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COMUNICAÇÕES
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REGALEIRA E PENA (FOTOS) - MÁRIO FORTES & CLÁUDIA
ÁVILA GOMES
PEDRO DE ANDRADE - O EFEITO PESSOA E A SOCIOLOGIA DOS
CONGRESSOS DIGITAIS
A RELIGIÃO QUE ANDA NO AR, OU A DOR DO DIÁLOGO - JOSÉ
AUGUSTO MOURÃO
RODRIGO PETRONIO - A DIALÉTICA DIABÓLICA DA POESIA
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ABERTURA DO CIBERCOLÓQUIO
Segundo se lê em certos esoteristas, o último grande mestre construtor foi Gaudi, facto
que dá resposta à estranheza de alguns arquitectos profanos perante essa mansão
filosofal tão revolucionária nas formas, mas tão exclusivamente tradicional nos
materiais de construção, como é a catedral da Sagrada Família, em Barcelona. Se esses
construtores acham em Gaudi um ponto final, outro ramo da construção, especulativo e
não operativo, surgiu de há muito e sobrevive, detendo o conhecimento da Tradição, a
dos construtores do Templo - referimo-nos às ordens maçónicas, congregadoras de
pedreiros-livres, os maçons. Neste campo temos contado com a participação constante
de José Manuel Anes, Grão-Mestre da Maçonaria Legal Portuguesa, e de outros
maçons.
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identidade ser também uma das características do iniciado. É ela que gera mistérios
como o de Fulcanelli, para voltar ao alquimista para quem as catedrais são livros
declamados na língua dos pássaros - Fulcanelli é pseudo-nome, fundado sobre o signo
do fogo/vulcão; acerca da pessoa que o usou, durante muito tempo nada se soube, e hoje
o que há são hipóteses de identificação.
Quanto às ciências, bem sabemos que se têm oposto à religião, à qual colam o rótulo de
obscurantista. Por paradoxo, debaixo de vários tipos de iluminação se pode dizer que
obscurantista é a ciência, ao eleger o homem unidimensional, como diria Umberto Eco.
Retenhamos agora o seu obscurantismo só naquele sentido em que, ao contrário do
alquimista, a ciência não sabe que a luz vem das trevas; a investigação em História da
História Natural é um dos mais fortes dinamizadores do colóquio, pela necessidade que
sentimos de procurar na língua das aves a explicação para o duplo na linguagem da
ciência, duplo que se exprime pelo erro colossal, impróprio da ciência. Divorciadas da
Tradição, as ciências não compreendem que a objectividade do discurso científico possa
ser sabotada pela informação secreta. "La lettre R était le monogramme de l‘hérésie au
Moyen Âge", escreve Richard Khaitzine na sua comunicação deste ano, acerca da
errância, o erro, as gralhas voluntárias. É num registo de heresia científica que esses
textos se situam, e não recuam à Idade Média, são nossos coevos. Porque amputou a
linguagem, e com ela o conhecimento, na zona de penumbra entre noite e dia, a ciência,
apesar de ter luz própria, à sua própria luz perdeu a capacidade de leitura.
Hoje, dia 13, é um dia mágico para nós, por ser virtual. As vantagens do virtual sobre o
presencial são muitas, deixemos nota de apenas duas: jamais o Colóquio Internacional
"Discursos e Práticas Alquímicas" poderia ser amplamente internacional, se
continuássemos a reunir meia dúzia de amigos numa sala, como até agora aconteceu.
Pela primeira vez, temos participação estrangeira variada e proporcional à portuguesa, e
na sala não há só meia dúzia de colegas a ouvir-nos: neste momento, o TriploV está
com uma média de mil e cem visitas (PCs), seis mil acessos e duas mil visualizações de
página por dia. Não caiu do céu uma audiência tão infinitamente superior à do colóquio
presencial - ela deve-se em grande parte ao facto de as comunicações aos colóquios
anteriores estarem em linha, o que demonstra grande avidez do público pelo esoterismo
e pelos temas religiosos.
Cabe-nos por isso agradecer aos participantes, com comunicações e sem elas; entre os
que não se inscreveram no colóquio foi agradável receber mensagens antes mesmo do
início, uma delas dos gnósticos, que ofereceram a todos dois e-books, "La Piedra
Filosofal" e "Tratado de Alquimia Sexual", de Samael Aun Weor. Outro agradecimento
vai para a Hugin Editores, que tem publicado em livro as comunicações, apesar da crise
no sector, crónica de há anos em Portugal.
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mortais, a criação de uma plataforma de entendimento que permita olhar para trás, na
História, e para os lados, onde vivem os nossos contemporâneos, de modo a gerarmos
um futuro em que caibamos todos, e não apenas alguns tenham direito à fala.
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O MAGO, METÁFORA DO POETA
CLAUDIO WILLER
Abrange um período definido, da segunda metade do século XVIII até meados do século
XX, que corresponde à vigência do Iluminismo e Enciclopedismo, à Idade Moderna e à
contemporaneidade. Equivale, em literatura, ao que vai do romantismo à modernidade,
passando pelo simbolismo. Nesse período há uma definição, em nossa civilização, do
lugar da poesia, assim como do saber científico e dos conhecimentos ocultos, que é
distinto daquele que teria em outras épocas e contextos. Para ser mais claro: há
neoplatonismo e gnosticismo em Dante Alighieri, e em Baudelaire e nos simbolistas;
mas só no segundo caso (de Baudelaire e dos simbolistas), pode ser interpretado como
rebelião antiburguesa, contra o realismo e cientificismo, algo que não teria cabimento
no tempo de Dante Alighieri.
Não serão consideradas diferenças entre termos como ocultismo, filosofia oculta e
ciências ocultas (para Alexandrian, filosofia oculta teria sido iniciada por Agripa von
Nettesheim no século XVI, enquanto a expressão ocultismo deveria ser utilizada com o
sentido que lhe foi dado por Éliphas Lévi no século XIX). De qualquer modo, a
expressão ocultismo é corrente na bibliografia (ver relação de títulos ao final) com um
sentido amplo, equivalente a esoterismo.
1. Poetas e magos
Entre os ensaios que examinam ou sugerem relações entre literatura e o saber oculto, é
indispensável constar El Arco y la Lyra, O Arco e a Lira, de Octavio Paz, onde são
apresentadas semelhanças e diferenças entre o poeta e o mago. Seus capítulos
examinam, cada um deles, diferentes características da poesia, ou, melhor dizendo (e
interpretando Octavio Paz, atribuindo-lhe intenções), componentes do valor poético.
Serão comentados trechos do capítulo intitulado O Ritmo, porém comparando-os a
outras passagens e obras de Octavio Paz, e a outros autores. Precedendo-o, no parágrafo
final do capítulo sobre A Linguagem, há uma passagem freqüentemente citada:
O poeta, porém, não se serve das palavras. É seu servo. Ao servi-las, devolve-as à sua
plena natureza, fá-las recuperar seu ser. Graças à poesia, a linguagem recupera seu
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estado original. (...) Purificar a linguagem, tarefa do poeta, significa devolver-lhe sua
natureza original.
