pós, considerando que elas continham sobretudo antimónio, um
metal cujos efeitos terapêuticos tinham como altamente nocivos.

Desta dissenção nos dá conta Frei Manoel de Azevedo, religioso da Ordem de Nossa
Senhora do Carmo, na sua Correçam de Abusos Introduzidos Contra o Verdadeiro
Methodo da Medicina, publicada em 1668, em que se insurge-se fortemente contra os
contestatários dos pñs de Quintilho, indo ao ponto de os rotular de ―Medequinhos de
ágoa doce‖, e considerando a rejeição que faziam dos ditos pñs, um dos vários abusos
que perniciosamente se haviam introduzido na prática médica.

No Tratado II dessa sua obra, Frei Manoel de Azevedo discorre longamente sobre o ―De
quanto proveito sejam os pñs purgativos do ouro preparado‖ em que defende
entusiastica e cegamente os pós de Quintillo. Apresenta-os como a quinta-essência
tirada da destilação repetida do ouro que dissolvidos em vinho, ou noutro licor
apropriado, são remédio seguro, proveitoso, fácil e sem suspeita alguma, para todos os
géneros de enfermidades: ―com conselho do Medico, se pode usar em todas as idades e

37
complexoens, especialmente nas enfermidades rebeldes, contumazes, malignas e
pestilentas, e para o morbo gallico‖. E aduz em favor da sua utilização, um rol
nominativo de um grande número de Médicos e Boticários, religiosos e capelães que os
usaram e receitaram com grande êxito na cura de muitas e variadas doenças [12]

Sem referir nunca o modo como esses pós fossem preparados, o autor da Correçam de
Abusos Introduzidos Contra o Verdadeiro Methodo da Medicina remete para os que
eram comercializados com esse nome em qualquer botica e para as infusões que com
eles prepararam os Protomédicos Alfaro, Bartelis e Jaen, insurgindo-se duramente
contra ―uns certos Medequinhos de ágoa doce que dizem e pregoão a boca cheia que
como estes pñs são de antimñnio não querem usar delles‖ e procurando mostrar-lhes ―ex
abundante‖, quanto se enganam [13].

Na sua argumentação, Frei Manoel de Azevedo não mostra que estivessem enganados
aqueles que não acreditavam que os pñs de Quintillo fossem verdadeiramente ―pñs
solutivos da quinta essência do ouro‖, como se depreendia da apresentação que deles
fizera o seu autor; apenas tenta mostrar que se enganam todos aqueles que não aceitam
como eficazes e de grande proveito os remédios que contenham antimónio, já que todo
o seu discurso se volta inteiramente contra aqueles que não querem usar os pós de
Quintillho por eles conterem antimónio.

Deste modo, Frei Manoel de Azevedo admitia com toda a clareza que esses pós
continham realmente antimónio, sem, todavia, alguma vez negar que fossem um
preparado de ouro. Porém, os Médicos seus adversários iam muito mais longe e tinham-
nos como mero preparado de antimónio, sem qualquer porção de ouro, como o mostrara
a análise de Zacuto Lusitano.

As receitas que encontramos em alguns autores para a sua preparação, nomeadamente


em diversas Farmacopeias, apontam claramente no sentido de que tais pós eram de facto
pós de antimónio e não pós de ouro.

Entre tais receitas, citem-se as receitas apresentadas por Curvo de Semmedo na


Polyanthea Medicinal ou por D. Caetano de Santo António na Farmacopea Lusitana
para os pós de Quintilio que entendemos, pelas aplicações e poderes curativos que lhes
atribuem, como sendo os do Médico de Madrid Alexandre Quintillo, com o nome
adapatado à lingua portuguesa. A receita que os dois autores apresentam é exactamente
a mesma e descrita nos mesmos precisos termos. Para ambos, a preparação dos referidos
pós faz-se a partir de meio arratel de antimónio que depois de reduzido a pó muito fino
e subtil é tratado com igual quantidade de salitre até formar uma mistura bem
homogénea que aquecida num cadinho sob fogo intenso resulte num calcinado cor de
fígado assado. Repetidamente lavado para dele tirar todo o salitre, este calcinado é
dissolvido em água; deixado em repouso, dá origem a uns pós que assentam no fundo
do recipiente em que está contido. São os pós de Quintilio [14-15].

Curvo de Semmedo considera que estes seus pñs de Quintilio são o ―Crocus
Metallorum‖, a que ―por seus maravilhosos effeitos chamou Martin Ruland Terra Santa
e abençoada; eles são os pós a que Valentino chama oitava maravilha do mundo; estes
são os pós a que Poterio chama Pedra de Sevar para navegar segura a embarcação da
vida; estes são os pós com que se faz o vinho santo e eméctico; estes finalmente são os
pós com que se faz a Agua Benedicta, vigorada e simples, e os melhores sudoríficos e

38
diaforéticos, e mil outros remédios que deixo de referir por não enfadar‖. E continua:
―digo e afirmo diante de Deus e dos homens, que as curas mais prodigiosas que tenho
feito no decurso de trinta e sete anos, as fiz com os pós de Quintilio, ou com àgua
Benedita, ou com o vinho emético, que tudo é feito de Antimñnio preparado‖ pois não
são senão infusões preparadas com os referidos pós que também podem ser tomados em
substância, conforme o maior ou menor estado de fraqueza em que se encontre o doente
[16].

Por sua vez, D. Caetano de Santo António antes de referir a sua receita que, como
dissemos, é literalmente a de Curvo Semmedo, e é a mesma, sem qualquer modificação,
nas diversas edições da sua obra, diz que segue, para o efeito, a receita que N. Lémery
apresenta na Part.2, cp.IX do seu Curso de Química. Ora, reportando-nos nós ao
conteúdo desta referência, nela encontramos pura e simplesmente referência ao
antimónio, seus preparados, suas propriedades e suas utilizações [17].

Nunca N. Lémery, nem no seu Curso de Química, nem na sua Farmacopeia Universal
[18] se refere a quaisquer pós com o nome de pós de Quintilio.

Referindo os efeitos maravilhosos e as maravilhosas curas que operou usando os pós de


Quintilio, João Curvo de Semmedo deixa claro que as infusões que com eles se
preparam, seja a água Benedita, seja o Vinho Eméctico, não devem ser identificadas
com o ouro potável. De facto, em toda a Polyanthea Medicinal encontramos apenas
uma muito breve referência a este, apresentando-o como um grande remedio, sem dizer
nunca como prepará-lo. Pelo curioso da referência, aqui anotamos o teor dessa
passagem:

―o ouro potavel he grande remedio contra os Vágados, dando delle cinco ou seis gotas
em agua cozida com hyssopo; em falta de oyro potavel pode servir a prata potavel, ou
mesmo a prata preparada filosoficamente, e misturada com redobrada quantidade de
esterco de pavão fêmea, se for molher, ou de pavão macho se for homem, continuando
este remedio muitos dias. Polverizar a cabeça, rapada à navalha, com pó de bichos da
seda, tem especial virtude neste caso. Dar cinco, ou seis dias, nove gottas de oleo de pão
de buxo, feito per descendo, untando também com elle as fontes da cabeça, & as arterias
que estão detraz das orelhas, he grande remedio, o electuario que se faz de huma oitava
de ambar branco, outra de pó de unha de gram besta, hum escropulo de almiscar fino,
meia onça de pó de pão de Aguila, com hum escropulo de cardomomo menor, outro de
noz moscada, misturando tudo com assucar, & humas gottas de oleo de cravo, se forme
electuario, de que darão ao doente meya oitava cada dia. Serve também para as
apoplexias e gota coral‖ [19].

Não encontramos também qualquer referência ao ouro potável nas diferentes edições da
Farmacopeia Lusitana. Seguindo de muito perto as receitas do Curso de Química de N.
Lémery, não surpreende que o seu autor, D. Caetano de Santo António partilhasse da
sua opinião sobre esse possível preparado de ouro, que o autor francês deixou bem clara
no seu livro, rejeitando com toda a veemência muitas das preparações referidas pelos
alquimistas. Tratando do ouro, escreve ele sobre o ouro potável:

―O ouro potável dos alquimistas, cuja virtude eles tanto louvam e que vendem muito
caro, não é, habitualmente, senão uma tintura de algum vegetal ou de algum mineral
cuja cor se parece com a do ouro; preparada a partir de um mênstruo espirituoso, ela

39
excita, por vezes, o suor; eles atribuem este efeito ao ouro quando, em geral, este nada
tem a ver com ele. É um modo de enganar que resulta na maioria dos casos, pois que em
matéria de remédios os utilizadores são sempre muito crédulos, sobretudo quando se
lhes fala dum remédio universal, como se faz crer que o é o ouro potável. Mostraremos
em seguida que o que é apresentado como ouro potável não é senão uma quimera‖

Marcada esta sua posição, N. Lémery refere de seguida, com bastante pormenor, que a
preparação do ouro potável por parte daqueles que habitualmente o vendem mais não é
que a fixação do mercúrio com um verdete de um composto de cobre que confere ao
mercúrio uma cor amarela, reforçada depois com uma matéria vegetal ou mineral. Na
maioria dos casos essa fixação é tão fraca que o preparado se esvai em fumo por simples
aquecimento; e mesmo nos casos em que se trate duma fixação mais forte, em geral não
resiste a provas muito simples de testes de ensaio utilizados na pesquisa do ouro
verdadeiro [20].

Insurgindo-se contra a existência do ouro potável, N. Lémery insurge-se também contra


a generalidade dos remédios de natureza metálica cuja eficácia medicamentosa seja
relacionada com a presença neles da semente universal do ouro que segundo os seus
defensores, abundaria no espírito ácido universal e que seria a sua quinta-essência. Para
ele, tal não fazia sentido, e era sua convicção que trabalhar no fabrico do ouro a partir
desse espírito universal seria trabalhar nas trevas e em vão. Todo o trabalho dos
alquimistas nesse sentido não lhe merecia pois, qualquer crédito, a ponto de
categoricamente rotular a arte deles como ―artis sine arte, cujus principium, mentiri,
medium laborare et finis mendicare‖, uma arte sem arte, em cujo começo está a mentira;
no meio, o trabalho; e no fim, o mendigar [21].

Ainda na classe de receituários farmacêuticos de carácter iatroquímico, editados em


Portugal na primeira metade de século XVIII, deve notar-se que João Vigier não fez
qualquer referência nem ao ouro potável, nem a qualquer preparado de ouro, nem
sequer aos pós de Quintilio seja na Farmacopeia Ulissiponense [22 ], seja nas diferentes
edições do Thesouro Apollíneo[23].

Por sua vez, a Farmacopeia Tubalense de Manoel Rodrigues Coelho, não se referindo
nunca ao ouro potável, na edição de 1735, apresenta a receita para um preparado a partir
de limalhas de ouro dissolvidas em água régia e tratadas com sal amoníaco que na
forma de pñs, diz ser excelente sudorífero e a que chama ―Crocus auri‖, açafrão de ouro,
ou ainda, ouro fulminante ou volátil, porque quando aquecidos numa colher de metal,
esses pñs ―produzirão hum grande estrondo como se fosse huma libra de Pólvora bem
atacada‖ [24]. A receita é reproduzida ―ipsis verbis‖ na edição de 1760 [25]. Nestas
duas edições, por iguais palavras, o autor refere uma receita para os pós de Quintilio que
explicitamente identifica com o Crocus Metallorum e a Terra Sancta de Rulando,
remetendo para as páginas 152-163 do Lexicon de Jungken e para a Biblioteca
Pharmaceutica de Manget [26] como sendo um preparado a partir de antimónio
subtilíssimo pulverizado e fundido sob fogo intenso depois de misturado com salitre
puríssimo [27]. Na edição de 1751, a apresentação é um pouco diferente. Nela não há
também qualquer referência ao ouro potável, nem a qualquer preparado de ouro; há sim
uma simples referência ao Crocus Metallorum Absynthiacus, incluido na Classe II dos
preparados descritos no Escrutíneo Médico de Ribera como sendo o mesmo Quintilio,
preparado a partir de partes iguais de antimónio e sal de Losna vitriolado [28].

40
Tendo como assente que os pós de Quintilio, em qualquer das suas variantes, eram, de
facto, preparados de antimónio e não verdadeiros preparados de ouro, não surpreende
que fossem tidos como pós de ouro posto que fazia parte da mais pura tradição
alquímica que a verdadeira Pedra Filosofal, esse ―preciosíssimo dom de Deus‖ [29] que
transforma os metais imperfeitos no ouro mais puro, seria feita do antimónio mineral,
claramente a considerava Mylus na sua Anatomia do Ouro [30].

2.3 – O ouro potável como medicamento feito da quinta-essência do ouro desaparece do


receituário farmacêutico a partir do momento em que a ciência química rejeitou a
composição dos corpos baseada num quinta-essência, fosse ela de que natureza fosse.
Com o desenvolvimento progressivo da teoria atómica, caiu por terra a procura dos
arcana em que a iatroquímica acreditava e procurava. Nem por isso se deixou de falar
do ouro potável. Ainda hoje podemos encontrar, aqui e ali, preparados com esse nome a
que são atribuidas as mais fantásticas propriedades curativas; e também outros diversos
preparados do mesmo género que levam o nome de óleos de ouro. Deixada de lado a
anatomia dos metais praticada pelos iatroquímicos, no quadro da ciência química não se
podem considerar enganosas as infusões que sejam promovidas com algum desses
rótulos, caso contenham ouro dissolvido. Esta foi prática corrente no século XIX, com
especial ênfase pra as preparações de ouro conhecidas pelos nomes ―Ouro Potável‖ e
―Ouro Fulminante‖. À natureza de uma e outro se refere, por exemplo, o boticário
António José de Sousa Pinto em 1805:

―Para obter Ouro Potável faz-se dissolver em hum calor moderado meia oitava de Ouro
Fino em duas onças de Água Régia, ou de Ácido Nítrico-Muriático; acrescenta-se à
dissolução huma onça de Óleo Essencial de Alecrim; vascoleja-se a mistura e depois
deixa-se socegar. O Ácido perde a sua cor de Ouro, e o Óleo que se eleva à face , he
muito corado. Separa-se o Óleo por decantação; ajunta-se-lhe quatro ou cinco onças de
Espírito rectificado; tenha-se esta mistura em digestão por um mês, e adquirirá uma cor
porpurea.‖.

O Ouro Fulminante he a dissolução de ouro precipitado por hum Alkali: deite-se


Ammoníaco sobre huma dissolução de Ouro; a cor desapparece; mas no fim de algum
tempo vêem-se desenvolver pequenos flocos, que se vão fazendo amarellos cada vez
mais, e cahem pouco a pouco no fundo do vaso. O precipitado dessecado à sombra
conhece-se pelo nome de Ouro Fulminante‖

―Estes pñs necessitam secar-se à sombra com a maior cautella; porque hum calor muito
brando basta para o fazer detonar com violência, razão porque he chamado Fulminante‖
[31]. De facto, qualquer destas soluções assim preparadas corresponde a uma solução de
ouro que poderá ser convenientemente ingerida como bebida, satisfazendo
adequadamente à terminologia ―ouro potável‖; ela contém realmente ouro pronto para
ser ingerido na forma de bebida e é, portanto, uma verdadeira bebida de ouro na sua
integridade física, ouro com toda a sua ―massa corporal‖ e não apenas em alguma das
suas componentes anatómicas, o sal, o enxofre e o mercúrio filosófico dos alquimistas.
Só a quinta-essência destas serviria para preparar o verdadeiro ―ouro potável‖ dos
iatroquímicos. Só por acção dessa quinta-essência esse ―ouro potável‖ seria verdadeira
―panaceia universal‖ para acudir a todos os males. O ―ouro potável‖ da química
moderna não é certamente o ―ouro potável‖ dos iatroquímicos. Por maravilhosas e
eficazes que possam ser as virtudes curativas de muitos preparados de ouro, bebíveis ou

41
em qualquer outra forma de administração, em nenhum deles se encontrou ainda a
―panaceia universal‖ da Medicina.

Notas:

[1] - Christophe Glaser, Traité de la Chimie (Paris, chez l´Autheur, 1663), p.3.

[2] - M. Daumas, La Chimie des Principes in Histoire Générale des Sciences (Paris, Ed.
René Taton, Presses Universitaires de France), Tom.II, 1972, cp.VI, pp. 354-367

[3] - Ralph Oester, Alchemy: Folly or Wisdom, in J. Chem. Educ. 7 (1930), 2664-2676.

[ 4] - Duarte Madeira Arraes, Tratado das Virtudes dos Óleos de Enxofre, Vitríolo,
Philosophorum, Philosophorum, Alecrim, Salva e Agoa Ardente ( Lisboa, 1648, Ms.
193 da Biblioteca da Universidade de Coimbra), pp.22-22vs.

[5] - Matthew Gwinne, In assertorem chymiae, sed verae medicinae desertorem, Fra
Anthonium, (London, R. Field, 1611), p.109.

[ 6] - Joseph Duchesne (Quercetanus), Ad Veritatem Hermeticae Medicinae ex


Hippocratis, (Frankfurt, Wolffgang Richter & Conrad Nebeniu, 1605), pp. 151-152.

[7] - Joannes Guinther von Andernach, De medicina veteri et nova tum cognoscenda,
tum faciunda commentarii duo, 2 vols. ( Basel, Henric Petrina, 1571), pp.650-651.

[8 ] - Francis Anthony, Medicinae Chymiae, et veri potabilis auri assertio (Cambridge,


C. Legge, 1610), pp.25-31; Ibidem, Apologia Veritatis illucescentis pro auro potabile
(Londres, J, Legatt, 1616); Ibidem, The Apologie, or, defence of a verity heretofore
published concerning a medicine called Aurum Potabile (Londres, J, Legatt, 1616).

[ 9] - Alexandre Quintillo, Relacion y Memoria de los maravillosos effectos y notables


provechos que han hecho y hazen los polvos blancos solutivos de la quinta esencia del
oro (2ª edição, Madrid, 1609).

[10] - John French, The Art of Distillation (Londres Richard Cotes, 1651), cp. VI.

[11] - Zacuto Lusitano, De Medicorum Principium Historia (Lisboa, 1629)

[12] - Frei Manoel de Azevedo, Correçam de Abusos Introduzidos Contra o Verdadeiro


Methodo da Medicina (Lisboa, Officina Joam da Costa, 1680), Tom. II, Parte II,
Trat.III, pp. 129-171).

[13] - Idem, pp.202-218).

[14] - João Curvo de Semmedo, Polyanthea Medicinal, Noticias Galenicas e Chymicas


repartidas em Três Tratados (Lisboa, Off. António Pedrozo Galram,1704), Trat. II, cp.
V, pp.38-39.

42
[15] - D. Caetano de Santo António, Farmacopea Lusitana (Coimbra, Off. João
Antunes, 1704) Trat. 9, nº18, pp. 301-302.

[ 16] - João Curvo de Semmedo, op. cit., Trat. II, cp. V, p.39.

[ 17] - Nicolas Lémery, Cours de Chimie (Paris, Jean Baptiste Delespine, 1713), Part.
II, cp. IX, pp. 314-371.

[18 ] - Nicolas Lémery, Pharmacopée Universelle (Amsterdam, Aux dépens de la


Compagnie, 1748).

[19 ] - João Curvo Semmedo, o. cit., Trat. II, cp. VIII, § 47, p.68.

[ 20] - Nicolas Lémery, Cours de Chimie, Loc. cit., Part. I, cp. I, pp. 82-83.

[ 21] - Idem. p.85

[22] - Joam Vigier, Pharmacopea Ulyssiponense, Galenica e Chimica que contem os


Principios e Termos Gerais de huma e outra Pharmácia (Lisboa, Off. Pascoal da Sylva,
1716)

[23] - Joam Vigier, Thesouro Apollíneo Galénico, Chimico,Chirurgico, Pharmaceutico


(Lisboa, Off. Real Landesiana, 1714; Coimbra, Off. Luis Seco Ferreyra, 1745; Lisboa,
Off. Miguel Rodrigues,1745)

[24] - Manoel Rodrigues Coelho, Pharmacopea Tubalense Chemico-Galenica (Lisboa


Occidental, Off. Antonio de Sousa Sylva, 1735), cp. 80, pp. 830-831.

[25] - Manoel Rodrigues Coelho, Pharmacopea Tubalense Chemico-Galenica (Roma,


Off. Balio Geredini, 1760)

[26] – J. J. Manget, Biblioteca Pharmaceutica-medica (Genebra, 1703), Tom. I, p. 814.

[27] - Manoel Rodrigues Coelho, locs. cits.,cp.80, p. 83; cp. 80, p.859.

[28] - Manoel Rodrigues Coelho, Pharmacopea Tubalense Chemico-Galenica (Lisboa,


Off. José da Sylva Natividade, 1751), p. 161.

[29] – George Aurach de Argentina, Pretiosissimum Donumn Dei (Basileia, 1475).

[30] – Johann Daniel Lylus, Anatomia Auri (Frankfurt, 1628).

[31] - António José de Sousa Pinto, Elementos de Pharmacia, Chimica e Botanica


(Lisboa, Impressão Régia, 1805), cp. XI, pp. 173-174.

_____________________________

43
António Marinho Amorim da Costa (1939) é professor catedrático no Departamento
de Química da Faculdade de Ciências de Coimbra. Alguns livros seus na área da
História e Filosofia das ciências:

1. PRIMÓRDIOS DA CIÊNCIA QUÍMICA EM PORTUGAL - Instituto de


Cultura e Lingua Portuguesa, Lisboa,1984, Colecção Biblioteca Breve, n.92.
2. INTRODUÇÃO À HISTÓRIA E FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS. Publicações
Europa-America, Lisboa, 1986, Colecção Saber, n.189.
3. PROBLEMAS DA FILOSOFIA QUÍMICA CONTEMPORÂNEA. Coimbra
Editora, Coimbra, 1988.
4. 33 CASOS DE ACASO EM CIÊNCIA – 33 DESCOBERTAS
CIENTÍFICAS… POR ACASO. Em colaboração com Victor M. S. Gil e M.
Helena Caldeira. Ed. Gradiva Júnior, Coimbra, 1996.
5. ALQUIMIA – UM DISCURSO RELIGIOSO. Ed.Vega, Col. Janus, Lisboa,
1999.

44
EU E O PAI SOMOS UM: O
ETERNO FEMININO NA NOVA RELIGIOSIDADE

ANTÓNIO DE MACEDO

I — Entreabrir o portal…

Num certo Inverno, em Jerusalém, durante a festa judaica da Reconsagração do Templo,


passeava-se Jesus diante do pórtico de Salomão quando os judeus, aproximando-se, lhe
perguntaram: «Até quando nos manténs em suspenso? Se és o Cristo (o Messias), diz-
nos abertamente». Jesus respondeu-lhes: «Já vos disse, e não me acreditastes».

Este episódio vem relatado no capítulo 10 do Evangelho de João, Ritual de Mistérios


Maiores, onde se dá conta do pequeno discurso — mas substancial e iluminante — que
Jesus proferiu em continuidade, até que chegou à famosa frase: «Eu e o Pai somos um»
(João 10, 30). Os judeus, escandalizados, pegaram em pedras para apedrejá-lo, ao que
Ele contrapôs: «Fiz muitas obras boas a vosso favor; por qual delas me apedrejais?»
Replicaram eles: «Não te apedrejamos pelas tuas boas obras, mas porque, sendo
homem, te fazes Deus». O episódio prossegue com a resposta de Jesus e a conclusão da
Sua prédica, mas, para o que nos importa apurar, quedemo-nos por aqui.

Duas notas se salientam: primeiro, o nível iniciático da «instrução» de Jesus não foi
apreendido pelos ouvintes, que somente captaram o significado físico, ou literal; e
segundo, a frase «Eu e o Pai somos um», central no conjunto da prédica, contém a
chave que nos permite entreabrir o Portal da Nova Religiosidade, se soubermos atinar
com o Espírito que vivifica o sentido da frase.

II — As três «leituras»

Penetrar no sentido dum texto pressupõe um certo tipo de «interpretação» desse texto,
ou, mais simplesmente — um certo tipo de «leitura». Tratando-se neste caso dum texto
bíblico, eu diria, duma forma breve e simplificada, que podemos considerar três
«leituras» possíveis da Bíblia:

—Laica;
—Teológica;
— Esotérica.

Esta classificação simplificada corre o risco de parecer demasiadamente redutora, por


isso me apresso a esclarecer que:

45
a) Incluo na «leitura laica» toda e qualquer leitura que considere os textos bíblicos
apenas pelo seu lado textual-documental — e de preferência partindo dum princípio
racional-agnóstico, de que pode servir de exemplo mais óbvio o divertido Dictionnaire
Philosophique (1764), do iluminista Voltaire. Essa leitura, duma forma genérica e
sobretudo nos tempos mais recentes, serve-se de toda uma aparelhagem de análise e de
crítica de textos idêntica à que se pode aplicar a qualquer texto profano, antigo ou
moderno, sem levar excessivamente em conta — ou mesmo nada — o lado «espiritual»
dos conteúdos;

b) Designo por «leitura teológica» a que se opera na crença de que os textos bíblicos são
a «palavra de Deus», e socorre-se de técnicas interpretacionais quer da tradição religiosa
judaica (para o Antigo Testamento), quer da tradição das Igrejas cristãs (a Católica
romana, as Protestantes e as Ortodoxas, para o Antigo Testamento e o Novo
Testamento), sem excluir, mais modernamente, os mesmos instrumentos hermenêuticos,
exegéticos, semióticos, etc. da «leitura laica», embora adaptando-os ao pressuposto de
um «conteúdo revelacional» de origem divina;

c) Finalmente a «leitura esotérica». Que se poderá entender por uma «leitura esotérica
da Bíblia»? Provavelmente haverá mais do que uma, tal como se deduz do facto de
haver diversos «esoterismos». No entanto, procurando simplificar mais uma vez,
embora correndo o risco duma certa imprecisão, podemos dizer, em primeira
aproximação, que uma «leitura esotérica» da Bíblia tem de partir dumas quantas «regras
do jogo» — por exemplo, convencionar que o ser humano não esgota a sua totalidade
no corpo físico, mas tem uma parte espiritual que é a sua verdadeira essência
consciente, eterna, e que subsiste nos mundos invisíveis após a morte; que existe um
Deus, ou uma Grande Inteligência Cósmica, com quem o espírito do ser humano pode
relacionar-se, harmonizar-se e até identificar-se; que a sucessão dos tempos quer
históricos quer iniciáticos é coordenada por um plano geral do Espírito; que a Natureza
e a Escritura se correlacionam não só como uma grande rede alegórica, susceptível de
hermenêutica, mas também como geradoras de símbolos que tornam «transparente»
uma realidade que fica além de qualquer expressão ou comunicação; etc. Por outro lado,
admite que o texto examinado não esgota a totalidade dos seus significados numa
«leitura literal», mas contém significados «ocultos» (sejam simbólicos ou iniciáticos)
que carecem de ser devidamente descodificados.

III — Natural e sobrenatural

Em resumo: o teológico faz apelo ao «sobrenatural», ao passo que o esotérico considera


que o chamado «sobrenatural» se inclui no «natural», isto é, o «sobrenatural» não é
mais do que uma expressão (infeliz?) das Igrejas para caucionar, exotericamente, o
inexplicável em termos físico-racionais. A Suma Teológica (1265-1273) de Tomás de
Aquino é a expressão acabada desse mentalismo: no fundo, ao pretender captar Deus
nos limites da razão humana, relega para a esfera do «mistério» — no sentido
eclesiástico do termo, e não no sentido iniciático, mystêrion, como deveria ser — tudo
aquilo que Deus é e decide para além do que à razão humana lhe é possível escrutinar e
entender.

Assim, o «pecado original» cometido por Eva e Adão e que se perpetua na sua
descendência, o «plano de salvação» decidido por Deus ao longo da história da
humanidade, o nascimento virginal de Jesus por obra e graça do Espírito Santo, a

46
identificação de Jesus com Deus, as «Três Pessoas» distintas da Santíssima Trindade em
uma só natureza, a ressurreição corporal de Cristo e Sua ascensão corporal ao céu, a
«ressurreição dos mortos» no último dia, etc. são processos que correspondem a factos
esotericamente explicáveis em termos «naturais» — a matéria é espírito cristalizado! —
e não ocorrências «miraculosas» e «sobrenaturais» deliberadas por um Deus caprichoso
que transgride, quando assim o entende, as imutáveis leis universais que Ele mesmo
criou, com a agravante de não querer que os humanos entendam «certas coisas» com a
sã razão que o mesmo Deus lhes deu.

Retornando ao exemplo donde partimos, vejamos aonde nos conduziria a tripla leitura
da frase de Cristo Jesus «Eu e o Pai somos um».

IV — Tríplice Deus, tríplice Espírito

1.Leitura laica — Parte do conhecimento crítico de que a língua falada na Palestina e


na Síria no tempo de Jesus era o aramaico, língua semítica estreitamente aparentada
com o hebraico, o siríaco e o fenício. Língua popular por excelência durante vários
séculos, manteve-se durante a ocupação romana porque a potência ocupante não
conseguiu, nessa área do Médio Oriente, popularizar o latim, somente falado pelos
soldados e funcionários romanos e pelos judeus ligados à corte do Procurador da Roma
imperial. Por sua vez o grego, muito espalhado no império, era sobretudo falado e
entendido pelas classes cultas, pelos viajantes, pelos homens de negócios e pelos
mercadores. Os textos do Novo Testamento — Evangelhos, Actos, Epístolas,
Apocalipse — chegaram até nós redigidos em grego; as eventuais versões primitivas,
aramaicas — se é que as houve! — perderam-se. Compreende-se a preferência pelo
grego, a língua franca da época, tal como o inglês, hoje, na Internet: maior facilidade de
divulgação. Ora acontece que os especialistas conseguem detectar, nos textos gregos
desse tempo, certas construções idiomáticas típicas do aramaico que lhe estaria
subjacente — os chamados «aramaísmos» —, como por exemplo: «Corta a tua mão
direita» (Mateus 5, 30), que significa apenas «deixa de roubar»; ou «Permite-me que vá
enterrar o meu pai» (Mateus 8, 21), que significa «Deixa-me ir tomar conta do meu
velho pai até que morra»; ou ainda «Quem não tiver espada, venda o seu manto e
compre uma» (Lucas 22, 36) que significa «Há um perigo iminente». Do mesmo modo,
a frase «Eu e o Pai somos um» (João 10, 30) é um vulgar aramaísmo em que apenas se
afirma uma concordância de pontos de vista entre duas pessoas, ou seja: Eu e o Pai
estamos de acordo. Não se pode deduzir daqui que Jesus se identifica com Deus como
Segunda Pessoa da Trindade. Pode muito bem ser apenas um simples humano que
concorda e se identifica com as prescrições e os mandamentos divinos.

2. Leitura teológica — Os teólogos, pelo contrário, vêem nesta frase uma clara
afirmação da identidade absoluta entre a «substância» do Pai e a «substância» do Filho,
ou seja, a confirmação de que Jesus de Nazaré é igual a Deus. Trazem em abono desta
interpretação outros passos da Bíblia em que os feitos e os ditos de Jesus se equiparam a
actuações que, no Antigo Testamento, são atribuíveis a Jahvé. Por exemplo: Jahvé dá o
pão (ou maná) como alimento (Êxodo 16, 8.15; Deuteronómio 8, 3), e Jesus dá o
verdadeiro pão da vida (João 6, 11.32-35.51); Jahvé, por intermédio de Moisés, faz
brotar água da rocha (Êxodo 17, 6), e Jesus dá a «água viva» que leva à «vida eterna»
(João 4, 10-14); Jahvé dá mandamentos (Êxodo 31, 18; 34, 28; Deuteronómio 4, 13; 5,
22; 10, 4), e Jesus dá um «mandamento novo» (João 13, 34); etc. Ou seja: ao conceder
dons e dádivas que no Antigo Testamento são exclusivos de Jahvé — pão, água,

47
mandamentos, vida eterna, etc. —, Jesus parece estar a atribuir-se a mesma condição
divina do próprio Deus.

3. Leitura esotérica — Toma em consideração duas vertentes: uma externa e outra


interna. Do ponto de vista externo leva em conta as eventuais deturpações que os textos
escriturísticos sofreram nas sucessivas cópias que chegaram até nós, e não desdenha os
estudos que têm sido feitos com o fim de descortinar o texto-base anterior às alterações
introduzidas; do ponto de vista interno articula os conteúdos doutros passos da Escritura
com o conhecimento e a sabedoria (Gnôsis e Sophia) transmitidos pela tradição
iniciática e pelas correntes esotéricas do Ocidente heleno-judaico-cristão. Segundo esta
perspectiva, se conjugarmos a frase «Eu e o Pai somos um» com um outro dito de Jesus
no mesmo Evangelho de João, mas desta vez no Sermão da Ceia, onde Jesus afirma: «O
Pai é maior do que eu» (João 14, 28), constatamos que ambas as frases, longe de se
contradizerem, se esclarecem mutuamente à luz duma leitura esotérica, não-
sobrenatural. A última afirmação, feita para Iniciados, assevera a inequívoca diferença
entre Jesus e Deus, mas, ao mesmo tempo, ao conjugar-se com a frase anterior da real
identidade ou melhor, unuidade, de Cristo e do Pai, alumia-nos com a seguinte
«leitura»: Jesus, não sendo idêntico a Deus-Pai, mas conhecendo-O por contacto directo
pela infusão Crística que recebeu no Baptismo (Cristo-Jesus tornou-se o único ser com
um leque de veículos físico-anímico-espirituais que vão desde o mundo material até ao
Mundo de Deus), tem autoridade e conhecimento para afirmar que «o Eu» — o Eu
Superior, o eterno Espírito de todo o ser humano — é «uno com o Pai», ou seja,
idêntico à essência divina: o tríplice Espírito dos seres humanos, que é uma criação
perfeita, é uma réplica do tríplice aspecto da Divindade: Pai, Filho e Espírito Santo. O
que é confirmado por Paulo, o Iniciado: «Não sabeis que sois templo de Deus, e o
Espírito de Deus habita em vós?» (1 Coríntios 3, 16).

V — Corrupções «ortodoxas» da Escritura

Esclareça-se que esta tradição esotérica não é tão fantasiosa como pode parecer à
primeira vista. É um facto bem conhecido dos especialistas modernos, conhecedores da
enorme quantidade de documentos escriturísticos existentes, desde os mais antigos
papiros manuscritos até à profusão de cópias e versões em diferentes linguas antigas,
que a Escritura — e, neste caso concreto, o Novo Testamento — sofreu adulterações e
corrupções introduzidas pelos copistas duma certa facção das comunidades jesuânicas
para se conformar à Cristologia do que se convencionou chamar a «ortodoxia» que
finalmente deu origem à Igreja de Roma. A maior parte das passagens do Novo
Testamento em que parece afirmar-se que Jesus de Nazaré é Deus, foi obra de
«ajeitamentos teológicos», tal como as passagens que de início inequivocamente
explicitavam que Jesus, nascido naturalmente de José e de Maria, só se tornou
«especial» no momento do Baptismo.

Esta última distinção é importante. Há provas documentais, desde muito cedo, de que
certas comunidades cristãs do primeiro e do segundo séculos sabiam que Jesus não se
identificava com Deus (por exemplo, Theodotus, os Ebionitas, Cerinthus, etc.), mas que
o Espírito Divino — o Espírito Santo — o havia infundido no momento do Baptismo
com uma qualidade elevadíssima que o tornou «Filho de Deus», «Salvador do Mundo»,
em suma: «Cristo». Em contrapartida, as comunidades pré-ortodoxas e ortodoxas
defenderam por razões mais políticas e de força, que religiosas, que Jesus sempre foi
«Deus» desde o Seu nascimento, e até antes, procedendo os seus copistas às alterações

48
apropriadas dos textos para fazerem vingar essa Cristologia. (Anote-se que uso aqui o
termo «ortodoxia» não no sentido de rectidão de conteúdos, mas no de dominância da
facção que «venceu» as polémicas dos três primeiro séculos e se tornou na Igreja de
Roma).

Vejamos o seguinte exemplo flagrante. O texto do Evangelho de Lucas, na versão


oficial da Igreja, refere o Baptismo de Jesus do seguinte modo: após ter sido Jesus
baptizado no Jordão, por João o Baptista, e estando em oração, abriu-se o céu e desceu o
Espírito Santo sob a forma duma pomba e ouviu-se uma voz do céu: «Tu és o meu
filho amado; em ti me agradei» (segundo o texto da Vulgata Latina oficializado pelo
Concílio de Trento: «Tu es filius meus dilectus, in te complacui mihi» — Lucas 3, 22).
Os especialistas laicos, porém, estudando as variantes do texto grego que chegaram até
nós, concluíram que a versão primitiva, original, seria: «Tu és meu filho, hoje te dei à
luz [gr. sêmeron gegennêka se]». Ou seja, a versão oficial, adulterada, escamoteia que
Jesus se tornou «Filho de Deus» apenas no momento do Baptismo, e por conseguinte
não havia nascido «divino». O tempo verbal gegennêka é o perfeito do verbo gennaô,
gerar, parir, dar a luz, e aquela frase remete para o Salmo 2, que contém a fórmula
consagratória com que os reis de Israel eram «ungidos» por Jahvé: «Ungi o meu rei na
montanha sagrada de Sião […] Tu és meu filho, hoje te engendrei» (Salmo 2, 6-7). O
«ungido» era dito em hebraico mashiah (transliterado Messias), e traduz-se em grego
pelo adjectivo christos (do verbo chriô, ungir).

Portanto, na versão original, Jesus só se tornou «Cristo» quando, no Baptismo, recebeu


a infusão do divino Espírito Santo. O que é confirmado em outros lugares do Novo
Testamento, que também sofreram alguns «retoques»: um deles é o trecho no qual se
refere «como, depois do baptismo que João pregou, Deus ungiu [gr. echrisen] Jesus de
Nazaré com Espírito Santo e poder» (Actos 10, 37-38), o que Lhe permitiu espalhar o
bem, fazer curas e expulsar demónios. A forma echrisen é o tempo aoristo do mesmo
verbo chriô, ungir, que deu origem a christos, como vimos atrás.

Já agora vejamos mais um outro caso, em dois passos paralelos de Marcos e Mateus que
têm causado engulhos à ortodoxia dogmática. O Evangelho de Mateus, durante o
Cristianismo primitivo, teve uma divulgação muitíssimo maior que o de Marcos, uma
vez que este era acentuadamente iniciático e de circulação mais restrita. Não surpreende
portanto que os escribas pré-ortodoxos e ortodoxos se tivessem empenhado em
«corrigir» o de Mateus, mais do que o de Marcos, nas passagens onde os «hereges»
pudessem ir buscar argumentos para apoiar a ideia de que Jesus de Nazaré não era Deus.
A propósito do «fim dos tempos», lemos em Mateus: «Quanto àquele dia e hora
ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho [gr. oude ‗o ‗Uios], mas apenas o
Pai» (Mateus 24, 36). Ora, se o próprio Filho não sabe, é porque não é divino nem está
dentro dos segredos do Pai… A expressão nem o Filho [gr. oude ‗o ‗Uios] acha-se
suprimida em muitos dos manuscritos existentes, sobretudo os da tradição bizantina, e
foi essa versão «expurgada» que Jerónimo utilizou para a sua tradução em latim
(Vulgata Latina), texto oficial da Igreja católica: «De die autem ille et hora nemo scit,
neque angeli caelorum, nisi solus Pater». Pelas razões apontadas o passo paralelo de
Marcos (13, 32), praticamente idêntico, não foi tão expurgado pelos copistas ortodoxos
— Marcos foi de longe o Evangelho menos copiado e divulgado, logo menos
susceptível de causar «danos» —, e Jerónimo traduziu o versículo tal e qual, incluindo a
expressão melindrosa «neque Filius» («nem o Filho»), que os teólogos mainstream
reinterpretam de forma curiosa, para não dizer sofística: «Jesus, enquanto homem, sabia

49
tudo o que era necessário para realizar a Sua missão messiânica; isso não inclui, porém,
que conhecesse todos os planos de Deus» (Frei Alcindo Costa, formado pelo Instituto
Bíblico de Roma, em nota ao Novo Testamento, Difusora Bíblica, p. 51 n.).

Com efeito, já as primitivas comunidades iniciáticas cristãs tinham realçado o facto de


que Jesus só começou a fazer «milagres» depois do Baptismo, ou seja, a partir do
momento em que foi infundido pelo Espírito Santo e se tornou «Cristo-Jesus».

VI — Em Água e em Espírito

Esta infusão do Espírito Santo é fulcral para se compreender como o Baptismo «em
Espírito Santo», indispensável para além do simples Baptismo em Água, é determinante
na Nova Religiosidade, que se distingue sobretudo — ainda que não só — por duas
características fundamentais: uma espiritualidade individual positiva, que contacta
imediatamente o Divino prescindindo dos «funcionários de Deus» como intermediários
institucionalizados, e o papel transcendental da Eterna Complementaridade Feminina
da Divindade. O carácter unitivo dos dois Baptismos (Água e Espírito, ou Água e Fogo:
o Espírito Santo revelou-se como línguas de Fogo no Pentecostes: Actos 2, 3-4), é
atestado em alguns passos do Novo Testamento. Por exemplo, João o Baptista diz aos
seus seguidores: «Eu baptizo-vos em Água, para o arrependimento [gr. metanoia,
mudança de mente]; aquele que há-de vir depois de mim […] baptizar-vos-á em
Espírito Santo e em Fogo» (Mateus 3, 11). Jesus confirma-o por outras palavras, nas
«instruções iniciáticas» que, uma noite e em segredo, transmitiu ao candidato aos Novos
Mistérios Cristãos, o velho Nicodemos. Entre essas «instruções» destaca-se a seguinte:
«Em verdade, em verdade te digo, quem não nascer de Água e de Espírito não pode
entrar no Reino de Deus» (João 3, 5).

A Água e o Espírito [Santo] associam-se assim num dos simbolismos do pólo Feminino
da Divindade.

VII — A Tripla Deusa: tradição helénica

Duas tradições concorrem para a instauração e aceitação da dupla polaridade


masculina/feminina do Ser Supremo: a helénica e a judaica, devedoras por sua vez das
influências babilónica e egípcia. Esta última, desde os mais remotos testemunhos
papiráceos que nos chegaram, refere a existência duma Tripla Deusa complementar do
grande deus Nu, o deus do céu, o fecundador, o aspersor das águas celestes.

Essa Tripla Deusa é a manifestação do triplo aspecto feminino: Neith, virgem caçadora
e tecedeira, como mais tarde Ártemis (virgem caçadora) e Atena (virgem guerreira e
tecedeira) entre os Gregos; Nut, o princípio feminino de Nu, a massa aquosa donde se
formaram os deuses e ao mesmo tempo a deusa dos céus por onde veleja o barco do
deus-Sol; e finalmente Ísis, esposa e mãe. Este triplo princípio feminino, Neith/Nut/Ísis,
consolidou-se nas tradições do Médio Oriente desde tempos imemoriais até ser
destronado pelo patriarcalismo tardio de Amon-Râ, Zeus-Dyews e Jahvé.

O ramo helénico e o ramo judaico «resolveram» de modos diferentes o problema da


recuperação da divinal polaridade feminina após a «masculinização dos céus».

50
O panteão feminino grego absorveu, sobretudo a partir da Frígia, da Síria e da
Babilónia, o lado simultaneamente «terreno» e «lunar/aquoso» da «Grande Deusa Mãe»
e da «divina Virgem». Hesíodo, na sua Teogonia, associa a Tripla Deusa às três
gerações de deuses: Gaia (com Ouranos) deu origem à primeira geração de deuses; Nyx
(com Erebos) deu origem à segunda geração de deuses; Tethys (com Okeanos) deu
origem à terceira geração de deuses. Por fim esse «triplo Eterno Feminino» conglobou-
se, nos Mistérios, em deusas como Cibele, cujo nome se associa à Montanha Sagrada (a
que estabelece a ligação da terra e do céu), Deméter, a deusa maternal da terra, dos
cereais e das colheitas, ou ainda da sua filha Perséfone, a jovem deusa renovadamente
virgem que faz irromper a luxuriante vegetação e passa seis meses de cada ano (durante
a estação invernosa) no mundo subterrâneo do Hades.

É um culto acentuadamente ctónico (do gr. chthôn, chthônos, terra, solo, região) com
efeitos práticos no mundo visível, desde oráculos a curas, em que a feminina Água,
associada à feminina Terra, também desempenha o seu papel. Assim, no santuário de
Delfos, a Pítia e os sacerdotes que a assessoravam banhavam-se primeiro na Fonte
Castália, em seguida ela bebia água da Fonte Sagrada de Cassotis e só depois entrava no
templo. Um vez lá dentro descia a uma cela na cave (o elemento ctónico: o mergulhar
no seio da Terra-Mãe), sentava-se numa trípode e mascava folhas de loureiro. Os
sacerdotes então interpretavam as suas palavras, em geral ininteligíveis, como uma
mensagem divina. Acreditava-se que estes oráculos detinham «poderes ctónicos», ou
seja, poderes que emanavam das próprias energias telúricas. No templo de Asclépio, em
Epidauro, os doentes adormeciam em contacto com a terra, a fim de serem curados
durante os sonhos, e no santuário de Trofónio, em Lebadeia, os consulentes adormeciam
num buraco escavado no chão para obterem respostas às suas perguntas ou alívio aos
seus males.

VIII — A Tripla Deusa: tradição judaica

Portanto, a tripla polaridade feminina da divindade, no ramo helénico e áreas afins,


mediterrânicas, onde abundam nascentes e fontes, correlaciona-se com a Terra e com o
elemento Água; por sua vez no ramo judaico, cuja história se processou nas cálidas e
secas regiões do Médio Oriente — e povos limítrofes —, o pólo feminino da divindade
tende a correlacionar-se com o Céu e com o elemento Ar.

1. Ru’ah — A primeira manifestação da divina polaridade feminina, judaica, está nas


implicaçãoes envolvidas na própria palavra «espírito» que em hebraico, ru‘ah, é do
género feminino. Ru‘ah também se pode traduzir por sopro, vento (elemento Ar), e a
primeira vez que aparece na Bíblia hebraica é logo no princípio:

«Ve ru‘ah-Elohim merahephet al pnei-hamaim» (Génesis 1, 2).

Ru‘ah-Elohim pode traduzir-se por «Espírito de Deus» (ou dos Elohim) ou por «Sopro
de Deus» (ou dos Elohim); a tradução corrente deste versículo costuma ser: «E o
Espírito de Deus planava sobre as águas» («Et Spiritus Dei ferebatur super acquas»,
segundo a Vulgata Latina), mas também se pode traduzir: «E o vento dos Elohim
deslizava (ou: agitava-se) sobre a face das águas».

Vento ou espírito, o elemento Ar e o género feminino estão indissoluvelmente ligados à


Divindade da tradição hebraica no seu aspecto ru‘ah. Essa vertente especificamente

51
divina é acentuada na expressão compósita Ru‘ah ha-Kodesh, «o Espírito Santo», como
vemos por exemplo em Isaías: «Mas revoltaram-se, ofenderam o Espírito Santo [hebr.
Ru‘ah ha-Kodesh] [de Jahvé]; desde então tornou-se inimigo deles e fez-lhes guerra»
(Isaías 63, 10). É o feminino Espírito de inspiração e profecia, como lemos num tratado
talmúdico: «Quando os últimos dos profetas, Ageu, Zacarias e Malaquias morreram, o
Espírito Santo [hebr. Ru‘ah ha-Kodesh] ausentou-se de Israel» (Yoma 9b). Embora o
rígido monoteísmo judaico sempre visse com desconfiança — e mesmo rejeitasse — a
acepção da Ru‘ah ha-Kodesh como uma «hipóstase» ou uma entidade separada de
Deus, essa tendência individuante porém, na literatura talmúdica e rabínica, pós-bíblica,
manifestou-se em vários tratados, como por exemplo quando a Ru‘ah ha-Kodesh se
exprime por palavras (Pesahim 117a), ou actua como conselheira de defesa em nome de
Israel (Leviticus Rabbah 6, 1), ou ainda quando abandona Israel para regressar a Deus
(Ecclesiastes Rabbah 12, 7).

Já agora esclareça-se, parenteticamente, que em teoria das religiões o termo «hipóstase»


designa a personificação duma propriedade ou dum aspecto da Divindade suprema; em
Teologia cristã a «hipóstase» é a «pessoa» por oposição à «essência», por isso se diz
que Deus tem três hipóstases distintas (Pai, Filho e Espírito Santo) e uma só Natureza;
em Teologia judaica o termo «hipóstase» designa a individuação das propriedades e
formas operativas de Jahvé, de modo que o Deus inacessível possa manifestar-se aos
humanos duma forma sensível, enquanto Ele permanece invisível e inalcançável nos
céus.