Octavio Paz não é um pensador religioso. A ―outra‖ linguagem, originária, não está
situada em um tempo mítico, um Paraíso anterior à Queda, porém na História, em nossa
cronologia, e até mesmo em nosso tempo, nas culturas ditas primitivas, nas sociedades
tribais. Tanto é que, em outro de seus ensaios, Conjunções e Disjunções, cujo tema
central é a sublimação, busca evidência antropológica para mostrar como era a
linguagem na Antiguidade, ou, para ele, as antiguidades, posto que são várias:
Tomando este trecho como poética, interpretando-o como pensamento sobre a criação
literária, temos, é evidente, a fundamentação das sinestesias baudelairianas. E mais:
resumida, aí está toda a crítica simbolista e decadentista a uma decadência da
linguagem, entendida como perda de seus sentidos originais, da sua dimensão sensível,
em favor da utilização instrumental, empobrecendo-a.
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Referindo-se ao autor de Igitur e Um lance de dados, qualificado como o mais elevado
dos poetas herméticos, que ainda retornaria à sua obra ensaística, reconhecido como
influência marcante e figura referencial, Paz afirma, em O Arco e a Lira, que:
Jamais as palavras estiveram mais carregadas e cheias de si mesmas; tanto que mal as
reconhecemos, como essas flores tropicais negras à força de serem tão encarnadas.
Cada palavra é vertiginosa, tamanha é a sua claridade.
O poeta encanta a linguagem por meio do ritmo. Uma imagem suscita outra. Assim, a
função predominante do ritmo distingue o poema de todas as outras formas literárias.
O poema é um conjunto de frases, uma ordem verbal, fundados no ritmo.
Ninguém pode se furtar à crença no poder mágico das palavras. (...) A confiança ante a
linguagem é a atitude espontânea e original do homem: as coisas são seu nome. A fé no
poder das palavras é uma reminiscência de nossas crenças mais antigas: a natureza
está animada; cada objeto possui uma vida própria; as palavras, que são os duplos do
mundo objetivo, são também animadas. (...) Algumas palavras se atraem, outras se
repelem, e todas se correspondem. A fala é um conjunto de seres vivos, movidos por
ritmos semelhantes aos que regem os astros e as plantas.
Afirmar a correspondência entre palavras, e mais, de seus ritmos com aqueles que
regem a natureza e o cosmos, é entender a analogia não apenas como um modo de
pensar ou de expressar-se, mas como princípio geral:
Toda operação mágica requer uma força interior, conseguida através de um penoso
esforço de purificação. As fontes do poder mágico são duplas: as fórmulas e demais
métodos de encantamento, e a força psíquica do encantador, a afinação espiritual que
lhe permite fazer concordar seu ritmo com o do cosmos. O mesmo se verifica com o
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poeta. A linguagem do poema está nele e só nele se revela. A revelação poética
pressupõe uma busca interior. Busca que em nada se assemelha à análise ou à
introspecção; mais que busca, atividade psíquica capaz de provocar a passagem
propícia ao surgimento de imagens.
Criação poética, ou, para usar os termos de Octavio Paz, revelação poética (título de
outro dos capítulos de O Arco e a Lira), é uma operação do sujeito, resultado de uma
atividade psíquica, mas que acaba chegando, através de um movimento paradoxal, uma
dialética especial, à anulação do sujeito.
Portanto, a aproximação não é apenas entre magos e poetas, mas também entre poetas e
magos e os místicos. Ao fazer tais paralelos, aponta limites e mostra diferenças:
O poeta não é um mago, porém sua concepção da linguagem como society of life –
segundo define Cassirer a visão mágica do cosmo – o aproxima da magia. Embora o
poema não seja feitiço nem conjuro, à maneira de bruxarias e sortilégios o poeta
desperta as forças secretas do idioma.
Com plena consciência desses arquétipos e de um tal background, Octavio Paz observa
que:
Com freqüência se compara o mago com o rebelde. A sedução que sua figura ainda
exerce sobre nós provém de ter sido ele o primeiro que disse não aos deuses e sim à
vontade humana. Todas as outras rebeliões – aquelas, precisamente, pelas quais o
homem chegou a ser homem – partem dessa primeira rebelião. Na figura do feiticeiro
há uma tensão trágica ausente no homem de ciência e no filósofo. (...) A magia é uma
empresa perigosa e sacrílega, uma afirmação do poder humano diante do sobrenatural.
Separado do rebanho humano, de frente para os deuses, o mago está só.
O empreendimento do mago seria estéril, além de solitário, pois teria como finalidade o
poder, o domínio sobre os homens e o mundo, nisso diferindo da rebelião prometeica,
que é uma doação.
A solidão do mago é solidão sem retorno. Sua rebelião é estéril porque a magia – isto
é, a busca do poder pelo poder – acaba se aniquilando a si mesma. Outro não é o
drama da sociedade moderna.
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Na poesia, o exemplo da solidão, da posição auto-reflexiva, auto-referente, seria, ainda
segundo Octavio Paz, o projeto poético de Mallarmé:
A tensão da linguagem poética de Mallarmé se consome nela mesma. Seu mito não é
filantrópico; não é Prometeu, aquele que dá fogo aos homens, mas Igitur – aquele que
se contempla a si mesmo. Sua claridade acaba por incendiá-lo. A flecha se volta contra
aquele que a atira, quando o alvo é a nossa própria imagem interrogadora.
Paz pode estar se referindo à crise de Mallarmé em 1866, que se seguiu à criação de
seus primeiros e enigmáticos poemas em prosa, como O Demônio da Analogia, quando
o poeta teve a visão abissal do Nada e declarou que via seu pensamento se pensando a si
próprio. Mas esse poema em prosa, O Demônio da Analogia, pode ser interpretado
como crítica ou alerta desta auto-consunção, antecipando Igitur. Nele, Mallarmé
advertiria com relação ao solipsismo nas experiências místicas ou místico-poéticas, a
perda ou errância sem chegar a lugar algum em um labirinto de símbolos, uma vez
perdidos seus referentes externos.
Examinar em detalhe as afirmações de Paz sobre poesia e magia justifica-se por várias
razões. Em poucos textos tratando de literatura a questão foi posta com tal clareza e tão
bem sintetizada. Contudo, reconhecer sua estatura não implica adotá-lo irrestritamente.
Especialmente, no que diz sobre a solidão do mago e o caráter especular de seu
empreendimento. Historicamente, a atuação de magos, e mais, de movimentos fundados
ou encabeçados por magos, ou que se apresentaram como fundamentados no Oculto,
proclamaram a comunhão, a fraternidade a traduzir-se na ação coletiva; enfim, tudo o
que, para citar um expoente do gênero, Éliphas Lévi em seu Dogma e Ritual de Alta
Magia, corresponderia à egrégora, requisito para a realização da magia, ou, ao menos,
para o acesso ao conhecimento oculto.