2. Shekhinah — Essa manifestação do inacessível em forma sensível é a Shekhinah, a


segunda polaridade feminina de Deus, a que estabelece a ligação entre o puro mundo
Espiritual-Divinal e o mundo material, sendo portanto a que mais directamente se
manifesta aos humanos. Esta palavra vem duma raiz hebraica que significa «habitar»,
«permanecer», «estar presente», portanto a Shekhinah é o que a literatura rabínica
designa por «imanência numinosa» de Deus no mundo, ou seja, é a «Divina Presença»
em termos espácio-temporais. Por exemplo, quando Moisés diz aos Israelitas «Jahvé
vosso Deus é o único atrás de quem deveis caminhar» (Deuteronómio 13, 5), lemos o
seguinte comentário num tratado talmúdico: «Como é possível para um homem
caminhar atrás da Shekhinah? […] Antes se deve entender que devemos seguir [imitar]
as virtudes do Santíssimo, abençoado seja» (Sotah 14a), ou ainda: «Não podeis ver a
minha face, disse Jahvé, porque nenhum humano me pode ver e sobreviver» (Êxodo 33,
20), que o Targum aramaico interpreta do seguinte modo: «Não podeis ver a face da
minha Shekhinah…». Esta «presença» irradiante assimila-se à luz, como se fosse um
ser de luz criado por Deus. Por isso se diz que quando os profetas tinham a visão de
Deus, na realidade o que viam não era Deus, mas a sua Shekhinah.

Num certo número de tratados talmúdicos (por exemplo Pesahim, Shabbat, Sukkah,
Sotah, Sanhedrin, etc.) as duas entidades femininas Ru‘ah ha-Kodesh e Shekhinah,
apesar de conceptualmente distintas, são frequentemente tomadas como sinónimos. No
primeiro tratado cabalístico conhecido, o Sepher ha-Bahir [«Livro do Resplendor»], da
segunda metade do século XII mas incorporando materiais místicos e ocultos muito
mais antigos, o seu anónimo autor classifica pela primeira vez as «10 emanações
divinas», que a Cabala judaica deu depois a conhecer, amplamente, sob o nome de
Sephiroth. No Sepher ha-Bahir a Shekhinah identifica-se com a última Sephirah, a
décima, Malkhuth, «o Reino» ou «a Realeza», e é descrita como a «Filha», ou a
«Princesa», o divino princípio feminino no mundo. Certos cabalistas consideram que as

52
quatro letras do tetragrama sagrado, YHVH (yod-he-vau-he), têm as seguintes
conotações:

Yod - corresponde ao Pai


He - corresponde à Mãe
Vau - corresponde ao Filho
He - corresponde à Filha.

Ou seja, a letra he, nas suas duas posições no tetragrama sagrado, reúne em si o duplo
aspecto Maternal/Filial (ou Maternal/Virginal) do Princípio Feminino da Divindade, o
mesmo que na tradição grega era representado pela Deusa Mãe Deméter e por sua Filha
Perséfone.

3. Hochmah — Finalmente, o terceiro aspecto feminino da Divindade é Hochmah,


«Sabedoria», também considerada um reflexo da Luz Eterna. A Hochmah é uma
entidade de primordial importância no pensamento teológico e filosófico judaico, e, no
Livro dos Provérbios, onde intervém não poucas vezes, é apresentada como a primeira
das criações de Jahvé, e a Sua favorita (Provérbios 8, 22). Todo o capítulo 28 do Livro
de Job é um «Hino de Louvor à Sabedoria», considerada superior ao ouro, ao coral, às
mais finas pérolas. Na Cabala judaica, pertence ao Triângulo Superior da Árvore
Sefirótica (Suprema Transcendência da Divindade); é inseparável de Deus mas actua no
mundo quase como uma personalidade distinta, prefigurando, de certo modo, o conceito
neotestamentário da relação entre o «Filho» (Cristo-Jesus) e o «Pai».

IX — A Tripla Deusa: tradição cristã

A saudosa Natália Correia, com a exuberância que lhe era peculiar, e como boa açoriana
e simultaneamente sacerdotisa do ancestral-renovado culto feminino, não poucas vezes
dissertou — pelo menos no «Botequim», tanto quanto me recordo, e lhe ouvi —, sobre
a transcendência Paraclética do Espírito de Verdade de Deus, que ela insistia em
designar por Espírita Santa!

Está certo: a Espírita Santa é a POMBA — que em hebraico se diz yonah e que a
tradição hermética, fazendo tábua rasa das rigorosas pesquisas etimológico-científicas
da Linguística, considera relacionada com a yin chinesa (princípio feminino,
complementar do princípio masculino yang) e a yoni indiana (orgão sexual feminino,
complementar do órgão sexual masculino linga). Trata-se duma «Cabala fonética» de
que Fulcanelli foi um dos principais impulsionadores, e que, não obstante a sua rejeição
por parte da linguística histórica, revela e torna «transparentes» os mais subtis e
inesperados aspectos do REAL.

Vimos como a tradição helénica associava o pólo feminino da Divindade à Terra e ao


elemento Água, e como a tradição judaica associava o pólo feminino da Divindade ao
Céu e ao elemento Ar.

Por sua vez a tradição cristã, epítome e sequência das duas, congloba no pólo feminino
da Divindade os elementos Ar e Água, juntamente com o Céu e a Terra, do seguinte
modo:

• Pomba — Espírito Santo/Inspiração Paraclética: Ar (Mente Superior), e Céu;

53
Virgem-Mãe — Associação complementar e indissolúvel entre o Pai Celestial e a Mãe
Terrenal: Céu, e Terra;

• Sophia — Água (Coração, Desejos Sublimados), e Terra.

1. Pomba — O primeiro aspecto — POMBA — surge pela primeira vez, no Novo


Testamento, no exacto momento do Baptismo de Jesus, e simboliza o divino Espírito
Santo, que João designa por «Paracleto». O simbolismo da pomba associado ao
princípio feminino da Divindade já vem de longe, e perdurou: tanto o encontramos na
antiga Mesopotâmia e na Ásia Menor, em que o Princípio Feminino visível e invisível,
substância e essência, era reverenciado nos templos sob a forma duma pomba, tal como
continua a figurar, muito mais tarde, como por exemplo num tratado gnóstico do século
III d. C., Pistis Sophia, onde vemos logo nas primeiras linhas do capítulo 1 que «o
Mistério anterior a todos os Mistérios é o Pai sob a forma duma Pomba». Lemos no
capítulo 8 do Génesis como Noé enviou um corvo (símbolo da negra natureza de
desejos) e uma pomba (símbolo do luminoso «corpo anímico») para saber se as terras já
tinham secado após o dilúvio. O corvo limitou-se a voar para cá e para lá até que as
águas secaram, mas a pomba, à segunda tentativa, trouxe um raminho de oliveira
(Génesis 8, 6-11). A oliveira, de tradição sagrada muito antiga — a oliveira e o azeite,
atributos da deusa Atena, foram as suas dádivas sagradas à Ática —, associa-se ao
ministério de Cristo e ao bálsamo da cura pelo espírito. Um dos motivos decorativos das
colunas da catedral de S. Pedro, em Roma, é uma pomba com um raminho de oliveira:
— o Espírito Santo com uma oferta de regeneração e cura. Este Espírito — ru‘ah —,
manifestação do pólo feminino da Divindade, conduz-nos ao segundo aspecto aludido
acima:

2. Virgem/Mãe — Esse segundo aspecto — VIRGEM/MÃE —, recuperado desde


muito cedo pela Igreja na sua Teologia Mariânica, é uma tónica recorrente num curioso
manuscrito que o estudioso Edmond Bordeaux Székely diz ter encontrado nos Arquivos
secretos do Vaticano e que traduziu do original aramaico para francês (1928). A
respectiva edição policopiada deu origem à versão inglesa que foi publicada em 1937,
em Londres, com o título The Essene Gospel of Peace. A ideia de Virgem/Mãe surge
nesse apócrifo naturalmente associada à Terra, alternadamente Virgem e Mãe, e embora
o texto — que é um longo discurso de Jesus em resposta a algumas questões que lhe são
apresentadas pelo discípulos — não deixe de se referir, com frequência, ao «Heavenly
Father» (Pai Celestial), insiste muito mais na reverência, amor, fidelidade e veneração
que se deve à «Earthly Mother» (Mãe Terrenal), que nos doou amorosamente tudo de
quanto o nosso corpo é feito e tudo o que possui. Em dado passo diz Jesus:

«O vosso Pai Celestial é amor.


A vossa Mãe Terrenal é amor.‖

É pelo amor que o Pai Celestial e a Mãe Terrenal e o Filho do Homem se tornam
um. Porque o espírito do Filho do Homem foi criado do espírito do Pai Celestial, e o
seu corpo, do corpo da Mãe Terrenal.Tornai-vos, pois, perfeitos, como são perfeitos o
espírito do vosso Pai Celestial e o corpo da vossa Mãe Terrenal».

Registe-se a relevância atribuída ao AMOR que «torna UM» não só o Pai e o Filho
(«Eu e o Pai somos um»!) mas também a Mãe.

54
Não é só neste Evangelho essénio que o pólo feminino da Divindade se identifica com a
Mãe, incluso a própria Mãe mistérica de Jesus: outros manuscritos antigos também o
atestam. Por exemplo, há um curioso indício transmitido pelo Evangelho dito dos
Hebreus, usado por algumas comunidades iniciáticas cristãs como os Nazarenos e os
Ebionitas, e do qual só restam fragmentos que nos foram conservados em citações feitas
pelos Padres da Igreja. Supõe-se que tenha tido a sua origem nos princípios do século II
d. C. Segundo o testemunho de Jerónimo (Dial. adversus pelagianos, III, 2) teria sido
originalmente escrito em aramaico, e nele se afirma que o Espírito Santo, além de ser
feminino — ru‘ah em hebraico é feminino —, é, ainda por cima, a Mãe de Jesus!

«Há pouco a minha mãe, o Espírito Santo [gr. ‗agion pneuma] tomou-me por um dos
cabelos e levou-me ao monte sublime do Tabor…» (É um paralelo de Mateus 4, 1 e
vem citado no Comentário ao Evangelho de João, de Orígenes: In Io. 2, 6).

Ou, noutra versão, que nos foi transmitida por Jerónimo no seu II Comentário sobre
Miquéias (Comm. II in Mich. 7, 6):

«Há pouco tomou-me a minha mãe, o Espírito Santo [lat. Sanctus Spiritus], por um dos
meus cabelos…».

Jerónimo surpreende-se, pois a ser assim, «a alma, que é esposa do Verbo, tem por
sogra o Espírito Santo»! («Et animam, quae sponsa sermonis est, habere socrum
Sanctum Spiritum, qui apud Hebraeos genere dicitur feminino, ru‘ah» — id., ibid.).

No Evangelho da Paz dos Essénios esta ru‘ah corresponde ao Espírito da Terra, perfeita
e imaculada por todo o Amor que tem para doar.

No final do Livro Primeiro de The Essene Gospel of Peace, Jesus ensina duas orações:
uma, muito semelhante ao «Pai Nosso» que conhecemos, em veneração ao Pai
Celestial; e outra em veneração à Mãe Terrenal e que é a seguinte:

«Mãe nossa que estás na Terra, santificado seja o teu nome. Venha a nós o teu reino e
faça-se em nós a tua vontade, tal como em ti se faz. Tal como envias os teus anjos
diariamente, envia-no-los a nós também. Perdoa os nossos pecados, tal como expiamos
os pecados que cometemos contra ti. Não nos deixes cair na doença, mas liberta-nos de
todo o mal, porque teus são a Terra, o corpo e a saúde. Amen».

Eis-nos perante o mistério do Eterno Feminino corporizado na Terra Lucida, a Terra de


Luz que um dia o ser humano reconstruirá (redescobrirá), redimido em Cristo, mediante
o vínculo de fé na sagrada e irresistível união do Cristo e da Sophia.

Daqui passamos naturalmente ao terceiro aspecto referido acima:

3. Sophia — O terceiro aspecto do pólo feminino da Divindade na tradição mistérica


cristã — SOPHIA — surge não só na continuidade do Antigo Testamento, sobretudo no
Livro dos Provérbios e no Livro de Job, como vimos acima a propósito da Hochmah
(«Sabedoria»), mas também num livro veterotestamentário que a tradição judaica
considera apócrifo e que a tradição da Igreja aceitou como «deuterocanónico», redigido
em grego cerca do ano 50 a. C.: o Livro da Sabedoria. Neste livro a Sabedoria
personificada (Sophia) é tida como o agente da actividade divina no mundo,

55
participando de certo modo da própria natureza divina. O livro foi composto como se o
seu autor tivesse sido Salomão, que em dado paso diz:

«Rezei, e o entendimento foi-me dado; supliquei, e o Espírito da Sabedoria veio até


mim. […] Amei-a mais do que à saúde ou à beleza, preferi-a à própria luz, porque o seu
resplendor nunca fenece. Em sua companhia todos os bens vieram até mim, e as suas
mãos trouxeram-me incalculáveis riquezas.De todas estas coisas me alegrei, porque foi
a Sabedoria que as trouxe; mas eu ignorava ainda que ela fosse sua Mãe» (Sabedoria 7,
7.10-12).

No tratado gnóstico a que fiz referência acima, Pistis Sophia, e que se supõe ter sido
composto no século III d. C., Jesus ressuscitado faz revelações aos Seus discípulos
sobre a queda e a redenção duma das emanações da Divindade, a Sophia (ou Pistis
Sophia : «Fé-Sabedoria»). Aqui a principal preocupação é saber quem finalmente será
salvo. Os que se salvarem devem renunciar ao mundo e seguir a ética pura do amor e da
compaixão, a fim de se identificarem com Jesus e se transformarem em raios da Luz
Divina.

No Judaísmo — sobretudo intertestamentário — abundaram especulações filosófico-


teológicas sobre a Sabedoria celestial (Hochmah, Sophia) uma entidade celeste ao lado
de Deus que se apresenta à humanidade não só como mediadora da obra de criação mas
também como mediadora do conhecimento de Deus. Ireneu Lugdunense, ou de Lião,
apologeta e feroz anti-herético que floresceu na segunda metade do século II, resume o
ponto de vista duma seita gnóstica do seu tempo observando que o homem-Jesus,
nascido duma Virgem e o mais sábio, mais puro e mais justo de todos os seres humanos,
foi escolhido para que, no momento do Baptismo, nele descesse o Espírito Crístico (o
Cristo, o Ungido) acompanhado pela Sophia («Sabedoria»), dando origem a Jesus-
Cristo que a partir desse momento passou a fazer milagres, a curar, etc. (Adversus
Haereses, I, 30, 12-13).

No Novo Testamento, essa «Sabedoria de Deus» (Theoû Sophia) é-nos apresentada por
Paulo do seguinte modo: «Sabedoria [gr. Sophia], com efeito, falamos entre os iniciados
[gr. teleiois]; não a sabedoria deste ciclo [gr. aiôn] nem dos príncipes deste ciclo
condenados a perecer. Mas falamos antes da Sabedoria de Deus em mistério [gr. Theoû
Sophia en mystêriô], a oculta, que Deus predestinou antes dos ciclos para glória nossa»
(1 Coríntios 2, 6-7). A associação do princípio feminino — Sophia — ao Mistério da
Iniciação é aqui acentuado por Paulo: quando ele usa o termo «mistério» não o faz no
sentido eclesiástico e distanciador que a Igreja cunhou mais tarde, como por exemplo o
«mistério» da Transubstanciação, mas no sentido de «mistérios iniciáticos» como era
corrente no tempo de Paulo.

Por fim, a própria Igreja de Roma acabou por identificar a Virgem Maria, «Mãe de
Deus», com a figura da Divina Sabedoria (Sophia), e, tal como na Cristologia
mainstream se descreve Jesus como uma «hipóstase» do Pai (um ente da mesma
substância), também na Teologia mariológica acabou por prevalecer o conceito de que
Maria tem a Sophia como sua «hipóstase».

56
X — O pólo feminino da nova religiosidade

A partir do momento em que Cristo nos ensinou que o Eu-Superior — o eterno Espírito
de todo o ser humano — é uno com o Pai, ou seja, idêntico à essência divina («Eu e o
Pai somos um» — João 10, 30) abriu várias portas das quais destaco duas, para
finalizar:

a) É possível a comunicação directa — ou melhor, comunhão — do Espírito de cada


homem e de cada mulher com o Grande Espírito de Deus, de cuja Luz somos centelhas,
e, por conseguinte, com O QUAL somos UM, tornando-se pois desnecessários
quaisquer agentes intermédios (sacerdotes, liturgias fechadas) que concorram para
promover essa comunhão;

b) A bipolaridade masculino/feminino é um fenómeno terrenal e transitório porque EM


CRISTO todos somo UM com o Pai, ou Grande Espírito Universal, e portanto a Grande
Deusa Virgem-Mãe está também em nós, naturalmente, além do Pai — seja ela
designada por Ísis, Deméter, Shekhinah ou Sophia… O que nos é confirmado pelo
Iniciado Paulo: «Porque todos sois filhos de Deus, em Cristo Jesus, por meio da fé.
Pois quantos fostes baptizados em [nome de] Cristo, de Cristo fostes revestidos. Já não
há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há macho nem fêmea: pois todos
vós sois UM em Cristo Jesus» (Gálatas 3, 26-28).

Vemos assim como diversas correntes — sírio-babilónica, egípcia, judaica, helénica,


cristã… —, prolongando-se pelos esoterismos medievais, renascentistas e
contemporâneos, confluem para desaguar na neo-religiosidade actual, cujo realce do
Eterno Feminino não é uma novidade nem um arranque dos «movimentos de
libertação» da mulher dos séculos XIX e XX, mas um ponto de chegada e uma súmula
do que os nossos ancestrais já sabiam, e que o racionalismo patriarcante dos séculos
intermédios obnubilou temporariamente.

A Nova Espiritualidade que emergiu mais visivelmente a partir sobretudo do


Romantismo — talvez como insurreição-resposta ao racionalismo Iluminista dos
séculos XVII e XVIII — diversificou-se por vários tipos de movimentos, nos quais é
possível detectar alguns elementos comuns, apesar da sua diversificação: druidismos
recuperados a partir do século XVIII, ocultismos dos séculos XIX e XX, paganismos
odínicos, seitas pentecostais, religiosidade da «New Age», neopaganismo…. Alguns
desses pontos comuns são, por exemplo, a indiferença perante as religiões
institucionalizadas e os seus «funcionários», as liturgias abertas (praticadas em locais
que vão desde garagens a bosques), o experimentalismo místico directo, além de um
duplo sentido holístico (Cosmos/Ser Humano, mulher/homem) que recorre com
frequência à expressão hermética «matrimónio alquímico», ou «bodas químicas», seja
entre as polaridades masculina e feminina, seja entre o Espírito e a Alma, seja entre a
Cosmogénese e a Antropogénese.

Mais modernamente assiste-se a uma transição entre as ideias um tanto vagas da «New
Age» para as práticas e os rituais concretos do neopaganismo, como por exemplo na
Wicca [do gaélico Wicca Craeft = Witchcraft = Feitiçaria], que podemos rotular como
um paganismo mais «vanguardista» e de bases mais latas, cujas preocupações
ecológicas (já presentes na «New Age») se traduzem numa «batalha pela Terra» em que

57
os valores femininos se corporizam na figura duma Grande Deusa e na Santidade da
Terra, devidamente acompanhadas por um Deus-Natureza de masculinidade imaculada.

Portanto, levando à conclusão lógica a simbiose perfeita que nos é revelada pela frase
«Eu e o Pai somos um», as nossas mais sagradas invocações, mediadas por nosso
Cristo Interno, deverão naturalmente abranger, em paralelo, não só o Pai do Céu, mas
igualmente, como nos ensinam os rituais de um recente Manual de Magia, a Grande
Mãe, Senhora da Arte, e a Grande Mãe, Senhora da Luz!

CHORUS MYSTICUS:

Tudo o que morre e passa


É símbolo somente;
O que se não atinge,
Aqui temos presente;
O mesmo indescritível
Se realiza aqui;
O feminino eterno
Atrai-nos para si.

(Goethe, Fausto)

Principais textos de apoio:

ANES, José Manuel, Re-Criações Herméticas, Hugin Editores, Lisboa 1996.

EHRMAN, Bart D., The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early
Christological Controversies on the Text of the New Testament (1993), Oxford
University Press, reed. New York 1996.

Encyclopaedia Judaica, eds.Cecil Roth & Geoffrey Wigoder, Keter Publishing House,
Jerusalem 1972.

GINZBURG, Carlo, História Nocturna: Uma Decifração do Sabat [Storia Notturna:


Una Decifrazione del Sabba, 1989], trad. Nilson Moulin Lousada, rev. Manuel Alberto,
Relñgio D‘Água, Lisboa 1995.

GOETHE, Johann W., Fausto, Trad. Agostinho d‘Ornellas (I Parte: 1867; II Parte:
1873), reed. Relñgio d‘Água, Lisboa 1987.

GRANT, Robert M. & TRACY, David, A Short History of the Interpetation of the
Bible, 2nd. ed. revised and enlarged, Fortress Press, USA 1984.

HANEGRAAFF, Wouter J., «La fin de l‘ésotérisme? Le mouvement du Nouvel Age et


la question du symbolisme religieux», in Symboles et Mythes dans les mouvements
initiatiques et ésotériques (XVIIe-XXe siècles): Filiations et emprunts, obra colectiva,
Archè-La Table d‘Émeraude, Neuilly-Seine 1999.

HEINDEL, Max, The Rosicrucian Cosmo-Conception (1909), The Rosicrucian


Fellowship, reed. Oceanside (CA) 1977.

58
HELINE, Corinne, New Age Bible Interpretation, 7 vols., New Age Bible & Philosophy
Center, Santa Monica 1938-1961.

JONES, Prudence, & PENNICK, Nigel, História da Europa Pagã [A History of Pagan
Europe, 1995], Pub. Europa-América, Mem Martins 1999.

LAMSA, George M., Idioms in the Bible Explained and A Key to the Original Gospels,
Harper & Row, San Francisco (CA) 1985.

MACK, Burton L., Who Wrote the New Testament? - The Making of the Christian
Myth, HarperCollins, San Francisco (CA) 1995.

McLEAN, Adam, The Triple Goddess: An Exploration of the Archetypal Feminine,


Phanes Press, Grand Rapids (Michigan) 1989.

MEDEIROS, José, Rituais Antigos para um Mundo Novo: Manual de Magia,


Pergaminho, Alcabideche 2002.

MONTERO, Santiago, Diosas y Adivinas: Mujer y Adivinación en la Roma Antigua,


Editorial Trotta, Madrid 1994.

MORUJÃO, Geraldo, «Exemplos de desenvolvimento deráxico no IV Evangelho em


torno dos dons de Jesus», in Didaskalia - Revista da Faculdade de Teologia de Lisboa,
vol. XX, fasc. 1, UCP, Lisboa 1990.

Pistis Sophia - Ouvrage gnostique traduit du copte en français (1895), trad. e introd. E.
Amélineau, Archè, Milano 1975.

SANTO, Moisés Espírito, Origens do Cristianismo Português - Precedido de ―A Deusa


Síria‖ de Luciano, ISER, UNL, Lisboa 1993.

SANTO, Moisés Espírito, A Religião na Mudança: A Nova Era, ISER, UNL, Lisboa
2002.

SZÉKELY, Edmond Bordeaux, The Essene Gospel of Peace (1937), Academy Books,
San Diego (CA) 1981.

The Text of the New Testament in Contemporary Research: Essays on the Status
Quaestionis, eds. Bart D. Ehrman & Michael W. Holmes, Wipf and Stock, Eugene (OR)
2001.

Western Esotericism and the Science of Religion, eds. Antoine Faivre & Wouter J.
Hanegraaff, Peeters, Leuven 1998.

59
A PALAVRA E O SILÊNCIO:
O ESOTERISMO DE CLARICE LISPECTOR

JÚLIO CÉSAR DE BITTENCOURT GOMES


Assim acontece com a minha palavra que sai de minha boca: ela não volta para mim
sem efeito, sem ter cumprido a missão para qual eu a mandei.
Isaías, 55:11

Sou uma iniciada sem seita.


Clarice Lispector, Água Viva

A maior ou menor capacidade de nomear o mundo define a maior ou menor


perplexidade e terror em relação ao mesmo. No momento em que as coisas são
nomeadas, rotuladas, deixam de ser assustadoras e passam a fazer parte do conhecido,
do familiar. O processo de apreensão do mundo pela palavra, contudo, tende a revestir a
realidade com uma opacidade embrutecedora que anestesia a nossa percepção e nos
induz a ver como óbvio, banal, algo que em sua essência é mágico e misterioso. Dentro
desse universo, onde a palavra deixou de habitar o mais íntimo da alma humana e
perdeu, para usar uma expressão de Guimarães Rosa, a sua condição de ―porta para o
infinito‖ (1), a literatura constitui um elemento de transcendência, um meio de quebrar
os condicionamentos limitadores do cotidiano e (re)instaurar o sentido ―místico‖ das
coisas. A palavra literária, então, é aquela que está mais próxima da palavra primordial,
do primeiro dia da criação, pois está plena da humildade e do cuidado daquilo que se
aproxima do mundo para melhor entendê-lo; não para neutralizá-lo. Estabelece-se,
assim, uma oposição entre a palavra que está por tocar algo que não ―entende‖, e a
palavra que já rotulou, ―entendeu‖, e remete o ―entendido‖ para o prosaico e o
esquecimento.

Através dessa concepção algo metafísica da palavra é possível ver conexões entre a
literatura e a tradição esotérica, uma vez que, como lembra Pierre Riffard, a maior parte
das cosmogonias ocultas são descritas em termos lingüísticos, seja atribuindo a Criação
a um Verbo criador, a um som primevo ou a uma língua primordial, seja expressando-se
através de uma linguagem ou escrita consideradas divinas (2). Não existe nenhum
esoterismo que não atribua um valor simbólico à palavra, que não busque a divinização
através do nome e de uma etimologia oculta. O processo iniciático, que se efetua pela
quebra do silêncio, através da atribuição de um nome místico ao neófito, encerra-se
sempre com a menção do Nome de Deus, com a recitação dos mitos e com a entoação
dos sons místicos, isto é, fazendo da palavra a ligação com o Cosmos.

Essa concepção esotérica da palavra encontra sua ramificação mais paradigmática na


doutrina religiosa, mística e ocultista denominada ―Doutrina do Nome‖, segundo a qual
o nome é a própria coisa e atribuir um nome equivale a conhecer, compreender,
dominar. Pragmática, a ―Doutrina do Nome‖, através do princípio da simetria,
pressupõe uma ―Prática do Nome‖, a qual se desdobra em planos adivinhatñrios (onde a

60
natureza de algo é passível de ser revelada a partir do valor das letras da palavra que o
designa); hermenêuticos (a arte combinatória de letras e números, por exemplo);
iniciáticos (onde é dado ao buscador os meios de conhecer de cor os textos sagrados e
os rituais tradicionais); e mesmo artísticos, onde a ―Prática do Nome‖ é feita através da
caligrafia, do desenho na areia, da eufonia e, uma vez mais, da literatura. Mas não
qualquer literatura; somente aquela que busca devolver à palavra o seu sentido original,
seu caráter iniciático e propiciatório, o qual induz o leitor a um estranhamento com o
mundo, com o que está (aparentemente) decodificado, e, assim fazendo, restabelece o
mistério das coisas e instaura o espanto do ser que se vê ―sendo‖.

Clarice Lispector parece ter essa concepção da literatura (e do mundo, uma vez que para
ela ambos estão intimamente ligados) e fazendo da palavra um meio de apreensão e
revelação do mundo, repete o processo da Criação: Clarice brinca de ser Deus. Dentro
dessa linha de pensamento, é possível estabelecer pontos de contato entre a atitude de
Clarice diante da linguagem e aquela dos místicos cabalistas, os quais concebem a
linguagem como o instrumento de Deus (3). Assim como Deus, para os cabalistas, não é
uma entidade perfeita e precisa constantemente da ação de suas criaturas para a sua
afirmação, bem como para a manutenção e aperfeiçoamento de sua obra, os personagens
clariceanos parecem intuir uma imperfeição, um desequilíbrio no mundo e em sua fúria
rotuladora buscam (re)instaurar a harmonia. No entanto, se a palavra é apaziguante (na
medida em que dá um estofo concreto ao mundo), o equilíbrio que ela proporciona é
precário e provisório, e a consciência dessa precariedade constitui o elemento
deflagrador da escrita de Clarice; escrita essa que tangencia sempre o limiar do
indizível, da não palavra, e que revela sempre a inquietude do sujeito que infere que a
realidade não é verbal e que o mundo contém algo que as palavras não conseguem
enunciar.

A percepção do caráter indizível do mundo e do fracasso da linguagem traz para o texto


de Clarice uma certa atmosfera angustiante, que não conta nem ao menos com o
artifício tranquilizador da ironia, uma vez que esta pressupõe uma compreensão prévia
de uma determinada situação, compreensão que parece ausente em Clarice, na medida
em que o predominante em seu texto é justamente o sentimento de perplexidade perante
as coisas. É como se ela estivesse permanentemente (re)descobrindo o mundo, daí o
estranhamento com as pessoas, com as coisas do mundo, com os objetos do cotidiano.

Essa perplexidade com as coisas, que é quase um não saber prosseguir (uma vez que
imobiliza o sujeito), reveste-se de um tom metafísico ao longo de toda a obra clariceana,
e mesmo em seus textos mais ―tradicionais‖, onde a estrutura dos gêneros não parece
tão ameaçada, Clarice aborda o mundo por um viés ―torto‖, esquivo, fazendo com que o
que é conhecido, óbvio, adquira um tom inaugural insuspeitado. No entanto, é
justamente nesse processo de nomeação quase abstrato, onde a linguagem chega a ―se
falar‖, que a palavra entra em crise e, por assim dizer, fracassa, pois para o fim que
Clarice se propõe as palavras, banalizadas pelo uso comum, já se mostram gastas a
priori. É necessário, então, inventar um novo léxico, o qual, paradoxalmente, só se torna
possível através do seu avesso, da não palavra, do silêncio.

Por esses dois caminhos contraditórios viaja Clarice. Mas, se são contraditórios, não são
excludentes, e por vezes quase chegam a se tocar, quanto mais não seja, pela afinidade
que ambos apresentam com o pensamento místico, pois se, por um lado, a via da
nomeação, o texto clariceano se aproxima da ―Doutrina do Nome‖, da cabala (mas

61
também da física quântica (4)), por outro, pela via do ―esvaziamento‖ da linguagem,
pela busca da apreensão do instante-já, ele se avizinha de algumas doutrinas orientais
como o Budismo e o Taoísmo, por exemplo, nos quais, como bem lembra George
Steiner, ―(...) imagina-se que a alma ascende dos grosseiros obstáculos da matéria,
através de domínios de percepção que podem ser transmitidos por linguagem sublime e
exata, rumo a um silêncio cada vez mais profundo (5).‖

O silêncio, em Clarice, tem tanto valor quanto a palavra e constitui, de certo modo, o
fim último e utópico de sua escrita, no entanto, ela sabe que se o silêncio é a expressão
máxima do indizível, é somente através da palavra que se chega a essa conclusão:

..........Eu tenho à medida que designo - e este é o esplendorde se ter uma


linguagem.Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar.
A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la
- e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não
conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu
esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com
as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só me poderá ser
dado através do fracasso da minha linguagem.
......Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu
(6).

Ao contrário do Budismo, contudo (e isso não contradiz o que eu disse antes), a matéria,
posta em foco pela palavra, não está reduzida, no mundo clariceano, a um ―grosseiro
obstáculo‖. Ao contrário, ela tem tanta carga de mistério quanto o ―espírito‖, e talvez
seja mesmo mais fantástica, na medida em que se constitui no mistério evidente e
palpável, enquanto que o espírito reside no reino do inefável, do abstrato. A consciência
disso faz com que o texto de Clarice interaja com as coisas, com os objetos, e deles faça
parte. Por essa razão, parece-me equivocada uma análise como a de Luis Costa Lima,
que vê na obra de Clarice uma desarticulação com a totalidade concreta (7). O que
ocorre é justamente o contrário: Clarice adere ao concreto, devolvendo às coisas toda a
sua carga de materialidade imperativa e onipresente e, nesse sentido, a fala da
personagem Ângela, em Um Sopro de Vida, revela-se como uma síntese da percepção
que Clarice tem do mundo:

.............Não posso ficar olhando demais um objeto senão ele me


deflagra.
.............Mais misteriosa do que a alma é a matéria. Mais enigmática que
o pensamento, é a ―coisa‖. A coisa que está às mãos milagrosamente
concreta.(8)

Como se vê, em Clarice Lispector o próprio ato de observação do objeto é uma


experiência mística, na medida em que é a partir do objeto que se constrói a consciência
dos personagens: o observador se observa através do objeto observado e assim atinge a
iluminação. Obviamente, essa experiência, que não é vivida pela maioria das pessoas,
necessita de uma mediação para que seja compreendida pelo leitor; mediação essa que
se dá pela palavra transformada, isto é, pela palavra despida das limitações impostas
pelos seus significados convencionados. De Clarice, então, se pode dizer o que George
Steiner diz de Mallarmé: ―(...) faz das palavras atos, não fundamentalmente de

62
comunicação, mas de iniciação a um mistério particular, (...) usa palavras correntes em
sentidos ocultos e enigmáticos; nós as reconhecemos, mas elas nos dão as costas (9).

Emblemático desse processo de apagamento dos sentidos atribuídos às palavras (e


também do processo de fusão com o objeto), o conto-ensaio O ovo e a galinha (10) se
constrñi a partir do jogo de linguagem estabelecido entre o objeto ―ovo‖ e a palavra
―ovo‖ que o nomeia, numa aproximação lúdica e simultânea da linguagem infantil se
esboçando, e da mais abstrata especulação filosófico-metafísica, na qual se busca
incessantemente, através da reiteração do nome, definir o objeto, sem que, no entanto,
se chegue a atingir essa meta, já que quanto mais se acumulam as definições, mais se
distancia a essência do objeto.

Paralelamente a essa fúria aproximativa do objeto (11), contudo, há a preocupação do


narrador em não entendê-lo, pois se o entender estará errando. A linguagem do conto,
então, não se propõe a elucidar o mistério do ovo; quer apenas mostrar que é mistério, e
o que se delineava como um processo de apreensão do objeto, no início do texto, no
final revela-se como o desapego supremo, ―pois o ovo é um esquivo‖, e somente
quando deixado livre, ―impensado‖, é que pode se revelar em sua verdadeira essência.

O círculo que leva da palavra ao silêncio, e deste novamente para a palavra, encontra
nesse conto um ponto de equilíbrio, como se ambos, palavra e silêncio, cada um em um
―momento‖ da circunferência, em um dado momento ―escorregassem‖ para um mesmo
ponto do círculo, finalmente se encontrando. Nesse sentido, esboça-se, aqui, um
processo de aproximação da música, através do artifício do contraponto, o qual atingirá
o paroxismo em Água Viva, onde se evidenciam, explicitamente, aqueles traços típicos
da escrita de Clarice que já estavam presentes em toda a sua obra anterior mas que aqui
aparecem despidos de toda amarra de gênero ou paradigma que limite o sentido: a
recusa da narrativa e a busca do silêncio, o qual, se mais do que inapreensível, é
incomunicável, ao menos é passível de ser ―tocado‖ através da aproximação daquilo
com que mais se parece: a matéria viva, representada em suas formas mais reduzidas e
absolutas, como a medusa, a água-viva. O orgânico-primordial, então, confunde-se com
o Absoluto, com o espiritual, e sob esse prisma, o elemento ―água‖, presente ao longo
do texto, longe de se constituir unicamente num sentido químico, agrega a si o sentido a
ele atribuído pelos antigos alquimistas: água como ―um princípio de fluidez, fertilidade;
umidade ao mesmo tempo mñrbida e geradora‖ (12), elemento, enfim, mais sutil que a
matéria e a linguagem, pois pode elevar-se como vapor e depositar-se como orvalho;
água como elo entre o transcendente, o silêncio; e o concreto, a palavra.

Essa fluidez de água, da qual o texto busca se aproximar, é também a fluidez polifônica
de uma peça musical, pois em Água Viva os temas nascem e se repetem num jogo de
variações e fuga análogo ao da música. Assim como a música nada mais é do que uma
moldura para o silêncio, uma maneira de tornar perceptível a ausência do som, o texto
de Água Viva é um longo adágio, um andamento lento e contínuo para além das
fronteiras da palavra:

.............Que música belíssima ouço no profundo de mim. É feita de


traços geométricos se entrecruzando no ar. É música de câmara. Música
de câmara é sem melodia. É modo de expressar o silêncio. (13)

63
Sob o aspecto da palavra como um meio de expressão do silêncio, Água Viva talvez
seja o texto mais perfeito de Clarice Lispector, pois ao mesmo tempo em que constitui o
auge do paradoxo que funda sua escrita (só através da palavra é que o silêncio pode ser
dito), também é o momento de resolução do paradoxo, através da abdicação do desejo
de relatar o mundo. O mundo, então, com tudo o que ele contém, passa a ser,
simplesmente, sem explicações:

.............É-se. Sou-me. Tu te és. (14)

Oposto à idéia de narrativa, de história por contar, esse minimalismo conceitual põe a
nu toda o estranhamento e a singularidade do texto de Clarice Lispector, o qual
extrapola a condição do meramente literário para atingir o status de metafísica,
cosmogonia oculta. Nesse sentido, criando uma obra que postula seus próprios
conceitos e inventa seus próprios paradigmas, Clarice Lispector se coloca,
conscientemente, à margem de toda e qualquer tradição literária (15), e se inscreve na
estirpe dos antigos alquimistas, que viam na matéria o pretexto para atingir o infinito.

__________

1 Rosa usa essa expressão em entrevista concedida a Günter Lorenz, em 1965, e


reproduzida no 1º volume de sua Ficção Completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar,
1994, p.47.

2 Cf RIFFARD, Pierre. Dicionário do Esoterismo. Lisboa, Teorema, 1993. Ver,


principalmente, a parte introdutória, pp.13-14.

3 Cf. BALBUENA, Monique. Poe e Rosa à Luz da Cabala. Rio de Janeiro, Imago,
1994, p.175.

4 Conforme a física quântica, o simples ato de observar as partículas subatômicas afeta


a estrutura das mesmas, de modo que as propriedades de qualquer objeto só podem ser
entendidas nos termos da interação com o observador. Cf. CAPRA, Fritjof. The Tao of
Physics. Wildwood House, 1975, p.71.

5 STEINER, George. O repúdio à palavra. In:__. Linguagem e Silêncio. São Paulo,


Cia das Letras, 1988, p.30.

6 LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H.. Rio de Janeiro, Francisco Alves,


1990, p.180.

7 Apud SÁ, Olga. A Escritura de Clarice Lispector. Petrópolis, Vozes, 1993, p.71.

8 LISPECTOR, Clarice. Um Sopro de Vida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988,


p.101.

9 STEINER, George. Op. Cit. p.46.

10 LISPECTOR, Clarice. O ovo e a galinha. In:__. Felicidade Clandestina. Rio de


Janeiro, Francisco Alves, 1991, pp.56-57. Esse conto foi lido por Clarice num

64
Congresso de Bruxaria, em Bogotá, o que demonstra o quanto o místico, o mágico,
esteve presente em sua vida. Cf. SÁ, Olga. Op. Cit. p.214.

11 Essa fúria aproximativa do objeto encontra um paralelo na linguagem matemática,


especialmente no cálculo infinitesimal, que é um sistema de abordagem das grandezas
incomensuráveis, dos problemas matemáticos que não admitem soluções inteiras.

12 Cf. a introdução ao Livro das Figuras Hieroglíficas, de Nicolas Flamel, alquimista


francês do século XIV. Rio de Janeiro, Editora Três, 1984, p.22.

13 LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de janeiro, Francisco Alves, 1993, p.52.

14 Idem, ibidem. P.33.

15 Um exemplo da pouca importância que Clarice dava à inserção de sua obra em


alguma tradição literária é a seguinte declaração, feita durante uma entrevista: ―Já ouvi
me dizerem, para agradar: ―Você faz parte da literatura brasileira‖. Mas que inferno, e
eu lá desejo entrar em alguma literatura do mundo?‖ Apud SÁ, Olga. Op. Cit. p.344.

________________________
Júlio César de Bittencourt Gomes. Professor de literatura, pesquisador na área de
literatura e cinema, coolaborador de "Teorema" - revista de cinema -, doutor em
literatura brasileira pela Ufrgs (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), com a tese
Imagens, Esquinas e Confluências: um roteiro cinematográfico baseado no
romance "O quieto animal da esquina", de João Gilberto Noll.

65
LE REBIS...
DE GÉRARD DE NERVAL À RAYMOND ROUSSEL

RICHARD KHAITZINE

«…pastimes are past times…»


(les divertissements appartiennent au passé)
James Joyce in Finnegans Wakes

Le délicat poète que fut Gérard Labrunie, dit de Nerval, se doublait d‘un érudit et il
n‘ignorait rien de l‘hermétisme, ainsi que l‘atteste sa dernière œuvre, intitulée La
Pandora. Malheureusement, cet aspect de son étrange génie est méconnu des critiques
universitaires français qui se repaissent de la lettre des textes jusqu‘à l‘indigestion. J‘ai
eu la chance de connaître, peu de temps avant qu‘il ne décède, le plus subtil des
exégètes de l‘auteur des Filles du feu. Il s‘appelait Roger Mazelier. Le dernier livre de
Roger Mazelier, Gérard de Nerval et l‘humour divin, fut publié, en 1995, aux éditions
Les 3 R. Par ce travail, je souhaite lui rendre hommage.

Ainsi que l‘écrivait mon regretté ami : «L‘écriture de Nerval est plus invisible que celle
de Joyce et par le même procédé porté à sa perfection sous les mots indigestes.» Nerval,
lui-même, avoua que le secret de son écriture résidait dans le calembour. Du procédé de
Nerval à celui de Raymond Roussel, comme des paroles gelées de Rabelais aux mots de
groseilles de Léon-Paul Fargue, l‘ami d‘Alfred Jarry, il n‘y a que peu de distance… à
peine celle couverte en déplacement instantané par un oiseau, dont on sait qu‘il fut
toujours pris pour emblème de l‘esprit. Aussi peut-on, sans crainte de se tromper,
remplacer le volatil par la substance volatile, autrement dit l‘ Esprit par le Mercure des
textes alchimiques.

Des trois vers célèbres qui suivent:

«Des sçavants que j’ai mangés!


Je ne pourrai jamais les digérer
hein-je dis-j’erre-hierro!
V.H »

Jean Richer rappelait que hierro était le mot de passe des «Jeunes-France» lors de la
bataille d‘Hernani et que V.H. sont les initiales de Victor Hugo. C‘était oublier que
Nerval poussait le raffinement, suprême distinction du lettré, jusqu‘à l‘emploi usuel de
la paralipse, de l‘omission (paraleipsis), figure de réthorique qui a pour but de fixer
l‘attention sur un objet que l‘on feint de négliger. L‘un de ces savants que Nerval
semble avoir «mangé» avec délices et mal digéré se nommait Apollonius Dyscole (celui
qui a mal digéré). Il s‘agit d‘un gnostique, peu connu, du IIe siècle Alexandrin, terrain

66
de chasse favori de Gérard. Que Nerval ait réussi à extraire «errer» de «digérer» sans
avoir recours à l‘étymologie, par simple réfraction syllabique sélective, est une
acrobatie manipulatrice dont on trouve peu d‘exemples, même dans les meilleurs textes
hermétiques. Il appartient entièrement à Roger Mazelier d‘avoir jeté quelque lueur sur
les trois vers sus-mentionnés: «La lettre R était le monogramme de l‘hérésie au Moyen
Âge, erre, hommage à son professeur d‘Alexandrie qu‘il réitère avec la mention hierro,
qui n‘a rien à voir avec le fer mais avec le faire. Le calembour phonétique évacue le
nominatif et lui substitue sans aucun changement de son, le verbe errar : être dans
l‘erreur, à la première personne de l‘indicatif singulier : y erro, et j‘erre, de sorte que les
lettres V.H. ont peu de chance de se rapporter à Victor Hugo. Nous proposons, dans ce
climat tendu et trouble, plein de simulation et de simulacre : V pour Vale, H pour
Haereticus: Vale haeretice, salut hérétique; il devait bien ça à son didaskalos.»

Et Gérard de Nerval illustra ce thème de l‘errance, aussi bien dans sa vie que dans son
œuvre. Dans Aurélia, au chapitre II, il écrit: «Cette nuit-là je fis un rêve qui me
confirma dans ma pensée. - j‘errais dans un vaste édifice…» Au chapitre V, il récidive:
«Je me vis errant dans les rues d‘une cité très populeuse et inconnue.» Ici, Nerval s‘est
amusé du vieux calembour, qu‘autorise le français, en usant de la même traduction des
verbes errare et iterare, errer sur les routes ou dans la foi. Ce calembour, les gnostiques
en ont usé et abusé. La gnose, on le sait, emprunta son vocabulaire à Platon. Ce dernier,
dans Gorgias, émet la pensée, qu‘il reprendra dans Cratyle, que la vie est peut-être une
mort, que le corps est un tombeau, que l‘existence est une chute. Dans Phédon (l‘étude
de l‘âme sur l‘âme), Platon peint l‘âme dans la vie, «gisant sous des montagnes de
maux» et plus avant: «qu‘à la mort, l‘âme cesse d‘errer (…) Le corps trouble l‘âme, il
est cause qu‘elle erre, qu‘elle est troublée, qu‘elle a le vertige comme si elle était ivre.»

Les lecteurs de Fulcanelli connaissent, naturellement, les lignes que l‘Alchimiste


français consacra, en un obscur discours, à l‘étrange inscription qui peut se voir au sein
de l‘hôtel de Jean Lallemant à Bourges:

RERE
RER

Cette curieuse inscription, placée sous la mérelle de Saint-Jacques, est flanquée de trois
grenades ignées. Chez les anciens, le Chemin de Saint-Jacques, était symbolique. Il
représente la Voie Lactée, lieu de passage des âmes du monde terrestre au monde divin.
Le sage Salloustios, qui refusa la succession de l‘Empereur Julien, considère la voie
lactée comme «la limite supérieure de la matière sujette au changement». Quant au nom
de Compostelle, il ne peut être compris que par le calembour campus-compos (qui a de
bons sens)». Cette étoile - stella (1) - vers laquelle se dirige le pèlerin, c‘est la serena
stella d‘Ovide, l‘Étoile qui jette un vif éclat, c‘est le Soleil. Elle deviendra, sous la
plume de Gérard de Nerval, dans El Desdichado (2), «Ma seule Étoile est morte». Nous
aurions tort de croire qu‘il s‘agit d‘un astre banal; il s‘agit d‘une Étoile unique, la stella
Serena, le Soleil-Dieu ou son parèdre, Sophia, le souffle divin.

Selon Fulcanelli, l‘inscription de la crédence de Bourges doit se lire en résumé:

- RE signifie «une chose»

- R moitié de RE signifie moitié de chose

67
- RERE équivaut à REBIS

Roger Mazelier, précise: «On peut clarifier la chose en ordonnant l‘inscription sur un
plan horizontal; nous obtenons:

RERERERRERER… où l‘on peu lire, au choix: RERE ou ERRER

RERE: raser, effacer, dépouiller, maltraiter, n‘était plus usité au XVe siècle, alors qu‘il
était courant sous la plume de Chrétien de Troyes: Cist m‘ont si pres rese et tondue.

Jean Lallemant nous conseille d‘effacer RERE, terminaison de inquirere pour trouver
ERRER. La duplication de la lettre R est une faute constante chez Nerval (…) on trouve
bièrre en place de bière, deux fois R ou R bis.

Le quatrième quatrain d‘ Artémis commence par cette faute d‘orthographe surprenante:

Aimez qui vous aima du berceau dans la bierre

Il paraît que Nerval devait la corriger. Or Jean Richer a reproduit la photographie du


manuscrit d‘ Artémis, appelé manuscrit Éluard, dans Expérience et Création. Le sonnet
est calligraphié, l‘écriture, d‘une application extrême, ne laisse supposer aucune
hésitation de la plume; le R malheureux garde son pouvoir tragique d‘évocation.».

Nerval barra tout un paragraphe de la première version d‘Aurélia, mais dans le


manuscrit, retrouvé par Jean Richer, on peut lire:

«Tout me favorisait désormais; je sortis dans la journée et j‘allai revoir mon père. Puis
je me dirigeai vers le ministère de l‘intérieur où j‘avais à voir plusieurs amis. J‘entrai
chez le directeur des Beaux-arts et je m‘y arrêtai longtemps à contempler une carte de
France: Où pensez-vous, me dit-il, que doive être la capitale? Car Paris est situé trop au
Nord.

Mon doigt s‘arêta sur Bourges. Il me dit: Vous avez raison.»

Cette conversation de Nerval avec Auguste Cavé est totalement illusoire. Il «pointe son
doigt» sur Bourges. Dans les gravures du Moyen Âge, désigner avec l‘index (indicare)
un personnage ou un objet remarquable, servait à attirer l‘attention dessus. Outre que
Nerval joua sur l‘anagramme Bourges et bougres (nom des cathares, considérés par
Rome comme des hérétiques), il ne pouvait ignorer l‘existence de l‘hôtel Lallemant et
de sa curieuse crédence.

Le R Cistercien

La plus ancienne représentation du R hérétique se peut voir dans une splendide


miniature cistercienne contemporaine de Guillaume IX de Poitiers, reproduite par
l‘Enluminure Française. La lettre R y est formée de deux dragons combattus par un
noble personnage armé d‘une épée, et juché, curieusement, sur un guerrier plus petit qui
perce le ventre du dragon inférieur d‘un coup de lance. Le champion à l‘épée paraît être
Saint Grégoire en personne, puisque la légende proclame: «SERVUS SERVORV DI
(Servus servorum Dei), serviteur des serviteurs de Dieu, titre réservé au souverain

68
pontife. Ce serviteur, c‘est celui que les traités hermétiques qualifient de «loyal
serviteur», celui qui ouvre la matière élue ou dragon. À ce sujet, ouvrons une courte
parenthèse.

Jules Verne le mit en scène, astucieusement, sous le nom de Passepartout, valet de


Philéas Fogg, dans le Tour du Monde en quatre-vingts jours. Quant au Rebis, la chose
double, c‘est-à-dire composée d‘une part fixe et d‘une part volatile, nous en trouvons
une amusante illustration allégorique dans un héros vernien qui quitte la terre où il s‘est
fixé afin de voler dans un curieux aéronef, baptisé l‘Albatros. Mes amis lecteurs auront
reconnu Robur, dont le nom latin évoque le chêne cher aux Alchimistes. Ils auront,
également, remarqué que Robur, mot comportant deux fois la lettre R, est propice à
suggérer le R bis! Cette parenthèse étant refermée, nous pouvons en revevenir au R
Cistercien.

Souvent, les enlumineurs traçaient ce R en lui conférant une évidente minceur laquelle
suggérait l‘inévitable calembour entre R étique et hérétique. Les lettres de l‘alphabet
considérées comme puissances hiéroglyphiques de la forme ou du son, qui éveillent un
écho dans une langue aux prises avec une pensée, peuvent se déceler pour la première
fois dans le Cratyle, encore que, déjà dans Homère et Hésiode, des étymologies
recherchées révèlent leur appropriation au mythe. Dans Mimétiques, Gérard Génette
mentionne de la mimema phôné, l‘imitation du sens par le son, comme d‘un hasard de
rencontre alors que, dans la volonté systématique de ce rapprochement c‘est le son -
parfois la forme -, qui met l‘écouteur sur la voie. Cet enseignement, Nerval le
perfectionna, au grand dépit des lecteurs superficiels et pour le plus grand plaisir des
plus lettrés. Cette constatation évoque inéluctablement, pour moi, ces quelques lignes
d‘un autre très grand poète, hélas disparu: Léo Ferré, qui écrivit : «Quand j‘emprunte
des paradoxes, je les rends au centuple, j‘enrichis ainsi mes prêteurs qui deviennent plus
intelligents. Le taux usuraire de l‘astuce n‘est jamais trop élevé!» Cette citation de Léo
Ferré me permet de faire la transition avec un poète qu‘il a chanté: Rutebeuf.

Du pauvre Rutebeuf aux hérétiques

Dans la traduction de Rutebeuf de Jean Dufournet, l‘Alphabet par Équivoques, décrit le


O toujours rond tel que Platon l‘a naturellement défini; il se rapporte au corps qui
contient le trésor de l‘âme. Les autres lettres subissent la qualification de leur insertion
phonique dans la langue. La lettre M qui se prononçait âme représentait la psyché; E, la
plainte: Eh! Malheureusement le feuillet qui devait gloser l‘R est perdu. Toutefois,
Pierre Champion - fils d‘Honoré Champion qui recevait dans sa librairie le jeune
Anatole France et chez qui Jean Schemit, futur éditeur des Fulcanelli, apprit son métier -
au tome II de son François Villon, donne l‘interprétation de Huon le Roi de Cambrai:

R est une lettre qui graigne


De félonie adès engraigne
Sans R ne puet on nomer
Riche mauvais ne renomer
La mauvaiseté de son vil los
Et aultres ciens vient pour prendre
Sans R ne le peut défendre.

69
Roger Mazelier observa: «La vue du R fait grigner (montrer les dents de fureur) ce qui
nous fera entendre beaucoup de grigneurs des textes romans. Cîteaux peut être
considéré comme le fer de lance contre l‘hérésie avant l‘apparition des dominicains. Les
grands bûchers, au lendemain de l‘an mille, Orléans (1022) et Charroux (1028) furent
allumés à l‘initiative cistercienne.»

Raymond de Cornet, fut l‘auteur d‘une œuvre remplie de plaisanteries (truffes) et de


jeux de mots. Il naquit à Saint-Antonin en Rouergue. Il est important de le rappeler car,
cent ans auparavant le seigneur poète de cette ville, Jordan, capturé au combat par
Simon de MOntfort, finit ses jours misérables au mur de Carcassonne. Raymond,
d‘abord recteur, devint béguin de Saint-François. Lors du schisme franciscain, les
spirituels contre les conventuels, il adopta la doctrine de Pierre-Jean Olive qui assimilait
l‘Église Romaine à Babylone, la Grande Prostituée, et échappa de peu au bûcher en
février 1326, en Avignon. Les franciscains conventuels firent brûler cent quatorze frères
spirituels. Raymond de Cornet fut l‘auteur d‘une longue canso, intitulée: le ditz frayre
R. Dans le même temps, au milieu du XIVe siècle, l‘Archiprêtre de Hita, usant d‘une
double langue étincelante, et sous le masque d‘une gaudriole amoureuse avec une
boulangère, panadera, nommée Cruz, investit son texte de prodigieux calembours, de
tropes, en particuliers de la plus remarquable synecdoque jamais recueillie au sein d‘un
vers qui a laissé les critiques dans la plus grande perplexité :

Cruz crusada panadera

Il s‘agit d‘une croix croisée, de feutre (pana) et qui adhère (au vêtement), signe
infâmant cousu sur le dos des hérétiques et dont le talent de Goya nous a laissé plusieurs
croquis. El Libro de Buen Amor, l‘Amour du Bien, proclame dans son titre premier, en
lettres majuscules : ESTA ES ORACION QUE EL ACIPRESTE FIZO A DIOS
QUANDO COMENCO ESTE LIBRO SUYO, alors que le mot ARCIPRESTE est
constamment transcrit avec son R recouvré partout ailleurs.

La rhétorique appellera rhotacisme (rhôtacismos, nom de la lettre R), soit l‘emploi


fréquent de cette lettre soit sa substitution à une autre, soit encore son défaut inattendu.
Virgile, dans le seul souci d‘allitération poétique, imite par la répétition de la lettre R le
bruit du râteau que le jardinier passe sur le sol:

Ergo oegre restris terram rimantur.

Mais s‘agit-il, seulement d‘une allitération poétique? La vérité oblige à dire que ce n‘est
pas le cas. Quand on sait que les Alchimistes se qualifiaient fréquemment de jardiniers,
de laboureurs, etc… ce bruit de râteau semble bien suspect. Quant à Virgile, j‘ai
démontré, ailleurs, que son Énéide est une allégorie hermétique (3). Enfin, il me faut
encore signaler le texte de François Villon, intitulé La Ballade qui se termine tout par R.
Ce texte en contient une avalanche, on en relève vingt-huit, mais pas un qui laisse filtrer
le mot hérésie. Le pays des R, suggéré par Villon, c‘est le pays d‘Oc dont la langue,
affirmait le pape Honorius III, était la «langue de l‘hérésie»; et le pseudo-Villon conta la
plus cruelle et la plus longue des guerres qui, au XIIIe siècle, donna naissance à la
nation française (4).

70
Raymond Roussel et le Rebis

Le Rebis revient à maintes reprises au sein de l‘œuvre de celui qui fut l‘élève et, sans
doute, l‘ami de Fulcanelli. À n‘en pas douter, Roussel dut jubiler en constatant que ses
initiales R-R étaient identiques à celles de la plus luxueuse des voitures… la Rolls-
Royce. Il est probable, également, qu‘il s‘était amusé de ce R doublé ou R-bis. Puisque
j‘évoque Raymond Roussel, il n‘est peut-être pas inutile de révéler un détail ayant
échappé aux critiques littéraires. Ainsi qu‘en font foi ses papiers personnels, légués à la
Bibliothèque Nationale, le personnage central de Locus solus (1913), lors d‘un premier
jet, n‘était pas nommé Canterel. Raymond Roussel l‘avait appelé Boudet. Ce Boudet,
s‘il n‘a pas attiré l‘attention des gens de lettres, se montre très évocateur pour les
amateurs de «petite histoire».

À la fin du XIXe siècle, puis au début du XXe, les projecteurs de l‘actualité se fixèrent
sur une modeste localité, sise dans le sud-ouest de la France, dans le département de
l‘Aude: Rennes-le-Château. Modeste village, situé sur un piton rocheux, à une altitude
de 600 mètres, Rennes-le-Château se retrouva au cœur d‘une étrange affaire. Pour ceux
qui seraient néophytes en la matière, je vais en résumer l‘essentiel. Un jeune prêtre,
massif, fougueux et au sang chaud y fut nommé curé desservant. Son nom? Bérenger
Saunière. L‘église est dans un état lamentable. Il entreprend des travaux de rénovation.
En déplaçant l‘un des piliers de l‘autel et, après l‘avoir reversé, le curé trouve quelque
chose. Il rejette la décoration de l‘église à l‘extérieur et refait celle de l‘intérieur. À
dater de cette découverte, Saunière va se livrer à des agissements qui suscitent le
scandale. Il chamboule les pierres tombales du cimetière voisin, en gratte les
inscriptions. Ajoutez à cela le fait que ce jeune curé, au tempérament sanguin, vit sous
le même toit que sa servante, une toute jeune fille. Les langues vont bon train. Du jour
au lendemain, Saunière mène une vie fastueuse, dépensant sans compter. Il se fait
construire une villa bourgeoise, une tour néo-gothique qui lui sert de bibliothèque. Il
achète des livres rares, richement reliés. Il créé un mini zoo, une serre, fait ériger un mur
d‘enceinte. Il fait construire des routes et amener l‘eau et l‘électricité dans le village. Il
rénove l‘église, y ajoutant une décoration outrageusement saint-sulpicienne, laquelle
côtoye des symboles maçonniques et rosicruciens. Que penser de la présence de deux
enfants-Jésus dans l‘église, l‘un dans les bras de Joseph et l‘autre tenu par Marie?
Comment mieux évoquer le rebis ? Saunière reçoit chez lui des célébrités parisiennes.
On évoque les visites, notamment, de la cantatrice Emma Calvé et du Député radical-
socialiste Dujardin-Beaumetz. Curieusement, la hiérarchie de Saunière fait la sourde
oreille quant aux frasques de l‘abbé. Mieux, Monseigneur de Bonnechose semble le
couvrir. Son successeur, Monseigneur Billard, fera de même. Il faudra attendre que les
deux prélats décèdent pour que le curé de Rennes-le-Château soit confronté à quelques
problèmes. Sommé de s‘expliquer sur la provenance des fonds qu‘il dilapide, Saunière
se tait. On l‘accuse de trafic de messes. Il est suspendu. Finalement, sa cure lui est
restituée et les poursuites abandonnées. La rumeur fait état de dépenses pharaoniques,
de l‘ordre de plusieurs milliards de francs. À ce jour le mystère demeure entier et
alimente la « soupe littéraire » servie par des auteurs, souvent plus mal inspirés, que
bien informés. Ainsi, régulièrement, évoque-t-on un trésor Templier, voir Cathare (sic!),
ou wisigoth, quand il ne s‘agit pas de faire appel à un fantômatique Prieuré de Sion et à
une descendance du Christ, dont on voit mal comment il aurait pu l‘engendrer en sa
qualité de fiction littéraire et d‘allégorie hermétique. À moins, bien sûr de vouloir se

71
montrer plus papiste que le Pape, en feignant d‘ignorer la lettre adressée par Léon X-fils
de Laurent de Médicis dit Le Magnifique, à son ami l‘érudit cardinal Bembo: «Combien
cette fable du Christ nous est-elle profitable…».

En revanche, les faits attestés sont les suivants. La meilleure amie d‘Emma Calvé fut la
comédienne Georgette Leblanc, sœur de Maurice, l‘illustre romancier auteur du cycle
consacré à Arsène Lupin et dont j‘ai démontré, par ailleurs (5), que les aventures
recelaient en lecteure infra-textuelle des allusions répétées aux deux livres écrits par
Fulcanelli. En outre, Leblanc, dans La Comtesse de Cagliostro, fit figurer un prélat du
nom de Mgr de Bonnechose! Ce même Monseigneur de Bonnechose, évêque de
Carcassonne et supérieur de l‘abbé Saunière, avait été nommé archevêque de Rouen où
il baptisa et confirma le jeune…Maurice Leblanc. Quant à Mgr Félix Arsène Billard, sa
personnalité mérite que je lui consacre quelques lignes. Selon l‘usage ancien, son
prénom usuel était Arsène. À sa mort, il fut enterré en la Cathédrale de Carcassonne,
laquelle contient les relique d‘un saint douteux: Lupin. Ainsi, Arsène repose-t-il à côté
de Lupin. À signaler que les deux ecclésiastiques, sus-mentionnés furent de curieux
personnages. De Bonnechose n‘alla-t-il faire ses dévotions, à Carcassonne, à Saint
Hermès?

Enfin, je me dois de signaler que René Renoult, le beau-frère de Maurice Leblanc, fut
député socialiste et Ministre de l‘Intérieur et des Cultes. À ce titre, il est peu probable
que l‘affaire de Rennes-le-Château lui ait été étrangère. Renoult, était Franc-Maçon,
Chevalier Rose-Croix. Membre du Grand Orient de France, il ne put ignorer un autre
frère, déjà mentionné: Dujardin-Beaumetz!

Si l‘abbé Saunière fut un étrange curé, il eut un rival en la personne de l‘original curé de
Rennes-les-Bains, village distant de 7 kilomètres de Rennes-le-Château.

L’abbé Boudet et le cromleck de Rennes-les-Bains

Boudet était un érudit, lisant et parlant plusieurs langues, y compris les langues mortes.
Il publia un ouvrage hilarant qui déclencha la fureur des érudits locaux, lesquels
n‘étaient que peu sensibles à son sens de l‘humour. Outre que son ouvrage titré: La
vraie langue celtique et le cromleck de Rennes-les-Bains, prétendait de façon absurde
que le celte dérivait de l‘anglais, il s‘étendait longuement sur un cromleck que l‘on
aurait bien du mal à trouver sur le terrain. Essayons de comprendre ce que voulait nous
enseigner l‘abbé Henri Boudet.

Il est extrêmement amusant de noter qu‘un Cromlech, étant un cercle de pierres, il se


doit de posséder une surface. Or chacun sait que la surface d‘un cercle se calcule à
l‘aide de la formule mathématique Pi R², que la cabale phonétique incite à lire et à
entendre 2 Pi R ou deux Pierres. Pour tout étudiant des ouvrages ayant trait à
l‘Alchimie, cette mention est fortement évocatrice des deux magistères permettant la
transmutation des métaux, soit en argent, soit en or ce qui, rappelons-le, n‘est
qu‘accessoire. Le but ultime reste l‘obtention des deux Pierres, encore appelées
médecines. La première, est l‘Élixir ou or potable, la seconde est la Pierre Philosophale,
proprement dite, encore nommée Absolu ou Médecine Universelle. Il existe une
troisième pierre, obtenue avant celles qui viennent d‘être évoquées: Le Soufre
Philosophique, absolument nécessaire afin de les réaliser.

72
Comment mieux évoquer les 2 pierres des Philosophes qu‘en en «travaillant» deux
autres, tangibles et bien physiques celles-là? C‘est ce que fit Saunière en effaçant les
inscriptions de la stèle ayant appartenu à la tombe de la marquise de Nègre d‘Ables,
puis celles de la dalle trouvée à Coume-Sourde. Notons, également, que Pi R² ou 2 Pi R
est un équivalent surprenant de R bis, autrement dit le Rebis des alchimistes, l‘union du
«mâle et de la femelle», le dissolvant et le corps dissoluble, ou encore, dans l‘Oeuvre au
Blanc, le Mercure animé de son Soufre, ces deux choses étant issues de la même racine.

Enfin, et contre toute vraisemblance, Boudet voulut qu‘il existât deux Cromlech. Ce ne
fut que par nécessité. Il fallait impérativement qu‘il y ait deux aires ou aires bis afin
d‘évoquer ce Rebis. Mais pourquoi Saunière éprouva-t-il le besoin de démolir l‘église et
d‘en rejeter les éléments à l‘extérieur? Il est probable, qu‘en ce domaine, aussi, il
obéïssait à des impératifs dictés par l‘abbé Boudet. Après avoir défait leur matière
première, mis le chaos, ils organisèrent ce chaos; la formule est bien connue de ceux
ayant ouvert des ouvrages consacrés à l‘Alchimie. Tout comme Roussel le fit, lors de la
rédaction de son stupéfiant livre Les Nouvelles Impressions d‘Afrique (6), les deux
prêtres illustrèrent l‘axiome de base de l‘art hermétique: Solve-Coagula: «Dissous et
coagule». En l‘occurence, il s‘agit de dissoudre le corps et de coaguler l‘Esprit.

Pour en terminer avec ce sujet, je signale que Gaston Leroux, de son côté, évoque très
nettement l‘abbé Saunière, au sein de l‘un de ses romans les moins connus. Je renvoie
mes lecteurs à La Mansarde d‘Or, non sans préciser qu‘une mansarde constitue
l‘attique d‘un immeuble. Il s‘agit d‘un clin-d‘œil humoristique de Gaston Leroux en
direction du sel attique (7) dont les auteurs grecs assaisonnaient leurs œuvres littéraires.
Le sel, qualifié d‘attique, était un synonyme de fine plaisanterie. Et en matière de
plaisanterie, l‘abbé Boudet s‘y entendit.

Confidences de Fulcanelli concernant le rebis

Analysant le caisson 9 de la 7e série du château de Dampierre:


Quatre cornes d‘où s‘échappent des flammes, avec la devise:

.FRVSTRA.

Fulcanelli commente :

«Vainement. C‘est la traduction lapidaire des quatre feux de notre coction. Les auteurs
qui en ont parlé nous les décrivent comme autant de degrés différents et proportionnés
du feu élémentaire agissant, au sein de l‘Athanor, sur le rebis philosophal. Du moins
est-ce là le sens suggéré aux débutants, et que ceux-ci s‘empressent, sans trop de
réflexion, de mettre en pratique.

Pourtant, les philosophes certifient eux-mêmes qu‘ils ne parlent jamais plus


obscurément que lorsqu‘ils paraissent s‘exprimer avec précision; aussi, leur clarté
apparente abuse-t-elle ceux qui se laissent séduire par le sens littéral, et ne cherchent
point à s‘assurer s‘il concorde ou non avec l‘observation, la raison et la possibilité de
nature. C‘est pourquoi nous devons prévenir les artistes qui tenteront de réaliser l‘œuvre
selon ce processus, c‘est-à-dire en soumettant l‘amalgame philosophique aux
températures croissantes des quatre régimes du feu, qu‘ils seront infailliblement
victimes de leur ignorance et frustrés du résultat escompté. Qu‘ils cherchent tout

73
d‘abord à découvrir ce que les Anciens entendaient par l‘expression imagée du feu, et
celle des quatre degrés successifs de son intensité. Car il ne s‘agit point en ce lieu du
feu des cuisines, de nos cheminées ou des hauts fourneaux.»

Fulcanelli rapporte ensuite que, selon Philalèthe «le feu ordinaire ne sert qu‘à éloigner
le froid et les accidents qu‘ilpourrait causer». Le même auteur ajoute que la coction est
linéaire, égale, constante, régulière et uniforme d‘un bout à l‘autre feu de de l‘ouvrage
et que tous les auteurs, ou presque, ont pris comme exemple du feu de coction, non pas
au regard de la température, mais à celui de l‘uniformité, l‘incubation de l‘œuf de poule.
À ce sujet, Gaston Leroux évoque, dans La Mansarde d‘Or, d‘une manière très triviale,
ce passage de Fulcanelli. Évoquant la température d‘une horizontale, autrement dit
d‘une poule de luxe, il écrit que sa température ne doit pas dépasser 36,5°!

Fulcanelli, toujours dans le même passage, rappelle le rapport établi par les sages entre
le feu et le soufre afin d‘obtenir cette notion essentielle que les quatre degrés de l‘un
doivent infailliblement correspondre aux quatre degrés de l‘autre, ce qui est dire
beaucoup en peu de mots. Enfin, citant Philalèthe, il insiste sur le fait que l‘opération
réelle comporte plusieurs phases ou régimes, simples réitérations d‘une seule et même
technique.

Des phases ou régimes…

Il est possible de se montrer encore plus charitable. Rebis, étant la chose double et, en
latin, res désigant la chose, la substance, voire un phénomène, cela va nous amener à
réfléchir. En latin Res publica, ayant donné République, signifie la Chose publique,
celle qui appartient à tous. C‘est le moment de se souvenir qu‘une prostituée est une
femme publique et qu‘on l‘appelle aussi une péripatéticienne, par analogie avec la
manière d‘enseigner d‘Aristote. En effet, le grec peripatein possède le sens de se
promener. Mais qu‘est-ce qui est publique et se promène? Une fois, encore, ce sont les
mythes grecs qui vont nous mettre sur la voie. Dans le mythe consacré à la vision
Pélasgique de la Création, on lit le nom d‘Eurynomé. Il s‘agit de la première déesse-
lune, dont le nom signifie «celle qui voyage au loin» ou «Grande voyageuse». Son nom
sumérien était Iahu, la colombe d‘en haut, qui donna Iahvé. Nous commençons à
entrevoir la raison d‘être des quatre cornes - ou croissants - qui figurent sur le caisson 9
de Dampierre. Par conséquent n‘est-il pas tentant de lire régimes ou phases comme
étant les quatre phases de la lune?

Je signale, afin d‘être complet, que Fulcanelli, à la fin de son exposé, s‘est montré très
charitable en insistant sur les bévues de Louis Audiat: «Le plaisant, écrit-il, se mêle
aussi à nos textes. Voici une grosse malice en un petit mot: Frustra. Des cornes
flamboyantes! C‘est en vain qu‘on garde sa femme!» Relever l‘interprétation fautive de
M. Audiat, était encore le meilleur moyen pour le Maître d‘associer les cornes du
pauvre mari cocu, à la lune de la femme adultère….de dire sans avoir l‘air de le dire!

Et si certains n‘étaient toujours pas convaincus de la valeur de ma démonstration, je les


engage à réfléchir sur les éléments suivants. Notre r est le R francique. Or les Francs
possédaient pour arme la francisque, devenue l‘un des attributs de la respublica ou
République. La francisque, hache à double tranchant, est-elle assez évocatrice des deux
croissants de lune? Ajoutons qu‘il y a homophonie en français, entre hache et H, cette
dernière lettre étant le signe graphique de l‘Esprit, dispensé par la Grande Voyageuse.

74
Richard Khaitzine

_______________

(1) Il y aurait beaucoup à dire concernant les lettres qu‘adressa le Doyen de Saint-
Patrick, un certain Jonathan Swift, à Stella. S‘agissait-il uniquement de courriers
adressés à Esther Johnson en «petit langage» ? Ne pourrait-on y déceler un sens
hautement plus symbolique? Rappelons pour nos amis Portugais, qu‘après la mort de
son oncle Godwin, Swift vécut des maigres subsides que lui adressaient un autre oncle
et un cousin, le propre fils de Godwin, établi au Portugal.

(2) El Desdichado a été emprunté à un personnage (un chevalier faidit, déshérité) du


Ivanhoé de Walter Scott. Il semble peu probable que Nerval, grand lecteur, n‘ait pas
connu la version du Journal à Stella, de Swift, que publia Walter Scott en 1824.

(3) De la Parole voilée à la Parole Perdue – Éditions Le Mercure Dauphinois

(4) Sur François Villon, lire de Richard Khaitzine: La Langue des Oiseaux (éditions
Dervy). Sur la papauté et les humanistes de la Renaissance, lire «La Joconde, histoires,
énigmes et secret» éditions Le Mercure Dauphinois

(5) in La Langue des Oiseaux-voir supra

(6) Sur ce sujet, et comme il serait trop long de le développer ici, lire les chapitres qui
lui sont consacrés dans La Langue des Oiseaux (Dervy)

(7) attique provient du nom d‘Athènes

75
EL FAUSTO DE GOETHE:
LA REFRACCIÓN DE UN MITO

REINHARD HUAMÁN MORI

A mediados del siglo XVIII, la literatura en Alemania se bifurca en dos caminos de


signo romántico. Por un lado están los poetas del Hain, quienes siguen la pauta señalada
por Klopstock (1), y se caracteriza por su apasionado lirismo. El otro núcleo de poetas
conforma el Sturm und Drang. Este grupo es más radical y actuante en el campo de la
política. Representa en Alemania los intereses de la Revolución francesa. En sus
escritos, primordialmente ocupan el lugar principal los problemas políticos y sociales.
Ciertamente, no se puede encasillar a los poetas que pertenecen a un tipo de corriente,
ya sean del Hain o del Sturm und Drang. Además de los lazos amicales entre ellos, hay
que tomar en cuenta la mutua influencia a que estuvieron sometidos. Supone entonces
una etapa de transición, en la que destacan los poetas Wieland y Herder. Wieland sirve
de preparación al romanticismo por sus traducciones de Shakespeare y su poema
Oberón, influye en posteriores autores, en especial en Goethe. La importancia de Herder
radica en que incita a los poetas a recoger el tesoro folklórico desperdigado (2).

El pico del romanticismo alemán lo constituye Johann W. Goethe (1749-1832).


Representa perfectamente el puente entre dos tradiciones, el neoclásico y el romántico;
el feudalismo y la burguesía. Integra junto con Klinger, Bürger y Lenz la generación del
Sturm und Drang. En este período de esfuerzo y asalto, llega a ser la figura principal y
descollante. El espíritu, eminentemente crítico, estaba dirigido contra la fortaleza de los
conceptos tradicionales. Su manifiesto proclama los derechos de la inspiración, del
entusiasmo y de la libertad en el arte y en el terreno político. En su obra Las cuitas del
joven Werther, se hace presente el ―mal del siglo‖, y tras su anécdota se insinúa la
inadaptabilidad social, la soledad y la evasión, rasgos purísimos de romántica
sentimentalidad.

La refracción bajtiniana en Fausto

1. La leyenda de Johannes Fausto

Francois Ribadeau Dumas, en su texto Historia de la magia, hace un seguimiento de la


vida del ―príncipe de los nigromantes‖, Johannes Fausto, autodenominado Georgius
Sabellicus Faustus Junior (3). Este personaje fue contemporáneo y amigo de los
alquimistas Cornelio Agrippa y de Teofrasto Paracelso (4). Desde muy joven, Johannes
se siente atraído por la magia, ciencia nuevamente en boga durante la Edad Media.
Surge en él, pues, la fascinación por Simón el mago, ―padre de los gnñsticos‖, por quien
su entusiasmo de juventud le seguirá durante el resto de su vida. La alquimia en el

76
ocultista le concedió la independencia del espíritu y del pensamiento, fortaleciendo su
adhesión al esoterismo y al hermetismo filosófico de Hermes Trimegisto.

En un primer momento este personaje fue partidario del reformismo junto a Lutero, pero
rompe con este círculo a causa de su extremo y apasionado gusto por la antigüedad
pagana y sus prácticas mágicas.

Numerosos pactos diabólicos son puestos de relieve en las Demonologías de Juan Wier
y Juan Bodin. El pacto fáustico se asemeja a los realizados durante la edad pagana, que
abundan en documentos de la antigüedad. Se dice que Satanás acudió al llamado del
pactante bajo la forma de un monje franciscano, mientras que Mefistófeles se presentó
mucho más elegante, a la moda del tiempo, con espada al cinto (5). El pacto con el
Diablo del luciferismo de determinadas sectas y de Heliodoro el Mago, o de Simón el
Mago, procede de los poetas de las sibilas y de los virgilianos exploradores de Dante. Es
muy probable que Goethe se haya servido del Gran Grimorio y del Grimorium Verum
para representar el pacto fáustico. Estos dos libros, con certeza, ya eran muy conocidos
alrededor del año 1500, tiempo de la posible vida del doctor Fausto. En la primera parte
del Gran Grimorio se detalla el rito de evocación del Lucifer Rofocal, quien es
lugarteniente de Satanás. Este texto se dedica a la descripción de las diversas fases de
preparación y de la ceremonia. Inclusive la formulación del Círculo protector está
incluida, así como también cada paso del procedimiento para configurarlo. En cuanto al
Grimorium Verum, éste es más rico en los detalles referentes al contrato con el
demonio. En realidad, el pacto de Fausto era el de Hércules y Teseo bajando a las
regiones infernales, el viaje a los infiernos de Orfeo, mágicamente llevado por el poder
de su lira, de creer Ovidio. Este pacto para la alquimia, siguiendo los datos
astronómicos, rememora el descenso del Sol durante el equinoccio de otoño. Es decir,
experimenta una temporal muerte, ya que baja a las regiones infernales. De igual
manera, simboliza los viajes esotéricos de Baco (6), Hércules, Orfeo, Asklepios,
quienes bajaban al averno para ascender al tercer día, como posteriormente hizo
Jesucristo. Según Widman, el pacto fáustico fue distinto al narrado por Christopher
Marlowe en su drama Tragical history of Doctor Faustus (7). Las pautas a cumplir, a
decir de Widman, son las siguientes:

I. Renegar de Dios y de Todo el ejército celestial.

II. Ser el enemigo de todos los hombres.

III. No prestar oído a las discusiones de los clérigos y de las personas de la iglesia, y
hacerles todo el mal posible.

IV. No frecuentar las iglesias ni visitarlas, y no acercarse al Sacramento.

V. Odiar el matrimonio y no comprometerse con sus ataduras, con ningún pretexto.

Fausto firmó aquel acuerdo con su sangre, dejando el escrito en su mesa de trabajo para
que Satanás fuera a buscarlo. Exigió, como contrapartida, que Satanás no se apareciera
más bajo la forma de monstruo velludo y cornudo, sino con apariencia humana, como
un monje, con la campanilla en la mano para anunciar su llegada. Así lo hizo seguido de
la compañía de Mefistófeles.

77
Una última precisión acerca del pacto, lo confiere Las leyendas de los Países Bajos o
Niederlandische Sagen de Johann Wilhelm Wold. En este texto se infiere que durante
su estancia en Holanda, Fausto causaba gran impresión por su erudición, y la
fabricación de filtros mágicos, así como también por sus intentos de búsqueda de la
piedra filosofal. Sin embargo, la crónica refiere que sus ensayos no fueron concluyentes
cuando el Diablo vino una noche a ofrecerle sus servicios y entonces acordó con él un
pacto de siete años.

El pacto es un acto solemne, revestido de garantías. El elemento mágico esencial es la


gota de sangre con la que se firma dicho acuerdo. Aquella sangre expresa la
quintaesencia, la personalidad del hombre. San Agustín escribe que el firmante es un
apóstata que pierde su salvación, pero que gana un poder sobrehumano. Adquiere el
poderío junto con el esplendor, la belleza, la juventud, ya que va a conquistar a la mujer.
El supremo goce, el edén.

El ocultista Rudolf Steiner, integrante de la Hermética Orden de la Golden Dawn,


comenta la importancia de la sangre en un pacto satánico. En El significado oculto de la
sangre, el autor explica, usando las palabras del profesor Minor, que ―el Mal es un
enemigo de la sangre, y como es ésta la que sostiene y preserva la vida, el Mal, que es el
enemigo de la raza humana, debe ser, por consiguiente, enemigo de la sangre‖(8).
Ahora bien, el Diablo al exigir la sangre no lo hace solamente por esta enemistad con el
género humano, sino que desea obtener poder sobre dicho fluido, es decir, sobre el
firmante. Está convencido de que la única manera de tener a Fausto es mediante la
sangre. Ella es el trofeo que debe ganarse en la lucha eterna del Bien contra el Mal.
Igualmente, en el círculo mágico, todo brujo respetable sabe que un pacto sanguíneo es
sumamente perjudicial, ya que una parte de los poderes es transmitida al otro y
viceversa. Sin embargo, aquel brujo que posea mayor energía no sólo sentirá cierta
reducción de su energía, sino que al final será él quien posea cierto dominio sobre el
otro.

Debido al pacto, Fausto adquirió poder causando asombro sobre el común de los
mortales. Como todo ocultista, tenía bajo su tutela a un ―famulus‖ o confidente para sus
trabajos alquímicos. El nombre de este personaje fue Cristóbal Wagner, joven aprendiz
que deseaba ser sabio en ciencias, pero inclinado más al mal que al bien. Su importancia
radica en que en vida, Fausto redactó muchos escritos no sólo biográficos, sino también
ocultistas y mágicos. Antes de su muerte, le pidió que todos aquellos documentos fueran
destruidos. El famulus, siguiendo literalmente la voluntad de su maestro, destruyó todo
referente escrito, pero oralmente contó muchos de los sucesos que observó de su
maestro Fausto. Entre ellas las evocaciones de espíritus, la invisibilidad o el Secreto de
los secretos, facultad importantísima para toda eminencia en magia, y el descenso a los
infiernos. El descenso o V.I.T.R.I.O.L.O. (9) se llevó a cabo cuando Belcebú aceptó la
propuesta de Fausto para hacer un viaje por el Infierno. En esta aventura, Fausto cae del
carro por el que era conducido debido al choque que sostiene con una serpiente gigante,
posteriormente es regresado a la Tierra por el mismo Belcebú.

En una ocasión, Fausto no poseía dinero suficiente y en tal ocasión decidió recurrir a un
prestamista judío. Le pidió sesenta táleros a cambio de uno de sus miembros. El judío
acepta la propuesta y recibe una de las piernas del mago que habían ambos cortado con
un serrucho. Al verse el judío ante una posible estafa, decide arrojar la pierna a un río.
Fausto se enteró de lo sucedido debido a las voces que oía, y decidió regresar y

78
devolverle el dinero prestado. Ante tal situación, el prestamista le confiesa lo sucedido y
Fausto decide cobrarle sesenta táleros más por su pierna.

Como nigromante, Fausto tenía la facultad de evocar a grandes personajes de la historia


y entablar largas charlas con ellos. Incluso, cuando era maestro en una universidad en
Wittemberg, Alemania, traía a Homero para el deleite y aprendizaje de sus alumnos.
Entre sus evocaciones se tiene la presencia de Ulises, Héctor, Eneas, Sansón, David y a
Helena de Grecia. Esta última es importante porque fue precisamente con ella con quien
posteriormente tuvo un hijo: Justus Faustus.

Cierta vez, en la calle del Castillo, en la ciudad de Erfurt, un joven amigo de Fausto
tenía una bonita casa con rñtulo ―El Áncora‖. Era conocido que el mago muchas veces
tomaba hospedaje en aquel lugar, por lo que un grupo de señores reclamaba su
presencia. En esos momentos, Fausto se encontraba en Praga, por lo que el posadero
intentaba calmar los ánimos de la gente. Inesperadamente se escuchó unos golpes a la
puerta, y al observar quién podría llamar a esas horas de la noche se dieron con la
sorpresa de que era Fausto. Como de costumbre, fue muy bien recibido, y procedió a
entretener al público con algunos de sus sortilegios y hechizos. Uno de ellos consistía en
barrenar los cuatro lados de la mesa y de aquellos agujeros empezó a brotar vino. Entre
ellos, excelentes cosechas de España, Francia e Italia, para satisfacer la demanda de los
presentes. Entonces, entró el hijo del posadero y le dijo que su caballo se estaba
comiendo casi toda la avena. El mago al escucharlo, no fue capaz de contener el esbozo
de una sonrisa y decirle que si así lo quería el caballo, podía comerse todo y nunca
saciar su apetito. En efecto, aquel caballo era Mefistófeles, y al sonido de su relincho
Fausto sabía que debía regresar a Praga, por lo que el caballo alzó vuelo y se alejaron de
aquélla posada.

Al término de los siete años concluyó el pacto, y tuvo que renovarlo por otros siete más.
Como todo pactante, al final de aquellos siete años Fausto se entregaría a Lucifer en
cuerpo y alma. Muchas son las hipótesis acerca de la muerte del mago. Pero todas ellas
coinciden en que a los cincuenta años su muerte fue horrible. Algunos cuentan, como
Gustavo Schwab, que estaba refugiado en el convento de Maulbronn. Otros que murió
en una granja de Frisia, en el país de los wurstos, cerca al burgo de Cappel, al norte de
Dorum. La mayoría de testimonios y crónicas aseguran que Fausto estaba tendido con el
rostro vuelto hacia la espalda, con los sesos desperdigados por toda la habitación, pues
se escucharon forcejeos y ruidos como de una lucha. Muchos testimonios satanistas
explican que una de las formas predilectas de asesinato de Satanás es lanzar el cuerpo
contra la pared, preferentemente de cabeza.

Muerto Fausto, su mujer Helena y su hijo deciden partir hacia un país pagano y
desaparecer del todo, haciendo fallido el intento de Wagner, el famulus, por retenerlos.
Sin embargo, el fantasma del mago se le presentaba a su aprendiz por mucho tiempo
haciéndole importantes revelaciones. Cansado de estas apariciones, decide Wagner
hacer un conjurar que desaparezca para siempre el fantasma del mago.

2. La refracción del Fausto mítico en la obra de Goethe

La leyenda de Fausto fue la base para que Goethe llevara a cabo la creación de su obra
dramática (10) que tiene como título el apellido del mago. Sin embargo, el alemán no es
el único en haber usado esta leyenda, pues aparte de Marlowe también Lenau, Heine,

79
Peer Gynt, Louis Pauwels y Thomas Mann han manifestado su interés por este mítico
personaje. Goethe explica que tomó la leyenda no para plasmarla a manera de crónica o
testimonio. La función es hacer una obra en la cual se mezcle el aspecto real, biográfico
del ocultista con la poesía, es decir, conferirle al texto un grado de esteticismo, de
hacerlo ubérrimo en el campo literario sin dejar de lado el aspecto mítico-mágico.

Goethe reconoce que para esta empresa es necesario seguir el concepto de mímesis
aristotélico. La mímesis consiste en el proceso por el cual el artista plasma en la obra un
modelo similar de la realidad. Es una imitación, ya que es ésta quien recoge, organiza y
crea una imagen de la realidad, que será luego reconocida y reconstruida por el receptor.
Compara la conexión entre ambas realidades, entre la textual y la fáctica y es así como
reconocerá el artificio literario (11). Sin embargo, la mímesis aristotélica supone
también en el artista cierta individualidad. La mímesis no es completamente
reproductiva, desde luego, para que sea una pieza artística, se necesita de la originalidad
creativa del autor. Este aspecto está encerrado en el concepto de poiesis.

Sin embargo, esta metodología reproductiva no explica con exactitud la manera en que
Goethe reconstruye la figura de Fausto dentro de la realidad textual. Obviamente el
autor cumple lo postulado por Aristóteles, produce un modelo imitativo del mago y le
agrega elementos y situaciones, diálogos y secuencias para realzar la historia y otorgarle
el grado de texto literario. Pero resulta todavía insuficiente, para dar una mejor
explicación a este hecho, me sirvo de la teoría de la refracción bajtiniana. En ella nos
señala que:

La literatura forma parte del entorno ideológico de la realidad como su parte


autónoma, en forma de obras verbales organizadas de un modo determinado, con una
estructura específica, propia tan sólo de estas obras. Esta estructura, igual que
cualquier estructura ideológica, refracta la existencia socioeconómica en su proceso
generativo, y lo refracta muy a su modo. Pero al mismo tiempo, la literatura en su
‗contenido‘ refleja y refracta los reflejos y refracciones de otras esferas ideológicas
(ética, cognición, doctrinas políticas, religión, etc.), es decir, la literatura refleja en su
‗contenido‘ la totalidad del horizonte ideológico, del cual ella es una parte (12).

Es decir, la literatura toma como tema las distintas ideologías que existen en la realidad,
precisamente en el horizonte ideológico. Este horizonte es la conciencia social, formada
por ideologías, ya sean éstas artísticas, políticas, sociales, etc.. La literatura se forja en la
conciencia del hombre, en el interior del artista. Será él quien recoja las ideologías que
le sean pertinentes y útiles y las plasma en el texto literario. Las ideologías son tomadas
en su proceso generativo, en el momento en que se están formando, ya que si están en
estado completivo, el autor nos referiría una crónica o testimonio periodístico. Estas
ideologías se funden con la capacidad productiva y creativa del autor y dan vida al
objeto literario. Una vez completado este proceso, el texto retorna al horizonte
ideológico, ésta es la refracción de la realidad a la que se refiere Bajtín. Pero el retorno
no es un reflejo de la realidad, es decir, el texto no es un espejo, ya que la obra literaria
presenta una versión de la realidad, una visión particular entre las muchas que se
encuentran en la esfera de lo ideológico.

Tomando como ejemplo el texto mismo de Goethe, tenemos por un lado que en el
horizonte social del siglo XVI están generándose diversas ideologías. Una de ellas es la
artística, o sea, un estilo artístico en la escultura, pintura. Pero es en la literatura donde

80
se desarrolla el romanticismo como corriente literaria. La leyenda de Fausto está
tomando matices generativos, recuérdese a Marlowe, quien no sólo toma como
documentación las crónicas escritas, sino también las orales. Lo mismo sucede con
Goethe, toma entre las muchas ideologías las necesarias para componer su pieza
dramática. Una vez tomadas, las funde con su particular percepción y concepción
literaria y procede a la creación de una versión distinta de las que circulan como
oficiales dentro del núcleo social. Así Goethe refracta al hombre junto al mito, su vida y
destino dentro de otro mundo, el textual.

En esta versión goethiana del mito fáustico, podemos observar que como artificios
predomina la fusión de los tiempos, exactamente el pasado con el presente. De igual
manera, separa el tiempo del suceso del lugar concreto donde tuvo lugar (13). Por
ejemplo, la Noche de Walpurgis, en la que se refiere el lugar concreto pero no la fecha
exacta. En otros casos Goethe, ante todo busca, y encuentra un movimiento visible del
tiempo histórico, inseparable del ambiente natural y todo el conjunto de objetos creados
por el hombre y relacionados con el ambiente natural, ésta es el cronotopo central de
Fausto.

A lo largo de la leyenda vemos que Fausto no necesita de Mefistófeles para realizar sus
evocaciones a espíritus o a personajes fenecidos. Tampoco para sus hechizos o
sortilegios varios, ni mucho menos para la elaboración de filtros mágicos o sus tareas
alquímicas. Mefistófeles sirve al mago como transporte o como protector. No es extraño
que lo encontremos transformado en caballo, en Pegaso, inclusive adopta la apariencia
de un perro negro, y de acompañarlo adonde vaya. En Fausto, la figura de Mefistófeles
es el nexo entre el deseo y la satisfacción. Por ende, no desarrolla su presencia una mera
herramienta utilitaria, por el contrario, Mefistófeles cumple los diversos deseos
produciéndole placer y regocijo, justificando los beneficios del pacto. El ejemplo central
del deseo es la posesión de Margarita y de su amor. Además de esta función, el demonio
cumple otras, aunque sean accesorias y complementarias de la primera. Entre estas
destacan la adoctrinación del mago. Recordemos los consejos a lo largo del texto, los
filtros que le concede, y la explicación de los fenómenos que ocurren durante la Noche
de Walpurgis. Es en esta escena en donde los dones aleccionadores se aprecian con
mayor claridad. Le explica con detalle los ritos de las brujas, sortilegios diversos, lo
previene de la medusa, etc. Inclusive le detalla el papel que cumple y las restricciones a
las que se ve sujeto al momento de rescatar a Margarita:

Te acompañaré allí, que es todo cuanto puedo hacer, pues bien sabes que ni en el cielo
ni en la tierra soy omnipotente. Turbaré la razón del carcelero, para que te apoderes de
las llaves; pero debo advertirte que sólo una mano humana puede liberarla. Yo
vigilaré; tendré los caballos encantados a punto, y os sacaré de allí. Es todo lo que
puedo hacer.

El momento del pacto ha sido retratado con más fidelidad que la figura de Mefistófeles.
En la obra del poeta alemán se encuentra este diálogo:

Fausto - (...) ¿qué quieres de mí, maligno espíritu: bronce, mármol, pergamino o
papel? También dejo a tu elección el si debo escribirlo con un estilo, un buril o una
pluma.

81
Mefistófeles - ¡Cuánta palabrería! ¿Por qué te has de exaltar de este modo? Basta un
pedazo de papel cualquiera con tal que lo escribas con una gota de sangre.

Fausto - Si así lo quieres...

Mefistófeles - La sangre es un fluido muy especial.

Este pequeño diálogo toma en cuenta el principal elemento del pacto: la sangre. Si bien
es cierto, no se pone de manifiesto ninguna de las exigencias que un pacto satánico
requiere. Sin embargo, posteriormente se entenderá que el propósito del pacto es la
posición del cuerpo y alma del mago. En la leyenda, Mefistófeles se presenta ante
Fausto junto con Satanás, mientras que en el texto no media Satanás entre el doctor y el
demonio. La desaparición de Satanás obedece a la intención de dar a Mefistófeles
mayor participación e independencia a lo largo de la obra, quien únicamente se ve
sujeto a las órdenes del mago porque así lo estipula el acuerdo y además es verosímil
con los detalles dados por los grimorios (14).

Otra de las variaciones es la ausencia de Helena como mujer del doctor, aunque en la
Segunda Parte su presencia sea importantísima, y la del hijo de ambos: Justus Faustus.
La presencia de Margarita, quien es una doncella inocente, bella, perteneciente no a la
alta clase social sino lo contrario. Su imagen se emparienta con la mujer bucólica,
acentuando el matiz de pureza y castidad que desborda su timidez. Es ella el objeto de
deseo por el cual Fausto entrega su alma a Mefistófeles. Toda la Primera parte está
plagada de ejemplos que evidencian so obsesión amorosa, aunque Goethe no manifieste
el aspecto sexual de su personaje, quien es una construcción de tendencia asexual. Más
bien el deseo por Margarita es un deseo placentero y de contemplación. La veneración
es evidente pues Fausto cosifica a su doncella, siéndole principalmente placentero su
posesión que su compenetración vital. La salvación de Margarita obedece a que no
acepta perder el motivo mismo de su perdición, pues necesita justificar tal hecho.

Lo que ocurre con Cristóbal Wagner, el famulus, es distinto. En el relato mítico,


Wagner cumple una función importantísima: la documentación e información de la vida
de su maestro por vía oral. Este recurso incrementa la leyenda, en el sentido en que no
se sabe en qué punto dejan de ser verídicas las vivencias y pasan a retratar una figura
fantástica y legendaria. En Fausto, la única funcionalidad que desempeña es la de
ayudante de laboratorio. No participa en ningún momento de las acciones una vez
introducido el personaje Mefistófeles. Wagner deja de ser el confidente, el consejero
moral y cede el lugar a Mefistófeles. De esta manera aquél desaparece del todo
dejándole la posta de servidumbre al mencionado demonio, quien tiene el poder para
satisfacer por completo a su amo.

La figura del protagonista es también reconstruida de modo diferente a lo que narran las
crónicas. En ellas Fausto es un ser sumamente poderoso, independiente muchas veces
de Mefistófeles y hasta del mismo Lucifer. Conocedor y erudito de las ciencias ocultas,
es capaz de preparar sus propios filtros, embrujos, encantamientos. No necesita de nadie
para traer de vuelta a espíritus o muertos. Inclusive, éstos mismos le son obedientes, hay
que recordar que mantuvo una relación amorosa con Helena de Troya, con quien se
casó, según la leyenda. En cambio en el relato de Goethe, este mismo personaje se ve
endeble anímicamente, desprotegido, indefenso, no es autosuficiente, por lo tanto
pertenece al común de los mortales. Para integrarse dentro de la representación de

82
mundo reproducida en el texto, Fausto necesita de Mefistófeles, de su poder, sus
consejos, su astucia, ya que es la fuente que satisface cada deseo del protagonista.

Finalmente, dentro de todo el Primer Acto sólo hay una acción que es tomada casi
literalmente, sólo que con pequeñas modificaciones. La escena en el relato mítico se
desarrolla en la ciudad Erfurt, en la casa llamada ―El Áncora‖, ya mencionado en este
trabajo anteriormente. La escena en Fausto se lleva a cabo en una taberna de Auerbach,
en Leipzig. Como es de suponerse, si en l original fue Fausto quien barrenó la mesa y de
ella brotó el vino, en el drama fue Mefistófeles quien lo hizo, y no para deleitar a los
presentes sino para embromarlos. El juego consistía en que los que tomaran el vino no
dejasen caer ni una gota del líquido al suelo. Uno de ellos deja caer un poco al suelo y al
instante se ve ardiendo por toda la posada. Luego Fausto y su compañero desaparecen
del lugar y los embromados descubren que todo fue un hechizo, una ilusión, ya que no
hubo heridos ni quemados.