O mesmo vale para místicos e magos que são pilares do pensamento analógico na
tradição ocidental, como Paracelso e Jacob Boehme. O médico e mágico sofreu
expulsões e perseguições por ser idiossincrático e entrar em choque com autoridades e
potentados locais; o místico foi confinado e viveu recluso, em virtual exílio por suas
idéias serem tidas como heréticas; portanto, sofreu banimento político.
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ao senador da Irlanda na maturidade; ou de André Breton e demais surrealistas, ao
quererem unir pensamento mágico e posições políticas; ou ainda, no âmbito brasileiro,
de alguém como o simbolista paranaense Dario Velloso, estudioso de ocultismo,
rosacruz, discípulo de Péladan, Guaïta e Papus, e também personalidade pública,
defensor pioneiro de nossos índios, além de socialista, anticlerical, pacifista e educador
voltado para uma modernização pedagógica. Isso, sem entrar naqueles paradoxos
tipicamente brasileiros, como o representando por Medeiros e Albuquerque, jurista
eminente que chegou a Ministro da Justiça, autor da primeira legislação brasileira de
Direito Autoral, e também difusor do simbolismo entre nós, beletrista e, como tal,
satanista baudelairiano.
É difícil demonstrar que obras herméticas ou ocultistas houvessem sido uma fonte direta
de sua criação e de suas idéias sobre o Livro, o Nada, a Palavra Pura. No ensaio de P.-
O. Walzer, no volume da coleção Poètes d‘aujourd‘hui dedicado a Mallarmé, na
passagem que relata sua crise de 1866, é citada uma carta de Villiers de l‘Isle Adam na
qual o autor de Axel indica para leitura o Dogma e Ritual de Alta Magia de Éliphas
Lévi. Ora, se Villiers a indicava, é porque Mallarmé não a conhecia, apesar do enorme
prestígio de Lévi, figura central do ocultismo no século XIX.
E mais: nessa mesma carta, Villiers se refere às leituras de Hegel que Mallarmé já
estaria fazendo, o que permite a Walzer tentar uma aproximação entre o absoluto
hegeliano e mallarmaico. Sabe-se que Hegel foi matéria de estudo de Mallarmé e de
outros simbolistas, e, antes, de românticos e de Baudelaire. Segundo seus biógrafos
Pichois e Ziegler, Baudelaire e o grupo de jovens poetas que ele freqüentava eram
leitores do autor da Fenomenologia do Espírito. E aquilo que, genericamente, pode ser
denominado de ―filosofia romântica‖, de Schelling a Novalis, exerceu influência
marcante sobre o pensamento e a poética de sucessivas gerações românticas e pós-
românticas.
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experiências alucinógenas relatadas em O Clube dos Haxixins de Théophile Gautier e
em Os Paraísos Artificiais do próprio Baudelaire. Daí (acompanhando a argumentação
desenvolvida em Pichois e Ziegler e também em La mystique de Baudelaire de Jean
Pommier) nasce a poesia das correspondências universais e a poética do primado da
imaginação sobre as demais faculdades.
Portanto, há muitos modos de relação entre poesia e saber oculto, poetas e magos.
Mallarmé se insere em uma categoria distinta daquela representada por Yeats, este sim,
um iniciado, um praticante sistemático; ou por Pessoa, com seu interesse pela Ordem
Rosa + Cruz, sua atividade como tradutor dos teosofistas Blavastky e Leadbetter, sua
interlocução com Crowley, talvez fonte importante de seu neopaganismo e objeto de sua
admiração (conforme declarou em carta a João Gaspar Simões) e seu conhecimento de
astrologia e simbologia hermética. Não mantinha nem mesmo a proximidade com o
ocultismo de Baudelaire e Victor Hugo, em seus diálogos com Éliphas Lévi.
Baudelaire acrescenta que aquilo que os poetas sabem, eles o aprenderam por si
mesmos, eles não têm necessidade de ler filósofos para se instruir: resposta direta, mas
abrupta aos métodos atuais de certos críticos que esquecem que a poesia é, antes de
tudo, inspiração. Bem entendido, Baudelaire fala da imaginação criadora, e não da
fantasia que não o interessa. ―Para o sábio, imaginar é ver‖, escreveu na mesma época
o mago Éliphas Lévi.
Por isso, esse autor descarta, de modo muito inteligente, em sua decodificação
alquímica da poesia de Rimbaud, a insolúvel questão do que o autor de Uma temporada
no inferno teria estudado, ou não, nesse campo, e de quais obras alquímicas teriam de
fato chegado a suas mãos. Há, sugere Guerdon, uma sincronia entre conhecimento
poético e hermético, inspiração e revelação:
Certamente, Fernando Pessoa sabia disso, e o expressou com tamanha clareza em Natal:
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Baudelaire também sabia das analogias entre poetas e magos, e o disse em passagens
como esta, de Fusées (Projéteis, na edição brasileira):
Há uma religião universal, feita para os Alquimistas do Espírito: uma religião que
emana do homem, considerado como um memento divino.
Assim, ao pôr Mallarmé em cena, como nos trechos já citados, associando-o à defesa do
hermetismo, Octavio Paz o trata como metáfora do mago. E vice-versa: o mago também
aparece como metáfora do poeta. Simbolizam-se mutuamente.
Claudio Willer (São Paulo, 1940). Poeta, ensaísta e tradutor. Presidente da União
Brasileira de Escritores, UBE. Co-director da Agulha, Revista de Cultura
Não são examinadas, em O Arco e a Lira, relações reais, diretas, entre os dois campos,
o hermetismo ou ocultismo e a poesia (mas o seriam em uma obra subseqüente, Os
Filhos do Barro). Menos ainda, os casos em que um autor parece acumular as duas
funções, operando como elo entre ambos.
Por isso mesmo, oferece argumentos adicionais para justificar o rumo dado ao presente
ensaio. Se o mago é uma metáfora do poeta, então aqueles autores que podem ser
considerados poetas-magos a encarnaram. Seriam realizações de valores associados à
condição de poeta, representantes daquilo que a poesia é, ou de algo essencial na poesia
e na condição de poeta.
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Isso vale, em grau especial, para os adeptos e os iniciados.
É mesmo à iniciação, tal como a definiu René Guénon, que aspirava Nerval: trata-se de
uma liberação da condição individual do homem, culminando em um contato direto e
constante com o supra-humano. Aquele que é completamente iniciado, o adepto, o
libertado vivo, não está mais sujeito nem ao tempo nem ao espaço: ele primeiro
reintegrou a condição primordial do homem, e em seguida realiza estados supra-
humanos. À diferença do místico, o iniciado visa a ultrapassar os estados puramente
individuais. As condições e as modalidades da iniciação são as seguintes:
Ser qualificado, iniciável e entregar-se a um trabalho prévio que supõe uma ascese e a
aquisição de certos conhecimentos teóricos. É preciso, em seguida, ligar-se a uma
organização tradicional regular, e conhecer os métodos que facilitam o acesso a certos
estados interiores, em si mesmos incomunicáveis. A partir de uma iluminação primeira,
o iniciado poderá ordenar e desenvolver as possibilidades que ele traz em si. Para
chegar à liberação, o iniciado, apoiando-se quando necessário em suportes exteriores,
ao menos nos primeiros estágios, irá desenvolver-se progressivamente de grau em
grau.