Steiner, Rudolf: El significado oculto de la sangre. Buenos Aires. Editorial Kier. 1994.
_____________

NOTAS

(1) Klopstock (1729-1781) representa el antecedente más importante en la genealogía


romántica alemana. Desde muy joven manifestó un deseo significativo de llegar a ser el
Milton alemán. Aun cuando sus obras aparecen dentro de las formas clásicas, su
contenido nacional y vitalidad las sitúan al margen de la literatura anterior. Su obra
principal, considerada como precedente romántico, es el poema ―La Messiade‖. En esta
obra la rigidez cede a una mayor libertad del ritmo. El romanticismo. pág. 33

(2) Es famosa la frase que utilizó para invitar a desarrollar esta empresa a los poetas de
su tiempo: ―¡Volvamos a la naturalidad! ¡A las fuentes de la lengua alemana, del pueblo
alemán!‖ Además crea el vocablo Volkied, que quiere decir ―canciñn popular‖. op. cit.
36

(3) A la muerte de Sabellicus, gran poeta pagano, y en tributo a éste, acoge su nombre.
En cuanto a Junior, Johannes quería separarse del inventor de la imprenta en
Guttenberg. Historia de la magia. pág. 40.

(4) Algunos estudiosos de Paracelso creen ver una mixtificación entre el mítico doctor
Fausto y la praxis vital del mencionado alquimista. Inclusive se cree que la imagen que
da Goethe a su personaje en el Acto II, es decir cuando crea al homúnculo, es la propia
unión entre el mito y la vida de Paracelso. Pierre Mariel: Paracelso o el tormento del
saber. Edaf. 1976.

(5) Será a partir de 1580 en donde un biógrafo anónimo le asigna a Fausto un demonio
llamado Hafistñfeles, aunque debe recordarse que en ―vida‖ el doctor Fausto no dejñ
ninguno de sus tratados sino que fueron quemados por su discípulo Wagner por orden
de su maestro.

(6) Fausto solía compararse con Baco en los Elíseos debido al pacto que realizó. op. cit.
pp. 309.

83
(7) Marlowe es más osado que Goethe al incluir en su tragedia las palabras de
evocación y describe, aunque no detalladamente los detalles del círculo mágico que lo
protegerá del demonio. La oración de invocación está en latín y es la siguiente: ―Sint
mihi Dei Acherontis propitii! Valeat numen triples Jehovæ! Ignis, aeris, aquæ, terra
spiritus, salvete! Orientis princeps Belzebub, infern ardentis monarcha, et Demogorgon,
propitiamus vos, ut appareat et urgat Mephistophilis. Quid tu moraris ? per Jehovam,
Gehennam, et consacratam aquam quam nunca spargo, signumque crucis quod nunc
facio, et par vota nostra, ipse nunc surgat nobis dicatus Mephistophilis‖. Tragedias. pp
148.

(8) El significado oculto de la sangre. pp. 6.

(9) Visita Interiora Terra Rectificando Invenies Occultum Lapidem, que en castellano
quiere decir Visitando el interior de la Tierra, y rectificando, encontrarás la piedra
oculta.

(10) Es preciso señalar que este ensayo hermenéutico tan sólo aborda la primera parte
del Fausto goethiano debido a que es esta sección la que va más acorde con la leyenda,
por tal razón me permito delimitar el tema, puesto que ya la segunda parte se funde más
con los aspectos biográficos de Paracelso que con la vida del nigromante.

(11) García Berrio, Antonio. Teoría de la literatura. pp. 12.

(12) Bajtín, Mijail. El método formal en los estudios literarios. pp. 60.

(13) Localität und Geschichte

(14) En toda oración el evocador reclama al demonio obediencia y sumisión, además de


amenazarlo con castigarlo con la Varilla Fulminadora con la cual ya ha trazado el
círculo protector.

Bibliografía

Anónimo: Los grimorios de evocación diabólica. Madrid. Edaf. 1988.

Aristóteles: Poética. Madrid. Espasa-Calpe. 1979.

Bajtín, Mijail: El método formal en los estudios literarios. Madrid. Alianza editorial.
1994

Estética de la creación verbal. México D. F. Siglo XXI editores. 1998.

Espinar, Jaime: El romanticismo. Buenos Aires. Ed. Atlántida S.A. 1947.

García Berrio, Antonio: Teoría de la literatura. Madrid. Cátedra. 1989.

Goethe, Johann Wolfgang: Fausto. Bogotá. Oveja Negra. 1984.

Mariel, Pierre: Paracelso o el tormento del saber. Madrid. Edaf. 1976.

84
Marlowe, Christopher: Tragedias. Bogotá. Oveja Negra. 1983.

Monterde, Francisco: Goethe y Fausto. Ed. Atlántida S.A. 1975.

Ribadeau Dumas, Francoise: Historia de la magia. Barcelona. Plaza & Janes S.A.
Editores. 1973.

Steiner, Rudolf: El significado oculto de la sangre. Buenos Aires. Editorial Kier. 1994.

_________________________
Reinhard Huamán Mori (Lima, 1979). Estudiante de literatura en la Universidad
Nacional Mayor de San Marcos. Dirije la revista de poesía Ginebra Magnolia bajo el
seudónimo de Mag 1. Ha traducido poemas del italiano al castellano de los autores
oplepianos, entre ellos Edoardo Sanguineti, Luca Chiti y acrósticos onomásticos del
OPLEPO. Ha participado en ponencias sobre literatura en la ciudad de La Paz (Bolivia)
y en Lima. Tiene inédito el poemario El huésped que será publicado a finales de este
año bajo el seudónimo de Ramón Tomás.

85
PRECAUCIONES CONTRA
LOS ABUSOS DE LOS ALQUIMISTAS
Comentarios a Padre Benito Jerónimo Feijoo

MANUEL ANGEL SEOANE

―17. La segunda (falsedad) es suponer que en España se aborrece la Alquimia, o Arte


transmutatorio con alguna especialidad más que en otras Naciones, como consta de
aquella cláusula de la Carta: Como se abomina en España el nombre de Alquimia, &c.
Antes bien en España se padecen más ilusiones en esta materia, que en otra alguna
Nación de las cultas de Europa. Cualquiera Charlatán Extranjero, que venga por acá
(y vienen muchos) ostentando con algún artificio, que posee el secreto de la Piedra
Filosofal, logra engañar, y sacar porción de dinero a algunos sujetos. He visto a
personas de más que mediano carácter y doctrina, tan encaprichados de esta vanidad
que uno u otro forastero les habían metido en la cabeza, enseñándoles tal cual
preparación ilusoria con nombre de rudimentos, y aún más que rudimentos del arte,
que no podía oírlos! con paciencia. Esto nace de lo poco que se escribe y sabe en
España de Química. En otras Naciones hay Charlatanes y embusteros; pero abundan
también de desengañadores. Acá nos vienen los Charlatanes de otras Naciones, y se
quedan en ellas los desengañadores, y sus escritos‖. (Teatro Crítico Universal, Tomo
quinto-1733, Discurso XVII, Edición de Madrid de 1777)

Benito Jerñnimo de Feijoo y Montenegro en 1733 reflexa neste extracto do ―Teatro


Crítico Universal‖ a perspectiva que neste tempo váise impoðendo sobre a Alquimia
entre os eruditos que máis conectados estaban con as correntes científicas e culturais
contemporáneas. Furiosamente crítico, pero ben fundamentado, fáinos unha espléndida
enumeración de todos os enganos e artificios que os alquimistas da segunda metade do
século XVII e primera metade do XVIII perpetraron nas Cortes Europeas, e que debido
ao escándalo levantado, pronto adquiriron grande notoriedade por toda Europa e
seguramente axudaron a incrementar o seu descrédito. Así, fálanos dun caso
relativamente recente, e que recolle das Memorias de Trevoux no que se nos fala dun
Conde de Salvagnac poseedor do secreto da transmutación do ferro en cobre por medio
do vitriolo azul, a través de polvos milagrosos que, sin embargo, parece que neste caso
non se decidiron a mostrar os! seus efectos de forma concluente. Así e todo, e según o
noso autor mediante algún ―xogo de manos‖, o Salvagnac conseguíu do Duque Regente
a obtención de Letras-Patentes para a elaboración de cobre en exclusiva por vinte anos
nos dominios do Reino de Francia, con exclusión de cualquer outro artífice, polo que
estima que os ingresos conseguidos serían, mínimo ―un millñn de pesos anuales‖.

86
Curiosamente, Feijoo dedica moitas páxinas a defenderse da acusación de tomar boa
parte dos seus materiais e argumentos das Mémoires de Trevoux, diccionario
enciclopédico editado entre 1704 e 1771, e do que o monxe benedictino coñecía as
primeiras ediciñns, que son unha refundiciñn da obra do protestante ―Dictionnaire
Universel de M. Basnage de Bauval et M. Huet, ministre‖, editado no exilio da Haia en
1701, poucos anos despois da revocación do Edicto de Nantes. Esta circunstancia
resulta clarificadora sobre a visión máis racionalista e escéptica con a que o noso autor
aborda o tema da Alquimia.

As aventuras do Conde de Salvagnac non acabaron aquí. Seguramente despois de ter


problemas de ―común policía‖ en Francia, posteriormente encamiðñuse á Corte de
España, e a aventura é relatada nunha carta dun fraile capuchino, reproducida a sua vez
no ―Teatro Crítico Universal‖:

―Éste, no solo engañó al Duque de Orleans en Francia, más también a N.


acompañando los Reyes en Sevilla, y con sus Patentes se vino a Barcelona, y engañó a
diferentes personas, singularmente a un Sastre, a quien llaman Provenzal, por ser de la
Provenza. Éste le hizo tres garbosos vestidos: prevínole su Oficina en la calle del
Carmen, que yo vi, con seis Calderas de Estaño. Hízole la vida competente más de seis
meses, mientras que recogía sus fingidos ingredientes, entre los cuales era la rosada de
Mayo. Hizo finalmente su experiencia delante del Capitán General, Audiencia,
Intendente, y otras personas de este tamaño. A pocos días se descubrió su trampantojo
por un Médico Clérigo, llamado el Doctor (aquí está confusa la letra: dice Geriu, o
Gerier, o cosa semejante) y un Boticario Carlos Sanant. Sabido por el Excelentísimo
Señor Marqué! s de Risbourg, Capitán General, quiso saber la cosa de raíz, y se halló
no ser más que el Vitriolo desleído en agua con hierro, que metía dentro: los polvos de
Proyección son las heces del hierro de las operaciones antecedentes, que no sirven sino
de trampantojo. Escribiose a la Corte, y fue desterrado de estos Reinos. Temió ir por
Francia, y se fue por mar a Génova.‖ (Teatro Crítico Universal, Tomo quinto-1733,
Discurso XVII, Edición de Madrid de 1777)

Feijoo pregúntase se o Conde disfrutaba de fama de embustero en Francia, especulación


que parece inútil...

Este experimento non era inédito, sobre 1680 foi intentado ante o Marqués de
Brandenburgo, avó do Rei de Prusia, pero foi abandonado. Vinte anos mais tarde foi
proposto ao Landgrave de Hesse-Kassel, pai do Rei de Suecia, ainda con menos éxito.
Para conseguir o resultado buscado, as cousas deberían desenvolverse da seguinte
maneira:

Ponse a ferver dez pintas de auga nunha pota de chumbo, e bótase nela cuatro libras de
Vitriolo azul en pó. Feita a disolución, introdúcense vinte onzas de ferro novo, dividido
en pedazos delgados e colocado nunha cesta de vime, tendo suspendida ésta encima do
licor. Despois dun cuarto de hora de ebulición e fermentación retírase a cesta e
deberíanse atopar pedazos de ferro tinguido de vermello polo cobre que se debería
depoñer sobre eles. Sumérxese despois a cesta nunha tina vidriada chea de agua fresca,
e, abanándoa, os pedazos de ferro deponen na agua un pó vermello misturado con
briznas de cobre, que por razón do seu peso baixan ao fondo da tina. Devólvese a cesta
á solución de Vitriolo, e despois de algún tempo os pedazos de ferro cargáronse de novo
con cobre. Fáise por segunda vez a dilixencia de sumerxilos e axitarlos na auga fresca

87
con o que volven a soltar a o novo cobre recibido na segunda infusión. Así vanse
alternando até que a solución de Vi! triolo non logra extraer mais porción de cobre
sobre o ferro e sae como entrou, sen coloración, ficando tan só unha lámina de ferro
liso. Finalmente, quítase a auga clara e déixase secar a fogo lento o cobre precipitado en
pó ao fondo da tina, que despois mézclase, habendo atinxido unha cor parecida a do
café,, con cuatro libbras de Tártaro vermello, detonado con duas libras de salitre. Feita
esta mezcla exactamente, bótase pouco a pouco no crisol, colocado no forno con fogo
suficiente para a fundición. Unha vez perfeccionada, debería resultar nunha masa de
cobre puro, que pesaría catorce onzas e tres adames. E o peso do ferro resultante debería
ser de só tres onzas e tres adames!

Pero o Padre Feijoo non ve as cousas tan claras e diáfanas como pode parecer na receita
que acabamos de describir, e citando ao mesmo Mr Gofredo, que é o autor de donde
saca a fórmula, observa que o ácido vitriólico vai roendo e disolvendo pouco a pouco o
ferro, de modo que éste váise depositando no ―licor‖, ocupando o lugar que antes
ocupaba o cobre, demostrándose en que solución vitriólica adquire unha cor verdosa por
razón da mezcla con o ferro en lugar da cor azul resultante da mezcla con o cobre. Así a
transmutación non existiría, e sólo unha disolución do ferro e precipitación do cobre
contido no Vitriolo.

A continuación, Padre Feijoo aborda a Pedra Filosofal, da cual a idea das inmensas
riquezas que pode ofrecer ―pica vivamente la imaginaciñn de los hombres‖. Así, citando
a Mr. Gofredo, enumera toda a serie de trucos empregados para facer creer que a tal
pedra existe:

―Como su principal intención es por lo ordinario hacer hallar Oro, o Plata en lugar de
las materias minerales que pretenden transmutar, se sirven muchas veces de Crisoles, o
Copelas dobles, en cuyo fondo han puesto cal de Oro, u Plata, y fácilmente vuelven a
cubrir este fondo con una pasta hecha de polvo de Crisol, incorporados con agua
engomada, o con cera, lo cual acomodan de manera, que éste parece el verdadero
fondo del Crisol.» {Lo que resulta es, que derritiéndose al fuego la cera, o la goma con
se que trababa el aparente fondo del Crisol, éste se deshace, y el Oro, o Plata que
estaban cubiertos con él se aparecen después de la operación incorporados en el fondo
verdadero, y la gente que no está advertida del dolo, cree que aquel Oro, o Plata se
formó por transmutación de alguna porción de la materia mineral al que se arrojó en !
el mismo Crisol.‖ (Teatro Crítico Universal, Tomo quinto-1733, Discurso XVII,
Edición de Madrid de 1777)

Ou ben outros procedementos ainda mais inxeniosos, como facer un buraco nunha peza
de carbón, encherlo con pós de ouro ou prata ou solucións dos mesmos metais, e
moléndoos facer pós de proiección para botalos sobre os metais que se pretenden
transmutar, resultando nunha soluciñn de ―mera farándula‖. De modo mais artesanal
ainda, pódese intentar con varas de madeira con a extremidade furada, e no oco
resultante introdúcense limaduras de ouro ou prata, pechándose o buraco con serradura
sutil da mesma madeira, e meneando ou queimando as variñas libéranse os metais
preciosos conseguindo o fin desexado. Outro artificio ben coñecido consistiría en facer
unha especie de mezcla de ouro e prata calcinados con cal de Antimonio, Chumbo e
Mercurio. No chumbo poden ir incluídas pequenas cantidades de ouro e prata.
Branquéase o ouro con mercurio e fanse pasar por estaño ou prata, provocando a ilusión
de que o ouro e prata que resultan de estas operaciones obténse por transmutación.

88
Otro truco mais simple consistía en fabricar cravos metade en ferro, metade en ouro, de
modo que introducido na solución adecuada surxiría tan só a metade dourada,
producindo así a ilusión da transmutación. Un de estos exemplares podía atoparse
alegadamente no Gabinete do Gran Duque de Toscana. Outro exemplo similar era a
transformación de moedas constituídas por varios metais en outras dun único material,
evidentemente o mais costoso.

A febre do ouro: Chrysopeya e pedra filosofal

―Es la Crisopeya en el sentir común de los hombres del juicio, un empeño antiguo, pero
vano de la codicia; un apacible embeleso que empieza sueño, y prosigue manía; un
entretenido modo de reducirse a pobres los que aspiran a opulentos, porque en las
experiencias se consume el oro poseído, y no se logra el esperado. Los más de los
Filósofos tienen este Arte por absolutamente imposible; por el contrario los Alquimistas
le aseguran existente. Pienso que unos, y otros se engañan. Yo, siguiendo el camino
medio, asiento a su posibilidad contra los Filósofos, y niego su existencia contra los
Alquimistas.‖Teatro Crítico Universal, Tomo Tercero –1729, Discurso Octavo, Edición
de Madrid de 1777)

Despois dunha longa disertación sobre a posibilidade ou imposibilidade de obter a tal


Pedra Filosofal, e enumerando singulares argumentos utilizados tanto por alquimistas,
que pretenden soster argumentos empíricos, e filósofos, con singulares argumentos
teóricos tales como que os minerais surxen de sementes, e en realidade pertencen ao
Reino Vexetal, nada menos, vamos ao que nos interesa, a enumeración de casos mais ou
menos escandalosos que deberon de dar a volta por toda Europa, e que non puderon
deixar de provocar efectos negativos na fama e reputación da Alquimia:

O Xeneral Prikel, que militaba para o Rei de Polonia contra o seu propio Soberano, o
Rei de Suecia, foi feito prisioneiro na Batalla de Cracovia en 1705, e en 1707 é
condenado a morte. Para seguir vivo, alegou que era en posesión da Pedra Filosofal, e
non só ofrecíase en aumentar o Tesoro Real, sino que ademais pasaría o preciado
secreto ao propio Rei de Suecia. Así encargou que se comprasen determinadas drogas
que se preparasen de determinada maneira, despois do que entregou certos pós que
arroxados na mezcla, deron como resultado a obtención dunha materia que, examinada
na Casa da Moeda, resultou ser verdadeiro ouro. Feijoo deduce que todo foi un intento
de corrupción dos guardas, por valor de douscentos escudos, porque en dous anos que
estuvo preso tería tempo para fabricar o ouro non só para enriquecer os guardas, senon
para ―conquistar el Mundo‖. Parece que a proposta encontrou o total desprecio do
Monarc! a sueco.

Ademais, existen testemuñas presenciais de tales actos prodixiosos? Rumores populares


aseguran que Raimundo Lulio (Raimon Llul) fabricou ouro en presencia do Rei de
Inglaterra, do que se fabricou moeda chamada ―El Noble de Raimundo‖, e esto o
asegura Roberto Constantino, médico de Caen, que o supo dous séculos despois, a pesar
de que non hai autor inglés que fale do tema. O mesmo se pode decir de Arnaldo de
Villanova (Arnau de Vilanova), que, alegadamente, fabricou para o Papa varillas de
ouro, e por algunha razón inexplicable, si se aceptara a veracidade do experimento, por
qué non foi aproveitado polo Pontífice para fabricar ainda mais inmensos tesouros? Ou
Oporino, discípulo de Paracelso, que asegura que, a pesar de non ver seu maestro
transmutar ningún metal en ouro, moitas veces deitábase a dormir na mais profunda

89
pobreza e despertábase pola mañá mostrando moedas de ouro e prata, feitas con a Arte
da Alquimia.

E de todos, o que pudera merecer eventualmente mais crédito é Nicolas Flamel, veciño
da Rue des Ecrivains en Paris, perto da Capela de Saint Jacques-la-Boucherie, e que,
segundo escribe en 1399, tuvo acceso aos libros dos ―Filñsofos‖, donde descubre que
―Abraham Xudeu, Príncipe, sacerdote, levita, astrñlogo e filñsofo‖ para axudar a sua
nación cautiva a pagar os impostos aos emperadores romanos, e mais cousas que non se
poden explicar, ensináballes a arte da transmutación con palabras comúns e, mellor
ainda, con gráficas representaciñns artísticas de ―belas figuras iluminadas ou pintadas
con grande artificio‖. Durante vinte anos intentou interpretar as fñrmulas representadas,
sen grandes (sen ningún) resultado, polo que fixo unha promesa a Santiago de Galiza
para solicitar a interpretación das mesmas a algún sacerdote xudeo camiño, porque
como para chegar alá hai que cruzar antes España, en calqueira das sinag! ogas de aquel
país. Así, tomou o hábito e o bordón, chegou a Santiago, cumpríu o seu voto con grande
devoción, e a volta en León encontrou un médico xudeo convertido ao cristianismo que
lle axudou a empezar a descifrar o principio. Acompañóuno na volta a Francia, pero
desgraciadamente morreu en Orleáns ―moi cristianamente‖. Esto non impediu a
obtención do que estaba buscando, e o 17 de Xaneiro de 1382 convertíu mercurio en
prata pura, e o 25 de abril, ouro por fin, e moito mellor do ouro corrente. Así con a
fortuna acumulada, e despois dunha vida devota, deixóu doacións perpetuas a catorce
hospitais en París, construido tres capelas, bens e rentas a sete igrexas, mais outros
innumeraveis beneficios a órfaos e demais. Finalmente, resolveu facer pintar no cuarto
arco do cemiterio dos Inocentes (entrando pola Rue de St. Denis, do lado dereito) os
misterios da resurrección futura, e o que mais interesa, para os entendidos en filosofía
natural, todas as principias e necesarias op! eracións do Maxisterio. E deixóunos uha
pormenorizada relación sobre a interpretación que se pode dar a tales hieroglifos.

Até aquí, todo moi ben, pero Feijoo, devólvenos outra vez a unha visión mais terrenal
do asunto, e citando ―Autores franceses de buen juicio‖ nos informa que Flamel, que
chegou a posuír a prodixiosa suma de quinientos mil escudos, conseguida con roubos e
extorsións, sobre todo entre os xudeos do Reino, e para ocultar os seus métodos
delictivos e evitar o merecido castigo, finxiu deber todos aqueles tesouros ao segredo da
Pedra Filosofal.

Así, con estas historias ―extremadamente ridículas‖, os alquimistas pretenden confirmar


os seus soños como verdadeiros, e creen, ou pretenden facer creer que a Pedra Filosofal
permite ao ser humano posuir un beneficio moito maior que enriquecelo: preservarlle de
toda enfermedade e alargarlle a vida por moitos séculos. De Artefio publicóuse que
viveu mil e vinte cinco anos e que coñeceu os segredos mais altos de todas as ciencias.
E como parece que éste era un dos argumentos que parecía mais mais atractivo para
xentes incautas en esta época e posteriores (o chamado Conde de Saint Gemain, por
exemplo, non tiña reparos en esparcir famas semellantes), Padre Feijoo nos conta unha
anécdota mais ou menos contemporánea:

―Llegó a Toledo un Forastero, el cual, o por casualidad, u de intento, trabó


comunicación con un Religioso Dominicano, cuya celda dio en frecuentar. Tenía el
Religioso en ella una pintura de la Pasión de nuestro Salvador. Notó el Religioso que
siempre que siempre que el Forastero venía a hablarle se detenía un rato suspenso,
mirando con una especie de admiración, u de asombro aquel lienzo. Preguntóle la

90
causa. Respondió el Forastero que el motivo de la suspensión era, que habiendo visto
infinitas pinturas de la Pasión, aquella era la única que había hallado enteramente
conforme al original. Replicóle el Religioso, que de dónde, o cómo podía saberlo? A lo
que el Forastero frescamente satisfizo, diciendo que había sido testigo de vista de la
tragedia que representaba aquel lienzo. Juzgó el Religioso que hablaba por ! pura
chanzoneta; pero él prosiguió en asegurar que había alcanzado aquellos tiempos, y que
era uno de los que habían asistido a aquel gran suceso. Continuando el Religioso en
despreciar lo que testificaba el huésped, llegó el caso de explicarle éste el misterio, el
cual no era otro sino que tenía la Piedra Filosofal, con cuyo beneficio había vivido
tantos siglos, y esperaba vivir muchos más; porque de cincuenta a cincuenta años se
rejuvenecía con el uso de ella. El modo era este. Tomaba una porción de aquellos
preciados polvos (que polvos dicen que son, aunque les dan el nombre de Piedra), y al
punto quedaba dormido. Duraba el sueño tres días naturales, al fin de los cuales
despertaba, hallándose reducido a la más florida juventud. Persistiendo siempre el
Dominicano en despreciar como fabulosa toda la narración, se ofreció el Forastero a
comprobar la verdad de ella con la experiencia. Esta se hizo en un perro, el más viejo
de su especie que se pudo hallar. En la celda del Re! ligioso dio el Forastero sus
polvillos al Perro, el cual al momento cayó en un profundo sueño; y advirtiéndole al
Religioso que no le despertase, o inquietase hasta ver en lo que paraba, se despidió,
como que se volvía a su posada. El perro durmió los tres días, los cuales pasados
despertó con todo el vigor, y robustez que había tenido en sus mejores años. Visto este
prodigio por el Dominicano fue a buscar a su Forastero, verosímilmente para solicitar
de él, ya que no el descubrimiento del secreto, por lo menos alguna cantidad de
aquellos polvos, siquiera para remozarse dos, o tres veces. Pero el Forastero no
pareció, ni en la posada, ni en la Ciudad, ni nadie pudo dar razón del rumbo que había
tomado.

Hasta aquí la Relación del Alquimista Matritense. Dios tenga en descanso su Alma, que
según me dijo un sujeto, ya murió: y no pienso que en su testamento haya dejado
grandes legados, ni fundado muchas obras pías. Este cuento es verosímil que se haya
fabricado a imitación de otro que oí de uno que el siglo pasado decía haberse hallado
en las Guerras de los Macabeos (o fingió la existencia de tal hombre algún Alquimista),
y también debía su larguísima edad a la Piedra Filosofal. Lo que en el 8 Tomo, Disc. 5
num. 18 referimos de Federico Gualdo, es también natural fuese invención de algún
Alquimista.‖ Teatro Crítico Universal, Tomo Tercero –1729, Discurso Octavo, Edición
de Madrid de 1777)

A impugnación do argumento da obtención da Pedra Filosofal pódese fundamentar, en


primer lugar, en que entre os milleiros e milleiros de seres humanos que se dedicaron a
sua búsqueda só un ou poucos conseguiron a sua obtención. En segundo lugar a falta de
instrucción e a oscuridade con a que están escritos os libros que a esta materia se
dedican, e que é suplida con o argumento que as fórmulas non bastan e que é precisa a
revelación divina para conseguir interpretar correctamente as fórmulas. Demasiado
fácil, alega o noso autor. En tercer lugar serían as inconsecuencias e contradiccións dos
alquimistas en cuanto as fórmulas, preparacións, substancias e series de elas. Pero o que
Feijoo encontra mais ridículo é que según os autores cristiáns sexa precepto
indispensable para aplicarse a esta Arte sexa ―Bon cristián, devoto,! humilde, de
intenciñn recta e conciencia pura‖ e este secreto comunicóuse de árabes a latinos e todos
os autores primordiais son ―canalla sarracénica‖ como Geber, Rasis, Avicena, Haly,

91
Cadid, Jazich, Bendegid, etc, e de aquí tomaron todo o que escriberon Lulio, Vilanova,
Paracelso, Trevisano e demáis europeos.

En fin, dice que con os Libros dos Alquimistas debería facerse o que fan estos con os
metais, é decir, calcinalos, disolvelos, amalgamalos, fundilos e precipitalos. E se non se
chega a este rigor, fágase de eles a estimación que fixo León X dun libro que lle dedicou
un alquimista: esperaba o autor unha considerable gratificación de aquel Protector das
Artes e Letras, pero o que o Pontífice fixo redúxose a unha bosa valdeira que lle enviou
decindo que , coñecendo a arte de facer ouro, non precisaba que un recipiente donde
botalo.

O evidente descrédito que a Alquimia tiña xa na primeira metade do século XVIII entre
os autores que se poden calificar de ilustrados e racionalistas, provocado tanto por unha
maior difusión do saber como polo avance das Ciencias, é o primer signo da
sensibilidade contemporánea hacia estos fenómenos, nos que poucos creen a pesar da
curiosidade que suscitan. Se ben a procura do ouro continúa, e con métodos cada vez
mais milagrosos...

E así conclúe Feijoo que todo o que dicen os Alquimistas sobre a Chrysopeya é
―invenciñn y sueðo‖

___________

Bibliografia:

Feijóo y Montenegro, Benito - Theatro Crítico Universal o Discursos varios en todo o


genero de materias para desengaño de errores comunes, ―VIII - Piedra Philosofal‖
Tomo tercero, quinta impression, Madrid, Imprenta de los Herederos de Francisco del
Hierro. 1741.

Feijóo y Montenegro, Benito - Theatro Crítico Universal o Discursos varios en todo o


genero de materias para desengaño de errores comunes, ―XVII – Nueva precaucion
contra los artificos de los alquimistas; y indicacion de el Autor contra una grossera
calumnia‖ Tomo quinto, tercera impression, Madrid, Imprenta de los Herederos de
Francisco del Hierro. 1742.

Victor Zabildea, Victoria Paniagua, Elena Fernández de Cerro y Casto del Amo –
Alquimia e Ocultismo, Textos de Hermes, Zózimo, Geber, Bacon, Flamel, B. Valentim,
A. Vilanova, R. Lúlio, Helvécio, Agrippa, Paracelso, Barbault et al. Ediçoes 70, Lisboa
1991.

Flamel, Nicolás. Libros de las Figuras. Bibliothèque des Auteurs Chimiques (1628),
Sumarium Philosoforum, Museum Hermeticum.

FURETIERE PAR BASNAGE DE BEAUVAL 1701, DICTIONNAIRE UNIVERSEL,


deuxième édition, revue, corrigée & augmentée par M. Basnage de Beauval, La Haye /
Rotterdam, chez Arnout & Reiner Leers , 1701, 2 volumes

92
1704, DICTIONNAIRE UNIVERSEL FRANCOIS & LATIN VULGAIREMENT
APPELE DICTIONNAIRE DE TREVOUX, Dédié à son Altesse Serenissime
Monseigneur Prince Souverain de Dombes, chez E. Ganeau, 3 volumes.

______________________

MANUEL ANGEL SEOANE (1963, Santiago de Compostela, Galiza) é Licenciado


en Dereito. Realiza apoio xurídico a particulares e está especialmente interesado no
estudio das sociedades do século XVIII e posteriores.

93
SINAIS DO DEMIURGO CEGO
EM TODOS OS QUE CAEM,
DE SAMUEL BECKETT *

Armando Nascimento Rosa


dramaturgo e ensaísta, autor do livro de ensaio Falar no Deserto - Estética e Psicologia
em Samuel Beckett (Lisboa, Cosmos, 2000), e das peças encenadas e editadas: Um
Édipo (Évora, Casa do Sul, 2003); Audição - Com Daisy ao Vivo no Odre Marítimo
(Évora, Casa do Sul, 2002); e Lianor no País sem Pilhas (Porto, Campo das Letras,
2001); professor na Escola Superior de Teatro e Cinema

«MRS. ROONEY (Aflita): Cuidado com a galinha! (Guinchar de


travões. Cacarejo) Oh, céus, esborrachou-a! Continue! Continue,
não páre! (O carro acelera. Pausa) Que maneira de morrer! Num
momento a escavar satisfeita, em pleno sol, debicando feliz no
esterco, na estrada, permitindo-se ocasionalmente o prazer de um
bom mergulho na poeira e, no instante seguinte - zás! - eis que
todos os seus tormentos chegam bruscamente ao fim. (Pausa)
Tanto esforço a pôr ovos, a chocá-los... (Pausa) Um breve
cacarejo mais sonoro e em seguida - a paz! (Pausa) De qualquer
das maneiras, acabariam por cortar-lhe o pescoço.»
SAMUEL BECKETT, Todos os que Caem
(trad. inédita de Carlos Machado Acabado, p. 10)

A capacidade de protesto ontológico em torno da condição humana tal como ela é,


através de um escárnio implacável, que tempera a todo o tempo o pathos (sofrimento)
trágico com o bathos (gozo) risível, é uma constante que define a mundividência
beckettiana, marcando especialmente a primeira fase, fundadora da sua dramaturgia
(embora tal aliança se mantenha presente na progressiva desagregação minimal das
vozes teatrais, que se abstractizam em lirismo verbal ameaçado pela afasia, nas suas
micropeças posteriores, das quais Not I /Não Eu e Rockaby/Balanço são dois exemplos
significativos). É um facto que Beckett aplica o modelo tragicómico segundo a
interpretação de Schopenhauer (um dos seus filósofos electivos), no sentido em que o
pessimismo do autor alemão concebe a dupla visão que podemos reter da representação
da existência individual: numa visão diacrónica, macroscópica, ela será
inexoravelmente trágica, porque desenrola um percurso ascensional e desejante, para
desaguar na aniquilação da morte; numa perspectiva sincrónica, microscópica, a vida
mostra-se cómica, preenchida com os seus equívocos, os seus pequenos nadas, as

94
aspirações patéticas que constituem a nossa cartesiana duplicidade, enquanto
organismos vivos e entidades pensantes. O resultado é que apenas a tragicomédia será
para Schopenhauer a mimese dramática apropriada para captar a essência vivente do
humano. Beckett subscreve e torna operativa esta visão ao subintitular de tragicomédia
os dois actos de À Espera de Godot (bem como tragicómicos serão os seus personagens,
de Winnie a Krapp, de Hamm a Mrs. Rooney). Aliás, esta mistura explosiva entre
austeridade metafísica e paródia burlesca será sempre causa para que a tragicomédia
deste palco singular atinja inevitavelmente as tentativas dos hermeneutas, que, como é o
caso agora do autor destas linhas, se afadigam em descortinar sentidos implícitos nos
dramas de Beckett, não obstante a já lendária revelia do autor face a tais empresas
especulativas. Ainda recentemente, o outrora pouco beckettiano George Steiner (e digo
isto remetendo o leitor para o primordial cepticismo manifestado por Steiner perante o
teatro de Beckett, em A Morte da Tragédia, 1961), em conferência dada em Lisboa,
(Fundação Luso-Americana, Junho de 2002), juntava um ingrediente de farsa prosaica
aos conhecidos intentos de descodificação hierológica do nome da mais célebre peça de
Beckett. Assim, segundo nos advertia Steiner, seria conveniente atentarmos em fontes
explicativas a que os exegetas não prestam habitualmente atenção, como seja o domínio
do desporto. E dava o exemplo com o título À Espera de Godot. Enquanto os neurónios
dos comentadores se consomem com a imagem de um Deus escondido na palavra
Godot (estou ironicamente a parafraseá-lo), ninguém repara num ignorado pormenor
biográfico. Beckett, dizia o ensaísta multilingue, era aficcionado de umas corridas de
bicicleta a que os franceses chamavam velodrôme. Durante seis dias e seis noites, os
esforçados ciclistas pedalam sem parar num dado circuito, fazendo apenas pequenas
pausas para as necessidades fisiológicas indispensáveis. Consta porém que havia um
destes atletas que chegava invariavelmente no fim, bem depois de todos já terem
terminado aquela maratona no selim. Era então que a voz de um fiscal de linha
anunciava e repetia altissonante: En Attendant Godot... en attendant Godot! Porque o
mais lento dos ciclistas se chamava Godot, disse Steiner, Armand Godot (e mais me ri
eu ainda, por o nome próprio deste Godot ser um homónimo francês do modesto
beckettiano que sou); eis portanto desvendado o segredo, segundo Steiner, que divertiu
a sala. Mas esta foi uma face burlesca do enigma, que não enevoou a minha tendência
para exegeses de metafísico alcance. Tivesse Steiner dado a oportunidade a que a
assembleia pudesse colocar perguntas, e eu já tinha um argumento na manga. De facto,
a explicação desportiva era contundente no seu prosaísmo, mas não me parecia esgotar-
se em si mesma, porque os obstinados ciclistas pedalavam, sublinhe-se, durante seis
dias e seis noites, ou seja, o tempo mítico da criação do mundo, segundo o Génesis;
tempo este que servirá depois para a anedota do alfaiate (que cose umas calças perfeitas
durante longos três meses, exasperando o cliente, mas o artesão não admite
comparações entre o seu labor escrupuloso e a pressa com que Deus terá alinhavado este
mundo em seis escassos dias) contada por Nagg em Fin de Partie/Endgame/A Última
Jogada (1957). Mas mesmo que a origem do nome proviesse desse contexto de dura
competição, Beckett poderia tê-lo escolhido em consciência, motivado pelo tempo
simbólico da sua duração; reforçado, além do mais, pelo facto de Godot ser realmente
um nome peculiar, que contém o diminutivo ou corruptela de um deus menor no seu
interior - esse deus a quem os gnósticos designavam por Samael, que significa «deus
dos cegos», nome enfim tão semelhante com o nome próprio do autor (Pagels, p. 79). A
explicação paródica unia-se assim à hermenêutica hierológica; a comédia imediata
continuou a ser também metafísica - visão, aliás, que o autor de Gramáticas da Criação
decerto não recusaria. E esta é uma virtude típica dos textos beckettianos, dotados de
um elevado potencial significador; mesmo que a sua estratégia dominante se centre na

95
aparente pobreza e despojamento discursivos, eles são capazes de satisfazer, com
plausibilidade, diversos pontos de vista interpretativos e, em analogia ao que o seu
amigo e compatriota Joyce desejara para os romances seus, também Beckett continuará
por certo a ocupar as novas gerações de académicos, mercê dos segredos cifrados na sua
escrita, tão transparente quanto enigmática.

É nesta linha de perseguição de pistas sémicas que proponho aqui um breve relance por
All That Fall/Todos os que Caem (TOQC), de modo a identificar os traços dessa mítica
personagem central do cosmodrama gnóstico, antagonista do espírito humano, presente
nas especulações desses heréticos sublimes dos primeiros séculos da era cristã: o
demiurgo é o deus menor responsável por uma criação desastrada com que a condição
humana está comprometida; Samael, cuja cegueira é imagem de ignorância e
incapacidade, e não de iluminação interior (como acontece com a clarividente cegueira
do adivinho Tirésias). Mas antes de fornecer um esboço desta presença arquetípica nos
insterstícios de sentido do texto, convém apresentar a peça propriamente dita.

Em 1956, na sequência do impacto produzido pelas sucessivas estreias, em diferentes


palcos mundo fora, de À Espera de Godot, Beckett recebe um convite da BBC para
escrever uma peça para rádio. Daí resultará All That Fall/Todos os que Caem (Setembro
de 1956, data de escrita), a sua primeira peça radiofónica, e a mais extensa de todas as
que viria ainda a escrever para este meio de comunicação, que assinala uma estreia
dramatúrgica em língua inglesa; uma vez que tanto a enjeitada Eleutheria (sua primeira
peça não incluída no seu teatro completo, e conhecendo apenas edição póstuma em
1995) como En Attendant Godot e Fin de Partie, os seus três textos dramáticos
inaugurais para palco, possuem uma versão originária em francês. Todos os que Caem,
a mais irlandesa das suas obras teatrais, que permite ao autor revisitar ficcionalmente
lugares e personagens da sua infância, teria ainda a particularidade de ser a segunda
peça de Beckett, depois de Godot, a ter uma realização pública, uma vez que é
transmitida pela rádio britânica em 13 de Janeiro de 1957.

Não é esta das peças mais conhecidas do autor, muito por culpa de ele teimar na não
autorização a que o texto conheça outra forma de encenação que não a radiodifusão para
a qual foi concebida. Beckett sempre afirmou que estas figuras só lhe fariam sentido
emergindo da escuridão («coming out from the dark») (Knowlson, p. 565), isto é,
brotando o seu acontecer de um universo que o receptor mentalmente constrói pela
audição das vozes e dos sons, destituídos de imagem concreta. Beckett chegaria ao
cúmulo da «demiurgia» autoral, ao recusar a proposta que lhe foi feita pessoalmente
(entre outros) pela dupla Laurence Olivier e Joan Plowright, em 1969 (Knowlson, p.
565), desejosos de interpretar em palco ou no cinema os protagonistas deste Todos os
que Caem; peça que retrata as misérias da condição humana com um humor patético e
cúmplice, a partir de um casal de idosos, o cego Mr. Rooney e a sua mulher, Maddy,
que o vai esperar à estação ferroviária. A espera é um motivo que se prolonga da peça
de Godot, ainda que ela se preencha agora de um modo diverso e de tal modo objectivo,
que, não obstante a sua destinação radiofónica (e também graças a ela), All That Fall
prescreve um conjunto de elementos sonoplásticos de carácter naturalista (em texto
didascálico), que por vezes, para o leitor/ouvinte mais desarmado, podem parecer não
mais que pitorescos (e estou a pensar nos sons ilustrativos de animais, sobretudo
domésticos e insectos, que se vão nomeando e ouvindo ao longo da peça; porém, esta
insistência na fauna, como se algo houvesse aqui de testemunho de Noé, o salvador
mítico das espécies animais, encontrará outras ressonâncias que adiante pretendo

96
destacar). A espera agora é activa e constitui-se na peregrinação de Mrs. Rooney em
direcção ao caminho de ferro de Boghill - nome da localidade forjada onde decorre a
acção -; ao contrário da espera abstracta e estática de Vladimir e Estragon, sempre
tagarelando junto da sua árvore solitária. Contraste aqui também porque a espera diz
respeito a uma pessoa identificável, o velho marido cego de Maddy, e não, como no
caso de Godot, por um indivíduo do qual nunca se descortina devidamente a identidade.

Comparando ainda com a abstracção simbólica do lugar dramático em À Espera de


Godot, a concretude das ambiências dramáticas é deveras acentuada em Todos os que
Caem, porque, já atrás o anotei, nesta peça Beckett (como o explicita em carta a Aidan
Higgins) serve-se da memória de lugares e de gentes com que conviveu na infância, na
sua Irlanda natal; e conforme a minúcia de conhecedor do seu biógrafo James Knowlson
no-lo dá a saber: desde as coordenadas topográficas da estação ferroviária desta Boghill
de ficção serem concordantes com essoutra estação real chamada Foxrock, até à
referencialidade de inúmeros nomes próprios, inspirados por pessoas com quem o autor
se cruzara na juventude; donde destaco essa informação espantosa, dada por Knowlson,
de ser a protagonista Rooney o retrato transfigurado da «formidável educadora do
jardim de infância, Ida ‗Jack‘ Elsner» (Knowlson, p. 429) que Beckett frequentou,
entretanto, supõe-se, feita envelhecer pelo transcorrer dos anos, para habitar esta peça
purgatorial sobre o declínio e a queda como imagens obsessivas da existência. Fundidas
num acto único a bipartição que Beckett previu inicialmente para este texto (de novo
num símile com Godot), Todos os que Caem acompanha o trajecto de Mrs. Rooney pela
estrada que a conduz à estação de Boghill (cuja tradução possível é monte do pântano,
bem concordante com a colectiva queda inscrita no título). Ela é o centro da peça, visto
que esta se constitui por intermédio do encontro dela com diferentes personagens em
trânsito, até chegar ao destino desejado, regressando depois na companhia de Dan, o
marido invisual, junto do qual exerce uma função de guia. Encontros que são outros
tantos motivos para despoletar esse solilóquio intérmino que individualiza as
personagens de Beckett, numa expiação punitiva cuja causa desconhecem; e que faz da
vida, nelas, um misto de limbo expectante, purgatório moroso, e inferno de penas
repetitivas, previsíveis; e o Inferno de Dante, autor central para Beckett - de onde este
extraiu o protagonista Belaqua, seu alter ego de outras prosas - será mesmo citado por
Mr. Rooney, comparando-se a si e à mulher, na sua trôpega travessia, com o papel dos
condenados infernais.

«MR. ROONEY: Sim. Ou melhor: tu para a frente e eu para trás.


O par perfeito. Como os condenados de Dante, com os rostos
assentes nas nádegas uns dos outros: assim as lágrimas cobrir-
nos-ão mutuamente os traseiros.» (TOQC, p. 18)

Mas repare-se, bem antes deste momento textual, nas imagens de uma queda fisiológica
como putrefacção do corpo em vida (esse mesmo corpo incómodo da velhice que
dificilmente entra e sai do automóvel de Mr. Slocum que a transportará no final do
trajecto, e é por isso fonte de comédia), e logo a seguir, uma confissão de falha de afecto
(numa passagem que legitima o facto de Beckett afirmar que a sua escrita se tornava
subitamente sentimental quando escrevia na materna língua inglesa, pelo que a
expressão em francês será fuga a essa voz interior da anima) que Mrs. Rooney enuncia,
falando sozinha na sua via sacra, como se fosse uma versão feminina do Job bíblico.

97
«MRS. ROONEY: (...) Que fiz eu para merecer tudo isto - o quê?!
(Os pés arrastando-se) (...) Como posso continuar? Não posso!
Oh, vou simplesmente parar e deixar-me cair na estrada como um
grande bocado de geleia viscosa escorrendo de um frasco -
derramando-me molemente no solo para nunca mais tornar a
levantar-me. Uma coisa grande, espessa e mole, viscosa como
lodo - coberta de terra, de poeira e de moscas que, para ser
removida tivesse de ser despegada do solo com uma pá. (...) Oh,
eu sei que não passo de uma velha bruxa histérica, arruinada física
e moralmente pelo sofrimento, pela crua erosão da dor e da
vontade sempre insatisfeita e permanentemente incumprida, pelo
peso da própria gentileza e pela frequência regular do templo -
pela obesidade, pelo reumatismo e por toda uma existência sem
filhos. (Pausa. Entrecortadamente) Minnie! Minha pequena
Minnie! (Pausa) O amor - eu não pedia mais nada: um pouco de
amor todos os dias, um pouco de amor a cada dia, duas vezes ao
dia: cinquenta anos de amor-duas-vezes-ao-dia - como se se
tratasse nem sequer de amar mas de ir ao talho comprar carne de
cavalo com a estrénua perseverança de uma dona-de-casa
parisiense ocupando-se das suas compras. Que mulher normal
ocupa os seus sonhos mais profundos com o afecto?» (TOQC, p.
6)

Por estas auto-revelações a vamos conhecendo, em toda a sua humana singularidade, de


lucidez, senescência auto-consciente, e torrente interior monologante (ou não fosse ela
uma ascendente de Winnie, até porque o nome da sua filha morta Minnie em muito se
lhe assemelha, tendo Maddy por nome de solteira Dunne, ou seja duna, o lugar físico
onde Winnie se enterrará viva, conforme nos lembra Carlos Machado Acabado, em
preciosas notas à sua tradução portuguesa inédita desta peça, elaborada em 2000), fruto
de interacção com rostos conhecidos desse mundo exterior no qual ela se aventura, após
um período considerável de recolhimento em casa, por motivo de doença, segundo o
texto o deixa entender, na conversa com Mr. Barrell, o chefe da estação.

«MR. BARRELL: (...) Pois é, Mrs. Rooney, é um prazer vê-la aí,


a pé, toda afadigada outra vez. A senhora esteve tanto tempo
fechada lá em cima!

MRS. ROONEY: E não foi o suficiente, Mr. Barrell! (Pausa)


Quem me dera a mim estar ainda agora na cama, Mr. Barrell!
(Pausa) Quem me dera poder estar, toda repimpada, no conforto
da minha cama, deixando simplesmente que o tempo passasse por
mim e me fosse lentamente corroendo e consumindo sem requerer
esforço ou dor alguma da minha parte, comendo araruta e geleia-
de-mão-de-vaca - ah, poder ir desaparecendo, assim, a pouco e
pouco, debaixo da roupa da cama até ser possível, um dia, no
limite, confundir-me com o plano horizontal da própria cama!
(Pausa) E sem ter sequer tosse, nem expectoração; sem sangrar
ou ter vómitos, apenas mergulhando progressivamente na vida

98
superior - mas sempre recordando, sempre recordando (a voz vai-
se-lhe tornando entrecortada) como se... como se toda a estúpida
infelicidade... como se nunca tivesse existido... mas onde é que eu
meti o lenço? (Som do lenço a ser usado) (...)» (TOQC, p. 11)

Uma constante destes encontros de Maddy, não obstante o traço forte de uma paradoxal
e insana felicidade arrancada ao infortúnio (de que Winnie será depois o máximo
expoente), é a ideia inescapável de fim anunciado, de decadência vivente, fisiológica e
anímica, que contagia tudo e todos, de forma insidiosa, sofredora mas também risível,
nesse registo de humor negro habilmente cultivado por Beckett.

A poeira do caminho que é simultaneamente o pó da matéria viva decomposta; a lama, o


lodo e o omnipresente esterco como metáforas escatológicas de um fossar vivente; a
doença e a esterilidade biológica (o caso da filha de Mr. Tyler, a quem foram extirpadas,
conforme este informa Mrs. Rooney, as «coisas todas de dentro da barriga», TOQC, p.
7), a morte na infância (os casos da filha Minnie e da criança vitimada na linha); a morte
da linguagem, aflorada pelo diálogo entre o casal (e a morte, em particular, da língua
gaélica, às mãos da dominação inglesa); a imagem do naufrágio (do Titanic ou do
Lusitânia) pela lembrança da canção que os quasi-afogados entoavam... Eis alguns dos
tópicos recorrentes que invadem literalmente o texto numa exaustividade semântica que
amplia essa Queda originária grafada no título da peça, oriundo de um salmo do Antigo
Testamento, que Maddy e Dan citarão para depois dele se rirem «a bandeiras
despregadas» («in wild laughter»), em regresso a casa, quase no final da acção: «O
Senhor ampara todos os que caem e ajuda a erguer todos aqueles que Ele determinou
que se curvassem». (TOQC, p. 22) E quem cai, objectivamente, é uma criança na linha
férrea, que assim perde a vida, causando um atraso de quinze minutos no comboio em
que Dan viajava; havendo a suspeita de ter sido eventualmente o velho a empurrá-la,
segundo o desfecho da peça o deixa supor; quando Jerry, o moço de fretes (um duplo ou
irmão cénico do Boy que anuncia Godot, ou do rapazito «potencial procriador», que
Clov e Hamm avistam em A Última Jogada) vem de bicicleta na direcção de ambos
para devolver um objecto que parece uma bola, e que Mr. Barrell afirma ser de Dan,
mas que pode muito bem ter pertencido à criança (o sexo da criança nunca é
especificado) colhida pelo comboio - e daí a ansiedade inquiridora de Maddy, exigindo
que o marido lhe diga que objecto é aquele. Nunca o saberemos, mas a suspeição fica
levantada, acentuando o escárnio dúbio em relação ao conteúdo tutelar do salmo.

De resto, a abundância quase asfixiante de signos bíblicos e cristológicos, paródica ou


explicitamente evocados, é decerto um factor fulcral que deve orientar antes de mais
uma leitura mitocrítica da peça.

(Abundância esta capaz de relegar, para um segundo plano, leituras de analogia


helenizante, igualmente possíveis. Porque não deve esquecer-se o quanto este casal
contém de simbologia edipiana. Mr. Rooney é um velho cego, como Édipo a caminho
de Colono, e junta em si a sombra de Laio, inimigo da descendência, manifestando
impulsos filicidas numa verbalizada pedofobia; e Mrs. Rooney amparando-o, condensa,
freudianamente, as imagens de uma Jocasta sobrevivente ao suicídio e de uma Antígona
substituta, visto que a filha de ambos, Minnie, morreu na infância, conforme Maddy
amargamente o lamenta. Mas estas são leituras analógicas curiosas, porém secundárias
para o contexto simbólico que pretendo evidenciar.)

99
Abrindo com sons rurais de animais entre o arrastar de pés de Mrs. Rooney, a
significativa presença musical em fundo é de A Morte e a Donzela, de Schubert; e a
primeira frase da peça pode ser lida/ouvida como comiseração auto-referencial da
protagonista, que no ocaso do corpo se retrata: «Pobre mulher! Completamente só
naquela casa em ruínas!» (TOQC, p. 5) São três as pessoas que Mrs. Rooney encontra
antes de chegar à entrada da estação, todas elas homens, e cada um aparece num
diferente meio de transporte, cuja sequência não está isenta de significação alegórica:
primeiro a carroça de Christy, depois a bicicleta de Mr. Tyler, e finalmente o automóvel
de Mr. Slocum - que a levará de boleia - numa espécie de sequência evolutiva dos meios
de transporte, e do domínio humano da técnica, para percorrer um único e mesmo
caminho, em direcção à última estação de um percurso que é a existência.

Começa-se por Christy, o carroceiro, com um carregamento de esterco de porco, puxado


por uma mula. A paródia cristológica é óbvia, no nome próprio Christy (que, ao
contrário dos restantes, não é tratado por Mr., facto que, se indicia a sua condição social
humilde e/ou a familiaridade com a protagonista, expõe mais ainda a anedótica alusão
messiânica); e se bem que mais tarde Dan e Maddy evoquem a entrada de Cristo em
Jerusalém a cavalo num burro, aqui é uma mula (fêmea estéril, como o porco castrado,
de cujas cerdas se fazem escovas de dentes, mencionado por Willie em Dias Felizes) a
transportar este Christy, que pretende sem sucesso vender estrume a Maddy, num gesto
de alegórico sarcasmo (Christy chama mula do inferno ao animal, por esta se recusar a
andar; e chego mesmo a pensar, quando Maddy lhe pergunta pela «pobre mulher» dele -
ao que Christy responde que ela «não está melhor» -, se de facto não haverá aqui
intenção de atingir essa mulher simbólica que a retórica eclesial atribui ao próprio
Cristo, tão historicamente influente e poderosa na Irlanda de Beckett: ou seja, a Igreja
Católica). E atente-se ainda no jogo antroponímico implícito: Um Cristozinho (Christy)
que quer impingir algum do seu estrume a uma Louquinha (Maddy). Numa nota em
jeito de pista de leitura, o tradutor vê no nome Maddy, em primeiro lugar, o diminutivo
de 'Madeline' ou 'Madeleine' (TOQC, p. 25), isto é, uma referência à cristológica
Madalena, no que intensificará a simbologia dramatúrgica deste face-a-face inicial entre
ambos; o encontro inaugural da peça é entre uma velha Maddy e um Christy carroceiro,
do mesmo modo que é a Madalena, a mais afrodítica das santas cristãs, que Cristo se dá
a ver em primeiro lugar depois da morte por crucificação.

A peça encontra-se, de resto, saturada, como já o sublinhei, de menções bíblicas, ou de


contextualização religiosa, com o sentido de as parodiar sem gratuitidade; veja-se o
tratamento dado aos êxtases místicos de Miss Fitt, outra das figuras que encontra
Maddy no termo da sua viagem, e que ajudará a idosa, de forma quase relutante, a subir
os degraus de acesso à estação. Diz-nos esta alucinada Miss Fitt, que quando se
encontra dentro da Igreja, sozinha com o seu Criador («alone with my Maker»), não vê
ninguém nem sequer reconhece a sua velha conhecida Maddy. Não obstante o retrato
cómico da solteirona devota, no que um freudiano chamaria de neurose cristã, nele
coexiste a empatia com essas ausências quasi-xamânicas, que todos em seu torno
compreendem, e pressupõem um escape do sujeito face à ditadura do tempo comum.
Nesta peça onde comparece a memória de Jung, na longa citação de Maddy, de uma
conferência a que Beckett assistira vinte e um anos antes em Londres (1935), o autor
traduz em drama a convicção junguiana de que a crença é uma função da psique, mesmo
que ela conduza a comportamentos de aparente fuga à normalidade (e isto através de
Miss Fitt, cujo nome antecipa, como o assinalou Machado Acabado, os célebres
Misfits/Inadaptados de Arthur Miller, mas arrancados à vida dos actores que os

100
interpretaram nesse filme de culto de John Houston, porém com data de 1960, posterior
a esta peça); e não esqueçamos o quanto Beckett, ele próprio um paciente de
psicoterapias, se mostrou sensível na vida àqueles que designamos por mentalmente
alienados. Não é só riso que se produz na apresentação desta Miss Fitt, em ligação
directa com uma divindade cujo caminho ela encontra dentro de si mesma (no que é
uma marca característica da noção de transcendência interior gnóstica); a experiência
mística sempre foi transgressora das ortodoxias, porque invalida a função dos
intermediários eclesiásticos. De facto, Miss Fitt prescinde de sacerdotes-funcionários;
ela é uma crente em auto-gestão, que descobre os seus momentos de euforia na ascese
solitária dos altares. Schopenhauer não está longe de novo, quando afirmava, apesar do
seu tenaz ateísmo, que duas são as fugas à tirania da vontade cósmica: a representação
estética e a experiência ascética de renúncia subjectiva e consequente evasão de um eu
que carrega consigo o selo do mundo instrumentalizado.

«MISS FITT: (...) Mesmo depois de o serviço religioso ter


terminado, quando saio para o ar livre, durante os primeiros cento
e cinquenta ou duzentos metros, ando aos tropeções, como numa
espécie de sonho ou de transe, por assim dizer - e não consigo ver
nenhum dos outros paroquianos. E a verdade é que eles são muito
gentis, tenho de reconhecê-lo - a maioria, pelo menos: muito
gentis e compreensivos. Agora já me conhecem bem e não me
guardam ressentimentos. 'Lá vai ela! (dizem); 'Lá vai a Miss Fitt
sempre tão severa, tão concentrada, tão sozinha com o seu Criador
- não perturbem a sua concentração!' E afastam-se para evitarem
chocar comigo. (Pausa) Ah, sim, erro com frequência por outros
mundos interiores, completamente ausente - mesmo aos dias de
semana. Pergunte à Mãe, se não acredita. (...) 'Hetty, como é que
tu consegues ser tão distraída?' (Suspira) Suponho que a verdade é
que eu não estou aqui, Mrs. Rooney, que não estou realmente
aqui. Vejo, cheiro e essas coisas todas, faço os mesmos
movimentos que todos fazem - mas o meu coração está algures,
Mrs. Rooney, o meu coração não está de facto em nenhuma
dessas coisas. (...)» (TOQC, p. 12)

Miss Fitt é uma estrangeira face à vida; não tendo chegado ao grau limite dessa jovem,
tratada sem sucesso por Jung, que Maddy evoca, e que terá morrido pelo facto
paradoxal de nunca ter nascido para a vida. Como sempre em Beckett, o sofrimento de
existir é demasiado sério, e por isso mesmo, há que saber rir dele e com ele, para poder
sobreviver nele, homeopaticamente, com alguma sanidade (o biógrafo Knowlson
considera que a escrita de All That Fall reflecte em catarse criativa, dois anos passados,
o choque e a sensação de impotência vividos pelo autor junto do seu irmão Frank, um
adepto convicto da doutrina cristã, suponho que protestante, por ser a religião de
família, e que morrera de doença incurável, numa prolongada agonia: Knowlson, p.
430).

Aliás estou persuadido de que esta peça poderia ter o nome dantiano de A Humana
Comédia, na qual a Beatriz salvífica (expressão medieval do arquétipo que Goethe
designará por Eterno Feminino) é agora uma incomparável Louquinha ou, se quisermos,
uma emanação da redimida e liberadora Maria Madalena, a guiar o seu Dante (Mr.

101
Rooney chama-se Dan, não sabemos se de Daniel, se de um disfarçado Dante em
abreviatura). Os papéis invertem-se ou condensam-se, conforme os casos, como na
lógica do sonho: em vez de ser Dante que busca Beatriz, é a Beatriz Maddy que vai em
demanda dele, fazendo também as vezes de um feminino Virgílio cicerone deste cego
(numa genderização beckettiana, de céltica cepa, ao dotar de maior passividade as
personagens masculinas, se comparadas com a determinação e desenvoltura das
femininas, de que Winnie, Maddy e Nell são exemplos maiores), enquanto Dan mata a
visão pueril em si e por isso é literalmente cego e literalmente velho (esqueceu já a
idade que tem, como o demiúrgico Senhor do Tempo das aventuras gnósticas da minha
cénica Lianor no País Sem Pilhas: «Fiz cem anos, hoje?... Já tenho cem anos, Maddy?»,
TOQC, p. 18), fisicamente doente e inimigo mortal das crianças que representam em
concreto o potencial da vida e, simbolicamente, o tempo das gerações futuras; segundo
a confissão psicopática que ele faz à mulher:

«MR: ROONEY: Já alguma vez desejaste matar uma criança?


(Pausa) Arrancar um jovem destino directamente pela raiz - como
uma flor no botão. (Pausa) Muitas vezes, à noite, no inverno,
quando regressava a casa envolto no negrume da noite, estive
prestes a lançar-me sobre o rapaz. (Pausa) Pobre Jerry! (Pausa)
Que foi que me deteve, então? (Pausa) Não foi o medo físico.
(...)» (TOQC, p. 18)

E neste aspecto sinistro do seu perfil, radica um acesso possível ao título que motivou
esta minha leitura: ele é um sinal de Samael, o demiurgo cego. Na carta já referida a
Aidan Higgins, na qual Beckett traça a gestação prevista de Todos os Que Caem, para
além das referências a personagens e lugares reconhecíveis do seu tempo de meninice,
ele remata no seu estilo de críptica concisão, sobre uma personagem mais que por lá
deambulará: «e o Diabo cambaleando no fosso» («and the Devil tottered in the ditch»,
Knowlson, p. 428). Que diabo é este? perguntamos nós. E onde está ele na peça? Será
uma personificação respeitante às tendências infanticidas de Mr. Rooney? Estará esse
diabo implícito na própria (in)humana natureza de Dan Rooney, que assusta o chefe da
estação, deixando-o como se este tivesse visto um fantasma, quando encara com ele no
comboio à chegada? O mesmo Dan que dirá à mulher ter conversado no comboio com
os seus habituais demónios do ocaso. E o nome Dan, não poderá ser uma deturpação de
damn (danado), numa espécie de demonologia dantesca?

Foi por certo este tipo interrogações que terão levado Knowlson a estranhar a
abundância de signos religiosos (onde até da caixa de velocidades do carro de Mr.
Slocum se diz que está a ser crucificada) numa obra que, aparentemente, recusa
conferir-lhes veracidade, tal é a abordagem paródica (e semi-abjeccionista) a que os
submete.

«A peça radiofónica desenvolveu-se claramente do profundo


agnosticismo de Beckett. Contudo, um agnóstico que ataca um
Deus, que não existe, pelo facto de ser cruel e injusto está a
praticar um tipo de retórica particularmente vazia.» (Knowlson, p.
430)

102
A não ser que esse agnosticismo tenha bem mais que se lhe diga, como é minha
convicção, a partir das informações que os textos nos fornecem. É aqui que entra na
cena analítica a personagem do demiurgo. Como já referi nas páginas de Falar no
Deserto - Estética e Psicologia em Samuel Beckett (Lisboa, Cosmos, 2000), tendo em
conta o prazer de Beckett nos jogos onomásticos, para deles tirar significados múltiplos,
isto por um lado, e por outro, a sua declarada postura de irrisão existencial e religiosa,
habitualmente conotada como peculiar teologia negativa; é bem possível que o autor
tivesse conhecimento da proximidade entre o seu nome próprio e a designação dada
pelos antigos gnósticos (que ele lê, juntamente com Platão, Aretino e Aristóteles, na
biblioteca do Museu Britânico em Londres, em 1932, segundo o testemunha o biógrafo
Knowlson: p. 161) ao deus menor responsável pela criação do cosmos que habitamos:
Samael. É provável que a mundividência expressa nas suas obras tirasse partido dessa
analogia curiosa. Especulações à parte sobre o nome de Samael atribuído ao demiurgo,
o certo é que a inversão e subversão do sentido alegórico dos mitos tradicionais da
ortodoxia, característica da rebeldia exegética da imaginação gnóstica, é um dado
importante dos textos beckettianos, nomeadamente deste sobre o qual se detém a nossa
atenção. Para além das divergências entre as várias sensibilidades do gnosticismo
antigo, desde a visão marcionita mais desesperançada até à promessa viva da
iluminação hermética e alquímica (que inspirarão e encontram linhas várias de sintonia
em autores novecentistas como Pessoa, Artaud, Jung, Pascoaes, Philip K. Dick, António
Patrício, Jorge Luis Borges, Camus, Lawrence Durrell, Guimarães Rosa, Hermann
Hesse, Natália Correia e, entre os fisicamente vivos, o crítico Harold Bloom), a resposta
comum da interrogação gnóstica sobre a origem do mal e do sofrimento é a de conceber
uma dualidade cosmogónica altamente dramática. A questão gnóstica é que o mal e o
sofrimento não podem ser dependentes directos da responsabilidade humana (como a
interpretação eclesial do mito adâmico nos pretende fazer crer, ao culpar os humanos
por uma desobediência primordial); mas devem ser atribuídas ao autor que nos criou.
No entanto, se ele nos fez assim, é porque ele próprio não soube e/ou não foi capaz de
fazer melhor. A cegueira deste deus incompetente é a causa primeira de uma criação
falhada. Mas ele não está sozinho no trono universal. O gnosticismo é um monoteísmo
em fissão nuclear; a sua mitologia possui duas personagens centrais (para além de
outras entre as quais nós, humanos, nos incluimos, por sermos também pequenos
deuses, à nossa dimensão), raiz para um autêntico cosmodrama, dividido entre um deus
menor, arrogante e prepotente (que corresponde ao Javé brutal do Antigo Testamento),
fazedor do mundo físico, e carcereiro das divinas centelhas nas dimensões fenoménicas
do tempo, do espaço, e da morte (aprisionamento este de que se lamenta, por exemplo, a
personagem de Andrei no último acto de Três Irmãs de Tchekov, impedindo o
desenvolvimento genuíno das crianças da sua cidade); e um Deus estrangeiro e ignoto,
com o qual a nossa natureza interior tem afinidade (o Pai de Cristo, que comparece
apenas no Novo Testamento), mas que se encontra exilado deste mesmo universo de
que não é autor. E por isso também nós estamos exilados como ele, sujeitos ao
esquecimento perpétuo da nossa verdadeira origem transcendente.

A corrente literária existencialista no séc. XX, de cariz ateu, graças principalmente a


Albert Camus (que começou, curiosamente, por escrever uma tese de licenciatura sobre
Gnose e Neoplatonismo), constituiu-se como uma manifestação de gnosticismo dito
secular, isto é, conservando a sua inquietação profunda e exasperação consciente, mas
destituído da intuição da tal transcendência exilada que nos fala ao espírito, por este
possuir uma natureza que lhe é análoga. Mesmo assim, no vocabulário simbólico de
Camus abundam títulos de gnóstica ressonância: O Estrangeiro, A Queda, O Exílio e o

103
Reino, etc. Isto para dizer que a temática gnóstica, ainda que numa apropriação
exclusivamente secular moderna (apropriação esta que tem em Voltaire o seu primeiro e
importante expoente na Idade Moderna) está presente na geração intelectual que é
contemporânea da aparição de Godot nos palcos franceses. Cioran, o filósofo niilista
romeno, próximo de Beckett, também como este radicado em Paris, e com quem por
vezes almoça (e imaginar as conversas de ambos à mesa seria um belo exercício de
escrita dramática), é um interessado nesta matéria, e publicará mesmo um ensaio mais
tarde, em 1969, intitulado O Mau Demiurgo, onde desabafa que a história da cultura
ocidental teria sido bem diferente se se tivesse dado ouvidos ao heresiarca Marcião, o
mais pessimista de todos os antigos gnósticos (que alguns recusam mesmo em
classificar como gnóstico, dada a sua concepção demasiado deceptiva de salvação). É
ainda da responsabilidade do filósofo Hans Jonas a revitalização reflexiva, na 1ª metade
do séc. XX, em torno da antiga religião gnóstica, que inclui uma influente
reinterpretação desta à luz da mundividência existencialista; Gnosticismo e Niilismo
Moderno é um ensaio seu que surge em inglês em 1952 (anexado mais tarde como
epílogo da sua obra incontornável: The Gnostic Religion, 1958). E é claro que não
podemos esquecer aqui a importância do gnosticismo na psicologia analítica de Jung,
autor que impressionaria Beckett de forma perdurável, desde que com ele se cruzou ao
vivo em Londres, em 1935, (confronto este, entre Beckett e Jung, que foi central para a
minha abordagem em Falar no Deserto). E enfim, o próprio Beckett manifestará a sua
proximidade em relação à metafísica maniqueia, ao comentar que só o combate
perpétuo entre a Luz e as Trevas, que identifica esta corrente gnóstica dos primeiros
séculos da era cristã, poderia tornar compreensível a simbologia subjacente às
alternâncias luminoplásticas previstas para A Última Fita de Krapp, peça (muito
autobiográfica) escrita em 1958, a seguir a Todos os Que Caem. (E nos textos
maniqueus, os olhos, do género feminino no aramaico, são alegoria de receptividade
feminina face à luz fecundante do conhecimento; sendo luz do género masculino).
Porque ao contrário do que afirma Anthony Cronin, em Samuel Beckett: The Last
Modernist, com inaceitável ligeireza, não é minimamente crível que Beckett só
conhecesse do gnosticismo aquilo que consta no verbete da enciclopédia britânica
(Cronin, p. 486). Basta invocar um exemplo. Apaixonado como era pela obra de Dante,
razão pela qual aprendeu a língua italiana para a ler no original (tal como Joyce fizera
em relação à língua de Ibsen), e além do mais francófilo, é praticamente certo que
Beckett conhecia ou tinha notícia do polémico livro de Eugène Aroux: Dante hérétique,
revolutionnaire et socialiste; publicada em França em 1853 e reeditada em 1939, que
desenvolve uma tese de leitura iconoclasta d' A Divina Comédia, ao ver nela um fruto
imenso da heresia albigense (neomaniqueia), disfarçada com as vestes próprias para ser
aceite pela Igreja Católica, e para que o seu hábil autor pudesse escapar ileso à fogueira.
Quanto mais não fosse pelo prazer do sarcasmo, e com o intuito de atingir as ortodoxias
cristãs dominantes (católica e protestante), esta visão subversiva, de um Dante cátaro
escondido na odisseia medieva que escreveu, devia ser do maior interesse para a
imaginação dramática de Beckett. Ora o radicalismo das heresias neomaniqueias
medievais traduz o dualismo, que esquematizei atrás, dos gnósticos antigos, por uma
leitura que identifica o demiurgo com Satanás, fonte do mal e da matéria mortal, e
príncipe deste mundo, enquanto o verdadeiro Deus continua a ser exterior a este
cosmos, de que ele não é autor, mas onde a nossa alma expia penosamente o seu
fascínio pela criação diabólica.

Agora voltemos a Todos os Que Caem, e com estes dados olhemos para vários
pormenores sintomáticos. As inúmeras referências do texto ao demoníaco agrupadas,

104
em especial, em torno de Dan Rooney não são casuais; esta personagem parodia a
criação falhada de um Javé demiúrgico, porque criado à imagem e semelhança dele,
assim a sua condição é a de um velho cego, doente e decrépito, com impulsos
psicopatas. Mas ponhamos a hipótese de que em Dan Rooney nós temos a condensação
(de novo um topos de interpretação onírica, que bem se quadra a uma peça plena de
ambiguidades como esta) entre uma figura humana e a representação simultânea do
demiurgo cego Samael, dos gnósticos, numa troça de heresia hierológica ao Deus uno
dos monoteísmos dominantes (troça esta que Beckett acabara inclusive de personificar
no cego paralítico Hamm de A Última Jogada, no qual inscreveu múltiplas irrisões
teológicas). E em benefício desta minha perspectiva, elucidou-me o tradutor Carlos
Machado Acabado que Dan em inglês é um termo que designa, nada mais nada menos,
do que um indivíduo católico romano; mas também, pasme-se, um guarda de latrina
pública (e com efeito Dan dirá à mulher que se encontrava na casa de banho dos homens
desde que o comboio parou). Um sarcasmo radical no seu mecanismo excremencial de
inversão e implosão sémicas (esse teatro da derrisão, na expressão cunhada por
Emmanuel Jacquart, que tem em Beckett o seu mais acerado gume).

Numa pluralidade de níveis hermenêuticos (entre o real objectivo representado e as


imaginações simbólicas que dele emanam e nele se projectam), especialmente aplicável
a textos de intenção alegórica como A Divina Comédia, Dan Rooney não seria somente
esse velho escriturário cego com passe para a viagem de comboio, que comenta a rotina
remediada do seu dia-a-dia repetitivo, de funcionário; ele pode personificar, em leitura
arquetípica, o demiurgo cego dos gnósticos, identificado por eles com o Javé
veterotestamentário e que, para os cátaros, seria sinónimo do demoníaco tirano do
mundo físico. Isto poderia explicar certas passagens enigmáticas (para não buscarmos
refúgio em exclusivo no termo absurdo, cujo uso aplicado ao seu teatro desagradava
Beckett, não obstante a fortuna crítica que o conceito conheceu, na moldagem sólida
com que Martin Esslin o dotou, depois de o haver colhido no ensaio de Camus O Mito
de Sísifo - Ensaio sobre o Absurdo, de 1943), como seja aquela em que Mr. Rooney
pergunta pela idade que tem; e Maddy em vez de responder-lhe, começa a enunciar
todos os seres que observa em redor deles, para concluir que não há quem lhe saiba
responder - isto é, todos os seres inanimados, bem como os muitos animais que pululam
em ruído na peça, integram a criação e participam portanto da alienação mesma de que
sofre o seu fazedor. Jamais lhe poderão responder a esta pergunta sobre as suas origens.
E por isso ela conclui: «Estamos sós. Não há ninguém a quem perguntar.» (TOQC, p.
18) Um elemento perturbador é o facto de Mr. Rooney anunciar à sua mulher que se
deseja reformar, para espanto do leitor/ouvinte, nesse mesmo dia em que a mulher diz
ser o dia do aniversário dele. Ora que função profissional poderá ainda exercer
cabalmente esta personagem cega e corroída de achaques? De que escritório será ele
assalariado? E na busca pela «psicanálise dos nomes» (de que fala o tradutor Machado
Acabado), exigida por esta como por outras peças de Beckett, temos de recordar o nome
da estação Boghill, o monte do pântano, que pressupõe a queda e o afundamento.
Caminhar no seu sentido pode significar um gesto sacrificial; como parece que sucedia
com os ritos dos antigos celtas, que davam oferendas aos deuses, colocando-as nos
pântanos (bogs) para submergirem. Bog pode soar foneticamente como jogo de
aliteração com god, para além de ser simultanemente partícula que remete para
demónios (bogeys) ou para charlatanice, farsa, fraude (bogus). Dan chega mesmo a
dizer de si mesmo: I'm agog, numa dessas charlas sonoras que parecem soar a uma
confissão satírica auto-referencial (I'm a god): de ser ele de facto a representação
humanizada de um deus menor.

105
Daí que Dan Rooney, personagem da peça que sucede a Godot na sua pública
realização, possa ser visto como um retrato possível desse mesmo Godot, que continha
os sinais alegorizantes para ser identificado como demiurgo cego. Da leitura desta peça
multívoca, destinada apenas pelo seu autor a ser ouvida, materializou-se esta minha
arriscada hipótese hermenêutica. Talvez ficção da imaginação mitocrítica. Mas Godot
pode muito bem ser esse diabo cambaleando no fosso, camuflado no rosto de Dan
Rooney. E assim sendo, a criança que ele empurrou para cair na linha poderá ter sido o
Boy que era seu crístico mensageiro em À Espera de Godot. Beckett é sério e paródico
em simultâneo, como é sabido: auto-cita-se e baralha dados anteriores. O Godot como
demiurgo cego em Mr. Rooney é um Javé filicida que mata o seu simbólico filho
cristológico. E como Javé que é, apenas se pode dar a conhecer através do som, da fala,
e nunca da visão. Por isso, Beckett proibirá a montagem em palco ou ecrã de Todos os
que Caem. Godot, qualquer que seja o seu figurino, jamais se dará a ver, porque ele
próprio não vê nada além de si, no seu autismo déspota. E como toda a palavra é
polissémica, demiurgo significa artífice e obreiro; ou seja, é também a imagem do
artista. Beckett encontra-se então espelhado no Samael de Dan Rooney: a cegueira do
velho dependente nesta sexta-feira de um Junho em que as folhas apodrecem,
amontoadas de todos os anos anteriores, de todos os Verões da vida acumulados. Sinais
nele de um demiurgo mítico e psicoactivante? Vestígios de auto-retrato alegórico do
autor? Talvez tudo isso reunido num Dante cego guiado, na purgatorial poeira dos
caminhos, por uma Beatriz idosa e enfermiça. Um poeta das trevas (essas trevas que o
auto-biográfico Krapp confessa serem a sua melhor e mais forte fonte criativa, em
Krapp's Last Tape/A Última Fita de Krapp) projectado no velho pueril que odeia
crianças, de braço dado em casamento com a sombra da sua inesquecível educadora de
infância.

Évora/Lisboa, Novembro/2002 - Agosto/2003

Armando Nascimento Rosa

Referências bibliográficas

BECKETT, Samuel, The Complete Dramatic Works, Londres, Faber & Faber, 1990.

BECKETT, Samuel, Todos os que Caem, trad. de Carlos Machado Acabado, 2000,
dactiloscrito inédito com notas de leitura.

CRONIN, Anthony, Samuel Beckett: The Last Modernist, Londres, Harper Collins,
1996.

KNOWLSON, James, Damned to Fame. The Life of Samuel Beckett, Londres,


Bloomsbury, 1996.

PAGELS, Elaine, Os Evangelhos Gnósticos, trad. de Luís Torres Fontes, Porto, Via
Optima, 1999.

_______
* Uma versão inicial deste estudo foi apresentada como conferência em 15 de
Novembro de 2002 no Teatro Garcia de Resende, em Évora, numa sessão promovida
pelo Cendrev (Centro Dramático de Évora).

106
O AGENTE DUPLO

FRANCISCO PROENÇA GARCIA


Professor da Academia Militar

107
Este texto corresponde à resposta a um desafio lançado por uma boa amiga para
participar no colñquio ―Discursos e práticas alquímicas‖. Com ele pretendemos
contribuir para desmistificar a actividade de Intelligence, que subsiste no imaginário
português ainda com alguns fantasmas e incorrectas interpretações que têm tornado os
Serviços de Informações impopulares. A nível académico também tem faltado o debate
e a reflexão sobre estas temáticas (1).

Neste texto, ao falarmos de Informações, referimo-nos a Intelligence, que não se pode


confundir com informações policiais, criminais ou mesmo políticas. Inicialmente
procuramos sumariamente justificar por que motivos são indispensáveis as actividades
de Intelligence para qualquer unidade política, organização ou empresa, bem como a
razão pela qual carecem de um controlo seguro; para depois detalharmos um pouco as
fontes desta actividade, nomeadamente o papel do ―agente duplo‖.

As Informações desempenharam um papel de relevo na arte de governar ao longo de


toda a História. Para Maquiavel, o Príncipe necessitava de estar sempre informado,
devendo pensar nas desordens futuras e não apenas nas presentes, pelo que devia servir-
se de toda a habilidade para as evitar, pois, prevendo-as à distância, com mais facilidade
as poderia remediar (2).

Vivemos hoje num período em que se assiste à construção de uma nova ordem
internacional, caracterizada por um mundo interdependente, praticamente globalizado,
da era da informação; onde os teatros de operações estão mundializados; onde as
soberanias são múltiplas e partilhadas; onde proliferam os riscos e perigos, uns novos,
outros velhos, mas que apenas subiram na hierarquia das actuais preocupações das
unidades políticas com a segurança; onde também cresce gradualmente o poder de
outros actores não estatais. Num mundo com estas características cremos que ―(...)
nenhum país, por mais poderoso que seja, pode conceber uma política externa, de
defesa, económica ou qualquer outra sem dispor das informações que proporcionam o
conhecimento essencial, sobre o qual tais políticas assentam (...)‖ (3). Esta frase de um
―velho Senhor‖ da Intelligence portuguesa, espelha bem a necessidade de as unidades
políticas disporem de serviços especializados que prestem apoio isento e esclarecido aos
diversos órgãos de soberania.

Os serviços de Intelligence são imprescindíveis para uma unidade política, organização


ou empresa (4), numa perspectiva defensiva e ofensiva. A primeira procurando
identificar vulnerabilidades e ameaças conduzidas contra interesses (permanentes ou
conjunturais), a segunda visando projectar os interesses, influenciar, determinar e
condicionar o quadro geopolítico, geoeconómico e mesmo geocultural de determinados
espaços e áreas consideradas como vitais (5).

Ao nível das unidades políticas, as actividades de Intelligence devem apoiar, entre


outras, a missão das Forças Armadas (6), em tempo de paz e de guerra, podem e devem
apoiar a actividade diplomática e a actuação das forças de segurança. No mundo
consumista e competitivo de hoje, também as organizações e as empresas necessitam de
―gabinetes‖ especializados em informações estratégicas econñmicas, actividade
designada por vezes por competitive intelligence.

108
O enquadramento dos serviços de Intelligence nas democracias estabilizadas ocidentais,
onde em princípio impera a transparência e o reconhecimento do direito das liberdades e
garantias dos cidadãos, pressupõe que esta actividade seja fiscalizada e controlada
política e judicialmente, tendo em vista, no mínimo, a responsabilização democrática
dos mesmos serviços (7). Contribuem também em larga medida para o controlo dos
serviços, os órgãos de comunicação social. Ao nível da empresa, as regras são
normalmente as dos preços e mercados, da concorrência, sendo o controlo feito pelos
mercados de capitais, pelos media e pela opinião pública, normalmente mal informada e
facilmente instrumentalizada.

O facto de, ao nível das unidades políticas, existir um controlo que contribui para a
transparência das actividades desenvolvidas pelos serviços de Intelligence, não significa
que, em termos funcionais, estes não disponham de formas de actuação próprias, em
regra, através de práticas e técnicas ―pouco ortodoxas‖ para o cidadão comum, com
grande autonomia, ao bom estilo da série televisiva ―Vingadora‖ ou do famoso James
Bond. Contudo, sempre com o garante do controlo sobre as actividades operacionais
―cobertas‖, para que estas não ultrapassem as ―franjas da legalidade‖. As operações
―cobertas‖ ou de espionagem das empresas são dificilmente controladas, e cremos que
dependem apenas da ética empresarial; quando detectadas, devem ser punidas
judicialmente.

Para serem capazes de desempenhar a sua missão, os serviços ou órgãos de Intelligence


carecem de fontes, que, hoje, apesar de vivermos numa sociedade de terceira vaga, na
expressão de Alvin e Heidi Tofler, permanecem com a mesma tipologia: fontes abertas,
fontes cobertas e serviços congéneres (8).

Na comunidade de intelligence existe uma velha premissa pela qual aproximadamente


90% das informações são obtidas por via aberta e os 10% por via coberta, procurando
assim salientar-se a importância dos chamados operacionais, os homens que andam no
terreno, vulgo espiões, relativamente aos analistas, os homens de gabinete. Hoje, esta
destrinça tende a esbater-se com o emergir do designado analista operacional, que
também efectua a gestão de fontes.

Seja qual for o tipo de fontes, o grande problema que se coloca é a gestão dessas
mesmas fontes, pois, a ―avalanche‖ de dados obtidos - a matéria-prima fundamental -
por quaisquer meios e processos HUMINT (Human Intelligence), IMINT (Imagery
Intelligence), COMINT (Communications Intelligence), dificulta o trabalho de selecção
criteriosa e sobretudo atempada, para uma análise consistente desses mesmos dados.

A HUMINT, depois do 11 de Setembro, assume vital importância, e aqui


acompanhamos Sun Tzu, para quem ―(...) a presciência ou previsão não podem ser
deduzidas dos espíritos, nem dos deuses, nem por analogia com acontecimentos
passados, nem por cálculos. Ela deve ser obtida por homens que conhecem a situação do
inimigo (…)" (9). Independentemente da quantidade e sofisticação dos meios, o futuro
depende sobretudo da capacidade de produção de intelligence através da utilização de
agentes infltrados ou de preferência de agentes duplos, que forneçam informação
humana.

Para não fugirmos ao tema deste pequeno texto, vamos cingir-nos apenas às fontes
cobertas, cuja principal caracterísitica é a dissimulação. Dentro destas fontes podemos

109
considerar o agente duplo, que pode ser entendido como um elemento de um serviço de
intelligence de uma unidade política, organização ou empresa, que, por ―traição‖
também serve uma outra unidade política, organização ou empresa. Estas situações
ocorrem normalmente por falta de observação e controlo, assim permanecendo até uma
eventual detecção. Os fundamentos dessa ―traição‖, entre outros, podem ser ideolñgicos
ou financeiros. Os agentes duplos e a sua dupla personalidade levantam um problema
para aqueles que dirigem serviços ou órgãos de Intelligence: a quem entrega o agente
duplo a sua fidelidade?, a quem serve efectivamente? e até quando?.

Devemos também destrinçar entre ―agente infiltrado‖ e ―agente duplo‖, ambos no


entanto considerados como uma actividade de espionagem. O agente infiltrado é
colocado propositada e predefinidamente no interior de uma organização adversária, por
um serviço ou órgão de Intelligence, com o intuito de obter informações.

Os agentes infiltrados, secretos e informadores, já referidos por Sun Tzu (10),


conduzem um conjunto de actividades necessárias para o conhecimento do adversário,
como alterar informações, corromper ou subverter oficiais ou mesmo "(…) exacerbar a
discñrdia interna e fomentar o Quinta Colunismo (…)" (11). Estes agentes podem ser
empregues em simultâneo, mas não podem ser suspeitos, não se podem desmascarar
facilmente (12).

No confronto Poder português/FRELIMO, as partes utilizaram profusamente esta


figura. A PIDE infiltrava elementos na organização subversiva,
subornando/chantageando ou forçando quadros daquela Frente. Por outro lado, a
FRELIMO, para além de utilizar mulheres na recolha de informações (13), colocava os
seus agentes em locais chave da Administração e do Comando-Chefe, como era o caso
do irmão de Joaquim Chissano que pertencia ao Gabinete do General Kaúlza de
Arriaga.

Ao longo da História foram inúmeros os agentes duplos que ficaram famosos. No


período da guerra fria estas situações proliferaram (14). Lembramos, por exemplo, Kim
Philby, nome de código Stanley ou Agent Tom, cuja vida está na base do livro de
Graham Greene, The human factor.

Kim Philby, nascido na Índia mas filho de ingleses, converte-se ao comunismo quando
estudante em Cambridge no ano de 1929. Foi recrutado pelo KGB (Komit
Gosudarstvennoy Upravleni) soviético em 1934, em Viena, onde se encontrava de
férias, altura em que recebe instruções para se ―infiltrar‖ no aparelho de Estado
britânico, de preferência na área do Intelligence. Em Londres consegue fazer-se
membro de uma organização de extrema direita, a Anglo-German Fellowship, e em
1936 acompanha a guerra civil espanhola ao lado de Franco, como correspondente do
London Times. Em 1939 o MI6 (Secret Intelligence Service), sem uma verificação
cautelosa sobre o seu passado, recruta-o para o Departamento D (sabotagem e
propaganda). Em 1941 é transferido para analista na área da contra-espionagem em
países estrangeiros, e em 1944 é nomeado para a Secção IX (combate à subversão
soviética e operações de Intelligence), aquilo que ironicamente pode ser considerado
como o homem certo no local certo. Em 1949 é colocado como chefe de um dos postos
mais importantes, Washington D.C., o que lhe permitiu não só aceder a documentação
do MI6 mas também da CIA (Central Intelligence Agency).

110
Depois de quase ter sido desmascarado pelo longo braço oculto da CIA num episódio
complexo no ano de 1951, Philby é chamado de novo para Londres, sendo-lhe vedado o
acesso a material considerado com interesse para o KGB, e sendo mantido sob
vigilância. A partir de 1961 a situação complica-se estreitando-se o ―cerco‖, e em 1963,
de Beirute, onde trabalhava com a cobertura de correspondente de um jornal, Philby
foge para Moscovo, onde o esperava um asilo político doirado, mas, por falta da velha
questão da efectiva confiança, sem aproveitamento no Intelligence local. No ano de
1980, Yuri Andropov convida-o para consultor das operações na Grã-Bretanha. Morre
em 1988, tendo merecido honras militares correspondentes ao seu posto, General.

Um outro agente duplo que ficou famoso foi Oleg Penkovsky, nome de código Chalk,
Yoga, entre outros. Este Coronel do GRU (Glavnoye Razvedyvatelnoye Upravleni)
soviético, numa tarde de Agosto de 1960, sobre uma ponte em Moscovo, aproxima-se
de um casal de turistas norte-americanos e, arriscando a vida, entrega-lhes em mão um
envelope para entregarem na CIA. Com esta atitude Penkovsky colocava-se à
disposição da América para espiar a seu favor.

As dúvidas iniciais desta estranha oferta rapidamente se dissiparam quando o Coronel


começa a fornecer um considerável volume de documentação de informação
classificada de Muito Secreta, sobretudo sobre tecnologia militar, bem como a
identificação de centenas de agentes do GRU espalhados pelo mundo. Penkovsky, que
pretendia apenas ser um ―soldado para a paz‖ acabou por ser apanhado numa armadilha
montada pela KGB em 1963 e, como era tradição, queimado vivo perante o olhar
impotente dos seus ex-colegas.

Hoje, no pós guerra fria, a espionagem é sobretudo industrial e processada entre


japoneses e norte-americanos, chineses e japoneses, chineses e norte-americanos, etc.,
visando sempre a obtenção de uma mais valia para o mercado e a redução de
investimentos em I&D e custos na aquisição de patentes.

As actividades de espionagem revestindo as mais diversas formas e utilizando um


grande leque de meios, sempre existiram e existirão, pois não esqueçamos que esta é
considerada a segunda mais velha profissão do mundo.

NOTAS

(1) Em Portugal merece referência, como um dos poucos destaques, o trabalho


desenvolvido pelo General Pedro Cardoso, do qual apenas uma pequena parte foi
publicada – vide CARDOSO, Pedro – "As informações em Portugal, Nação e Defesa",
Instituto de Defesa Nacional, reedição de 1993, e mais recentemente destacamos os
contributos de ROGEIRO, Nuno – "Guerra em Paz: A Defesa Nacional na nova
desordem mundial". Lisboa, Hugin Editores, 2002, AAVV, Coordenação de
MOREIRA, Adriano e GARCIA, Proença, "Informações e Segurança - Estudos em
Homenagem do General Pedro Cardoso". Lisboa, Prefácio, 2003 (no Prelo), e alguns
contributos do General Chito Rodrigues, do Dr. Rui Pereira, do Dr. José Magalhães e do
Dr. Pedro Esteves, dispersos por algumas publicações periódicas.

(2) MAQUIAVEL, Nicolau, ―O Príncipe‖. Lisboa: Publicações Europa América, 1977,


pp. 21-22.

111
(3) CARDOSO, Pedro, ob. cit., pp. 227 - 228.

(4) A este propósito devemos consultar o magnífico texto Informação, Informações &
Estratégia Económica e Empresarial do Professor Ernâni Rodrigues Lopes, in
Coordenação de MOREIRA, Adriano e GARCIA, Proença, "Informações e Segurança -
Estudos em Homenagem do General Pedro Cardoso". Lisboa, Prefácio, 2003 (no prelo).

(5) ROMANA, Heitor, O novo modelo do terrorismo islâmico: desafios à análise em


informações estratégicas, in Coordenação de MOREIRA, Adriano e GARCIA, Proença,
"Informações e Segurança - Estudos em Homenagem do General Pedro Cardoso".
Lisboa, Prefácio, 2003 (no prelo).

(6) Clausewitz refere também a importância das informações ao considerar o termo


informações como o "(…) conjunto de conhecimentos relativos ao inimigo e ao seu país
e, por consequência, a base sobre o qual se fundamentam as nossas próprias ideias e os
nossos actos (…)". In, Clausewitz, Carl Von, ―Da Guerra‖. Lisboa: Ed. Perspectivas e
Realidades, 1976, p. 127.

(7) Sobre este assnto podemos encontrar detalhes interessantes em CARDOSO, Pedro,
ob.cit. pp.143 - 151, e em ESTEVES, Pedro, Estado e informações: uma perspectiva
sistémica, in Coordenação de MOREIRA, Adriano e GARCIA, Proença "Informações e
Segurança - Estudos em Homenagem do General Pedro Cardoso". Lisboa, Prefácio,
2003 (no prelo).

(8) Podemos consultar GRAÇA, Borges, Metodologia da análise nas informações


estratégicas, in Coordenação de MOREIRA, Adriano e GARCIA, Proença
"Informações e Segurança - Estudos em Homenagem do General Pedro Cardoso".
Lisboa, Prefácio, 2003 (no prelo), ou mais detalhadamente D'AMUALE, Geoffroy e
FAURE, Jean - Pierre, "Guide de L´espionage et du contre-espionage. Histoire et
techniques". 1998.

(9) TZU, Sun, "A Arte da Guerra", Lisboa, Ed. Futura, 1974. p. 235.

(10) Para Sun Tzu, "(…) somente um soberano iluminado e um general valoroso é que
são capazes de empregar as pessoas mais inteligentes como agentes e estarem certos de
alcançar grandes resultados (…)"; Sun Tzu considerava cinco espécies de agentes
secretos: o nativo, o interior, o duplo, o queimável e o vivente. "A Arte da Guerra", p.
120 e seguintes.

(11) GRIFFITH, Samuel, na Introdução de "A Arte da Guerra", de Sun Tzu, ob. cit., p.
21.

(12) MUCHIELLI, Roger, ―La Subversion‖. Paris: CLC, 1976, p. 78.

(13) ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO, Boletim de Informação, N.º 16, Abril de


1966, Reservado, p. 12.

(14) Podemos verificar inúmeros exemplos na obra que utilizamos como fonte para este
texto da autoria de VOLKMAN, Ernest, "Spies - The secret agents who changed the
course of History". London, 1994.

112
UMA ESPIRITUALIDADE NIETZSCHEANA?
GLEDSON SOUSA

Nunca um filósofo viveu tão intensamente seu próprio pensar quanto Nietzsche,
realizando a perfeita fusão entre vida e obra, apesar do seu final dramático. Dos dias

113
nascentes da convivência com Wagner até chegar aos dias eufóricos de Turim, onde em
poucos meses produz obras de um poder estupendo (O Anticristo, O Crepúsculo dos
Deuses, Ecce Homo... ), seguidos dos dias de loucura que se prolongam até sua morte,
nunca um filósofo vivera tão intensamente seu próprio pensar, nunca se vivera tão
passionalmente a busca da verdade e da transformação espiritual quanto Nietzsche. O
que procuraremos mostrar aqui é que a atitude nietzscheana preconiza o ambiente
espiritual de nossa época e se coloca na vanguarda do espírito, vivenciando um universo
que de alguma maneira já havia sido vislumbrado anteriormente, mas que em Nietzsche
se livra de sua capa religiosa e cristã para ganhar as asas do além do homem.

Não é possível haurir, de Nietzsche, algo que seja semelhante a um sistema, filosófico
ou espiritual, porque antes de tudo ele foi um filósofo assistemático; reconhecia na
sistematização a incapacidade de garantir para o pensar o poder do devir. Mas ele é o
epicentro de uma crise de transformação subterrânea da consciência européia, sua
experiência mais radical e profunda, de onde podemos , aí sim, tirar um rol de
experiências e atitudes de transformação, além de um pensar que fundamenta essa fusão
entre vida e obra. O que importa em Nietzsche não é somente o que se enuncia, o que se
articula verbalmente desde sua toca do pensar, mas o que se expressa além do pensar
consciente, aquilo que é uma transfiguração das forças do inconsciente e que trazem à
tona o pensar trágico, dionisíaco.

Pensar Nietzsche a partir do dionisíaco é estabelecer um anel em torno da vida e do


pensar, de modo que o filósofo come sua própria cauda: o pensar que começa em O
Nascimento da Tragédia termina nos bilhetes da loucura onde ele assina de Dionisio
para Ariadne. Mas essa trajetória não é simplesmente o anunciar dos ecos da loucura até
a loucura plena; ela é, antes de tudo, a concretização de forças que se expandem de
dentro para fora numa ânsia plena de transformação.

Seguindo o curso do próprio pensar nietzscheano, podemos dizer que Nietzsche,


enquanto filósofo, é equivalente a Ésquilo, no sentido de ser um pensar que se faz
instintivamente, intuitivamente, como o próprio Nietzsche falava de Ésquilo
comparando-o com Eurípedes, para quem o poetar era resultado de suas inclinações
intelectuais e não de seus instintos artísticos. Por isso que ele é o filósofo trágico por
excelência, porque nele as contradições se desenvolvem livremente, seguindo o curso de
sua natureza transformadora e dialética, instintiva mesma.

Sob os passos de Nietzsche, tentaremos construir uma linha de continuidade espiritual


entre os hiatos de seu pensar e os abismos de sua vida, para encontrar assim os ecos de
uma espiritualidade nietzscheana.

II

É preciso ter cuidado com as palavras; tanto quanto o pensar, tanto quanto os hábitos e
todas as predisposições adquiridas pelo homem ao longo de milênios, as palavras vêm
revestidas de sentido adquirido, de modo que é preciso despi-las de suas roupagens , é
preciso deixá-las nuas para que possamos assim aproximar-nos de sua verdade. Isso
para lembrar que palavras como espiritualidade, alma e psique, que frequentemente
aparecerão no texto, estão nuas, ou seja, é preciso despi-las de sua conotação cristã para
serem devidamente compreendidas.