Richer ainda observa que é necessária, no processo de iniciação, uma prática exotérica,
e distingue, nisso seguindo a doutrina e procedimentos de ordens como a Rosa + Cruz e
a maçonaria, entre pequenos e grandes mistérios, e entre o homem primordial e o
homem universal. Para esse crítico (dos mais qualificados, autor também de um
importante ensaio sobre simbologia alquímica em Rimbaud), a primeira crise de delírio
do autor de Aurélia, aos 33 anos, equivaleria a uma etapa na iniciação.
Contudo, o exemplo também mostra os limites desse paralelo; serve para apontar
diferenças, tanto quanto semelhanças e identidade. A crise de Nerval é como se fosse
uma etapa da transfiguração iniciática; análoga, mas não igual. O autor de Sílvia não se
limitou a colocar na forma de poesia os ensinamentos da Cabala, Alquimia, da doutrina
martinista dos ―iluminados‖. Desenvolveu uma mitologia própria e uma linguagem
pessoal. Estudando e pesquisando doutrinas iniciáticas, não chegou a ser propriamente
um adepto, menos ainda um simples divulgador. Recriou conceitos das doutrinas
esotéricas, e os recontextualizou. Sob uma ótica mais ortodoxa ou purista, os estaria
adulterando. Isso é bem observado por Max Milner em seu prefácio a Les Illuminés,
colocando em destaque o caráter pessoal, portanto presumivelmente poético, da
utilização do hermetismo e ocultismo. Milner lembra ainda a fabulação de Nerval, o
quanto inventava, atribuindo-se antecedentes e fatos biográficos inexistentes. Mas
reconhece que textos ocultistas fizeram parte da formação do poeta, desde sua infância.
Por isso, que não se veja rigidez doutrinária, nem mesmo coerência, em Nerval. É
correta a qualificação de um dos seus tradutores brasileiros, Contador Borges:
Livre pensador no sentido mais pleno do termo, Nerval não era ortodoxo nem de uma
religião, nem de uma heresia.
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Assim, o ocultismo em Nerval pode ser visto a partir de diferentes ângulos. Pode-se
falar em ocultismos, pensando essa relação como plural. Alguns de seus poemas
expressam a crença na filosofia oculta e no gnosticismo; outros podem ser
decodificados através da simbologia hermética. Contudo, ele foi dúplice, ambivalente
ou ambíguo. Aliás, o próprio Nerval já havia observado isso em sua antecipação de
Rimbaud, a anotação de que eu sou um outro (feita em um de seus retratos).
Daí que, do mesmo modo como Baudelaire foi um ―pai‖ de parnasianos e neo-clássicos
de um lado, e de simbolistas e surrealistas de outro, em Nerval coexistem um precursor
do surrealismo e outro de Anatole France; um poeta agônico e, em momentos
importantes, delirante, e um narrador, autor de relatos históricos e crônicas de viagem.
Adotando a polaridade proposta por Octavio Paz em Os filhos do barro entre analogia e
ironia para caracterizar o romantismo, uma parte da obra nervaliana penderia para o
pólo da analogia, e outra, para o pólo da ironia. Ambos, o Nerval-surreal e o Nerval-
France, apresentando ligação estreita com Ocultismo; porém manifestando-se de modo
diverso em cada uma das faces do poeta de As Quimeras.
Esses três poemas justificam chamar a atenção para o modo plural como esoterismo e
ocultismo aparecem em literatura. Aceita essa dualidade em Nerval, narrativas em prosa
como Silvia e Aurélia na verdade pertenceriam a sua face poética.
O que acaba de ser dito sobre recriação do hermetismo e ocultismo por poetas vale, em
maior grau ainda, para Baudelaire. Seus vínculos com hermetismo e disciplinas ocultas
foram admitidos e comentados por diversos estudiosos, focalizando a influência de
Swedenborg e o interesse por Fourier. Ao fazê-lo, acompanham o próprio Baudelaire,
que menciona Swedenborg em diversas passagens. Mas, em acréscimo, há uma relação
entre Baudelaire e Éliphas Lévi, tal como examinada em um ensaio revelador,
Anotações de uma Bibliógrafa: Baudelaire e o Esoterismo, de Maria Lúcia dal Farra,
que vai além da influência. Trata-se de presumível colaboração entre o poeta e o mago,
ambos companheiros nas barricadas da insurreição antimonarquista de 1848 e, antes,
co-autores na coletânea Les mystères galans de Paris, de 1844. E, ainda, autores de
poemas sobre as correspondências, cabendo lembrar que em Baudelaire o soneto
Correspondências é central, por expressar uma cosmovisão e uma poética de fundo
esotérico, a ponto do poeta citá-lo em outros de seus escritos, como Os Paraísos
Artificiais e seu texto sobre Wagner. Citando o ensaio de Maria Lúcia dal Farra:
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É na altura em que são publicados os Mystères que o abade Constant dá à luz La Mère
de Dieu, onde se lê que ―toda a natureza é um templo para nós.‖ No ano seguinte, ele
publicará Les Trois Harmonies (1845), do qual um dos melhores poemas tem por título
―Les Correspondances‖. As coincidências são espantosas!(...)
Outros poemas de um também podem ser aproximados aos do outro: o ―Sans amour‖
de Constant ao ―A celle que n‘est trop gaie‖ de Baudelaire; o ―Les promesses de
l‘amour‖ de Constant ao ―Chanson d‘après midi‖ de Baudelaire. Em Éliphas Lévi o
universo representa uma ―escritura vivente‖ onde ―as formas são uma linguagem‖,
cuja trama de símbolos pede para ser interpretada. Para ele, o Logos preserva a
unidade da substância cósmica através da multiplicidade do sensível e funda um
sistema de analogias que traçam o elo entre a natureza e o sobrenatural, a tudo
harmonizando estreitamente.