114
É necessário que, em retrospecto, passemos por alto o que era a espiritualidade
emergente na Europa de Nietzsche: em primeiro lugar, havia um ateísmo crescente,
teoricamente derivado de fontes variadas - seja dos sensualistas do sec. XVIII como
Condilac e Helvetius, ou seja derivado da chamada esquerda hegeliana, que congregava
nomes tão díspares quanto Feuerbach, Bruno Bauer, Marx e Max Stirner, sem falar no
ateísmo Schopenhauriano. Em todos eles o ateísmo aparece como uma convicção
teórica, uma constatação filsófica: deus fora um episódio voraz da história da
consciência humana, mas a tocha do iluminismo viera tirar o homem do seu sono
sombrio. A ratio seria a guia segura, a qual tiraria o homem dos becos escuros da
história. Stirner, numa crítica antropológica radical, dizia que era preciso o homem se
livrar de seus fantasmas culturais e conhecer a si mesmo para conseguir se realizar.
Nesse aspecto, de que o homem é que faz a si mesmo e que a única coisa concreta
existente é o seu si mesmo, o único e ele mesmo, ainda que seja uma idéia derivada da
alienação hegeliana, a idéia de Stirner é próxima da crítica de valores Nietzscheana.

A única diferença, e é uma diferença radical e fundamental ao mesmo tempo, é que a


experiência da negação de deus por enquanto fora uma experiência teórica, de negar um
postulado - deus existe - por outro postulado - deus não existe -, sendo que permanecia
intocado o núcleo fundamental da civilização cristã, seus valores morais. Nietzsche será
o primeiro a colocar a importância de se negar não só ao deus cristão, mas aos
fundamentos psicológicos da cristandade, à sua fundamentação moral. E para isso
realizará a mais radical crítica de valores já empreendida.

O ateísmo do século XIX era uma expressão tardia das idéias renascentistas de devolver
ao homem seu papel no universo, mas se desenvolvera num universo teórico-
psicológico marcado pelo cientismo positivista que por sua vez vinha inserido de idéias
cristãs. Os conceitos de igualdade da sociedade burguesa bem como o conceito de
evolução darwiniana são imbuídos de valores cristãos: a democracia é uma expressão
direta da igualdade cristã, e a idéia darwiniana de uma evolução que é progresso,
aquisição para os melhores fins é, como toda idéia de progresso, cristã até a medula, é
Santo Agostinho na Cidade de Deus, é Joaquim de Fiori com as idades do pai, do filho e
do espírito santo. Ao mesmo tempo que bandeira do iluminismo, o fundo raso do
ateísmo do século XIX serviu para diminuir o homem, reduzí-lo a coisa, transformando-
o no objeto perfeito para o uso do capitalismo em expansão.

Ao mesmo tempo, a psicologia do inconsciente começou a fazer progressos incipientes,


bem como se expandiram as doutrinas esotéricas ( a teosofia, o martinismo, etc,) numa
demonstração clara que a sociedade cristã falira não só socialmente mas principalmente
como produtora de valores, de novos valores

O esoterismo e o ocultismo de fins de século resgatavam ao homem sua dignidade, sua


grandeza, que fora roubada pela revolução industrial e pelo ateísmo, tão apressado que
fora de matar deus que esquecera de não assassinar também o homem. Modelo do
super-homem nietzscheano poderia ser Zanoni, personagem homônimo do romance
ocultista do escritor inglês Edward Bulwer Lyton; Zanoni é um ser misterioso que vive
a alguns milênios, tem sua própria moral ( vai aos teatros, bebe, ainda que não se
embriague, provoca indiretamente a morte de um inimigo, desiste da imortalidade para
se casar com uma cantora de ópera e morre na guilhotina, na época da revolução
francesa ) e que sofre com a solidão de sua imortalidade.

115
Sei que Nietzsche não leu o Zanoni, pelo menos não há conhecimento disto, mas tanto o
Zaratustra quanto Zanoni são próximos em temas que eram caros a Nietzsche: a solidão
do homem superior, o desprezo pelas massas, a coragem das grandes tarefas espirituais,
o risco, a tragédia, e expressam aquilo que deveria ser uma convicção íntima de uma
elite da inteligentsia europeia, a de que o homem é responsável pelo próprio destino
frente a si mesmo e frente a eternidade, e que fazer o próprio destino é arriscar na
solidão.

Nietzsche compreende como ninguém que é preciso ir aos subterrâneos de si mesmo e


da história para desenterrar de si os fantasmas de deus e de tudo o que obstacularizaria a
libertação do homem. Ele reunirá todas as armas para provar o niilismo do cristianismo;
não se trata simplesmente de negar teoricamente o deus cristão e seu credo: é preciso
destruir os fundamentos psicológicos que permitiram a criação do deus cristão, é preciso
dar à realidade, à natureza, sua própria face, se quisermos compreender a vida em sua
dimensão correta.

A atitude de Nietzsche, seu esforço para se livrar dos valores cristãos, niilistas, é única:
é como se a história o tivesse como ponto de passagem, e ele fosse a vanguarda,
voluntária ou não, de um mundo por nascer: Nietzsche antecede a psicanálise com sua
visão dos processos inconscientes e de que a moral esconde valores que em si são
imorais; a diferença maior estaria na forma terapêutica adotada por Nietzsche, que na
realidade não é terapêutica mas maiêutica, pois visa a uma transformação total de si
mesmo.

Ao mesmo tempo, com sua crítica da sociedade burguesa e da democracia, Nietzsche


atinge o cerne moral do capitalismo, a sua apatia de valores, sua mercantilização da
moral. Ao agir em defesa da terra ( o lema do Zaratustra é fazer da terra uma terra para
o super homem ), Nietzsche também antecede, só que numa visão mais ampla, as
discussões sobre ecologia e sobre a defesa da vida.

III

Não posso, e não devo, ceder à tentação de transformar Nietzsche num digerível
almanaque acadêmico para ser lido nas salas institucionais, nos debates onde homens de
olhar arrogante dizem aquilo que Nietzsche provavelmente não pensara. Essa é a pior
imagem que se poderia fazer de um filósofo que não foi um erudito, um scholar, mas
sim, antes de tudo, alguém que sofreu com a busca da verdade, de sua verdade, bem
como sofreu com a luta por uma transformação espiritual.

Sei que abandonando a severidade da forma acadêmica, as citações, a procura


coordenada de uma imagem e de um discurso que se mostre acadêmico estarei cedendo
terreno à subjetividade, ou ao que se pretende subjetividade, pois , na realidade, como
separar os diferentes fios que formam o tecido da vida, ainda mais quando se é uma vida
como a de Nieztsche ? Sei que cedendo à literatura, estarei descaracterizando a tentativa
teórica. Mas também sei que é impossível compreender Nietzsche sem vivenciá-lo por
dentro, sem procurar compreendê-lo dentro de sua perspectiva, sem abandonar a
segurança da ratio e compreender que pensar é fazer, pensar é agir.

Não para assimilar a experiência nietzscheana à minha própria, não para me tornar um
discípulo, Nietzsche-Zaratustra já havia alertado sobre a inutilidade da crença ( e o que

116
é um discípulo senão alguém que crê ? ) quando disse ― Não tínheis procurado vñs
mesmos; então encontrasteis a mim. Assim acontece com todos os crentes, por isso a fé
tem um valor tão insignificante.‖ Não, a leitura de Nietzsche servira para apontar a
busca de um caminho próprio, um caminho para a formação e libertação de si mesmo,
porque Nietzsche aparecera como o filósofo de uma experiência de vida e não de uma
teoria de vida.

Não há como permanecer indiferente a leitura de livros como o Also Sprach Zaratustra
ou La Gaya Cienza, justamente porque Nietzsche, a par de elaborações teóricas que são
surpreendentes, fala uma linguagem simbólica, e o símbolo é o elemento atemporal e
universal da linguagem, de modo que ele fala ao nível de uma experiência que é
possível a todos, no plano psíquico. Mircea Eliade dizia que ―As imagens, os símbolos e
os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e
preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidade do ser‖, o que em
Nietzsche vai se revelar, principalmente no Zaratustra, numa corrente simbólica que
vem varrer a água estagnada dos velhos valores cristãos para mostrar a vida
transvalorizada, poderíamos até dizer sublimada, sem corrermos o risco de parecermos
excessivamente freudianos na interpretação da simbologia de Nietzsche.

O símbolo é inesgotável, mesmo em Nietzsche. As elaborações teóricas, sejam de Freud


ou mesmo de Jung, quanto ao simbolismo nietzscheano, podem mostrar uma das faces
do pensamento e da orientação psicológica de Nietzsche, mas não esgotam outras
possibilidades interpretativas. É impressionante quanto o Zaratustra se elabora em cima
de metáforas e símbolos, como ele consegue reunir as aspirações de um pensamento
revolucionário, prestes a reordenar o mundo, com o fluxo de imagens inconscientes,
arquétipos, na apresentação de um outro universo de valores, na tentativa fundante de
revelar um outro mundo, não um mundo além, mas a terrível imanência e devir deste
mundo.

Todo criador sabe o quanto é difícil se situar entre os extremos da razão e do


inconsciente, na criação ou elaboração de uma obra, e o Zaratustra é o exemplo
perfeito, acabado, desse delicado equilíbrio. Se Nietzsche advogara a não existência de
deus como uma premissa teórica para se libertar das amarras do niilismo cristão, do
além metafísico, é no Zaratustra que ele vai expor isso não como premissa teórica, mas
como libertação axiológica ( desculpem-me a pomposidade da expressão ) - e o exprime
em símbolos, em imagens carregadas de metáforas. A obra se articula como um
poliedro prismático onde a luz refletida sobre umas das faces reflete também sobre a
outra, de modo que todas imagens se correspondem num dado momento e num dado
plano. Há uma linguagem soberana, senhora de si, porque sabe que precisa da
solenidade para abrir os olhos para o novo mundo que ela traz. De alguma maneira, por
se articular sobre os valores do inimigo - o cristianismo - , a linguagem às vezes lhe é
tão próxima na articulação dos temas, ao mesmo tempo que totalmente distante no
horizonte moral. Numa aproximação grosseira e despreocupada, sem nenhuma intenção
de ser um aporte teórico, há uma semelhança entre o Zaratustra e Les Chants de
Maldoror, nisso de se utilizar de temas ou articulações literárias do universo cristão,
seja para negá-las, como é o caso do Maldoror, seja para superá-las, como é o caso do
Zaratustra, o que é coerente com o eixo de valores sobre o qual se articula cada um dos
livros: a assunção do mal no Maldoror e a superação do bem e do mal no Zaratustra.

117
Um episódio do Zaratustra ilustra bem a dinâmica simbólica de todo o livro, é o
episódio do pastor que Zaratustra encontra com uma serpente negra pendendo-lhe da
boca; Zaratustra tenta, a todo custo, tirar-lhe a serpente da boca, mas não o consegue,
então grita Morde, morde, arranca-lhe a cabeça, morde!, ao que o pastor obedece-lhe e
arranca a cabeça da serpente e ele se transforma. Os componentes simbólicos do
episódio são evidentes: a serpente é um símbolo por demais antigo para que fosse
deturpado pelos exegetas de Nietzsche - ora representa as forças instintivas, as energias
da natureza em livre manifestação - como a serpente Ófion no mito Pelásgico ou a
serpente que rodeia o universo, nos mitos egípcios, ou as forças do inconscientes ( e não
é o inconsciente a expressão das energias da natureza em nós ? ); no caso do pastor, a
transformação ocorrida após cortar a cabeça da serpente talvez represente a
transformação psicológica ocorrida após a assimilação do inconsciente, a incorporação
das forças instintivas-naturais do homem. Na Índia, a serpente kundalini é a
representação das forças criadoras na natureza e no homem, sendo que no homem é a
própria energia sexual. O grande objetivo das correntes tântricas que advogavam uma
yoga sexual (a prática do maithuna)- era a correta transformação da libido em energia
criadora consciente - na linguagem simbólica, a ascensão da kundalini pelo canal
medular, na sua mítica viagem de chacra em chacra; quem o conseguisse fazer se
transformaria numa espécie de super-homem.

O Zaratustra sempre representou, para Nietzsche, um episódio culminante: no Ecce


Homo ele alude ao fato de que era incapaz de ler oZaratustra e não chorar, tão grande
era o impacto da obra sobre ele. Ao dissertar, ainda no Ecce Homo, sobre a gênese do
Zaratustra , ele relembra do estado de transe ao escrever a primeira parte, como se
tomado por uma revelação ou uma inspiração toda-poderosa que tomou conta dele. Ele
sabia que, ao escrever o Zaratustra , estivera muito mais que simplesmente fazendo
elaborações teóricas, ele sabia que o Zaratustra era a expressão do ápice de um
processo espiritual em curso, ele sabe que abre as portas para um novo mundo, para
uma nova compreensão da vida. Como expressão e sintoma de um processo espiritual
em curso é que o Zaratustra é tomado de símbolos, metáfora e mitos. Nietzsche intenta
criar um novo mito, do super-homem sem deus, de uma força totalmente nova num
universo já concebido sem deus.

Pode-se dizer da transformação espiritual que terá sua culminância na época do


Zaratustra , que ela vinha em curso desde a infância. Jung denominará esse processo de
transformação espiritual de individuação, a tentativa do indivíduo de descobrir e
assumir a própria face, e seguindo uma orientação Nietzscheana, mas não só
Nietzscheana - já que essa é uma distinção comum a todas as escolas esotéricas -, afirma
que esse processo só acontece com pouquissímas pessoas, mas que é um processo
natural, instintivo mesmo. Desde a infância que Nietzsche procurará se afastar da
massa, procurando encontrar os valores que lhe correspondam. O afastamento da
família também é consequência desse processo de mudar sua primeira natureza para
encontrar sua verdadeira natureza ou segunda natureza, o que significa mudar
radicalmente a própria face cultural e psíquica. Sua escrita será sempre arena, palco e
laboratório, onde luta - consigo mesmo e com os outros -, onde ele aparece, tentando
mostrar sua face e onde ele faz experiências consigo mesmo, se transformando, se
construindo.

Depois do apogeu, a queda: todo processo espiritual comporta um componente


paranóico que é inerente ao próprio processo - não há como separar o real e o irreal na

118
teia da subjetividade, há sempre o risco de se literalizar um conteúdo psíquico, o risco
de se tomar o arquétipo pela sua forma. A lucidez consiste justamente em aceitar a
ambiguidade própria da vida, a impossibilidade de realizações absolutas ou de
proposições absolutas. Se a Paranóia é um delírio de interpretação, como dizia Karl
Jaspers, o delírio Nietzscheano começa quando ele confunde o particular com o geral,
quando, às forças que irrompem nele, não sabe reconhecer aí sua esfera subjetiva, mas
acredita-se continente e conteúdo, acredita-se o próprio Dionísio e não seu servidor...

Se não dá para separar num processo aquilo que é início e fim, pois tudo é continuidade,
não dá para separar a lucidez da loucura nietzscheana, ou melhor, não dá para separar a
lucidez da loucura: loucura e lucidez são só pontos de vista de uma sociedade que
precisa classificar os processos psíquicos para melhor controlá-los. A loucura
nietzscheana é resultado de sua lucidez. Um ditado grego dizia : os amados dos deuses
morrem cedo. A loucura de Nietzsche foi a sua morte.

IV

A aventura nietzscheana é uma tentativa de se libertar do absolutismo moral e religioso


do cristianismo. Não foi a primeira tentativa nem a última. Ainda hoje, mesmo com o
fracasso real da religiosidade cristã em dar respostas sérias às perguntas da vida, as
bases sobre as quais a sociedade foi erguida é feita de tijolos cristãos: a igualdade e a
democracia, pilares ideológicos da chamada sociedade democrática, são, em sua
essência, resultado do evangelho do nazareno. Antes de Nietzsche outros pensadores já
haviam tentado romper a malha do absolutismo cristão, e sabiam que só destruindo a
base do cristianismo, o conceito de deus mesmo, é que poderiam quebrar o monopólio
das consciências, característica principal do cristianismo. Seja repensando o conceito de
deus e do universo, como Giordano Bruno, afirmando a pluralidade dos mundos, bem
como a infinitude do universo, seja criando uma nova mitologia capaz de responder às
necessidades psíquicas das almas de um novo mundo, como William Blake, Nietzsche
já tivera antecessores: Pico de la Mirandola já pressentira a grandeza do homem, magos
e alquimistas insistiam na capacidade de transformação do homem e dos germes da
grandeza possíveis no humano, Da Vinci mostrara a genialidade também moral, acima
de todas as expectativas, mas Nietzsche vai além ao solapar o solo fundante da cultura
cristã. Caso singular é o de Blake: fundador de uma mitologia própria que se aproxima
dos mitos da queda de Sophia dos antigos gnósticos, Blake, nos Proverbs off Hell, com
sua elaborada linguagem aforística, expõe os subterrâneos da moral, como no provérbio
Prisons are built with stones of Law, Brothels with bricks of religion. Blake também
abomina a idéia cristã da separação entre corpo e alma, e não concebe uma redenção
humana que não seja também uma redenção do corpo, com o corpo e para o corpo.
Também é partidário de uma ética aristocrática, não da aristocracia de sangue, mas da
distinção entre massa e indivíduo, como expressa no provérbio One Law for the lion &
ox is opression. Mas como vislumbrar um mundo novo se não entrando em ruptura
profunda com seu tempo, senão arriscando a solidão de criar novos mundos ? Como
suportar a solidão da busca da verdade se não temos sobre nós a sombra de deus?

Essa é a experiência da ruptura nietzscheana: ele sabe que é preciso varrer com o
pântano da idéia de deus, mas sabe também quão dolorosa é arrancar de si o solo sobre
o qual se erguia os fundamentos não só de uma cultura, mas de toda uma história, de
toda uma trajetória não somente do homem, mas da psique humana no caminho de seu
crescimento espiritual.

119
É quase simbólico que Nietzsche tenha morrido em 19OO: 19OO é o ano da publicação
de A Interpretação dos Sonhos, de Freud, bem como é o início de um século que, passo
a passo, verá caírem por terra todas as certezas, todas as falsas esperanças de uma
civilização que construíra seu edifício moral sobre terreno pantanoso, ao ponto de a
civilização se ver ameaçada pelos poderes de seus próprios instrumentos, sem que o
homem conseguisse determinar o curso de sua história. As promessas milenaristas, os
discursos de salvação das religiões e dos partidos políticos revelaram sua impotência
histórica, e hoje estamos frente a uma cultura e civilização que só sobreviverá se cada
indivíduo agir como uma mônada responsável não só pelo seu destino, mas também
pelo destino do planeta. Nietzsche tinha razão: não recebemos a vida de graça. É nossa
contribuição para com a vida não só ajudar a mantê-la, mas defendê-la, transformá-la,
para que não haja um além a nossa espera, mas que nossa terra seja ela a terra do além

Pode parecer contraditório falar em espiritualidade nietzscheana, já que o próprio


Nietzsche procurou desfazer o encanto metafísico que dominou a filosofia durante
séculos. Longe de nós querer imputar ao filosofo uma imagem que não lhe corresponda,
muito menos uma imagem metafísica. Mas não se pode negar que há, em Nietzsche, um
conjunto de atitudes frente a vida que tem a ver com uma busca pela ―verdade‖, ainda
que essa busca tenha de ser entendida no sentido dado pelo próprio Nietzsche, de ir ao
encontro da imanência e do devir.

Como agente de uma profunda transformação de si mesmo e do terreno filosófico onde


constrói sua obra, o que sobra para seu discurso é pouco após tantas demolições por ele
empreendidas (Rudiger Safranski). É pouco e é muito, ao mesmo tempo: pouco, das
palavras gastas por milênios ou séculos de uso consagrado, pelas mesmas avaliações,
pelo mesmo destino comum dado ao vocabulário, pelas mesmas atribuições de valor; e
muito, pelas novas possibilidades que se abrem a partir de seu pensamento: é um mundo
onde não há acaso nem propósitos ( La Gaya Cienza ) , onde a própria causalidade é
julgada e descortina-se um universo de continuidade entre os seres e as coisas. Nesse
sentido, Nietzsche é um continuador de Heráclito.

Se, ao falar de uma espiritualidade nietzscheana dou uma impressão de um Nietzsche


metafísico, isso deve-se mais a falta de um vocabulário adequado ou a minha
incapacidade de dar a imagem que quero. O que tem de ficar claro é que o universo
vislumbrado por Nietzsche não tem nada a ver com o além metafísico ou cristão.
Mesmo quando fala do eterno retorno, ele o concebe como uma possibilidade científica
de repetição das mesmas condições de existência de um fenômeno com o mesmo
quantum de energia em jogo. Só que para esse mundo falta ainda a visualização, a
produção de imagens que lhe corresponda. Quando Nietzsche critica o conceito de
causalidade no aforismo 112 do livro III de La Gaya Cienza, afirmando que ao invés de
causa e efeito o que há é um permanente fluxo, uma continuidade entre eventos, mal
vislumbramos o que isso representa, tão acostumados estamos aos conceitos da física
que durante tanto tempo nos foram apresentados como verdade. Quando se fala numa
reação química, p.e., se fala no início e no fim do processo, mas não há início e fim, há
um fluxo permanente que leva a um desfecho, há transições, uma transformação que na
realidade é contínua, não está separada por eventos distintos no tempo espaço, mas sim
ocorre em fluxo. Entrevemos o que não há para nossa própria segurança, para nosso
ordenamento do mundo. Todo nosso conhecimento atual é, portanto, ilusão. Nossos

120
órgãos de conhecimento também estão viciados em procedimentos lógicos e percepções
epistemológicas que falseiam o conhecimento, ou melhor, falseiam o conhecido, que no
fundo permanece desconhecido.

A mesma crítica pode ser feita quanto ao conceito de corpo, ou do que é orgânico ou
inorgânico: numa percepção orientada para o fluxo, para o devir, o próprio corpo é
também inorgânico, já que nos níveis mínimo em que se estrutura o que há são
elementos. O mais correto é dizer, como o fez Nietzsche num dos fragmentos póstumos:
não há o inorgânico, e o próprio corpo só aparece como unidade, como mônada, no
confronto com os outros corpos, quando precisa afirmar sua individualidade.

Quando no Ecce Homo Nietzsche diz que é dinamite pura, de alguma maneira tinha
razão: as possibilidades abertas por sua crítica de valores levam muito além de uma
mera crítica, mas exigem, na realidade, uma nova fundamentação do conhecido em
perspectivas pouco imaginadas.

O Zaratustra é, em parte, a fundação imagética desse novo mundo, um caudal de


metáforas e imagens que expressam um novo conteúdo espiritual, ausente de deus e do
pecado, mas com inúmeras profundidades.

A espiritualidade nietzscheana é sem espírito, se imaginamos o espírito como ente,


como unidade. Sejamos metafóricos, sejamos mitológicos: o espírito é um oceano
comum e nossa efetividade só aparece quando a vontade de poder atua, transformando-
nos numa gota de onde todo o oceano pode se refletir.

Há um aforismo de La Gaya Cienza, o de No. 124 do livro III que expressa a sensação
de Nietzsche ao explorar o novo universo vislumbrado; ele se chama No Horizonte do
Infinito, e diz ―Deixamos a terra firme e embarcamos ! Queimamos a ponte - mais
ainda, cortamos todo laço com a terra que ficou para trás! Agora, tenha cautela, pequeno
barco! Junto a você está o oceano, é verdade que ele nem sempre ruge, e às vezes se
estende como seda e ouro, como devaneio de bondade. Mas virão momentos em que
você perceberá que ele é infinito e que não há coisa mais terrível que a infinitude. Oh,
pobre pássaro que se sentiu livre e agora se bate nas paredes dessa gaiola! Ai de você, se
for acometido de saudade da terra, como se lá tivesse havido mais liberdade - e já não
existe mais ―terra‖.

VI

Foi a confluência das dimensões simbólica e racional numa práxis ativa que me fez ver
em Nietzsche um precursor daquilo que agora chamo de espiritualidade nietzscheana, e
que se traduz em: a- superação do conceito de deus; b-compreensão das possibilidades
do homem como criador de valores; c-superação da moral pelo uso de um código
próprio de leis; d-disciplina e persistência para buscar criar um outro mundo. Como
falei, essa não foi uma exclusividade nietzscheana : a gnose antiga já alertara sobre a
inocuidade da moral sobre os indivíduos e salientara o fato de que o caminho espiritual
era feito de exceções e não de regras, mas a gnose tinha como eixo a idéia de deus,

121
ainda que o conceito de deus entre os gnósticos já diferisse radicalmente do conceito
cristão ortodoxo. Como dizia Antonio Machado: Caminante / no hay camino / el
camino se hace / al caminar.

Em um mundo renitente por aceitar as transformações que se fazem necessárias ainda


encontramos, ao lado daqueles que apostam numa vida nova, livre dos antigos erros do
homem, aqueles que apostam no velho mundo, de um deus fundamentalista e cego,de
um deus neurótico, que não ama a vida. Num eco nietzscheano, Samael Aun Weor,
fundador daquilo que ele próprio denominou de gnose moderna, no livro La Revolucion
de la Dialetica falava: Somos partidarios de un politeismo moderno fundamentado en la
psicotronica. (... En la Revolucion de la Dialetica, los términos bien y mal no se
emplean, como tampoco los de evolucion e involucion, dios e religion... Não fora
Nietzsche que dissera Que todas as coisas são batizadas na fonte da eternidade e além
do bem e do mal; mas o bem e o mal mesmo não são mais que sombras interpostas,
úmidas aflições e nuvens passageiras? E disse também: Noutros tempos, quando se
olhava para os mares longínquos, dizía-se:‖Deus‖, mas agora eu vos ensinei a dizer:
―Super-homem‖. Deus é uma conjetura, mas eu quero que vossa conjetura não vá mais
longe do que a vossa vontade criadora. Poderieis criar um Deus ? Pois não me faleis
de deuses! Poderieis, contudo, criar um Super-homem? Na Gaya Cienza, Nietzsche
alude ao fato que as religiões pudessem ser o prelúdio de algo muito maior que só agora
começa a se esboçar.

Porque a via nietzscheana é uma via artística, e só sob a arte se resolvem as


contradições do conhecimento, enquanto que a psicanálise, a psicologia profunda, o
marxismo, o cristianismo e tantos outros ismos, correntes espirituais e científicas, na sua
pretensão de libertarem o homem se converteram em dogmas ou em fábricas de
normalidade, a filosofia nietzscheana permaneceu com seu caráter aberto de via
espiritual, porque se recusou para si a imagem de um sistema ou dogma, porque tomou
para si as águas do devir para um batismo próprio. Não há soluções definitivas, há o
devir. Não podemos parar a música do mundo, essa é a tragédia do homem...

Um universo sem deus, sem leis e sem acaso, porque leis e acasos são
antropomorfismos; a possibilidade de uma existência singular no além do homem,
lembrando que o além do homem é a junção da imanência e do devir, porque o homem
é uma ponte para algo maior, mas esse algo maior já está nele, in potentia; a luta por
viver com dignidade, dando à vida a nossa paga, nosso presente por tudo que ela nos dá,
a gratidão para com a vida, a alegria de existir, de viver : tudo isso Nietzsche viveu, não
como quem exibe pomposa e academicamente suas teorias, mas do fundo trágico de sua
existência, de sua desesperada tentativa de vivenciar a verdade e de sepultar o velho e
falso mundo que ele conhecera. Ouvira a flauta de Dionisio e se tornara seu porta-voz:
Dionisio queria mostrar a eterna alegria de existir, mesmo quando o discurso de um
deus fala pela voz da loucura.

Referências Bibliográficas

NIETZSCHE, Friedrich

122
O Nascimento da Tragédia ( ou Helenismo e Pessimismo ) - Tradução, notas e Posfácio
de Jacó Guinsburg; São Paulo: Comp.das Letras, 2000

A Gaia Ciência – Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza; São Paulo:
Comp. das Letras, 2001

Além do Bem e do Mal – Prelúdio a uma filosofia do futuro – Tradução, notas e


posfácio de Paulo César de Souza; São Paulo: Comp. das Letras,2001

• Caso Wagner - Um Problema para Músicos / Nietzsche contra Wagner – Dossiê de


Um psicológo - Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza; São Paulo: Comp.
das Letras,1999

• Obras Incompletas - Volume das coleção Os Pensadores – Seleção de textos de Gerar


Lebrun, Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho; São Paulo: Ed. Abril,1996

O Anticristo – Maldição do Cristianismo – Tradução de Mário Fondelli; Clássicos


Econômicos Newton, Rio de Janeiro: Ed. Newton Compton do Brasil, sd

Assim Falava Zaratustra – São Paulo: Ed. Martin Claret,2000

Ecce Homo – Tradução de Pietro Nasseti; São Paulo: Ed. Martin Claret,2000

Fragmentos Finais - Seleção, tradução e prefácio de Flávio R. Kothe; Brasília – São


Paulo: Ed. UNB/IOESP,2002

MULLER-LAUTER, Wolfgang

A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche – Apresentação Scarlet Marton, tradução


de Oswaldo Giacoia Jr.;São Paulo: ed. Annablume,1997

SAFRANSKI, Rudiger

Nietzsche, Biografia de Uma Tragédia - Tradução de Lya Luft; São Paulo:Geração


editorial, 2001

ELIADE, Mircea

Imagens e Símbolos – Ensaio sobre o Simbolismo Mágico-Religioso - Trad. Sonia


Cristina Tamer, São Paulo Ed.Martins Fontes,1991

STIRNER, Max

O Falso Princípio da Nossa Educação – Tradução de Plínio de Augusto Coelho, São


Paulo:Ed. Imaginário,2001

WEOR, Samael Aun

La Revolucion de la Dialetica – São Paulo: Ed.Sol Nascente, SD

123
CALASSO, Roberto

Os 49 degraus –Tradução de Nilson Moulin, São Paulo: Ed. Comp. das Letras,1997

HILMAN, James

Paranóia – Tradução de Gustavo Barcelos, Petrópolis: Ed. Vozes,1997

GLEDSON SOUSA nasceu em Juazeiro do norte, Ce, Brasil, em 1972. Desde


1991 vive em São Paulo. Escritor e poeta, publicou O AntiMidas – poemas (São
Paulo, Ed.Jano,1998 ), Martina – Monólogo De Um Homem Para Sua Alma
(São Paulo,2001 Ed. Ibis Vermelho) e O Roubo da Alma - conferência (São
Paulo, 2003, ed. Autor e Sind. dos Bancários de São Paulo). Pesquisador da
alquimia e das correntes esotéricas, procura a confluência de ambas nas novas
formas da psicologia e na filosofia nietzscheana. Em dezembro (2003) lançará
O Ovo –Meditações sobre a Semântica do Mundo (Ed. Jano).

A RELIGIÃO QUE ANDA NO AR


OU QUE ARES ANDAM PELA RELIGIÃO?

PAULO MENDES PINTO

124
Nesta era pós 11 de Setembro (o de 2001, é claro), tomou-se efectiva consciência de
como o fenómeno religioso não estava, ao modo positivista de ver a evolução humana,
posto de parte.

Habituámo-nos a ver a religião como um aspecto cada vez mais periférico do nosso
Mundo Ocidental, um campo retrógrado, ultrapassado; no fundo, o tal ópio do povo que
proclamava Marx há mais de um século – mais tarde ou mais cedo, o sentido das
sociedades era o esquecimento das religiões, a sua subalternização face a novos desafios
da humanidade. E, de repente, aí estava ela.

A afirmação de Malraux, ao dizer que o século XXI seria religioso ou não seria,
ganhava foro de plena realidade.

Mas a situação de um certo, e plenamente confirmado, «retorno do sagrado», já havia


sido longamente equacionada por inúmeros filósofos, teólogos, antropólogos, entre
outros (por cá, basta salientar o livro homónimo em que colaboraram dois
investigadores deste Centro: Ana Luísa Janeira e José Augusto Mourão).

Que a tão proclamada morte de deus redundou em ressurreição parece não haver dúvida.
Desde os anos sessenta que se assiste a um contínuo e sustentado crescimento de grupos
religiosos até então quase inexistentes.

Mas este retorno do sagrado a que é que corresponde, no quadro dos saberes? É aqui
que nos centramos. Por exemplo, nos tais anos sessenta a que me refiro, viu-se o(s)
meio(s) católico(s) portugueses a afirmarem a necessidade de um local, de uma
instituição, que desenvolvesse o trabalho e a reflexão no campo teológico. Esta busca
terminaria com a criação da Universidade Católica e com a instituição de um curso de
licenciatura que não se destinava apenas ao sacerdócio.

Actualmente, a situação parece paralela no sentido em que muito de religioso se busca e


se vive, mas é significativamente diversa quando auscultamos a necessidade que as
pessoas sentem em investigar, em obter conhecimento sobre as religiões.

De facto, a licenciatura que na Universidade Católica se criou para dar formação em


teologia católica tem tido poucos alunos. As várias escolas e seminários protestantes
estão a viver difíceis dias, quase não tendo alunos (algumas fecharam mesmo). Por fim,
a única licenciatura que existe em Portugal e que se centra sobre o fenómeno religioso
fora de qualquer campo confessional, a licenciatura em Ciência das Religiões da
Universidade Lusófona, também corre o risco de fechar as portas por falta de alunos.

Ora, este quadro parece-nos claro: vive-se a religião, vivem-se as práticas religiosas,
mas essa vivenciação em nada implica uma busca de conhecimento (nem conhecimento
teológico, confessional, nem conhecimento científico).

***

Como podemos compreender melhor este quadro? Vejamos mais alguns tópicos de
reflexão.

125
Em Portugal está consignada a liberdade de ensino no que concerne ao espaço
confessional na escola. De facto, e trata-se de um princípio constitucional, todas as
confissões se podem candidatar a um espaço escolarizado, no ensino secundário, para
uma disciplina de «Religião e Moral».

Há cerca de dez anos que o mundo evangélico efectivou esse direito, a par com a
tradicional prática de católicos.

Na recente reforma curricular, ambos os universos religiosos antes apontados, católicos


e evangélicos, repudiaram a saída da disciplina confessional do espaço curricular. Isto é,
apesar de a disciplina já antes ser opcional, o facto de ela sair da formulação base do
curso secundário mereceu o seu desagrado.

Porquê esse desejo tão forte de manter a religião dentro do espaço escolar? Será que só
se consegue manter esse espaço através da força dos decretos, dos diplomas legais?

Ora, as confissões em causa parecem não perceber que desta forma apenas estão a
perpetuar uma cada vez mais fraca relação com a sociedade civil. A religião não é aceite
por todos, é imposta. Torna-se guetto.

Obviamente, só vão a essas aulas os que já estão confessionalmente integrados. Ora,


grande parte da população portuguesa não está, de facto, confessionalmente integrada.
Isto é, grande parte da população nacional não fica com cultura religiosa alguma a não
ser, eventualmente, a transmitida pelos media.

Mas mais. E onde estão todas as sensibilidades que não encontram na mediatização a
sua forma de expansão? Enfim, quer umas quer outras, estão confinadas a si mesmas,
numa não dinâmica de conhecimento que resulta no quadro antes apontado.

***

Podemos percorrer mais um campo de reflexão para melhor compreender a situação.

Recentemente, já em Setembro deste ano de 2003, teve lugar uma importante reunião
ecuménica. Mais uma vez, a 17ª, a Comunidade de Sto. Egídio, reuniu um grupo
significativo de religiosos ou simples interessados pelo fenómeno religioso, para debater
temas próximos do ecumenismo e da sã convivência religiosa. Desta vez o local
escolhido foi Aachen / Aix-la-Chapelle, na Alemanha, e o tema central é «Entre guerra
e paz, religião e cultura encontram-se».

Ainda há pouco tempo, o palco foi Portugal, com especial acolhimento da Fundação
Mário Soares – figura pública que também participou no encontro que agora decorreu.

Desde 1968, no clima do pós Concílio Vaticano II, que esta comunidade realiza estes
encontros. Têm todo o sentido num mundo que actualmente cada vez vê mais a religião
como uma parcela significativa da guerra e dos fundamentalismos, e cada vez menos
como uma parte e peça fundamental da paz e das culturas humanas.

126
Na antiga capital de Carlos Magno, lá se encontram líderes religiosos de muitas
confissões, centenas deles, entre os quais alguns iraquianos que equacionam
profundamente o destino do seu pais.

Mas a situação destes encontros leva-nos ao equacionar de um problama que nos parece
central: qual o peso destes encontros na verdadeira vida das confissões e dos seus
crentes. O que destes tão bem intencionados encontros passa para os efectivos líderes
religiosos, para a sua relação com os crentes de outras religiões, para a relação entre
credos que, de facto, deveria ser pacífica e garante da paz entre as nações?

Já 17 vezes estes encontros se deram. Já muita gente morreu em nome de Deus desde
então.

Que falha? Estaremos perante uma aberta tentativa de ecumenismo, ou estaremos


simplesmente perante um grupo pioneiro que pouco eco tem dentro das suas confissões?

Mas mesmo a escolha de Aix é complicada pelo peso simbólico que tem. Sede do poder
da Carlos Magno (na passagem do século VII para o IX), aí se centrou
administrativamente a nascente luta entre o Islão e a Cristandade (O Islão chega à
Península Ibérica em 711). Nessa época, ecumenismo era palavra que nenhum
significado teria. A guerra pela expansão da fé era um dado adquirido por ambas as
partes.

Mas é também na corte de Carlos Magno que terá sido forjada a famosa Doação de
Constantino que legitimava o domínio temporal do papado sobre parte dos territórios da
Península Itálica, abrindo assim caminho para um centro da Igreja cada vez mais
desejoso de poder temporal, como qualquer efectivo reino.

Carlos Magno, pela sua chancelaria, dava ao papado a legalidade territorial através de
um documento falso feito cinco séculos depois da sua data oficial; o papado dava ao
monarca franco o Império, o título imperial que receberia em coroação na noite de Natal
do ano 800.

Muito se começava a jogar religiosamente no campo do poder territorial e militar. A


noção de cristandade consolidava-se nesse quadro. O Islão era o inimigo a aniquilar,
antes que nos aniquilasse.

É complicada a reflexão sobre a cultura da paz numa cidade como esta. Será que estas
buscas de ecumenismo, à imagem da cidade onde decorreram, estão votadas ao
fracasso?

De facto, somos permitidos a tal equação. Que fazer, que significado prático
encontramos em acontecimentos como este? Pegando no ponto anterior, parece que as
religiões saem do tal guetto nestes momentos ... mas, e os restantes momentos dos
restantes anos que vão correndo? Os anos dos crentes, das pessoas?

***

Inevitavelmente, a religião está aí, está actuante, clama por espaço e tempo, mas o lugar
que lhe entregamos é, simplesmente, o dos fundamentalismos.

127
Levar, confinar a religião ao puramente religioso é esquecer que durante milhares de
anos tudo teve no elemento religioso o mais forte englobante, o mais forte elemento de
criação de identidades.

Quando um fenómeno religioso não é integrado, desenvolvem-se fundamentalismos.


Destes, estamos já cheios.

Mas é o próprio horizonte das religiões que cimenta esse seu local. São muito poucas as
iniciativas efectivamente de abertura religiosa e de apresentação pública de princípios.

Significativamente, muitos dos movimentos religiosos com maior expansão de crentes e


praticantes, não surge na escola, não toma parte nos programas trelevisivos
constitucionalmente instituidos, não tem lugar, nem nas cerimónias protocolares, nem
nos encontros inter-religiosos.

Sim, porque, se há um grupo enorme de crenças que se colocam numa situação de


fecho, outras há que quase nem se sabe que existem.

Efectivamente, nada há de errado nessas duas posturas. O que não está certo é que,
civicamente, a religião, enquanto fenómeno humano tranversal, está cada vez mais
afastada das pessoas, da cidadania, cada vez mais de costas voltadas para o mundo.

Os fundamentalismos são isso: uma não integração, pela não aceitação, do mundo.

O OUTRO DENTRO DE MIM LÁ FORA


FLORIANO MARTINS

128
É comum o poeta ser indagado acerca de seu método de criação. Há uma curiosidade
natural em saber como nos desentranhamos de nós mesmos. Contudo, paira uma certa
confusão em torno do termo (método), pois não se trata precisamente de um caminho
prefixado. Há casos em que se nota certa prefiguração, mas em muitos outros o demônio
da escrita faz perder a respiração de quem por acaso creia em um domínio completo da
criação. Poetas que tratam do assunto como método acabam justificando a
previsibilidade da própria obra.

Imaginemos uma entidade qualquer que tenha que partir do vazio, da ausência completa
de forma e entendimento sobre o que seja, para ir compondo um cenário que a legitime.
Não toma emprestada a ninguém a ordem que busca fundar. Quanto mais se concentra
em si mesma mais se sente a manejar formas. Chega então ao fim do poema, e a leitura
o enche de terror e angústia: todos aqueles objetos e afazeres da linguagem estavam já
em tantos outros poemas que li. Como posso ser igual a mim mesmo sem os considerar?
O poeta está lá fora e está aqui dentro. Há algo que o habilita a percorrer essas trilhas
invisíveis. Trata-se da dor? O outro que tenho em mim e que por vezes está em outra
parte somente conecta-se com aquele que me desconhece sendo parte de mim quando a
dor se instala entre nós? Como considerar a alteridade em um cenário onde cada um de
nós perdeu a confiança em si mesmo? Que outro nós somos em cada um que nos
habita? Uma equívoca consciência da dor acaso nos leva a perceber o mundo segundo
zonas de interesse? Quando sou eu em mim ou no outro que me deseja?

Se vamos indagar ao poeta em nossos dias decerto concluiremos que o assunto se


desfez, que a poesia não mais se opõe a nada e que a linguagem poética caracteriza-se
tão-somente por um jogo de efeitos, a eficácia de um ludismo vicioso. Benjamin Péret
disse certa vez que não há outra maneira de se ser poeta senão lançando-se sem cessar
ao desconhecido. O conhecimento na poesia é um reconhecimento, uma identificação.
Péret não disse nada de novo. Apenas disse. É fundamental saber dizer. Importa mais do
que a obsessão por dizer o inaudito. Não há por que fantasiar o outro. Como estamos a
falar de poetas, a obra acaba por denunciar essas confusões de linguagem. Onde
encontro o outro em mim se já determino meu fim?

Talvez a primeira pergunta seja: de que maneira nós confundimos imaginário e


realidade? Se o outro que imaginamos ser está propenso a tornar-se real, o enigma que
propicia essa transmudação deve ser visto como uma ponte e não como um passe de
mágica, um ilusionismo. Trata-se melhor de um rito de passagem. Ao se reduzir algo
apenas ao domínio da imagem, a tendência é leva-lo ao desaparecimento. René Magritte
recusava a idéia da arte mostrando algo imaginário. Para ele, o que se deveria mostrar
era a realidade completa, ―a realidade com seu mistério, sem separá-la de seu mistério‖.
Portanto, aquilo que busco, aquilo com que sonho, já é parte de mim. Da mesma forma
que as visões são parte entranhável da realidade.

Por onde caminho quando me entrego ao compasso do desconhecido ou do apenas


sonhado? Nada na criação faz sentido se não vem dizer-me quem eu sou. Não que o
outro não possa converter-se em um ponto de fuga. O essencial a ser considerado é a
intensidade da entrega. Os desdobramentos são inúmeros e em momento algum negam
valor ao princípio da alteridade. Deve manter-se o curso do que hoje, em nossa
sociedade, é tido, quando menos, como desmedido, aquela exigência anotada por
Octavio Paz de ―encontrar o ponto de interseção entre o movimento e a essência‖.

129
Em que se distingue o outro que tem em si o poeta do que poderia ser encontrado nos
becos existenciais de qualquer um de nós? Acaso a idéia de Lautréamont de que a
poesia deve ser feita por todos restringia-se tão-somente a um domínio de sobreposição
ou acumulação de versos e imagens? Lautréamont falava do extravio de nossos vícios
razoáveis, da dissolução do ego no caudal sangüíneo de um rio dos seres. O verbo terá
que ser mágico e não comportará acomodação a efeito algum. O poeta deve estar
presente em todas as cerimônias que lhe definem uma poética. Misturar-se a seus versos
com a mesma intensidade com que supõe a vida abuse de si.

Quantos somos em nós no cotidiano e por que razão nós buscaríamos a poesia? Ao
mesmo tempo, quantos de nós um poeta consegue ser e por qual razão sua poesia não
nos toca? Sem cair no equívoco recorrente dos estatutos ideológicos associados à poesia
e sua decorrente entrada na ilusão do grande cartel de espetáculos, o poeta em nosso
tempo segue devedor de uma cumplicidade que não seja manipulação. Todas as
ideologias abusaram da propaganda. No entanto, a única propaganda recriminável é a do
outro. Para nós que estamos a conviver com o que não parece ir além de um espetáculo,
fica a pergunta: quem é o outro do poeta em nós?

O fato é que a poesia foi para bem longe de nós. A obsessão pelo domínio de uma
linguagem é a mesma em qualquer instância. O domínio é inequivocamente o território
da grandiloqüência. Uma espécie inconciliável de isolamento. Há uma observação do
Georges Hugnet que deve ser aqui considerada: ―O poema é uma restituição à imensa
voz que ressoa para todos. Não é um jogo de sociedade mais ou menos elegante, mas
sim o jogo trágico do que não tem nome e um crime contínuo do medíocre orgulho da
personalidade‖. Poucas vezes encontrei uma definição tão precisa. Os poetas acabaram
por associar-se ao culto da personalidade. Reclamam hoje que não têm voz em uma
sociedade marcada essencialmente pelo mercado das almas, mas esquecem que a
dissociação entre ser e linguagem levada a termo por muitos deles é a única raiz desse
abismo do qual se ressentem.

Que ouro nós perseguimos? Com que espécie de transmudação nós sonhamos hoje? Ao
que parece, ao menos por efeito, o mundo ainda se move. Diante de nós sempre passa
uma vaca voando, os corpos desfeitos do amor, a lousa fria dos dias. Mas o que ainda
pretendemos de nós? Discutir qualquer paralelo ou percepção alquímica, para mim,
deve ser prato servido com um molho existencial. Esqueçamos os vícios terminológicos.
Quantos estamos aqui, percebendo a necessidade de sair de si para dar chance ao outro?
Sair dos vícios de linguagem, sobretudo. Até que ponto a poesia foi possuída por uma
idéia de ausência do humano, tornando a linguagem um ser à parte?

O DUPLO NO TEXTO DO NATURALISTA


MARIA ESTELA GUEDES
Trabalho realizado no âmbito do projecto luso-espanhol "Naturalismo e conhecimento
da herpetologia insular" (2002-2003), subsidiado pelo Consejo Superior de
Investigaciones Científicas (CSIC, Madrid) e Instituto de Cooperação Científica e
Tecnológica Internacional (ICCTI, Lisboa).

130
O DUPLO EM SITUAÇÃO DE PARÓDIA
CÓMICO DE LINGUAGEM E DE SITUAÇÃO
BIBLIOGRAFIA
ANEXO

O DUPLO EM SITUAÇÃO DE PARODIA

Todos sabemos, excepto a ciência normal, que a objectividade não existe na


comunicação analógica, a humana. Este trabalho, não tendo essa finalidade, acaba por
mais uma vez demonstrar tal evidência. De muitas maneiras a relação entre o discurso e
o referente (Natureza) é liquidada no texto científico. No corpus que habitualmente
estudo, textos de História Natural, são principalmente quatro os agentes desviantes: a
metáfora, de que a própria ciência se tem ocupado, sobretudo no que toca ao
evolucionismo (Sacarrão, 1986), os putativos, o erro e a anáfora. Da sua interferência no
discurso irrompe a máscara. Ora a persona não só é um duplo no teatro, como em mil
outras situações, caso da heteronimia pessoana e do agente secreto.

Anoto no entanto que a ciência normal - por oposição a extraordinária, na acepção de


Kühn, ou ciência profana e ciência maçónica, se preferirem, pois já tive ocasião de
mostrar que existe uma ciência maçónica (Guedes, 2002) - classifica às vezes como
metáfora o que nada garante que o seja, exemplo da expressão "laboratório natural",
aplicada às ilhas. Eu aceito o seu significado literal: as ilhas são laboratórios
privilegiados para os cientistas desenvolverem experiências, em particular de
hibridação. Para se apurar uma raça, é preciso impedir que os indivíduos de raça pura se
cruzem com os de outras, e nada melhor do que o isolamento geográfico da isola para
proporcionar isolamento reprodutor. A metáfora e outros dispositivos retóricos que
conferem categoria ficcional à exposição têm sido estudados também em Filosofia
(Regner, 2003).

Por putativos entendam-se as modalizações que conferem à acção expressa na frase um


valor condicional, dubitativo ou hipotético - "talvez", "provavelmente", "é duvidoso",
"não é certo", "terá evolucionado", "ter-se-ia adaptado", "pode ser que...", etc., e o uso
das aspas com função dissolvente do que se afirma entre elas. O discurso putativo tem
no TriploV um exemplo admirável, os textos do prudente biólogo E.G. Crespo. Paolo
Fabbri atribui grande importância ao papel da anáfora na frágil relação entre o discurso
científico e o que se esperava fosse o seu objecto referencial, a Natureza. Com efeito, o
texto do naturalista é estrutural e normativamente anafórico, refere-se a si mesmo e a
outros textos, mais do que aos seres e fenómenos naturais. Aqueles com que lidamos
são em geral catálogos de espécies que habitam dada região geográfica; por isso, sempre
que um zoólogo publica novos estudos sobre dado tema, deve citar os seus trabalhos
precedentes, se existirem, e os de quem o precedeu. No caso da sistemática - a técnica
de identificação de espécies, e por consequência da nomenclatura - a anáfora integra-se
num complexo mecanismo de normas, algumas de precedência, na atribuição de nomes
científicos aos taxa (ordem, família, género, espécie, híbrido, etc.). Estas normas são

131
emitidas pela International Society of Nomenclature e reeditadas regularmente em
várias línguas (Código Internacional de Nomenclatura/Botânica/Zoológica/). Significa
isto que não há um texto naturalista, sim uma vasta polifonia, que em regra começa em
1758, com a décima edição do Systema Naturae, de Lineu, e se mantém em processo.
Esta polifonia com princípio e sem fim surge às vezes como paródia, citação
intencionalmente satírica, independente do escolasticismo do "Fulano disse que
Beltrano disse que Sicrano disse que...", passível de surtir efeito cómico involuntário.

Os meus estudos sobre o naturalismo levaram a concluir que tem havido intervenção da
ciência na distribuição geográfica da fauna actual, através da introdução de híbridos na
Natureza, como o declarou de resto Bedriaga, considerado na época o maior especialista
em Lacertidae, em carta aberta ao Congresso de Zoologia de Moscovo, referindo-se a
répteis e anfíbios. Os híbridos não são espécies, sim rebis, coisa dupla: eles acumulam
caracteres de duas espécies, e por isso é obrigatório designá-los por duplo nome, que
explicite o cruzamento entre os progenitores. Supondo: "Bufo calamita x Bufo viridis",
em que o "x" é sinal de cruzamento, na boa tradição do esoterismo, que faz dele o
símbolo de Kundalini, o fogo sexual. Esta obrigatoriedade raramente é respeitada,
mesmo na literatura sobre as Baleares (incluídas as Pitiusas e alargado o nosso estudo às
ilhas próximas de Valência), em que, desde as primeiras explorações herpetofaunísticas
até hoje, o grupo das lagartixas tem vindo a ser classificado como círculo de raças. Não
só é explícita a categoria de "rassenkreis" (Eisentraut, 1949; Colom, 1978; Cirer, 1987,
etc.), como há notícia de experiências de hibridação: "Antiguamente, se introdujeron en
el islote de Es Daus, donde no existían con anterioridad lagartijas, 8 machos
procedentes de Escull Vermell y 20 hembras de Ibiza, cuyos descendientes serían
híbridos: P. p. maluquerorum x P. p. pityusensis" (Barbadillo Escriva, 1987). Este é o
único exemplo que conhecemos de esclarecimento do carácter híbrido de uma
população, no laboratório natural das Baleares. As experiências foram levadas a cabo
por Böhme & Eisentraut num ilhéu desabitado de lagartixas, Dado Grande, perto de
Ibiza. Cinco anos depois, os naturalistas verificaram que a hibridação aumentava a
variabilidade e as dimensões do corpo dos animais. Qual a intenção da experiência? -
perguntamos nós. Se estas lagartixas são híbridas, as outras também, e a biologia tem
meios para o confirmar (já que parece não ter para o negar).

As raças, também designadas por mulatos e variedades, são o produto de cruzamento


por acção directa do homem. O significado destas designações foi estabelecido com a
maior clareza quando surgiu uma outra, a de subespécie, reservada aos casos de
diversidade natural (origem das espécies por selecção natural, devida ao acaso, aquela
em que não houve intervenção humana), o que aliás não é cientificamente testável, daí
que a ciência possa confirmar a nossa tese mas não a possa desmentir. Escreve Boscá,
criando uma falsa anáfora com um herpetologista ainda hoje respeitado: Lataste usa a
palavra subespecie como más apropiada para expresar las formas intermedias que se
presentam en la naturaleza, de ordinario conocidas como variedades y razas; y
propone reservar estas últimas voces, tan sólo para significar las últimas diferencias
que pueden producirse ó acentuar-se rápidamente, por la intervencion de la voluntad
del hombre. Dado el actual estado de verdadera transicion sintética en que se
encuentra la Historia natural, pueden juzgarse como de escasa importancia, como
finalidad para la ciencia, los conceptos especie, variedad y raza, aunque el mismo
autor, en el título de su comunicacion, se vale de la palabra forma, un tanto
generalizada ya, y que indudablemente expresa mucho mejor la idea transcendental, sin

132
que por ello se prejuzgue la afiliacion á ninguna de las escuelas que aún discuten sobre
la orígen de las especies (Boscá, 1880).

Dada a desobediência à norma de usar duplo nome intercalado pelo X da grande


incógnita na identificação das raças, o que hoje implica fraude (no caso de haver
deliberada classificação de híbridos como novas espécies para a ciência), todo o
discurso zoológico se torna duplo. Máscara dificilmente suportável pelos naturalistas, o
riso estampa-se nos seus textos como estridente pateada. É o que acontece na citação em
cima, em que Boscá explicita algo importante, mas citando um texto de Lataste em que
Lataste não propõe nada acerca das designações em causa, trata, sim, de algo diferente e
muito paródico, como já tivemos oportunidade de revelar (Guedes & Peiriço, 1998) -
Lataste fala do sapo de barriga aberta cuja anatomia está a analisar, descreve-lhe o canto
nessas circunstâncias de dissecção, e informa que o animal tem um testículo preto e
outro branco, ou seja, o sapo é um mulato que canta depois de morto.

Como se vê, os responsáveis declaram os seus actos num outro discurso duplo, o da
língua das aves, linguagem cifrada dos alquimistas e poetas. É o caso ainda de Boscá,
ao usar um signo esotérico - o R étique -, como carácter discriminante de espécie. Este R
é subversivo, significa herético, como assinala Richard Khaizine. Boscá distingue pelo
canto duas formas de sapo, uma delas a variedade, e por conseguinte o híbrido balear -
Bufo viridis var. balearica - afirmando que esta emite o som "crreu", com "la r doble"
(RR duplo, híbrido), à semelhança "de algunas personas, y especialmente los
extrangeros al hablar el espanhol", ao passo que a outra canta "creu", sem o carácter/a
letra dobrado/a dos híbridos (Boscá, 1880). Em suma, a variedade baleárica é
estrangeira, híbrida, por conseguinte herética e subversiva a sua presença nas ilhas.

No TriploV há muita matéria consultável sobre o discurso do naturalismo, parte dela


publicada em papel (Guedes, 2002/). O erro, de que tanto tenho falado, é uma forma de
subversão, engana o leitor. Chamo por isso a atenção para o texto "A ciência na
Exposição do Mundo Português" (Guedes, 2003) e documentos anexos, por mostrarem
as consequências do ludíbrio: as sucessivas destruições do material museológico,
sobretudo dos tipos (os exemplares que serviram de modelo à descrição de espécies, e
têm de ser estudados nos museus pelos que fazem revisões sistemáticas do grupo a que
essas espécies pertencem). No caso da herpetologia das Baleares, de cujo corpus
tomarei os exemplos subversivos, também há desaparecimento de exemplares-tipo
(Mellado & Salvador, 1988). Fenómeno curioso foi o bombardeamento que destruiu a
casa de Müller, e com ela o tipo de Lacerta lilfordi conejerae (Salvador, 1979), apesar
de Müller ter feito os estudos no Museu de Berlim...

A herpetologia das Baleares tem no TriploV uma base de dados, com uma ficha para
cada espécie, que remete para a respectiva bibliografia (Vários, 2002-2003).
"Herpetologia" é termo diferente de "herpetofauna" - a primeira é a ciência que estuda
os répteis e os anfíbios, a segunda o conjunto de animais desses grupos que vivem em
certa região. O meu estudo não pressupõe o conhecimento da herpetofauna, sim de
textos acerca dos sapos, rãs, salamandras, lagartos, serpentes, etc., que possam ou não
existir nas principais ilhas espanholas do Mediterrâneo - Maiorca, Minorca e Ibiza - e
ilhéus adjacentes. E sim, claro, há registo antigo da presença de salamandras, ainda não
redescobertas, tal como havia menção de sapos parteiros, que já apareceram, várias
espécies vivas e fósseis, mas por sinal só listámos uma no círculo de Baleaphryne, ou
Phryné das Baleares. Frineia foi uma célebre cortesã da Antiguidade, cuja extraordinária

133
beleza inspirou muitos escultores e pintores. Não se chamava assim, mudou o nome
para Sapo. Os sapos obstétricos também têm mudado bastante de nome, de Alytes
passaram a Frineia, para voltarem a ser Alytes. Estes animais são interessantíssimos, até
na distribuição geográfica. Pertencem à família Discoglossidae que, tanto quanto
sabemos, só tem representantes em duas partes do mundo afastadíssimas: Europa e
Ásia, salvo erro Filipinas, antiga colónia espanhola. Devem ter vindo nas caravelas,
porque podemos provar que já no século XVIII viviam na Europa. Os Discoglossus do
Norte de África devem ser sobreviventes de Alcácer-Quibir.

CÓMICO DE LINGUAGEM E DE SITUAÇÃO

A paródia é um intertexto, uma obra em geral colectiva, fundada na imitação de outra,


aquilo que Paolo Fabbri considera uma das características mais óbvias do discurso da
ciência: todo o texto remete para outro texto, como neste momento, em que menciono o
livro de Fabbri. Não há paródia na minha anáfora, mas ela existe no discurso anafórico
de muitos catálogos da herpetofauna das Baleares - é o duplo, a máscara do discurso
normativo. A paródia implica a presença de sátira, e esta, naturalmente, do riso. São
duas as principais vertentes do cómico. Primeira: o número altíssimo de taxa nas ilhas,
mais de 108, entre espécies vivas e fósseis, o que resulta numa biodiversidade própria
de laboratório natural ou de jardim zoológico, espaços de criação humana. Aos
herpetologistas direi que está presente na lista Lacerta muralis, não por ignorar revisões
sistemáticas como as de Arnold, que aliás só considera Podarcis pityusensis, passa uma
borracha por cima de todos os lilfordi, mas porque essa é uma espécie verdadeira, por
muita máscara híbrida que lhe tenham posto na cara. Comparemos a lista das Baleares
com a dos Açores, em que só se catalogam neste momento duas espécies de rã e uma de
lagartixa (veja o Anexo), e logo o riso se manifesta, reagindo ao cómico de situação,
para nos valermos da autoridade de Bergson.

Poderão argumentar que a comparação entre os Açores (a biodiversidade das ilhas


vulcânicas costuma ser pobre) e as Baleares (ilhas continentais, mais ricas, por em
norma estar nelas presente a fauna da faixa continental adjacente) não é válida. Mas
bastaria comparar então com Cabo Verde, arquipélago também vulcânico, para se
verificar que a sua riqueza em espécies e subespécies - de osgas e lagartos (Scincidae) -
é idêntica à das Baleares, isto é, ilhas vulcânicas e continentais, não partilhando a
mesma fauna, partilham os mesmos vectores paródicos. A riqueza herpetofaunística de
Espanha deve-se em grande parte ao contributo dos mais de 108 taxa das ilhas do
Mediterrâneo. Tanto ou mais do que isso, talvez só nas Filipinas, na Amazónia ou no
interior de Bornéu. Ora a herpetofauna era pobre em 1881, como declara Boscá: y es
sorprendente el que, á pesar de la manifiesta dependencia de los islotes, de la costa tan
próxima, non haya en ellas lagartijas de ninguna especie. [...] Añadiré que durante los
dias dedicados á la exploracion, pude asegurarme palpablemente de la ley zoológica,
que asegura que son mucho más pobres en especies las faunas de las islas en general
que las faunas correspondientes á los continentes.

Várias explorações se fizeram na transição do séc. XIX para o séc. XX. Além de
revelarem que o número de taxa era bem menor do que hoje, os zoólogos fazem questão
de garantir que, apesar das pesquisas minuciosas, nada mais fora encontrado. Isto dá a
medida da intenção do levantamento herpetofaunístico: era preciso controlar o que
apareceria a seguir. Além de Boscá, outros naturalistas deixam a informação da pobreza
colada à de que não há mais nada além do que se cataloga. É o que faz Colom em

134
1952, acrescentando que nessa data as Baleares estavam virgens de estudos de
povoamento, apenas Boscá e Álvarez Lopez as tinham explorado, o que não é correcto
de maneira nenhuma. Mais naturalistas exploraram as ilhas, e muito em especial os
ingleses. Lord Lilford coligiu os exemplares-tipo de Lacerta lilfordi, tal como o nome
da espécie declara, e esta é a mãe de todas as suas variedades, ou um dos progenitores
do círculo de raças. Em 1952 já se tinham catalogado muitas subespécies de
(Lacerta=)Podarcis lilfordii e de P. pityusensis, que Colom identifica como "círculo de
raças de Lacerta muralis", a lagartixa vulgar europeia. É conhecida a população mínima
nas Baleares e Pitiusas, com seis indivíduos de Podarcis lilfordi kuligae no "islote del
Fonoll" (Mayol, 1984), apesar de Salvador o desmentir, quando cita Eisentraut,
atribuindo a este o comentário de que a concentração de Podarcis lilfordi kuligae é por
vezes prodigiosa em certos locais da ilha Conejera, vendo-se saltar e correr em todas as
direcções à frente das pessoas. A maior densidade, ainda segundo Mayol, é a do ilhéu
Escull Vermell, com 50 indivíduos de Podarcis lilfordi maluquerorum em 350 metros
quadrados, apresentados como raça - os indivíduos e não os metros quadrados, embora
dos naturalistas tudo seja de esperar.

A contrariar a tendência dos naturalistas mais antigos para darem parte de que só há isto
nas Baleares, e de que as lagartixas dos ilhéus não existem nas ilhas grandes e ainda
menos no continente, portanto o que nas ilhas existe hoje apareceu depois de eles lá
terem andado em altas investigações, autores recentes atribuem milhões de anos ao
indigenato das lagartixas nos ilhéus, quando sabem a idade dos ilhéus (Cirer, 1987). É
assim que os Podarcis da Isla Negra de Llevant começaram a especiar há 6 milhões de
anos, mas já o início da especiação dos da I. Characa não é indicado, porque Cirer não
sabia a idade das pedras. Espero que ninguém pergunte que relação existe entre a
antiguidade do habitat e a data à qual dada espécie começa a transmutar-se em outra,
isso seria matéria para outro ensaio, acerca da escravização do pensamento ao
paradigma (evolucionista) e à presença de outro factor que desvia para a geologia o
discurso relativo aos animais, a inferência. O resultado a que chega Cirer é por isso
bastante elucidativo: En los tres análisis realizados el porcentaje de clasificación
correcta es notablemente bajo para el conjunto de las poblaciones. Si se consideran los
porcentajes obtenidos en cada población en particular, la mayoría de ellas obtienen
valores comprendidos entre el 75%-25%, que resultam inferiores al límite propuesto
para considerarlas buenas especies. Se as espécies são más é porque as populações
deviam ser designadas por duplo nome intercalado pelo esotérico X, o que exigiria
estudo de acordo com o paradigma do cultural e não do natural.

A mesma situação ocorre em Cabo Verde, quanto ao Macroscincus coctei, por exemplo,
cuja idade como espécie vai de um extremo ao outro: uns autores consideram-na uma
relíquia, portanto um fóssil vivo, sobrevivente aos dinossauros, outros uma espécie
recém-formada a partir de uma Mabuya modificada.

A segunda vertente do riso, logo Bergson a identificaria pelo cómico de linguagem.


Resulta ele dos nomes da terra typica (pátria das espécies), os "islotes", porque nas ilhas
grandes (Maiorca, Minorca e Ibiza) as mais célebres (Podarcis lilfordi, P. pityusensis e
suas numerosas subespécies) não aparecem, segundo alguns herpetologistas, ou garante-
se que foram introduzidas pelo homem, o que lhes retira logo o direito à origem por
selecção natural. Em relação às ilhas, é com absoluta propriedade que falamos de duplo
da linguagem, e necessário se torna esclarecer que os islotes podem ser rochedos tão
mínimos que nem aparecem nos mapas a que tivemos acesso. Portanto já o facto de

135
umas pedras no meio do mar terem nome, apesar de poderem não estar todas
cartografadas, merece um sorriso de admiração. Ora a máscara não é só nomenclatural.
Apesar de mínimas e desabitadas, apesar de nem todas estarem registadas nas cartas,
algumas pedras são duplas, e então uma é designada por "Grande", outra por "Petit",
uma por "de Fora" e outra subentende-se que por "de Dentro", ou, sabendo-se que são
dois os rochedos, o autor trata-os como se fossem só um, causando ao exegeta uma crise
de nervos. Os naturalistas redigem os topónimos em línguas diversas, castelhano,
catalão, dialecto das Baleares, etc., o que faz delas agentes mais duplos ainda que os
secretos.

Os topónimos usam-se de forma híbrida, cientes os autores de que a confusão tem um


sentido para quem sabe ler a língua das aves (caracteres linguísticos alterados apontam
para caracteres biológicos alterados, e esta alta variabilidade é própria dos híbridos). É
disso exemplo Colom, entre outros, ao usar dois ou mais topónimos do mesmo ilhéu no
mesmo artigo: no texto escreve "I. Horadada" e na legenda do mapa de distribuição das
espécies escreve "I. Foradada". Aliás este exemplo é duplamente atractivo, porque os
mapas estão trocados, a lista das espécies em legenda do mapa refere-se à Maiorca, mas
o mapa é da Minorca... Já Salvador escreve "Isla Na Foradada"... Enfim, será que
"Colom", "Isla del Colon" e "Coloms" são três ilhas ou três nomes da mesma ilha? E
"Isla d'en Colom" será uma quarta? E que dizer de "Es Colomé"? Será uma quinta? E
Pout, Puercos, Illa des Porcs e I. de Porcs? E Isla Alga e Isla Alaga serão duas
diferentes terras típicas de Lacerta pityusensis algae? E "Estel de Fora" e "Estells de
Fora"? E "Isla Nidge" e "Isla Nitge"? Por acaso serão o mesmo que "Porros"?
Einsentraut e Colom garantem que sim. "Illa des Conis", "Conejera" e "Conejara" são
três nomes da mesma ilha ou três diferentes calhaus? Isla de les Rates, Illa de Ses Rates,
I. Ratas, Isla de Rates, Isla de Ratas, são uma ilha ou uma população de pedras híbridas?
- nunca o saberemos, pois este ilhéu foi dinamitado para construção de um porto, e
saneadas com ele as lagartixas endémicas Podarcis lilfordi rodriquezi (rodriguezi
noutros autores), o que é grave, atendendo a que também o holotipo foi destruído
(Mellado & Salvador, 1988), ignoramos se durante a dinamitação do ilhéu... Desta
espécie gigante só há quatro exemplares no mundo, conservados em museus.

É claro que este interminável rol é reversível, podendo as perguntas fazer-se ao


contrário: na Isla Bosque de San Miguel, ou na I. Bosque S. Miquel, vivem três
subespécies - Lacerta pityusensis miquelensis, L. p. miguellensis e L. p. miguelensis, ou
só uma? Lacerta pityusensis caragolensis e L. p. caracolensis são duas subespécies de
Carago, perdão, da ilha Caragoler, ou uma só? L. p. grueni e L. p. grüni coabitam na
Isla Trocados (Trucadors ou Trocador, conforme o parágrafo, o texto ou o autor) ou
uma das designações está gralhada? Aliás esta população não merece mais comentários
por não ser considerada boa subespécie (Cirer, 1987).

Caso digno da maior atenção é o da ilha Carbonera, cujo nome lembra logos os
carbonários, e já falámos dele justamente em "Carbonários" (Guedes & Peiriço).
Estabeleçamos uma anáfora com Mellado & Salvador, acerca da lagartixa carbonária,
Podarcis lilfordi carbonerae:

Isla Carbonera: - In the ZFMK museum there is a series of specimens collected by K.


Grun on 1 January 1933 [4 machos e 4 fêmeas] on an islet of Menorca designated
‗Carbonera‘. Possibly it is a small islet without any name in maps off the NW coast of
the island facing Cala d‘en Carbñ in wich we did not find lizards‖. ―The impossibility of

136
locating exactly this islet does not permit any inferences regarding the relative age of
this subespecies wich might be presently extinct‖.

Salvador estudara 8 exemplares de lagartixa da ilha Carbonera, mas não as identificou.


Em 1988 volta a falar de 8 exemplares, 4 machos e 4 fêmeas, e continua a procurar a
ilha Carbonera, pois sem ilha não sabe a idade das lagartixas. Ora se os exemplares são
de museu e não sabe onde fica a ilha, como pode falar de população? Se a ilha se chama
Carbonera, como pode não ter nome nas cartas? Mas se é preciso dizer onde fica a ilha
Carbonária para saber a data em que a espécie começou a transformar-se em subespécie,
nós dizemos: a Isla Carbonera fica no Puerto de Campos, na Maiorca, por onde Boscá
andou, não na Minorca, onde Grün a situou.

Maria Estela Guedes


10 de Outubro de 2003

BIBLIOGRAFIA

ARNOLD, E.N. (1973) - Relationships of the Palearctic lizards assigned to the genera
Lacerta, Algyroides and Psammodromus. Bull. Brit. Mus. (NH) (Zool.) 25 (8).
BARBADILLO ESCRIVA, Luis Javier (1987) - La Guia de INCAFO de los Anfibios y
Reptiles de la Peninsula Iberica, Islas Baleares y Canarias. INCAFO, Madrid.
BEDRIAGA, J. (1892) - "Letre a M. le professeur Anatole Bogdanow - De
l‘importation et du croisement des reptiles et des amphibiens" (sic). In: Congrès
International de Zoologie. Deuxième session, à Moscou. Première Partie : 244-245.
Moscovo.
BERGSON, Henri (1991) - O riso: ensaio sobre a significaçäo do cómico. Traduçäo de
Miguel Serras Pereira. Lisboa, Relógio D'Água.
BÖHME, W., & EISENTRAUT, M. (1981) - Vorläufige Ergebnis eines unter
natürlichen Bedingungen angesetzten Kreuzungsversuchs bei Pityusen-Eidechsen,
Podarcis pityusensis (Boscá, 1883) (Reptilia Lacertidae). Bonn. Zool. Beitr., 32: 145-
155.
BOSCÁ, Eduardo (1880 a) - Nota sobre as várias formas de Alytes. Anales Soc. Esp.
Hist. Nat. (actas), IX: 4-8.
BOSCÁ, Eduardo (1881 a) - Excursión herpetológica a Mallorca. Anales Soc. Esp. Hist.
Nat. (actas) VI: 9-12.
BOSCÁ, Eduardo (1883) - Exploracion herpetológica de la Isla de Íbiza. Anales de la
Sociedad Española de Historia Natural, XII: 241-250.
CIRER, A. Mª (1987) - Aplicacion de técnicas estadisticas multivariantes a las
poblaciones del Lacertido Podarcis pityusensis (Boscá, 1883). Rev. Española Herpetol.,
2: 145-163.
COLOM, Guillermo (1978) - Biogeografía de las Baleares. La formación de las islas y
el origen de su flora y su fauna. Inst. Est. Baleáricos, Palma de Mallorca. 2ª ed., Vol. II.
EISENTRAUT, M. (1949) - Die Eidechsen der Spanischen Mittelmeerinseln und ihre
Rassenaufspal Lichte der Evolution. Mitteilungen aus dem Zoologischen Museum in
Berlin, 26:1-226.
FABBRI, Paolo (1995) - Tacticas de los signos. Gedisa Editorial, Barcelona. Selecção
de textos y revisión técnica por Lucrecia Escudero. Tradução de Alfredo Báez.
GUEDES, Maria Estela & PEIRIÇO, Nuno Marques (1998) - Carbonários : operação
salamandra. Palmela, Edições Contraponto. Em linha em www.triplov.com.

137
GUEDES, Maria Estela (2002) - Cartas de Rosa de Carvalho: há uma ciência maçónica?
Comunicação apresentada ao IV Colóquio Internacional "Discursos e Práticas
Alquímicas. Convento dos Cardaes, Lisboa, 2002. Em linha no TriploV.
GUEDES, Maria Estela (2002/) - As gralhas. Em http://triplov.com. Leia em especial os
artigos sobre Ciência e Subversão, e os livros "Carbonários - Chioglossa lusitanica" e
"Francisco Newton".
GUEDES, Maria Estela (2003) - "A ciência na Exposição do Mundo Português". Em
linha no TriploV, na história de Francisco Newton:
KHAITZINE, Richard (2003) - Le Rebis... de Gérard de Nerval à Raymond Roussell.
Comunicação ao V Colóquio Internacional "Discursos e Práticas Alquímicas". Em linha
em www.triplov.com.
LATASTE, Fernand (1879) - Sur une nouvelle forme de batracien anoure d‘Europe
(Alytes obstetricans Boscai, n. subesp.). Rev. Trav. Scient., IV (12): 543-545.
MAYOL, M. e colab. (1984b) - Cuantificación de algunas poblaciones insulares de
lacértidos. Bol. Est. Centr. Ecol., 13 (26): 73-79.
MELLADO, V. Perez & SALVADOR, A. (1988) - The Balearic lizard: Podarcis
lilfordi (Günther, 11874) (Sauria, Lacertidae) of Menorca. Arquivos do Museu Bocage
(NS), I (10).
REGNER, ANNA CAROLINA (2003) - Retórica e racionalidade científica. Em linha
em www.triplov.com. Citado em Agosto de 2003.
REGNER, ANNA CAROLINA (2003) - O papel da metáfora no longo argumento da
«Origem das Espécies». Citado em Agosto de 2003.
SACARRÃO, G.F. (1986) - O abuso da metáfora em Biologia, e seus perigos. Arquivos
do Museu Bocage, Série D, Extensão Cultural e Ensino, Vol. II (3). Em linha em
www.triplov.com. Citado em Agosto de 2003.
SALVADOR, Alfredo (1979) - Materiales para una ―Herpetofauna Balearica‖. 2.
Taxonomía de las Lagartijas Baleares del archipiélago de Cabrera. Bonn. Zool. Beitr. 30
(1-2): 176-191.
VÁRIOS (2002-2003) - O naturalismo e o conhecimento da herpetologia insular.

ANEXO

HERPETOFAUNA TERRESTRE DOS AÇORES


AMPHIBIA
1. Rana ridibunda perezi
2. Rana esculenta

REPTILIA
3. Lacerta dugesii
HERPETOFAUNA TERRESTRE DAS BALEARES
REPTILIA
TESTUDINES
1. Emys orbicularis
2. Mauremys caspica leprosa
3. Testudo graeca
4. Testudo hermanni
5. Testudo fósseis
6. Cheirogaster nov. sp.- fósseis
SAURIA

138
7. Tarentola mauritanica mauritanica
8. Hemidactylus turcicus
9. Hemidactylus turcicus spinalis
10. Saurodactylus mauritanicus mauritanicus
11. Psammodromus algirus
12. Trogonophis wiegmanni
13. Podarcis sicula
14. Lacerta siccula ssp. Cetti
15. Lacerta perspicillata
16. Lacerta vivipara
17. Lacerta lepida lepida
18. Lacerta stirpium
19. Lacerta viridis Laur.
20. Acanthodactylus erythrurus erythrurus
21. Lacerta muralis
22. Podarcis bocagei bocagei
23. Lacerta bocagei atrata
24. Podarcis lilfordi lilfordi
25. Podarcis lilfordi addayae
26. Podarcis lilfordi balearica
27. Lacerta lilfordi brauni
28. Podarcis lilfordi carbonerae
29. Podarcis lilfordi codrellensis
30. Podarcis lilfordi colomi
31. Podarcis lilfordi conejerae
32. Podarcis lilfordi espongicola
33. Podarcis lilfordi estelicola
34. Podarcis lilfordi fahrae
35. Podarcis lilfordi fenni
36. Podarcis lilfordi gigliolii
37. Podarcis lilfordi hartmanni
38. Podarcis lilfordi hospitalis
39. Lacerta lilfordi isletasi
40. Podarcis lilfordi jordansi
41. Podarcis lilfordi kuligae
42. Podarcis lilfordi nigerrima
43. Podarcis lilfordi planae
44. Podarcis lilfordi pobrae
45. Podarcis lilfordi porrosicola
46. Podarcis lilfordi rodriquezi
47. Podarcis lilfordi sargantanae
48. Podarcis lilfordi toronis
49. Podarcis lilfordi xapaticola
50. Podarcis pityusensis pityusensis
51. Podarcis pityusensis affinis
52. Podarcis pityusensis ahorcadosi
53. Podarcis pityusensis algae
54. Podarcis pityusensis calaesaladae
55. Podarcis pityusensis caldesiana
56. Podarcis pityusensis canensis

139
57. Podarcis pityusensis canaretensis
58. Podarcis pityusensis caragolensis
59. Podarcis pityusensis carlkochi
60. Podarcis pityusensis characae
61. Lacerta pityusensis ssp. Columbretensis
62. Podarcis pityusensis espalmadoris
63. Lacerta pityusensis espardellensis
64. Podarcis pityusensis formenterae
65. Podarcis pityusensis frailensis
66. Podarcis pityusensis gastabiensis
67. Podarcis pityusensis gorrae
68. Podarcis pityusensis grossae
69. Podarcis pityusensis grueni
70. Podarcis pityusensis hedwigkamerae
71. Podarcis pityusensis hortae
72. Podarcis pityusensis kameriana
73. Podarcis pityusensis maluquerorum
74. Podarcis pityusensis martinezi
75. Podarcis pityusensis miguelensis
76. Podarcis pityusensis muradae
77. Podarcis pityusensis negrae
78. Podarcis pityusensis puercosensis
79. Lacerta pityusensis ssp purroigensis
80. Podarcis pityusensis ratae
81. Podarcis pityusensis redonae
82. Lacerta pityusensis sabinae
83. Podarcis pityusensis schreitmuelleri
84. Lacerta pityusensis subformenterae
85. Podarcis pityusensis tagomagensis
86. Podarcis pityusensis torretensis
87. Podarcis pityusensis vedrae
88. Podarcis pityusensis zenonis
89. Blanus cinereus - fósseis
OPHIDIA
90. Coronella austriaca austriaca
91. Natrix maura
92. Macroprotodon cucullatus
93. Malpolon monspessulanus monspessulanus
94. Elaphe scalaris
95. Callopeltis flavescens
96. Natrix natrix astreptophora
AMPHIBIA
97. Hyla meridionalis
98. Bufo viridis
99. Bufo calamita
100. Bufo viridis balearicus
101. Bufo bufo spinosus
102. Alytes obstetricans
103. Alytes (Baleaphryne) muletensis
104. Alytes cisternasii

140
105. Rana perezi
106. Triturus boscai
107. Triton taeniatus
108. Salamandra salamandra

ROMANTISMO, ULTRA-ROMANTISMO E...


ALQUIMIA NA PENA E NA REGALEIRA (1)

MÁRIO FORTES & CLÁUDIA ÁVILA GOMES

141
―(...) Decidi reconstruir as ruínas do antigo castelo de Vorderhohenschangau, perto das
cataratas de Pollat, no verdadeiro estilo dos velhos castelos dos cavaleiros germânicos,
e devo confessar-te que me entusiasma a ideia de habitá-lo. (...)‖
Correspondência de Luís II, rei da Baviera a Wagner, datada de 1868 (1)

De forma alguma inovadora, esta reconstrução extravagante, consequência da


caprichosa decisão de Luís II, o rei louco da Baviera, foi precedida em cerca de três
décadas pelo início das obras de uma das mais notáveis composições arquitectónicas e
paisagistas do romantismo europeu - O Palácio e Real Parque da Pena.

Embora esta unidade indissociável, concebida pela vontade de D. Fernando II (2), Rei-
consorte de Portugal, apresente afinidades indiscutíveis quanto à génese revivalista que
presidiu à intervenção no Castelo de Vorderhohenschangau, distingue-se pelo
vanguardismo e eclectismo inerentes à personalidade do seu criador. É lamentável,
contudo, constatar que o desconhecimento da originalidade desta criação e da
invulgaridade cultural do seu real e sereníssimo promotor, as impede de se destacarem
internacionalmente e ocuparem o lugar proeminente que lhe é devido a nível da História
de Arte.

Antecedentes

Não se pense, contudo, que esta obra realizada em Portugal permanece isolada no
contexto europeu. Entre os vários antecedentes que remontam ao séc. XVIII encontra-se
o castelo de Löwenburg, construído no parque do palácio de Wilhelmshöhe a instâncias
do landgrave Guilherme IX de Hessen-Kassel em 1791, o qual teria a pretensão de fazer
ressurgir ―a época das superstições, da magia, dos espíritos e dos cavaleiros andantes‖
(3). Embora concebido como ―ruína artística‖, à semelhança de muitas das construções
grandiosas que subsistiam do passado, dispunha no interior de todos os confortos de
uma casa de campo aristocrática, tal como o Real Palácio da Pena.

Muitos outros príncipes e nobres promoveram a reconstrução de castelos medievais em


ruínas e a respectiva re-utilização como acolhedoras residências de campo, e destes
refira-se pela notabilidade das suas obras, Frederico Guilherme da Prússia.

Pode pensar-se que dezenas de construções revivalistas, muitas delas projectadas por
Shinkel, serviam de mero refúgio para sonhos românticos onde estas personagens
esqueceriam a recente revolução social e industrial, apurando, contudo, os requintes que
esta última assegurava. Na verdade, na base desta atitude estaria a exaltação cultural,
nomeadamente germânica, através da identificação destas estruturas como símbolos de
liberdade nacional e testemunhos de um passado glorioso, referências indeléveis em
épocas de crise que acabariam por ser usadas como modelos. Contudo, a maior parte
destes castelos construídos ou reconstruídos no século XIX inseria-se em parques ou
jardins de feição paisagista, cujos antecedentes imediatos remontam às paisagens
bucólicas, nostálgicas, arcadianas e até mesmo épicas do Século das Luzes. Estes
modelos idealizados foram amplamente divulgados em publicações, gravuras e
desenhos, que então circulavam e admirados e estudados no decurso de viagens
efectuadas por vários príncipes germânicos a Inglaterra, sendo reproduzidos com as
devidas adaptações.

142
Diversas publicações temáticas, nomeadamente as promovidas por Goethe, Sckell,
Gustav Meyer, e pelo príncipe Hermann Pückler-Muskau permitiram a divulgação de
novos de conceitos, soluções estéticas e técnicas a nível da concepção da paisagem.
Contudo, mesmo nas obras mais tardias persistiam algumas considerações paisagistas
que, embora justificadas em pleno séc. XVIII, se revelaram como pouco coerentes
enquanto fundamento e contexto para algumas das composições acasteladas.

Assim, estas paisagens, concebidas e construídas como interpretações idealizadas da


Natureza e palco para as mais diversas actividades humanas, eram tão artificiais como
os jardins ou parques barrocos, veículos de propaganda de um regime centralizado. E
ainda tão pouco naturais como os fechados jardins rocaille, cenários onde se expressou
o delírio social de uma época e os devaneios de uma sociedade em crise.

Nestes jardins e parques, resultado do cadinho cultural da Europa de finais do Antigo


Regime e de princípios de uma Nova Ordem, coexistiam referências eclécticas a
misteriosas civilizações do passado, à antiguidade clássica ou a períodos medievais
relevantes: Arquitecturas e estatuárias foram dispersas por prados, enquadradas por
orlas arbóreas e reflectidas em lagos naturalizados. Contudo, nestas composições não se
procurava a coerência estilística ou cronológica, mas sim filosófica em torno de
programas complexos, muitas vezes herméticos, em que se anunciavam as ideias
contestatárias e progressistas da Revolução Francesa.

No caso da Pena, as opções estéticas foram completamente distintas: O extravagante


palácio ou castelo foi levantado sobre um íngreme penhasco da Serra de Sintra,
aproveitando as ruínas de um antigo cenóbio hieronimita. Nesta paisagem granítica e
rochosa prevalecia a agressividade da Natureza sobre a expressão humana
extremamente contida, enquanto condição relevada no decurso do projecto e da obra.

D. Fernando, na envolvente do Palácio da Pena, procurou replicar cenários germânicos


através da plantação de uma densa floresta, talvez sagrada (4), à semelhança das que
teria conhecido em jovem em caçadas na Thuringia e explorar as potencialidades da
paisagem serrana dominada por penhas e penhascos graníticos. Esta opção, que Jung
teria associado à emergência das potências de um arquétipo no horizonte da
consciência, não é de todo original, pois há composições precursoras. Relembre-se os
vários jardins de rochas que foram construídos ao longo de séculos e destaque-se
Sanspareil (5), realizado a instâncias da margravina Sofia Guilhermina de Bayreuth em
pleno séc. XVIII. Nesta obra, e segundo os pressupostos setecentistas, o conjunto dos
vários acidentes rochosos naturais, penhascos e grutas e os restos do bosque que os
envolvia teve que ser entendido como cenário das aventuras aparentemente iniciáticas
de Telémaco, Filho de Ulisses, descritas por Fénelon (6), para ser pelo menos assumido
como jardim. Embora nestes exemplos se destaque algum interesse pela Natureza
enquanto ―Idealizada‖, pouco se traduz e explica quanto à génese do Parque da Pena.

O sublime, a montanha e o mar

Nos antecedentes mais evidentes, talvez mais do que nos romances historicistas e
medievalistas de finais de setecentos (7), inclui-se a descoberta de paisagens até então
ignoradas pelos modelos barrocos, adversos à itinerância e à apreciação dos valores

143
naturais, e que, de forma pontual, se descobrem em composições como Hafod e
Hawkstone.

Neste contexto, é notória a importância da descoberta da montanha, a qual decorreu em


simultâneo com a descoberta de mundos exóticos bem mais distantes (BROC, 1989: 45-
60). Na obra notável Itinera per Helvetias Alpinas regiones, realizada por Scheuchzer,
professor de Física da Universidade de Zurich, denota-se o novo interesse por plantas,
rochas e glaciares enquanto pormenores desconhecidos da paisagem que percorreu entre
1702 e 1711.

Pouco depois, este novo interesse é reafirmado por outro escritor. Haller, médico
naturalista e artista, com o seu grande poema de 49 estrofes, Die Alpen, de 1733,
introduziu a montanha na literatura, a qual mais tarde se revelaria nas restantes artes.
Documenta-se o interesse gradual pelas paisagens diversificadas da montanha, onde
tanto coexistiam cenários pitorescos como outros desoladores de caos de blocos, em
tempos refúgios de eremitas e pequenas comunidades de religiosos. Interesse este, que
viria a suportar as futuras exposições de Schlegel quanto a uma suposta relação de
sublimidade entre o gótico e a Natureza.

Edmund Burk, em 1757, publica A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas
of Sublime and Beautiful, obra na qual suporta este novo estado de espírito e realça a
importância das várias sensações, as quais poderiam ir do prazer ao medo ou espanto e
que algumas décadas depois foram transpostas para a paisagem.

Também na pintura de época vai transparecendo esta nova imagem da paisagem, na


qual se expressa não só a insegurança e a fragilidade humana tantas vezes
contextualizadas nos cenários de montanha de Gaspar David Friederich, como o ―horror
sublime‖ ou o ―sublime horror‖ de terramotos, noites de tempestade, cataratas e
naufrágios que viria a ser pintado por Turner e gradualmente incorporado em cenários
desde aí criados.

Desta forma e com muitos outros contributos elegeram-se as bases das estéticas que
vieram a integrar o movimento romântico, nas quais as distinções efectuadas entre o
belo, o elevado e o sublime suportaram também teorias a nível da concepção de parques
e jardins. Na concepção da paisagem, tal como na pintura, na poesia e nas restantes artes
de oitocentos, procurou-se a consagração dos sentidos e o explorar ou sublimar das
emoções.

Desta forma, só se pode ponderar quanto aos processos evolutivos de continuidade e de


ruptura abrupta ou de descoberta, subjacentes à formalização das paisagens românticas e
que se destacam de forma óbvia no Real Parque da Pena. Nesta obra paradigmática, o
mar e a montanha participam do sublime, expoente no Romantismo (ROGER, 1989: 61-
82), relevando-se a agressividade da paisagem face à fragilidade do Homem, que
permanece como um resíduo quase omisso (8).

Assim, a solidão e a sublimidade foram assumidas como metáforas fundamentais


românticas, muitas vezes acompanhadas pelo interesse mórbido sob a inevitabilidade do
destino que transparece nas mais diversas paisagens de época.

144
A Pena

―Quando se pretende criar um jardim, deve dirigir-se a atenção mais à Natureza que à
Arte, na qual não se deve utilizar mais do que o necessário para reforçar a Natureza‖
Dézallier d‘Argenville, 1709

Se a Serra de Sintra encantou D. Fernando pela sua localização, pelas suas panorâmicas
sublimes tão ao gosto da época e pelas suas peculiaridades climáticas, não menos o
encantou pela carga de mistério e lendas que desde tempos remotos a individualizavam
nas imediações de Lisboa. Monumentos megalíticos e topónimos estranhos
denunciavam a consagração desta zona a cultos celestes e terrenos (PEREIRA,
CARNEIRO, 1999:11). Geógrafos da antiguidade a consideraram como Finisterra ou
como Mons Sacer, o Monte Santo de Varrão e Columella ou ainda como o Monte da
Lua de Ptolomeu. Acresciam-se a toda a esta carga mítica as referências ao passado
islâmico que tanto atraía o futuro rei consorte e a um lendário passado medieval pelas
histórias dos castelos de Colir e de Cintra narrado por João de Barros.

A envolvente correspondia na íntegra aos conceitos estéticos da época, dominados pela


agressividade da paisagem de blocos graníticos, pelo horizonte marítimo, pela expressão
das forças da Natureza e mais ainda pelo isolamento: O local escolhido e adquirido após
a extinção das ordens religiosas participava não só de um antigo espaço de devoção
cristã de origens também remotas, mas também das características topográficas e
fisiográficas que assegurariam a construção magnífica no topo de um ermo penhasco.

Este parque, que atingiu cerca de 150 Ha, foi sendo adquirido e construído de forma
gradual em torno do antigo convento jeronimita de Nossa Senhora da Pena,
aproveitando as reminiscências da antiga cerca conventual. De 1839 à década de 60
desenvolveram-se os principais trabalhos de arruamentos, aquedutos e plantações
constantes da planta do Real Parque da Pena, de 1856. As construções e plantações
arrastaram-se até à morte do rei em 1885, tendo a manutenção sido assegurada até ao
séc. XX sob a gestão de Elisa Hensler, que veio a ser Condessa d‘Edla e segunda
mulher de D. Fernando.

Na obra considerável da Pena sobrepõe-se a personalidade e a vontade do promotor às


soluções de colaboradores reconhecidos como o barão de Eschwege (10) e eventuais ou
pressupostos como o barão de Kessler e Wenceslau Cifka (11) e ainda às hipotéticas
sugestões do jardineiro Morgado, entre outros nacionais. Assim, no parque persistem
apontamentos cenográficos que podem relembrar as viagens então efectuadas pela
Alemanha, Inglaterra e França, mais do que as realizadas a regiões consideradas
exóticas como a Argélia e a Andaluzia.

A composição, que se arrasta por várias décadas e se adapta aos critérios estéticos de
cada momento, compreende a plantação de uma vasta floresta que envolve não só a
encosta do palácio bem como todas as linhas de cumeada, cruzando propriedades ou
tapadas que viriam a manter ou receber designações de Encosta da Cruz Alta, Mata
Dourada, Jardim Inglês e Encosta do Chá entre outras.

145
―Toda a magia surge do bosque, da natureza, do inconsciente. Se atinge captando as
forças geradoras que palpitam no interior de todas as coisas: A erva, a fonte, o barulho
das folhas, o canto dos pássaros... Se se atreverem a perder-vos no bosque como
ascetas, para encontrar entre as frondas e as rugosidades do inconsciente, para
reconhecer vosso rostro na superfície de um tanque escuro...alcançarieis, amigos, todos
os poderes da magia.‖
Garcia Font, 1998 (Trad. Aut.)

Nas imediações, vários palácios e quintas, conventos e cercas, testemunhavam a história


da região destacando-se pelos estilos e construções, híbridos de épocas passadas, que
viriam a influenciar e a participar da obra ecléctica do palácio da Pena.

A concepção e construção decorre num período em que em Portugal se iniciava a


reflexão sobre o

Assim, foi fácil o recurso arquitectónico ao estilo compreendido como Nacional, o


―Manuelino‖, e a todos os eclectismos promovidos por D. Fernando. Contudo, o mesmo
não se passou a nível da envolvente: A solução tradicional dos pátios, jardins fechados e
demais espaços terraceados de produção e recreio, integrados na estrutura de uma quinta
ou de um convento e adaptados ao relevo e às condições edafoclimáticas, dificilmente
corresponderia às expectativas e exigências de enquadramento do palácio acastelado da
Pena.

D. Fernando teve a oportunidade de admirar as principais criações paisagistas alemãs,


nomeadamente as que envolviam as residências de infância de Rosenau e Coburgo, e
outras contemporâneas como o Tiergarten em Berlim, entre as várias projectadas por
Lenné. Teve também a possibilidade de consultar publicações temáticas relacionadas
com os ensaios então realizados a nível da concepção de paisagens, pelo que se pode
afirmar que na criação do Palácio e do Parque, tal como em tantos outros projectos e
obras, se manifesta a aquisição de conhecimentos ao longo da sua diversificada
formação como príncipe alemão.

Consequentemente, não é de estranhar que a composição da Pena se assumisse através


de um modelo pouco conhecido em Portugal, o ―parque‖, e se afastasse das tipologias
tradicionais das quintas, cercas ou tapadas. E que, em simultâneo, nela se recorresse
pontualmente ao decalque de algumas soluções divulgadas em publicações temáticas,
desenhos e gravuras da época. Contudo, pode constatar-se que esta solução dista tanto
das soluções tradicionais portuguesas como das observáveis nos parques paisagistas
ainda em voga na Europa, modelos que inspiraram Gerard Devisme (9) aquando da
reformulação das suas quintas de Monserrate e de S. Domingos de Benfica, em pleno
séc. XVIII.

Património Nacional, se relevava e realçava os testemunhos medievais através de


estudos como os de Francisco Adolfo Varhnhagen e projectos revivalistas, como os de
Cinatti e Rambois para os Jerónimos ou outros para o Convento de Cristo, abordagem
que até certo ponto as justificava e inseria no contexto europeu. Relembre-se que estes
últimos, chegados a Portugal logo após o fim da Guerra Civil, foram os responsáveis
pela adaptação da cenografia nacional aos ideais românticos através da utilização de
paisagens, de elementos arquitectónicos revivalistas, de cenas fantásticas e míticas.

146
São poucas as edificações levantadas na vasta área do parque, limitando-se apenas a um
mirante como o Templo das Colunas, ou a uma fonte como a dos Passarinhos, além dos
anexos exigidos por questões funcionais dos quais se destaca a Abegoaria. Nestas
construções é óbvia a feição manuelina, orientalizante, arabizante ou mourisca, que
dominou a construção do palácio, tal como o recurso à arquitectura de vanguarda
europeia.

As construções mais numerosas compreendem pequenas fontes, mesas e bancos


localizados em posições estratégicas do parque. Durante as primeiras décadas da obra,
algumas destas pequenas construções de alvenaria rebocada sobressaíam da paisagem
agreste por pintadas de forma algo suspeita a azul, vermelho e amarelo, e parcialmente
revestidas a asfalto, material de eleição da época. Com o avançar do século XIX, as
soluções construídas foram sendo depuradas deste artificialismo, afeiçoando-se à
Natureza. A paisagem concebida em torno do chalet da Condessa, mais pitoresca,
reflecte este período já tardio da Pena e afasta-se das pretensões iniciais do parque,
talvez dominadas por fundamentos mais recônditos.

Assim, a Pena pode surpreender... tanto pela negativa, se admitida como adaptação
falhada de um modelo paisagista, desprovida de profundidade e coerência, como pela
positiva, se compreendida como composição inovadora cuja interpretação se baseia em
princípios complexos e herméticos, talvez afins aos que vieram a ser exibidos sem
pudor na Quinta da Regaleira.

Ao longo dos vales principais, marcados pelas seculares reminiscências religiosas e pela
construção mais recente do chalet designado como ―da Condessa‖, criaram-se lagos,
plantaram-se jardins, colecções de camélias, feteiras, além de viveiros devidamente
enquadrados por estufas e estufins, indispensáveis à replicação de plantas e manutenção
de colecções. Ao sabor da época, foram plantados fetos arbóreos, rododendros,
castanheiros, castanheiros da Índia, faias, aceres, nogueiras, cedros, freixos, carvalhos,
pinheiros, tuias, criptomérias, sequóias, e muitas outras espécies também oriundas dos
"Quatro Cantos do Mundo‖.