Que a tradição esotérica tenha coabitado com a literatura não é novidade. Sem falar da
influência do hermetismo junto à arte em geral e à filosofia, são numerosos os exemplos
colhidos em escritores como Virgílio, Ovídio, Dante, Milton, Shakespeare, Cazotte,
Rabelais, Cyrano de Bergerac, Goethe, William Blake, Novalis, Arnim, Victor Hugo,
Balzac, Gérard de Nerval, Edgar Allan Poe, Villiers de l‘Isle Adam, Huysmans,
Strindberg, Maeterlink e naturalmente em Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e nos
surrealistas. Entretanto, em Baudelaire – e a partir dele –, ela não transparece somente
nas alusões, citações e mesmo nas claras infiltrações da matéria hermética no assunto
dos textos literários. Ao contrário: na sua obra conhece-se a tentativa de aplicar sobre
o funcionamento da linguagem poética os ensinamentos e os rituais das práticas
esotéricas, quer sejam eles a lei da analogia (fundamento da ―teoria das
correspondências‖), quer sejam eles a lei do ―solve et coagula‖, subsídio essencial
para a obtenção da Grande Obra Hermética, no sentido de suscitar a existência de um
novo universo através da transmutação daquilo que o inventa e lhe dá vida: a
linguagem.
Tais considerações cabem, ainda, para William Blake. A exemplo de Nerval, que teria
aprendido a ler em uma biblioteca de obras herméticas, teve educação, dada pelo pai e
não na escola, pautada pelo pensamento de Swedenborg. Mas o que está em
Swedenborg é uma coisa, e os mitos de Blake, seus Loos, Urizem, Zoas, Tirzah e
Nobodaddy, são outra, uma versão personalíssima do gnosticismo.
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leituras da matéria, escandalizando o bibliotecário de Charleville. Dessas fontes também
veio a adesão ao princípio da analogia e das correspondências.
Rimbaud não inverte por acaso a ordem das duas últimas vogais: a Ars Magna tem
como extremos o alfa e o ômega. Podemos vislumbrar o ciclo iniciático das vogais à luz
do quaternário alquímico.
Inventei a cor das vogais! - A negro, E branco, I rubro, O azul, U verde. - Regulei a
forma e o movimento de cada consoante, e, com ritmos instintivos, me vangloriava de
inventar um verbo poético acessível, mais dia menos dia, a todos os sentidos.
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Ao citar, na seqüência de Alquimia do Verbo, os versos do poema sobre a Eternidade,
mostra aonde vai dar esse processo, e o que é encontrado através da iluminação:
Achada, é verdade?!
Quem? A Eternidade.
É o mar que o sol
...............Invade.
Com esses complementos de Alquimia do Verbo, pode-se colocar o soneto das vogais
no mesmo patamar de Versos Dourados de Nerval e Correspondências de Baudelaire,
como exemplos elevados de poesia hermética, fundamentada no ocultismo. Contudo,
sem esquecer que Rimbaud fala em alquimia do verbo. Deixa claro, portanto, que se
refere a uma poética, a seu próprio caminho no plano da criação, análogo, porém ao
mesmo tempo distinto da ascese dos místicos e magos, a começar pelo chamado ao
desregramento dos sentidos, pelo caráter rigorosamente pessoal de sua busca.
Contudo, nesse sentido, Yeats, por mais que sua poesia fosse, como não poderia deixar
de ser, pessoal, pode ser qualificado como iniciado, na acepção plena conferida ao
termo. E, em acréscimo, como autor de obras especificamente ocultistas, como o foram
algumas de suas peças teatrais e, principalmente, o enigmático livro A Vision, redigido
por sua mulher em transe mas com a autoria atribuída a ele, no qual é elaborada uma
tipologia com base hermética, que coincide com a busca de conhecimento empreendida
pela ordem da Aurora Dourada.
Assim, dentro do tema geral aqui abordado, há uma diversidade de modos de relação, e
mais, uma pluralidade de modos de expressá-la através da criação literária. O vínculo
com a tradição hermética é constantemente reafirmado através da poesia, e ao mesmo
tempo recriado.
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expliqués et traduits por la première fois en vers eumalpiques français, precedés d‘un
discours sur l‘essence et la forme de la poésie chez les principaux peuples de la terre –
como fonte de inspiração do soneto Versos Dourados de Nerval. Vale a pena, pelo que
acrescenta ao tema aqui examinado, transcrever a passagem do ensaio de Paz:
Mas esta ascese poderia ser o reverso do ascetismo cristão, como o foram as práticas
dos assim-chamados gnósticos dissolutos, sendo lícito associá-las ao desregramento dos
sentidos de Rimbaud, seu caminho, conforme já observado, para a alquimia do verbo.
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Deus é o homem de outro Deus maior:
Adam supremo, também teve queda;
Também, como foi nosso Criador,
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Um ensaio de Julia Kristeva sobre Nerval, Sol negro, que focaliza o poema El
desdichado, apresenta interesse, no presente contexto, por invocar fontes herméticas e
ocultistas de modo não-redutor. Nele é mostrado como tais fontes e símbolos interagem,
contribuindo para a multivalência de conotações, como diz essa autora, da esfera do
propriamente poético:
Contribuem para entendê-la reflexões de Octavio Paz, desta vez em um ensaio mais
recente, A outra voz, no qual distingue, baseando-se em The allegory of love de C. S.
Lewis, entre símbolo e alegoria:
... C. S. Lewis nos adverte sobre uma confusão freqüente: ler uma alegoria medieval
como um símbolo. A alegoria e o símbolo são irmãos, mas os dois são também
manifestações do pensamento analógico; tanto a alegoria quanto o símbolo postulam
uma relação secreta entre isto e aquilo, o mundo das idéias e das coisas. Mas Lewis
introduz uma distinção fundamental: ―a equivalência entre o material e o imaterial
pode ser usada pela mente de duas formas (...) Diante de um fato imaterial, como a
paixão que sentimos, se inventa visibilia para expressá-la. (...) Sentimos cólera e
imaginamos a Ira, com o rosto desfigurado e uma tocha na mão. Isso é o que se chama
alegoria.‖ Por outro lado, também podemos ver nossas paixões como uma cópia ou um
reflexo de um mundo imaterial. Esta foi a idéia de Platão; é uma idéia implícita –
embora poucas vezes consciente – em todo simbolismo. Ver através da cópia o
arquétipo, vislumbrar no mundo daqui o de lá, diz Lewis, ―é o que chamo simbolismo
ou sacramentalismo‖. Para o simbolista, a realidade que vemos não é inteiramente
real; é um símbolo da outra realidade, a verdadeira: a idéia, a essência.
Para entender o que seria essa devoração do ―ser‖, ou, ao menos, do sentido, da relação
de significação pelo signo, basta pensar em algumas das obras de Mallarmé, como Um
lance de dados, Igitur e sua série de poemas em prosa. Ou, melhor ainda, nas imagens e
perífrases de Os Cantos de Maldoror de Lautréamont, notadamente em seus belos como
e outras invenções do mesmo calibre.
21
A obra dos poetas esotéricos, herméticos, ocultistas, seria um lugar de encontro entre
essas duas dimensões, simbólica e alegórica, e de uma tensão entre ambas.
O encontro desses dois simbolismos, literário e hermético, dá-se de modo mais rico,
além de paroxístico, em Alfred Jarry, ponte entre poesia simbolista e vanguardas. Isso,
pelo modo como recorreu a ocultismo, heráldica, além de conhecimentos filosóficos e
científicos. Sua obra inclui o Doutor Faustroll, na qual propõe a Patafísica, "arte das
soluções imaginárias"; O amor absoluto, sugerindo amor incestuoso entre o Cristo e a
Virgem; César Anticristo, afirmação de Nero como santo; Messalina, onde vê a grande
prostituta como santa. Nessas e em outras obras, promove inversões ao tomar cada
episódio ou personagem por seu contrário. Aplica, a seu modo, a coincidentia
oppositorum, conforme aponta Henri Béhar em Les Cultures de Jarry, remetendo, com
propriedade, ao decálogo hermético de Éliphas Lévi. Portanto, o que poderia ser tomado
como excentricidade ou manifestação de loucura, as inversões de valores e símbolos,
substituições de signo e significado, tem intenções precisas, fundamentadas em estudos
sistemáticos. Pleno conhecedor do gnosticismo, em uma de suas obras, a peça teatral
L‘Autre Alceste, reescreve e parafraseia a história da união entre Simão o Mago e sua
profetisa Helena. Conforme o demonstra Noël Arnaud, a peça, impregnada da doutrina
gnóstica, é adaptada de fontes como Hipólito de Roma. Na criação e encarnação de
Ubu, e em tantas outras ocasiões e episódios, Jarry pôs em ação o pensamento mágico,
ao identificar linguagem e realidade, querendo que o símbolo fosse ativo no plano do
real. De modo assistemático e anárquico, um empreendimento assemelhado àquele do
mago.
Uma figura como Jarry representa a Belle Époque. Portanto, foi um homem de seu
tempo, do ―grande banquete‖, entre 1885 e 1918, marcado pela intensa exteriorização
da vida cultural, quando, argumenta Roger Shattuck, a obra de arte passa a ser vista, não
mais como reprodução de uma norma, mas como desvio das normas, iniciando-se o
primado vanguardista da experimentação. Correlatamente, o artista não é mais quem
22
eterniza, a seu modo, o cânone, o ideal estético à maneira do classicismo, mas aquele
que rompe com esse ideal, afirmando-se como diferença, como individualidade radical.
Além das chaves para a decodificação sugeridas por doutrinas herméticas, esotéricas ou
ocultas, interessa sua relação com aquilo que constitui o poema, e não apenas com sua
temática e componentes do conteúdo. O predomínio do pensamento analógico é
associado por Octavio Paz, entre outros autores, ao ritmo, a correspondências sonoras,
ao valor prosódico. Seu fundamento é o desconhecimento ou a crítica do princípio da
identidade, de que uma coisa, sendo o que é, não pode ser outra.
Uma de suas derivações é a crença, não só nas correspondências em geral, mas em uma
relação especial, aquela entre macro e microcosmo, e, por decorrência, o que está ―no
alto‖ e ―em baixo‖, como é dito no texto atribuído a Hermes Trimegisto, a Tábua
Esmeralda:
O que está em baixo é como o que está em cima, e o que está em cima é como o que
está em baixo; por estas coisas se fazem os milagres de uma só coisa.
E como todas as coisas são e provém de Um, pela mediação de UM, assim todas as
coisas nasceram desta coisa única, por adaptação.
23
Tudo isso emerge em um contexto de especial importância, freqüentemente obscurecido
ou deixado de lado por análises exclusivamente formais: aquele da rebelião, da
expressão enfática da contradição entre poesia (e o poeta) e sociedade.
Poetas foram a favor do ocultismo, da visão mágica do mundo, por serem contra seu
tempo e sua sociedade. A politização, até mesmo de autores mais reacionários sob o
prisma de doutrinas propriamente políticas, é sugerida por Octavio Paz em O Arco e a
Lira, e examinada em maior detalhe, na obra que o prossegue, Os Filhos do Barro. E
isso, já no prefácio desse ensaio sobre a tradição da ruptura:
Em sua disputa com o racionalismo moderno, os poetas redescobrem uma tradição tão
antiga como o próprio homem, a qual, transmitida pelo neoplatonismo renascentista,
além das seitas e correntes herméticas e ocultistas dos séculos XVI e XVII, atravessa o
século XVIII e chega a nossos dias. Refiro-me à analogia, à visão do universo como um
sistema de correspondências e à visão da linguagem como o duplo do universo.
Retomando o que havia dito em O Arco e a Lira sobre a situação marginal do poeta na
sociedade contemporânea, prossegue, equiparando os poetas-magos a uma cultura
underground:
A poesia moderna oficia no subsolo da sociedade e o pão que divide entre seus fiéis é
uma hóstia envenenada: a negação e a crítica. Mas essa cerimônia entre trevas é
também uma procura do manancial perdido, a água da origem.
A analogia entre magia e poesia é um tema que reaparece ao longo dos séculos XIX e
XX, mas que nasce com os românticos alemães. A concepção da poesia como magia
implica uma estética ativa; quero dizer, a arte deixa de ser exclusivamente
representação e contemplação: é também uma intervenção sobre a realidade. Se a arte
é um espelho do mundo, esse espelho é mágico: transforma-o.
24
A poesia romântica não foi só uma mudança de estilo e linguagens: foi uma mudança
de crenças, e é isto o que a distingue dos outros movimentos e estilos poéticos do
passado.
...um pequeno número de obras muito modernas, as mesmas das quais o mínimo que se
possa dizer é que nelas o ar é particularmente insalubre: Baudelaire, Rimbaud (a
despeito das reservas que fiz), Huysmans e Lautréamont, para ficar só na poesia,
25
analógico estrutura o mundo nele incluindo o homem pelas sinestesias e pelas
correspondências.
Nessa perspectiva histórica ampla, que repensa o romantismo, vê-se um trajeto das
manifestações e metamorfoses da analogia ao longo dos tempos. Vai da magia
―primitiva‖ e da Antiguidade, passando por gnósticos, até românticos e simbolistas.
Retornando a Os Filhos do Barro de Octavio Paz:
A analogia aparece tanto entre os primitivos como nas grandes civilizações do começo
da história, reaparece entre os platônicos e os estóicos da Antiguidade, desenvolve-se
no mundo medieval e, ramificada em muitas crenças e seitas subterrâneas, converte-se
desde o Renascimento na religião secreta, por assim dizer, do Ocidente: cabala,
gnosticismo, ocultismo, hermetismo. (...) A influência dos gnósticos, dos cabalistas, dos
alquimistas e de outras tendências marginais dos séculos XVII e XVIII foi muito
profunda, não só entre os românticos alemães, como no próprio Goethe e seu círculo. A
mesma coisa deve-se dizer dos românticos ingleses e, claro, dos franceses. De seu lado,
a tradição ocultista dos séculos XVII e XVIII entronca-se com vários movimentos da
crítica social e revolucionária, simultaneamente libertária e libertina.