Toda esta estrutura, que se assume em duplicado em torno do palácio e do chalet,


apresenta-se unida pela rede de percursos e suportada pelos consideráveis aquedutos,
que depois de receberem a água das captações ou minas tanto abasteciam as charcas
indispensáveis à rega das vastas áreas plantadas, como asseguravam o caudal contínuo
nas linhas de água e as dotações de água corrente nos edifícios.

O EFEITO PESSOA E A SOCIOLOGIA


DOS CONGRESSOS DIGITAIS

PEDRO DE ANDRADE

Formalmente, este texto não é apenas um texto, mas apresenta-se como dois textos
articulados entre si. Assim sendo, deve-se nomear, com mais propriedade, bi-texto ou

147
texto-espelho. O bi-texto desvela-se enquanto entidade híbrida, fronteiriça, dissolvida e
dissolvente, na qual nenhum texto predomina, domina ou se entende como uma única
domus (casa) da linguagem. Igualmente, consiste numa matéria bífida, na medida em
que mobiliza duas línguas, os idiomas estilísticos próprios de cada um desses dois
textos. Para além disso, assume-se como texto duofónico que reflecte o mundo, antes de
reflectir sobre o mundo. Desta feita, não se confunde com o hipertexto, já que o texto-
espelho origina-se amiúde nas dicotomias, para melhor as desconstruir, e não tanto em
tricotomias (redes de três pólos) ou pluricotomias (teias de múltiplas polaridades).
Quando muito, só pode ser entendido como caso particular do hipertexto, se o
considerarmos estruturado numa rede especular, aquela figura de rede hipertextual
formada apenas por dois nós, onde as referências se desrealizam na reflexão ad
perpetuam desses dois pólos.

Daí que, substantivamente, não nos interesse discorrer sobre um só tema, mas acerca de
dois assuntos intimamente relacionados. O próprio título deste ensaio é duplo,
encerrando dois títulos (e não sub-títulos) aos quais subjazem duas temáticas. De um
lado desta rede especular do bi-texto, falaremos do processo que nomeámos Efeito
Pessoa. De outro lado do texto-espelho, aplicaremos a figura epistemológica da
reflexividade sociológica, ao procurar meditar, neste ciber-congresso, sobre a
possibilidade de uma Sociologia dos Congressos Digitais, em diálogo com a reflexão
inicial sobre o Efeito Pessoa.

1. O Efeito Pessoa.

Para discutir a pluralidade do poeta e exegeta Fernando Pessoa, nada melhor do que o
ambiente interdimensional da Internet. Nesta rede que tricota todos os tecidos sócio-
simbólicos, e mais intensamente do que no mundo não enredado, o efeito é sempre
qualquer coisa que surge depois de um evento ou trabalho feito cada vez mais no
ciberespaço (e-feito). Para além disso, a cada feito e-feito corresponde um certo e-feitio.
Nesta óptica, o feitio que subjaz a Pessoa é, de raiz, reticular. Dito de outro modo: ainda
antes de Julia Kristeva ter falado da intertextualidade, Fernando Pessoa emergiu como
um dos mais notáveis percursores (aqueles que conduzem os per-cursos) da Internet, e
não apenas do hipertexto. Senão vejamos: a sua personalidade múltipla e intertextual
encontra hoje uma confirmação insuspeitada no Efeito Pessoa, particularmente visível
no ciberespaço. O Efeito Pessoa é a capacidade, para um infonauta, de construir e viver
diversas personalidades digitais através da ciber-escrita, ou escrita efectuada no
ciberespaço. Cada uma destas e-personalidades prismáticas encerra uma linguagem
plural e uma intertextualidade nativa. Um tal processo de desdobramento pessoano da
pessoa autora, ou heteronímia digital, executa-se a partir da possibilidade, concreta e
prática, de assinar várias moradas electrónicas de e-mail, ou de manter diversas web
pages, ou ainda de participar em múltiplos chats e foruns de discussão, e de edificar um
estilo próprio em cada um desses locais da rede (cf. a fig. 1).

148
2. O ciber-congresso.

Articulemos em seguida o efeito Pessoa, assim circunscrito, ao ‗Discursos e práticas


alquímicas‘ Colñquio internacional V, que tem lugar integralmente na Internet. O
objectivo é contribuir para esboçar um arquipélago de interpretação sociológica que se
ocupe das reuniões científicas e culturais residentes no ciberespaço.

Antes de mais, neste colóquio virtual sobre alquimias, passa-se, entre outros fenómenos,
alguma alquimia das e-personalidades dos conferencistas digitais. Este processo é
fundado, desde logo, na própria cumplicidade dos participantes, fundida em torno de um
projecto comum que decorre na rede. Uma tal promiscuidade, em certas condições,
pode evoluir para uma verdadeira identificação entre esses infonautas, ou mesmo
enveredar na direcção de uma identidade (efémera) comum.

Nesta perspectiva, o congresso reúne uma micro-comunidade global que concorre, entre
outros alvos, para a produção da e-democracia cultural, a partir de diferentes
estratégias concretas de participação, como por exemplo as seguintes.

Em primeiro lugar, cada um de nós pode assumir a pele virtual de múltiplos


conferencistas intervenientes, se utilizarmos o Efeito Pessoa. Para tal, basta usarmos,
num fórum de discussão, dois ou mais nomes diferentes, ou enviar duas comunicações
ao congresso, por exemplo uma com o nome original e outra com um pseudónimo ou
com um heterñnimo. A heteronímia digital pode assim ocorrer na escrita de cada ‗autor-
actor de congresso‘.

149
Em segundo lugar, no trajecto de um congresso deste tipo, somos capazes de saber,
simultaneamente, o que acontece na generalidade dos grupos de trabalho do encontro.
Esta ubiquidade do ciber-congressista fá-lo entender melhor o colóquio como uma
totalidade. Ou, pelo contrário, permite-lhe compreender mais profundamente cada
debate, se, ao mesmo tempo, se procurar informar sobre os temas a ele inerentes, na
própria WWW.

Em terceiro lugar, é possível usufruir mesmo do poder de escamotear, como este ciber-
congresso pioneiro o faz, as presidências de mesa de certos colóquios que usurpam a
criatividade dos participantes. De facto, a exibição das comunicações em linha permite a
sua crítica incessante. Depois, na web page de um colóquio digital é corrente a
apresentação mais personalizada dos congressistas. Para além disso, um ciber-forum
sugere a adaptação e mudança contínuas, imediatas e aliciantes dos temas a debater, de
um modo mais global do que um evento (mesmo um ‗congresso internacional‘)
localizado numa sala concreta desligada da rede. O que mais se aproxima destas
virtualidades planetárias, incorporadas e sedimentadas no congresso digital, é a video-
conferência empreendida no congresso ‗físico‘. Finalmente, o ciber-congressista
assume-se, no colóquio reticular, como um sujeito parcialmente co-organizador do
mesmo, na medida em que colabora, interactivamente, na modificação tanto dos
conteúdos como nos respectivos timings parciais, o que não deixa de influir na agenda
do acontecimento no seu todo. Desta forma, o congressista digital não se reduz a um
mero fornecedor de conteúdos, como se verifica correntemente nos colóquios
tradicionais.

No quadro deste acesso abrangente à pluralidade da informação por parte da


generalidade dos participantes, torna-se muito mais fácil exercer uma ciber-opinião
genuína, ou seja, a emissão de juízos no ciberespaço, seriamente informados. Assim
sendo, a democracia cultural aparentemente alarga-se, no quadro e no território da
democracia cultural digital.

150
A RELIGIÃO QUE ANDA NO AR,
OU A DOR DO DIÁLOGO
JOSÉ AUGUSTO MOURÃO
(UNL-DCC)

«They know which way the wind is blowing" (Hillis Miller)

«Je suis persuadé qu'en lutant contre le gnosticisme, le deuxième évêque de Lyon a
combattu, il y a exactement dix-huit siècles, la déviance Ia plus redoutable que
rencontre aujourd'hui la foi chrétienne, du moins en Occident» (Decourtray)

No fim do século XIX e no começo XX, antes de 1914-1918, falava-se de "religiosidade


vagabundeante" para designar uma nebulosa alternativa que pairava fora das Igrejas, de
feição individualista e espiritualista, moderna a seu modo, pouco ou muito panteísta. O
niilismo negativo e trágico diz que ―a religião acabou‖. Engana-se. A nostalgia do
sagrado pervive e reaparece no meio das transformações em que o social se confunde
com o religioso, em que a comunicação com a natureza e com o conhecimento cósmico
dum bem universal se confunde com o próprio conhecimento de Deus. Aquilo que
julgávamos extinto reaparece, reposiciona-se em configurações de co-presença nunca
antes vistas. Os deuses voltaram a ocupar a crista da onda (como em Voltaire),
esbatendo-se a diferença entre a epifania antiga e aquela que pode sobrevir na impostura
da língua, na lógica da publicidade, nos jogos de computador ou no sexo de ler.

Uma sensibilidade gnóstica marca este fim de milénio. Um tipo de religiosidade


deambula agora fora das instituições religiosas, centrada na experiência emocional,
profundamente eclética - um caldo de psicologia transpessoal, com resíduos do último
paradigma científico, da tradição esotérica, e com algo de misticismo oriental, cristão,
etc.. É uma religiosidade que anuncia a entrada numa nova era religiosa e que deriva,
em vários casos, ou para atitudes fundamentalistas ou para o unilateralismo ou para o
confusionismo e o vago erigido em paradigma. O religioso interessa mais do que a
teologia, suspeita de ligações à instituição e aos dogmas. Uma exegese de tipo esotérico
está a substituir a leitura canónica dos textos bíblicos. A mística tornou-se um efeito de
laboratório: biofeedback, isolamento sensorial, respiração holotrópica, hipnose, mantras,
jejum, privação do sono e meditação transcendental são técnicas de controle e de
vibração com uma unidade totalitária. O religioso interessa mais do que a
irracionalidade e por consequência o abandono ao autoritarismo dogmático das igrejas,
dos ―comités‖ centrais ou dos chefes carismáticos. ―O niilismo construtivo da
hermenêutica deve defender-se não apenas do regresso nevrótico dos autoritarismos,
mas igualmente do endurecimento metafísico da hostilidade para com as fundações (1).

Emancipação é o termo que melhor define o niilismo contemporâneo, se lemos este


termo nietzscheano à luz de uma outra expressão do filñsofo alemão: ―Deus morreu, que
vivam agora deuses‖. Para G. Vattimo, a dissolução dos fundamentos é o que liberta, se
ouvimos esta expressão à luz desta outra, evangélica: ―a verdade libertar-vos-á‖ (2).

151
Se há ideologia que ainda atravessa o ar e os figurinos do pensamento, essa ideologia é
o niilismo. 0 niilismo representa hoje a dissolução de qualquer fundamento último. As
religiões deixaram de ser apólices de seguros, entraram no vórtice do tempo e
fragmentaram-se, como a própria cultura.

O processo vem de longe. Duns Scot - o Doutor subtil - inaugurou a ruptura com a
tradição realista de inspiração agostiniana e tomista ao separar a metafísica da teologia.
O humanismo renascentista marcava já o início de um processo de secularização da vida
e da cultura. Perderam-se entretanto várias formas do humano - o monaquismo, v.g. O
humano está hoje a tomar as formal quiméricas do ciborgue e do clone. Um problema
nos assaca: como descrever realisticamente o mundo se este está ainda por vir?

Escrevi já sobre aquilo a que chamei a ''proliferação de transcendências", como escrevi


também sobre ―Cibercultura e religião, o vento da tecnognose‖ (5). Aqui referir-me-ei
tão sñ à aparição do novo paradigma cultural denominado ―New Age‖ e aos seus efeitos
na experiência do religioso em confronto com as religiões dominantes.

Existe um movimento teológico chamado Radical Orthodoxy que afirma que tanto a
filosofia como a teologia devem desfazer-se da herança escotista e ochamista se querem
evitar cair no niilismo. E porquê? Porque este pensamento (nominalista) favorece a
saída da teologia e da metafísica, assegurando deste modo a passagem à modernidade
secular e niilista (3). Para a Radical Orthodoxy, o sagrado interpenetra tudo. O conceito
de fé perceptiva" de Merleau-Ponty permite a Ph. Blond, por exemplo, afirmar que só o
cristianismo pode dar conta da relação entre a visibilidade e a invisibilidade, sem abolir
qualquer destes pólos (4).

A Idade Nova

O paradigma antigo regia-se pelas propostas de mundo contidas nas Escrituras judeo-
cristãs. 0 aparecimento do novo paradigma desenha-se já no começo do século XIX, na
passagem do racionalismo ao romantismo. Se a experiência da presença dos deuses era
em Hölderlin e alguns eruditos, pura, já em F. Schlegel, essa mesma experiência, com o
seu desejo de englobar o Oriente, se torna gasosa, e ambígua em Nietzsche. E porquê?
Porque vem ligada à perversão de uma comunidade holística – que se torna terrível no
mundo tecnológico -, a vontade do povo alemão. A própria esperança num regresso de
Dionísio através da música esfarela-se e a paródia acaba por ganhar. Em último caso,
experiência vai confundir-se com o sentimento que tem Nietzsche da sua própria
divindade. A &#x201Crevolução‖ da ―New Age" aparece como a etapa final duma
evolução. Há autores que situam a sua eclosão em Inglaterra, no final dos anos
cinquenta. O despertar da Teosofia abre caminho para esta deriva que comporta todavia
alguns princípios comuns:

- uma concepção holista, monista ou unitária do universo; como corolário: o


homem é divino por natureza;
- um relativismo ético e religioso;
- uma concepção da reincarnação;
- um milenarismo optimista".

David Spangler (6), cita as principais características da visão Idade Nova, a saber:

152
- holística (globalizante, porque existe uma única realidade-energia);
- ecológica (a Terra-Gaia é nossa mãe, cada um de nós é um neurónio do sistema
nervoso central da Terra, Gaia é a alternativa a Deus Pai; o Deus da New Age é
uma energia impessoal, imanente ao mundo);
- andrógina (o arco íris e o Yin/Yang são dois símbolos New Age que indicam a
complementaridade dos contrários, v.g. masculino e feminino;
- mística (vendo o sagrado em toda a parte);
- planetária (os homens devem ancorar-se à sua própria cultura e abrir-se ao
universal).

Escolhos não faltam: a espiritualidade ―nova idade‖ traz consigo uma metafísica e uma
psicologia; a primeira é uma clara nova forma de gnose – Jesus é apenas uma das muitas
manifestações históricas do Cristo universal e cósmico; a segunda resume-se a uma
experiência de transformação. Narcisismo espiritual? Negação da história? União
mística ou união virtual? Tudo é Deus e tudo é espírito de Deus? Fundir-nos-emos no eu
cósmico? (7)

Da New Age à cibercultura

Os movimentos religiosos contemporâneos parecem resultar de algo que esteve sempre


presente em todos os movimentos reformadores: uma dispositio novi ordinis. De acordo
com a Confissão de Augburg (1530), "The anabaptists and others who teach we can
attain to the Holy Spirit without the bodily word of the gospel and through our own
preparation, thoughts and work are condemned" (artigo 5). O critério decisivo da
doutrina da Igreja é visto na adesão teolñgica à ―bodely Word‖ (na versão Latina do
texto, verbum externum). Aquele que separa a fé do medium desta palavra incarnada
está a promulgar uma doutrina que o coloca fora da Igreja. A Igreja como institutio Dei,
só existe por causa do Espírito e a palavra incarnada. A natureza externa do evangelho
está indissoluvelmente ligada à própria matéria do evangelho (8).

Em causa está, fundamentalmente, uma concepção do Espírito como força de


apropriação subjectiva da verdade. O Espírito é princípio de autoridade na comunidade,
de acordo com 1 Cor 14, em que cada membro tem o direito de falar e todos os outros
ouvem e fazem uma apreciação crítica. A própria unanimidade é considerada como um
sinal da acção do Espírito (Act 15, 23).

No libelo de Hergot, o impressor a que já fizemos alusão, é o Espírito Santo que ensina
a verdade, que não se encontra nos Livros. 0 Espírito vem em ajuda dos homens não
instruídos contra os escribas e os exegetas que não acreditam em nada e apenas pensam
na sua própria utilidade (9). A revolução vem de baixo, mas é inspirada pelo alto. Os
executantes desta ―newen Wandlung" serão homens do grau mais baixo da escala social,
―das gemeyne Volk'' e os guias serão homens inspirados por Deus. Na tábua 12 do livro
das figuras a terceira idade do Espírito trará uma nova ordem. Nesta ordem todos são
iguais. Não há dúvida que bastas razões havia para que os movimentos revolucionários
modernos se tenham apropriado do ideal que reveste este libelo.

Parece claro que o movimento religioso que dá pelo nome de ―new age‖ faz da
experiência e da livre interpretação da Escritura os seus mais notórios alicerces. Alan
Purves chama a atenção para a alteração profunda que as novas tecnologias da
informação podem introduzir no campo da leitura (10). A ciberliteratura traz consigo o

153
fim do texto, a disseminação da escrita, a partilha do texto e do sentido que faz com que
o autor se tenha transformado em gerador de textos automáticos. Esta máquina activa,
não determinista, permite ao leitor gerar o seu próprio texto, independentemente da
intenção do actor. O abandono da narrativa, o ñdio à ideia de ―intenção‖, o abandono da
ideia de autoridade, senão mesmo de autoria ameaçam o mundo do ―Great Code‖
outrora ferreamente guardado por exegetas e demais autoridades. ―O sentido do texto
não está aqui‖. Haverá melhor Boa Nova para o Texto a vir?

É comum associar os ―entusiastas‖ à "new age". ―Spirit‖ tanto pode ser entendido num
sentido Joaquimita como num sentido Montanista para indicar a marca de uma nova
idade que transcende os estádios da salvação representados pela incarnação e pela
Igreja. No método exegético que Joaquim de Flora pratica, a ―concñrdia" é a palavra-
chave, a letra do Antigo Testamento, a do Novo Testamento e a inteligência espiritual
em relação com a idade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Este tipo de leitura enraíza
o sentido dogmático na histñria, não evacuando ―o carácter social duma revelação feita
ao povo de Deus no curso duma história" (11). Por outras palavras, o cerigma
neotestamentário é também um Testamento, uma letra, uma nova Escritura a interpretar.
Em termos literários modernos, a questão coloca-se deste modo: como pensar
simultaneamente a ligação necessária e o abismo inevitável entre a Escritura e nós, se a
inteligibilidade dos textos depende da posição do leitor na história?

Coda

Devíamos ter o ouvido afinado para escutar aquilo que no nevoeiro da religiosidade
vagabundeante se faz ouvir. O vento que sopra não conhece instituições nem projectos
de nova evangelização, marca apenas uma nova sensibilidade, uma nostalgia também
pela música dos sinos, pela marcação ritual da vida, pelos modos perdidos de humano.
Não sei se as culturas da mundialização contrariam aquilo que mais profundamente
marca a modernidade: a irrupção do indivíduo-sujeito que reivindica o direito de definir
o fito dos seus projectos e da sua auto-poiése. Vem de Jung a crença num ―deus
interior‖. A New Age tem uma concepção bem prñpria da ―theosis‖ ou divinização, que
consiste em reconhecer e em aceitar a nossa natureza divina (12). O social e a arte
ocupam desde há muito o lugar da religião. ―Os deuses manifestam-se, antes de mais,
como acontecimentos mentais‖, escreve R. Calasso (13). A única maneira de evitar uma
redução à patologia encontra-se na literatura que os reintroduz no mundo e representa o
lugar possível das epifanias. O nosso mundo é profundamente escotista. A
―imanentização do mundo'' afasta Deus da criação e espacializa a cidade terrestre. A
―estética de cinza" tem muito mais peso do que a ―estética de ressuscitação" que alguns
estetas cultivam. O realismo dos números devora a impulsão para criar mundos-outros.
A economia do datum está a substituir a economia do dom. O processo de
―nominalização‖ do mondo apaga os vestígios da passagem do Anjo no mondo visível.
Que restará então dessa poeira (religiosa) que anda no ar?

NOTAS

154
1 Giani Vattimo, ―Nihilisme et émancipation‖, in LV, 257, 2003, p.10.

2 Ibidem, p. 9.

3 J. Milbank, The Word Made Strange. Theology, language, culture, Oxford, Blackwell,
1997; C. Pickstock, After Writing. On the liturgical consummation of philosophy,
Oxford, Blackwell, 1998.

4 2 Ph. Blond, "Perception. From modem painting to the vision in Christ‖, in Radical
Orthodoxy. A new theology, ed. J. Milbank e al., Londres-New York, Routledge, 1999,
p. 221.

5 José Augusto Mourão, ―Do uso selvagem do sagrado. A religiosidade


vagabundeante‖, in RCL, nº 28, Outubro de 2000; ―‖Cibercultura e religião. O vento da
tecnognose‖, Cadernos ISTA, nº 11, 2001.

6 David Spangler, in Actualité des religions, nº 8, setembro 1999, p. 43.

7 Cf. La documentation catholique nº 2288, Une réflexion chrétienne sur le ‗Nouvel


Âge.

8 Inge Lonning, "The Reformation and the Enthusiastic‖ in ed. M. Hans Küng e Jürgen
Moltmann, Conflicts about the Holy Spirit, The Seabury Press, New York, 1979, p. 33.
Ver, na mesma obra, John H. Yoder, ―the Enthusiasts and the Refomnationn‖, pp. 41-
47.

9 Johann Hergot, Von der newen Wandlung eynes christlichen Lebens, ed. A. Goetze
Schmitt, in Flugschriften aus der Reformationszeit, Halle 1953, p. 60.

10 Ver o ensaio de Alan C. Purves, Web of Text and the Web of God, The Guilford
Press, New York, London, 1998.

10 B M.-D. Chenu, "Histoire et Allégorie au Xlle siècle", in La Parole de Dieu I. La foi


dans l'intelligence, Paris, Cerf, 1964, p. 167.

12 Cf. Brendam Pelphrey, ―I said You are Gods. Orthodox Christian Theosis and
Deification in the New Religious Movements‖, in Spirituality East and West, Easter
2000, nº 13.

13 Roberto Calasso, A Literatura e os Deuses, Gótica, Lisboa, 2003, p. 145.

155
A DIALÉTICA DIABÓLICA DA POESIA
RODRIGO PETRONIO

Nada mais tentador e, ao mesmo tempo, nada mais óbvio e reducionista, do que
começar a exposição do tema proposto por algumas divagações etimológicas. Porém, é
difícil fugir delas, dada a naturalidade com que algumas associações nos ocorrem.
Comecemos pelo termo híbrido: todos os bons dicionários derivam-no do latim
hibridus, que quer dizer algo sem unidade, misto, misturado, compósito, dividido, algo
geralmente referido como a união estável e previsível de dois ou mais elementos de
natureza diversa. Impossível não associarmos esse étimo, por maiores que sejam as
recriminações de filólogos e especialistas, à hybris grega: a divina loucura de que foi
acometido Édipo ao descobrir o caráter incestuoso de sua relação com Jocasta mas
também, e sobretudo, aquele furor divino que, como diz Platão no Íon, é o que anima
toda a poesia e está na sua origem. Nesse caso, o poeta viveria a hybris no momento da
criação: deixando de ser ele próprio para ser um outro que canta por intermédio dele,
faz-se instrumento de uma voz que o transcende sem, contudo, anulá-lo em sua
singularidade. Como diria Sócrates a Íon, para saber o que vem a ser a poesia, seria
preciso saber quem canta nele quando ele canta, o que, a despeito dos protestos sem
sucesso do mesmo, que reivindica de maneira renitente e inútil a autoria integral de tudo
quanto compõe, colabora para quebrar a própria expectativa que o indivíduo faz de si
enquanto indivíduo: seria uma forma de romper sua integridade e dissolvê-lo no devir
do mundo.

O poeta seria então aquele para quem o exercício do duplo, mais do que algo natural, é
necessário, essencial e sua razão mesma de ser: a outra voz de que fala Octavio Paz, que
se insurge da voz mesma daquele que enuncia o verbo e anuncia o mundo e o nomeia de
novo, age ironicamente contra o sujeito que a profere, dilacerando-o. Porém, sua
destruição é divina, pois mostra aos homens que ela é a chave de que necessita o criador
para mergulhar na estrutura profunda do mundo e dele trazer Eurídice à tona, como
verdade revelada ainda que sempre sabida. Haveria uma relação substantiva e
substanciosa entre poesia e loucura, nesses termos, relação que pode ser lida e entendida
como uma apologia do alheamento, da divisão, do que desagrega a unidade primeira do
mundo aparente para preservar incólume, intacta e íntegra a unidade profunda do
mesmo, que se desprende do abismo e encontra na voz do poeta uma intérprete. Mais:
um veículo. Sua dissolução está na base da divisão de sua personalidade e na
duplicidade de sua voz que se desdobra para cantar o Outro, essa alteridade infinita que
não coincide com nenhuma idéia preconcebida ou quaisquer conceitos cristalizados de
ordem política, ética, moral, étnica ou outros congêneres. Semelhante à vítima
sacrificial, o canto nasce da perda da unidade do sujeito que se estraçalha ou, para dizer
com Fernando Pessoa, simplesmente não se achar em nenhum lugar onde quer que
esteja ou sequer e muito menos naquele em que se imagina, pois o próprio sonho lhe é
hostil, refratário e avesso à hospitalidade. E assim se sente estrangeiro até de si mesmo,
para quem todo o mundo é um exílio, e não só um exílio da carne que aspira ao reino
celeste, como Camões disse em Babel e Sião, mas sim uma nostalgia do tempo em que
essa mesma carne abrigava deuses em si e supunha em si algo além capaz de redimi-la,
mas sim o exílio de um homem que não mais se reconhece nem mesmo naquilo que

156
suas mãos produzem: o abandonado dos deuses, para quem a loucura não mais anima e
dá vida e unifica as formas sensíveis do mundo, mas apenas faz dele um teatro sádico
no qual fomos inescrupulosamente atirados e no qual representamos como marionetes,
como disse Rilke.

E aqui entramos em zonas de sombra e em uma floresta de conceitos que merecem


maior atenção, com o perdão pela minha insistência de escoliasta e filólogo frustrado.
Porque se o furor divino separa, desagrega e divide o indivíduo, fraturando assim a sua
própria essência ontologicamente determinada, e exige que ele empreste sua voz
particular para que se cumpra o eco ancestral daquela Voz impessoal e eterna que se
renova nele, que existe graças a ele e, ao mesmo tempo, apesar dele, seria interessante
pensar de que ordem de divindade seja esse deus bruto. Acaso não seria um tipo
peculiar de dyabolus, tendo em vista que, na sua acepção original, este quer dizer
rigorosamente: aquele que separa? Se o symbolus é uma conjunção de sentidos, uma
unidade semântica que refere algo que é maior e mais abrangente e mais espesso que as
partes que une e sintetiza, seria a poesia, uma das artes e atividades simbólicas mais
antigas da humanidade, regida pelo extremo oposto de tudo o que a estrutura e que dá
cor, vida, forma, função, brilho, luminosidade, ordem, movimento, textura, ritmo e
intensidade à aparência exterior de sua arquitetura? Seria a poesia um anjo que só alça
vôo sob os auspícios do sopro de um demônio? Esse parece ser o paradoxo que instaura
seu sentido profundo. Ainda que o furor divino seja o seu primeiro motor, só na
condição híbrida do poeta, esse ser onde convivem de maneira limítrofe o Eu e o Outro,
ou, numa fusão alquímica mais radical, onde o próprio eu é um outro, como bem disse
Rimbaud, a poesia torna-se a zona manifesta de uma operação que vai do Uno à
desagregação, ou melhor, que parte dele para nele compor a multiplicidade do mundo
sensível, matizado, separado, discernido, distribuído, misturado e plasmado de vários
tons e formas, processo fixado por Plotino para superar o dilema e a aporia fundamental
do platonismo, baseadas na impossibilidade de conciliação da Idéia com os fenômenos.

Não se trata de uma conciliação de contrários, ou de uma coincidentia oppositorum,


como referiu Baltasar Gracián para definir aquele tipo de agudeza própria ao engenho
poético mais discreto e arguto, já que nesse caso estamos no interior de um processo
circunscrito aos artifícios retóricos e poéticos, podendo quando muito servir de
ilustração à unidade da Deus que subjaze às mais díspares manifestações e acidentes
sensíveis. Não é uma união entre duas esferas antitéticas do pensamento, como
Schelling propôs que se desse entre o absolutamente real e o absolutamente ideal, em
uma operação lingüística que, é forçoso convir, guarda uma boa dose de falácias e
tautologias. Estamos diante da força demoníaca da poesia, que funciona como espinha
dorsal de sua própria natureza: o sujeito, ao incorporar a alteridade radical e deixar o
Outro falar por sua fala está se destruindo para preservar a unidade do ser. Esse é o
princípio ativo da loucura: a hybris, entendida como desrazão, desmesura,
monstruosidade, excesso e desordem, já que o conceito é passível de todas essas
acepções, nasce da própria condição híbrida e mista do sujeito sem integridade. E creio
que não seja por outro motivo que Nietzsche identificou no cristianismo, esta religião
que radicalizou a cisão ontológica entre o mundo ideal e os fenômenos sensíveis, que
praticamente opôs esta vida à verdadeira vida situada no futuro, transformando o mundo
em uma espécie curiosa de vestíbulo no Além e assim anulando a pulsão vital e todo o
impulso dionisíaco de transformação, o início de uma concepção dual do universo: ao
contrário do ser permeável, poroso e uno, onde essências e acidentes convergiam e
conviviam em um único ato de conhecimento, teremos então a dualidade infernal de um

157
movimento que representa sempre a superação de si mesmo rumo a um ideal perfeito
embora não perfectível nesta existência. Outra não é a função de seu Zoroastro
moderno, que a de regressar aos rudimentos da religiosidade de Ahura Mazda e da
síntese dos opostos, vigente e natural nessas eras remotas.

É claro que há muita generalização nessas premissas, e tomar o cristianismo como uma
totalidade só é possível se depois esmiuçarmos suas peças e práticas, pouco a pouco,
sistematicamente, o que não é o caso aqui. Mas um horizonte se descortina destas
reflexões. E, em um certo sentido, estamos desde Platão presos a uma concepção
dualista do ser, que é a causa primeira de nossa doença. Tudo o que para Parmênides é
movido pela entelékia e nela e na matéria imóvel se consuma em um círculo harmônico,
onde todas as partes convergem para o centro e onde a própria idéia de uma oposição
entre causas essenciais e acidentais é de antemão descartada, com Platão e, sobretudo,
com Aristóteles, será objeto de cisão: e se há uma metáfora precisa para a queda e para a
expulsão do Paraíso, é a imagem do homem sendo expulso do círculo cósmico no qual
ele estava integrado às potências anímicas e sua ulterior entrada na história, e, com ela,
na relação dual, dialética e material de uma existência que a partir de então visará a
consumatio e projetará toda a felicidade terrena e real em um futuro sobrenatural e
hipotético, fazendo o pacto luciferino de troca da evidência sensível pela conjectura
possível, em um movimento teleológico de conseqüências graves. Aqui inicia a loucura:
ela é a um só tempo antídoto e veneno, corresponde àquela acepção preciosa e precisa
que Jacques Derrida desvela em Platão, e que repousa na gama de sentidos da palavra
phármakos, a um só tempo veneno e antídoto, remédio e doença, cura e degeneração.
Porque a cura pelo discurso, ou o ato de filosofar e por meio desta atividade contemplar
as esferas puras, cujo correlato político a capacidade de legislar e organizar a República
ideal, sustentada pela mediação racional do homem visto como animal político e,
portanto, infenso às desarmonias e paixões circunstancias do homem enquanto animal,
em nenhum momento pode ser tomado como um ato alheio a todas as artimanhas que
todo discurso, como fato de linguagem, engendra em si: a filosofia seria um amor da
sabedoria, mas também o amor da serpente, ófis, que se enrosca em si mesma e encontra
na autofagia o seu paraíso artificial e sua redenção paradoxalmente semelhante a como
Narciso encontrou em si mesmo o seu inferno. É assim, desvendando o vazio conceitual
e categórico da razão filosófica, tal qual ela se desenvolveu no Ocidente, pensando os
limites mesmos do discurso produzido sobre o ser, que podemos rever sua eficácia e seu
sentido. Da mesma forma, a poesia, fonte infinita de ambigüidades, a ponto de
podermos dizer que apenas a ambigüidade a funda e estatui seu ser no mundo. E sua
ambigüidade maior está posta como sua polaridade originária e original: sendo a voz
que canta e celebra a unidade, ou a Substância de todas as substâncias, como diria o
magnífico poeta Augusto dos Anjos, só por meio do dilaceramento do cantor é que ela
se efetiva entre os homens em toda sua plenitude e que se instaura no mundo com toda
sua glória. Loucura sagrada e divina, por paradoxal que pareça, porque em sua
dimensão ética está implicado o seu fim e não os seus meios. Loucura que começa
exatamente com a polarização da experiência humana em um horizonte fenomênico
dividido e hierarquizado, cuja pedra-de-toque é, em primeiro lugar, Platão e, em seu
encalço, o cristianismo, entendido como platonismo para o gado, como já disse
Nietzsche.

Assim a poesia pode, como fato privilegiado da linguagem, desmascarar a própria


verdade, vista como uma linguagem que se naturaliza a si mesma e disfarça
falaciosamente os artifícios de seus mecanismos de enunciação. Penso em Heidegger,

158
em sua descoberta fundamental, colhida em algumas linhas dos filósofos físicos da
Antigüidade, segundo a qual uma das acepções de alethéia, ou seja, de verdade, seria:
aquilo que aprece no discurso, no logos. A verdade seria então um epifenômeno
lingüístico, uma aparição e, em última instância, um fantasma que se instaura sob certas
condições e dentro de certos regimes de sentido. Há uma série de razões subliminares
nesse pequeno encadeamento etimológico, a começar pela revisão drástica da herança
substancialista de toda uma tradição filosófica devedora do idealismo. Mais ainda: há
aqui uma subversão da própria filosofia, criticada como atividade que, ao invés de se
propor como ciência das ciências, formulando e perscrutando as suas próprias causas e
implicando o sujeito cognoscente em todo ato de conhecimento, se contenta com a
repetição de certos agregados de conceitos mais ou menos convenientes e
convencionados pelas práticas e pela rotina do ofício, deixando de lado a amplitude
noética, de mergulho vertical na estrutura do mundo, que é, em suma, justamente o que
a caracteriza. Questionamento radical e, sob certos aspectos, último, temos aqui uma
reversão de tudo quanto foi pensado em termos de dualismo desde Aristóteles, e
também um passo fundamental para revermos a polaridade balizada no Górgias e em
tantos outros diálogos, cujo itinerário entre nós é milenar, e que consiste numa oposição
sistemática e exclusiva entre a doxa, a opinião, reino dos discursos sofísticos, e a busca
dos universais inteligíveis e puros, ocupação maior de toda a filosofia. Porém, ter a
ciência desse processo não nos leva a incorporá-los pacificamente à nossa consciência.
E será Hölderlin o poeta que arderá nas chamas da loucura mais profunda por ousar
cantar o efêmero como eternidade e a louvar a unidade panteísta do mundo que se lhe
afigurava em seus momentos de delírio, pois em nada disso ele reconhecerá o mundo tal
e qual ele se ordena em sua exterioridade cotidiana, e tudo lhe passará sempre como um
sonho bom que quer perdurar sem sucesso, sonho este que, mais tarde, será lido e
politicamente utilizado pelos poetas fin-de-sciècle como refúgios para os sentidos e
como paraísos artificiais.

Esse movimento de destruição epistemológica não é gratuito e muito menos tem como
finalidade reduzir o pensamento a um jogo formular de frases e efeitos. Quer sim abrir
uma via de acesso ao que não tinha sido pensado ou meditado pela tradição filosófica
racionalista, seja ela aristotélica, cartesiana ou positivista. A partir de então o
pensamento se ocupa de suas próprias margens, abre-se um leque amplo e inaugura-se
um campo fecundo para uma das questões mais belas do espírito: o imponderável.
Reflexão que se faz a partir do coração do próprio ato reflexivo, inserção no mundo que
se dá como radicalização de uma visada metafísica, entendida aqui naquela acepção
especialmente tocante e comovente que Heidegger desenvolve em sua famosa
conferência na universidade de Friburg, em 1932, ou seja, entendendo-se a metafísica
como aquele tipo de conhecimento de um objeto onde, em última instância, o próprio
sujeito que conhece está implicado e posto em xeque, eis que os limites entre razão e
linguagem se desmancham, e estamos às voltas com a matéria incandescente da vida em
sua nascente. Eis em suma no que consiste a queda no ser, o desvelamento do ser que
emerge do Dasein, o homem recomposto e doado à sua infinitude de origem e o sujeito
reconciliado com o Outro, com aquela alteridade infinita que funda a própria
possibilidade de existência do Eu, enfim, o homem reconciliado com o ser, por tanto
tampo esquecido, bloqueado ou obnubilado por conta de projetos escatológicos. Nessa
fissura se inaugura uma nova passagem para o infinito e para a Unidade. Não aquela
candente e devedora de névoas transcendentais que tantas vezes eclipsaram o que há de
maravilhoso em todas as religiões e ludibriaram a nossa inteligência com jogos
engenhosos de sentido e de artimanhas, mas vazios de sustentação empírica. Não aquela

159
que se faz à revelia e à reboque do homem, oprimindo-o para poder finalmente se
revelar por intermédio dele, ou, pior ainda, aquela que se refunde no homem e lhe
enseja o simulacro de um poder ilimitado, fazendo dele um pequeno deus capaz de
deliberar sobre o curso das coisas, dos seres e de seus próprios semelhantes. Falo da
Unidade que é o reino do ser implantado neste mundo, do horizonte transcendental onde
o homem se encontra como criatura que reconhece o Criador que cria por meio de suas
mãos terrenas de barro sem dividi-lo ou cindi-lo ou anulá-lo em sua especificidade
ontológico. Nesta dimensão, provavelmente o movimento natural do dyabolus será
regressar ao ventre da relva e ao seu sono eterno, e a loucura, a hybris enfurecida, não
mais será necessária para cantar o Uno, porque este já estará bem aí, onde quer que
estejamos, sempre idêntico a si mesmo e coincidente conosco em cada um de nossos
atos, quando suprimidas as contingências do pensamento que ainda nos prende à razão
dualista que quer a qualquer custo se preservar hegemonica e ideologicamente bem
estruturada no poder, para assim perpetuar o império da loucura por outras vias que não
a da transfiguração poética.

Rodrigo Petronio é escritor, autor de Transversal do Tempo (ensaios) e História


Natural (poesia), entre outros. Contato: pseudopetronio@directnet.com.br

160
CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO. 15.10.2003

O SAGRADO, COMO CENTRO ORGANIZADOR:


UMA PERSPECTIVA TRANSDISCIPLINAR (*)
JOSÉ MANUEL ANES

0 – Introdução

Este artigo pretende propor um modelo para o sagrado de modo a dar conta da sua força
de unificação presente no Homem e na Sociedade mas que ao mesmo tempo não se
esgote num sagrado estritamente religioso. De facto, o que nós desejamos definir é um
modelo de um sagrado, digamos generalizado, de molde a incluir não somente as
formas religiosas e mágico-religiosas, mas também um sagrado «secular» que, pelo
facto de estar no mundo, disfarçado, não deixa no entanto de apresentar algumas
características do outro sagrado, o religioso e o mágico-religioso – por exemplo,
recordando-nos da obra de Mafesolli (Le temps des tribus), as ―tribos‖ do nosso
―tempo‖ (a política, o desporto, a discoteca, etc.,).

Como é sabido, as definições do sagrado levantaram algumas reservas da parte de


alguns pensadores e cientistas sociais et humanos (e não apenas os materialistas e os
racionalistas) em função das questões seguintes:

a) questões relativas ao carácter metafísico da definição: por exemplo, a definição de


Mircea Eliade está baseada num conceito do sagrado como hierofania, a manifestação
de uma entidade sagrada: Natureza, Deus, etc., o que implicaria, entre outras coisas, a
crença em Deus;

b) questões relativas à não universalidade da oposição sagrado/profano (ver E.


Durkheim ): em certas sociedades primitivas toda a realidade estaria imersa no sagrado
e não haveria espaço para o profano; ao mesmo tempo, surgiram propostas para novas
dicotomias relativas ao sagrado, por exemplo a do puro/impuro (ou pureza/poluição) de
Mary Douglas.

Haverá, pois, um modelo que integre estas diversas situações e que dê conta desta força
de reunificação característica de todo o sagrado, dessa ―dimensão unificadora da
experiência‖, de que Gregory Bateson nos falava?

O sagrado tradicional é sacrificial em grande medida, pois é a morte real ou simbólica


que, segundo R. Girard , sacraliza a vítima emissária, afastando-a, distanciando-a em
relação ao mundo quotidiano.

1 - A definição do Sagrado, hoje.

161
A noção de ―centro organizador‖ (René Thom), desenvolvida por Lucien Scubla no
contexto da Antropologia do Simbólico, para aproximação do seu «objecto total»,
parece ser um bom modelo do Sagrado, quer para o sagrado religioso, quer para o
secular, tanto para o sagrado das «religiões históricas», como para o sagrado
«primitivo», tanto para o sagrado «domesticado» das grandes instituições religiosas,
como para o sagrado «selvagem» dos «novos movimentos religiosos» e «mágico-
religiosos» e das «seitas».

Para o autor de Lire Lévi-Strauss, é uma boa ―hipñtese de trabalho‖ a ―existência, em


todas as sociedades‖, de ―um ser ou objecto (natural ou articial) que reune e concentra
nele um conjunto de traços tão numerosos e tão diversos, mas geralmente incompatíveis
e separados‖. Este ―ser‖ ou ―objecto‖ poderia, segundo Scubla, ―servir de modelo
reduzido, ou melhor de germe, de toda a natureza e de toda a cultura‖ e, além disso,
seria ―geralmente investido duma função ritual de primeiro plano tendendo a erigi-lo em
fecho de abóboda de toda a organização social .

Este sagrado generalizado que decorre, na minha perspectiva, da hipótese de Scubla


(prefiro para tal a expressão «centro organizador» à de «objecto total»), parece ter com
efeito uma grande universalidade pois ―reune e concentra‖ nele não somente as
explicações do monde que lhe dão sentido – aspectos cognitivos que Rappaport
denominava de «Postulados Sagrados Últimos» - mas também mobilizações vitais,
internas e externas, do indivíduo e da sociedade às quais Bateson foi muito sensível na
sua perspectiva bio-antropológica e que R. Otto, na sua aproximação psico-espiritual do
sagrado denominou de experiência ―misteriosa‖ do ―numinoso‖, ao mesmo tempo
«tremendo» e «fascinante»‖ .

Vejamos pois si as definições e as características do Sagrado podem ter lugar nesta


definição de Thom/Scubla. Quanto às características de ―numinoso‖, ―mysterium‖ e
―totalmente outro‖ (Otto), são elas que determinam e reforçam, neste quadro, uma
―crença numa realidade superior que daria sentido à ordem do mundo‖ , quer dizer, o
―modelo reduzido, ou melhor (…) germe, de toda a natureza e de toda a cultura‖, como
escreveu Scubla. Esta ―realidade superior‖ – baseada na alteridade e na ruptura com o
mundo quotidiano – pode ser quer a Natureza quer o Cosmos, o Além ou Deus, ou
mesmo a sociedade humana (cf. Durkheim).

Por outro lado, si atravessarmos os autores que reflectiram sobre o sagrado (de
Durkheim e Otto a Eliade, Caillois, Bastide e Girard), poderemos inventariar e resumir
as seguintes características principais ambivalentes et antinñmicas (―conjunto de traços
de tal modo numerosos e tão diversos, mas geralmente incompatíveis e separados‖,
como diz Scubla):

sagrado/profano;
transgressão/respeito,reverência;
impuro/puro;
temível, perigoso/fascinante, benfeitor;
interior/exterior (que têm a ver com a delimitação e a separação);
interdito/permitido;
violência/dom (mas sempre reciprocidade – mimética?);
morte/vida;

162
natureza/cultura;
caos/ordem.

É preciso pôr em evidência que no Homem, não pode haver mistura ou confusão entre
esses termos, mas somente no sagrado que denominaremos de divino poderemos
encontrar a união desses opostos . As mediações entre polaridades opostas –
―coincidentia oppositorum‖ – constituem uma experiência espiritual sagrada que pode
ser feita estaticamente ou dinamicamente – e neste último caso ela será realizada a
través da experiência de morte e ressurreição (a qual segundo M. Bloch constitui a
estructura mínima de todos os rituais).

O sagrado tradicional é sacrificial em grande medida, pois é a morte real ou simbólica


que, segundo R. Girard , sacraliza a vítima emissária, afastando-a, distanciando-a em
relação ao mundo quotidiano.

2 – O Sagrado, hoje.

Este modelo do ―centro organizador‖ pode oferecer (mesmo visualemente, como


procuraremos demonstrar) uma boa explicação à perda da força do sagrado no mundo
moderno.
No sagrado tradicional existe uma sacralização dum ―centro organizador‖ exterior
(Deus, Cosmos, Natureza, Sociedade, etc.) o qual, graficamente (ver quadro), será o
centre duma circunferência sobre a qual se alinham os ―eus‖ individuais que
reverenciam o centro e que estão distanciados sacrificialmente em relação a ele (ver a
situação a) do quadro).

No sagrado moderno, verifica-se de um lado, uma diminuição do poder («sagrado») do


centro organizador de cada sociedade, quer dizer, da ―realidade superior que daria
sentido à ordem do mundo… modele reduzido, ou melhor germe, de toda a natureza e
de toda a cultura‖. Contribuíram para esta situação o avanço das explicações científicas
e a perca do poder e do prestígio das instituições religiosas que eram os únicos ―centros
organizadores‖ de cada sociedade e, também, o surgimento de vários centres
organizadores (religiosos, científicos, políticos, etc.) em concorrência mútua, uns com
os outros, como ―modelos‖ et ―germes‖ do sentido do mundo; o Homem passou a ter
com uns e outros, pequenas distâncias sacrificiais (ver situação b) do quadro).

163
Surgiu entretanto, face aos ―centros organizadores‖ religiosos tradicionais e em
resultado destes deslocamentos, um novo-―velho‖ centro organizador que é o eu
individual, o qual passou assim da periferia da circunferência para o seu centro,
enquanto que esses centros organizadores passavam a gravitar no seu exterior; a
distância sacrificial do eu ao ―centro organizador‖ (agora ele prñprio) se tornou nula
(ver situação c) do quadro).

Deste modo, depois da decomposição do religioso que conduziu a uma diminuição da


intensidade do (dos) centro(s) sagrado(s) sacrificiais, veio uma recomposição do
religioso (sob outro aspecto) na qual o Homem passou a ser o centro dum novo sagrado
(pouco ou não sacrificial)

3 – Conclusão (provisória)

a - Neste trabalho obrigatoriamente curto (devido à compreensíveis exigências do


Editor), apresentamos uma proposta de modelo dum sagrado generalizado, baseada no
conceito de «centro organizador» (R. Thom), metáfora revista e aplicada por L. Scubla à
Antropologia do Simbólico (o seu «objecto total»).

b – Este conceito terá ainda, em nossa opinião, a utilidade de visualizar a evolução da


situação do sagrado, desde o grande centro organizador do religioso das civilizações
arcaicas (desde as religiões totémicas e naturais até às reveladas), passando pelo

164
enfraquecimento deste devido à competição de outros centros organizadores (ciência,
filosofia, política, etc.) até chegar à situação actual na qual – sobretudo no caso das
«novas espiritualidades» – o Homem é o centro que organiza em seu redor,
sincrèticamente e a través dum ―bricollage‖ identitário, os outros centros, sacralizando e
divinizando já não esses centros mas ele próprio, o seu Eu.

4 – Bibliografía

- Bateson, Gregory et Mary Catherine, La peur des anges, Paris: Seuil, 1989
- Bloch, Maurice, La violence du religieux, Paris: Éditions Odile Jacob, 1997
- Douglas Mary, Purity and Danger, Londres: Routldge, 1966
- Durkheim, Émile, Les formes élémentaires de la vie réligieuse, Paris: Le Livre de
Poche, 1991
- Eliade, Mircea, Le sacré et le profane, Paris: Gallimard, 1965
- Girard, René, La violence et le sacré, Paris: Grasset, 1972, réed. Hachette, 1998
- Otto, Rudolf, Le sacré, Paris: Payot, 1969
- Rappaport, Roy, Ritual and Religion in the making of mankind, Cambridge:
Cambridge University Press, 1999
- Rivière, Claude, Socio-anthropologie des religions, Paris: Armand Colin, 1007
- Scubla, Lucien, Lire Lévi-Strauss, Paris: Éditions Odile Jacob, 1998

(*) Este artigo foi-me solicitado (em francês) pelo Doutor Basarab Nicolescu, para um
livro por ele organizado e que será publicado em Dezembro de 2003, nas Éditions du
Rocher, em Paris, com o título Le sacrée aujourd‘hui (reunindo contribuições de
diversos autores).

165
166

Você também pode gostar