Octavio Paz não está sozinho ao propor esse traçado histórico e essa genealogia, do
gnosticismo à poesia. Acompanha André Breton, no ensaio-manifesto Flagrant délit (na
coletânea La clé des champs) ao registrar a importância da então recente descoberta dos
―evangelhos gnñsticos‖ no Egito (em 1949), e observar:
Sabe-se, com efeito, que os gnósticos estão na origem da tradição esotérica que consta
como tendo sido transmitida até nós, não sem se reduzir e degradar parcialmente ao
correr dos séculos. (Os Templários teriam recebido seus preceitos na Ásia, na época
das primeiras cruzadas, de um resto de Maniqueus que lá encontraram). Ora, é notável
que, sem haverem de modo algum combinado isso, todos os críticos verdadeiramente
qualificados de nosso tempo foram levados a estabelecer que os poetas cuja influência
se mostra hoje a mais vivaz, cuja ação sobre a sensibilidade moderna mais se faz sentir
(Hugo, Nerval, Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, Mallarmé, Jarry), foram mais ou
menos marcados por essa tradição. Não, é certo, que se deva tê-los por ―iniciados‖ no
sentido pleno do termo, mas os uns e os outros pelo menos foram submetidos fortemente
a sua atração e nunca deixaram de testemunhar-lhe a maior deferência.
Nesse comentário, Breton faz alusão, ou parece fazer, a La poésie moderne et le sacré,
de Jules Monnerot, obra precursora (de 1945) ao salientar a importância dos gnósticos,
especialmente dos dissolutos, e sua presença na poesia moderna. Monnerot chega a
fazer um inteligente paralelo entre, de um lado, cristãos e gnósticos, e de outro
comunistas e surrealistas, no qual os comunistas soviéticos estariam para os cristãos
assim como os surrealistas estariam para os gnósticos dissolutos.
Falar de poesia romântica, nesse sentido amplo, seria falar da relação entre poesia e
filosofias ocultas, conforme, novamente, observa Octavio Paz, desta vez citando, com
total propriedade, o Breton de Arcane 17:
26
...de Blake a Yeats e Pessoa, a história da poesia moderna do Ocidente está ligada à
história das doutrinas herméticas e ocultas, de Swedenborg a madame Blavatsky.
Sabemos que a influência do abade Constant, aliás Éliphas Lévi, foi decisiva não
apenas em Hugo como em Rimbaud. As afinidades entre Fourier e Lévi, diz André
Breton, são notáveis e se explicam porque ambos ―inserem-se em uma imensa corrente
intelectual, que pode ser seguida desde o Zohar e que se bifurca nas escolas iluministas
dos séculos XVIII e XIX. Tornamos a encontrá-la na base dos sistemas idealistas,
também em Goethe e, em geral, em todos aqueles que se recusam a aceitar como ideal
de mundo a identidade matemática.‖
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especial volume 5, Las religiones en el mundo mediterráneo e en el oriente próximo,
com o ensaio El fin del Paganismo, de Pierre Hadot. Trata-se da edição espanhola da
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Rimbaud, Arthur, Oeuvres Complètes, texte établi et annoté par Roland de Renéville et
Jules Mouquet, Bibliothèque de la Pléiade, Librairie Gallimard, Paris, 1954;
30
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Scholem, Gershom G, On the Kabbalah and its Symbolism, Schockem Books, New
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Shattuck, Roger, The Banket Years, The Origins of the avant-garde in France; na
edição francesa, Les Primitifs de L‘Avant-garde, Flammarion, Paris, 1974;
Walzer, Pierre-Olivier, Essai sur Stéphane Mallarmé, col. Poètes d‘aujour‘hui, Editions
Pierre Seguers, 1963;
Wilson, Colin, O Oculto, Livraria Francisco Alves, 1981, dois volumes (The Occult é
de 1971);
Ensaios em periódicos:
Magazine Litteraire, Les énervés de la Belle époque (dossiê), mai 1991, nº 288
31
A ANATOMIA DO OURO:
O OURO POTÁVEL DOS IATROQUÍMICOS
A.M. AMORIM DA COSTA
Dept. de Química – Faculdade de Ciências e Tecnologia
Universidade de Coimbra –Portugal
1.Introdução
1.1 - A partir da segunda metade do século XVI, sob a influência de Paracelso (1493-
1510), a então reinante prática alquímica deu progressivamente lugar a uma prática
química que em 1663, Christophe Glaser (1628-1672), no seu Tratado de Química
definia como a arte científica cujo objectivo era dissolver os corpos para deles extrair as
várias substâncias de que são compostos, e juntá-las de novo de modo a formar
compostos mais puros e superiores [1]. Neste extrair e juntar de novo as substâncias que
compõem os corpos, na tentativa de preparar corpos mais puros e superiores àqueles de
que se partira, estava presente a procura da quinta-essência da matéria, o sopro divino
emanado do sistema solar que vivifica os três princípios de que cada um dos quatro
elementos primordiais, a terra, o ar, a água e o fogo, seriam constituídos, o sal, o
enxofre e o mercúrio. Toda a procura dessa quinta-essência estava orientada por um
objectivo bem preciso e fundamental: a cura das enfermidades humanas. O
restabelecimento da saúde perdida só seria possível atacando as ―sementes específicas‖
da doença, administrando ao doente os ingredientes químicos que contivessem os
arcana que haviam sido afectados, rompendo a harmonia global entre o microcosmos e
o macrocosmos, privados da qual, ambos estão doentes. Todo o exercício da arte
química visava, pois, a preparação desses arcana, no isolamento da quinta-essência de
todos os mistos.
A Química foi então totalmente enquadrada na arte médica, constituindo o que ficou
conhecido por medicina espagírica, iatroquímica ou farmacoquímica. Ela é aquilo a que
foi chamado ―a química dos princípios‖ [2]. Toda ela se funda em Princípios activos e
passivos em que se baseiam todas as suas manipulações e artefactos. Nela se considera
pelo mercúrio, o evaporável; pelo enxofre, o inflamável; e pelo sal, o solúvel. Nela
sobressaem, entre muitos outros, os nomes de João Baptista van-Helmont (1577-1644),
Robert Boyle (1627-1691), John Mayow (1641-1679), Nicasius Lefebvre (c.1610-
1669), Jean Béguin (?-1620), Christophe Glaser (1628-1672), Nicolas Lémery (1645-
1715) e Johann Joachim Becher (1635-1682).
32
No elenco das coisas úteis à medicina e à farmácia encontramos o ouro, o mais nobre e
perfeito dos metais, o metal que não enferruja nem perde a cor, que resiste à acção do
fogo e se não dissolve nos liquidos do dia a dia. Analisá-lo e procurar isolar a sua
quinta-essência numa complexa operação anatómica, foi tarefa árdua dos químicos
espagíricos que acreditaram no seu valor medicinal.
Feitas todas de uma mesma matéria prima, todas as substâncias seriam susceptíveis de
se transformarem umas nas outras por mera adição ou subtracção da quantidade
apropriada de qualquer dos quatro elementos ou dos três princípios nelas presentes, em
cuja diferente proporção estivesse a causa da sua diferença. Assim pensada, toda a
natureza seria uma série de transmutações e a sua existência, um eterno fluxo [3] .
No seio da terra, todos os metais e minerais se teriam formado duma mesma semente
inicial a partir da qual se foram e vão desenvolvendo, em crescimento contínuo, por
contínua combinação com diferentes quantidades dos diferentes elementos e princípios
primordiais. Essa semente seria a semente do ouro, já que o ouro seria a intenção da
natureza que presidiria à formação de qualquer metal. Ao longo dos tempos, dessa
mesma e primordial semente teriam resultado diferentes metais por acção das diferentes
condições que determinaram o seu crescimento. A suma perfeição do ouro quando
comparado com todos os outros metais exige condições muito especiais para que o
desenvolvimento dessa semente nele resulte. Impedimentos acidentais, por pequenos
que sejam, à sua combinação perfeita com os elementos e princípios elementares são a
causa da sua degenerescência em metais menos nobres que o ouro. Em qualquer
momento do desenvolvimento e crescimento destes será, todavia, possível proceder à
correcção da errada proporção dos elementos juntos à semente inicial que originaram a
sua individualidade, operando a sua transmutação. Trata-se, porém, duma correcção tão
complexa e delicada e com tão elevado número de variáveis que na prática, só um poder
verdadeiramente divino a poderá realizar em tempo humano; para a conseguir por
simples conjugação das forças naturais, a Natureza precisará dum tempo infindo que o
Homem não descobriu ainda como encurtar. A procura da Pedra Filosofal, essa Pedra
cujo poder consiga consumar a desejada correcção, mais não é que o perseguir dessa
realização.
33
outros por alteração dos átomos, em particular, por alteração dos núcleos atómicos, com
introdução ou remoção de protões e neutrões. Sabemos que ela se realiza todos os dias,
ao natural, no seio do planeta em que vivemos e em muitas outras partes do nosso
universo, onde um restrito número de elementos, por um processo de fissão nuclear com
decaimento radioactivo se transforma continuamente noutros. E sabemos que nas
condições prodigiosas de pressão e temperatura verificadas no interior de muitas
estrelas, os átomos de vários elementos mais leves (por exemplo, o hidrogénio e o hélio)
se transformam também continuamente, agora por um processo de fusão nuclear,
noutros átomos mais pesados
1.3 – No contexto alquímico da origem comum de todas as coisas, a semente que estaria
na origem de tudo teria sido gerada por acção divina e atirada pelo movimento
indefinido dos quatro elementos para o centro da terra onde, sob a acção do Arqueu, o
servo da natureza, é digerida e de seguida atirada para a periferia, pois que o centro da
terra é um lugar vazio onde nada pode permanecer eternamente. Assim como a semente
depositada pelo homem no ventre da mulher não mais tem repouso e, instante a instante,
sob o impulso do movimento que a anima, cresce e harmoniosamente se desenvolve,
assim a semente de todas as coisas ejectada do centro da terra para a periferia na forma
de um vapor húmido não cessa de se desenvolver, originando cada dia novas e
diferentes substâncias. Na sua combinação com diferentes quantidades de ar, terra, fogo
e água, nos múltiplos e diferentes contactos e acção com a diferente natureza dos
lugares onde cai e se fixa, ela pode tornar-se numa erva, num animal, ou num mineral. E
em qualquer destas categorias, numa erva ou planta bem específicas, como num animal
ou metal bem precisos. Atingido o seu crescimento e desenvolvimento numa forma
específica, torna-se, na generalidade dos casos, muito difícil alterá-la para outra
qualquer forma específica.
A semente dos metais não é, pois, diferente da semente de todas as demais substâncias
existentes no universo. E por sua vez, a semente do ouro, tido como o mais puro e nobre
dos metais, não é diferente da semente de qualquer outro metal. Ela transformou-se em
ouro quando, em locais adequados e sob condições favoráveis, teve a possibilidade de
se combinar com os diferentes elementos primordiais dispersos por todos os lugares, no
seu grau máximo de acção subtil e pura, o máximo de calor e de humidade. Se a acção
de algum dos elementos sobre a semente original não se concretizou no seu máximo, o
metal obtido terá necessariamente algum grau de imperfeição, traduzido numa matéria
prima com diferente grau de humidade, viscosidade, combustibilidade e terra subtil.
Quanto maior for o grau de imperfeição, mais o metal formado, numa escala de
ordenação dos diferentes metais por relação com a sua proximidade ao ouro, mais
afastado dele estará.
34
locais misturado com metais menos perfeitos, a procura da sua acção máxima carece
também ela do recurso a uma acção de purificação pela qual dele se separem as
imperfeições dos elementos a ele associados. A sua utilização como remédio exige esse
processo de purificação, procurando isolar a sua quinta-essência. Fazê-lo é proceder à
sua anatomia, similar à anatomia de qualquer outra substância química que fazia parte
do objectivo primeiro que se propunham os químicos espagíricos na sua arte de resolver
os corpos naturais nos princípios de que são feitos, de modo a torná-los mais puros e
fortes para serem utilizados como remédios maximamente eficazes..
Se várias técnicas há que podem servir para realizar essa anatomia, a tida como mais
eficaz e adequada sempre foi a destilação, tida pelos alquimistas e seus sucessores na
prática laboratorial da química, como uma arte sublime.
2.1 - Na sua generalidade, os metais não faziam parte do elenco do receituário medicinal
da Química Galénica, ao longo dos vastos séculos em que no Ocidente, foi praticada em
regímen de prática exclusiva. Por um lado, eram conhecidas as dificuldades da
solubilização da maioria daqueles que se conheciam e consequente assimilação pelo
organismo que os ingerisse; por outro lado, eram conhecidos muitos efeitos perniciosos,
nomeadamente efeitos tóxicos, resultantes da ingestão de alguns deles, em doses
inadequadas. E era muito difícil encontrar o doseamento correcto.
Sobre este assunto, refere Duarte Madeira Arraes (? - 1652), médico do Rei D. João IV
de Portugal, no seu Tratado das Virtudes dos Óleos de Enxofre, Vitríolo,
Philosophorum, Alecrim, Salva e Agoa Ardente (1648): o médico metódico e douto
deve abster-se quanto for possível de usar os medicamentos metálicos pois que embora
sejam ―especiosos catárticos e façam efeitos admiráveis em gravíssimas e extremas
doenças‖, ―por mais que lhe pareçam que têm a decente preparaçam‖, ―he impossivel
que ainda assim não escape alguma qualidade venenosa e perniciosa de que os mineraes
são bem aquinhoados‖. Daí – continua – ―até agora poucos foram os que
particularmente usaram delles que chegassem a morrer velhos. E se lá chegaram,
viveram cachéticos e hydropicos‖. Por isso, na sua prática médica, ele os ―deixa de
parte (salvo a extrema necessidade o peça)‖ e se cinge aos ―catharticos brandos tirados
dos vegetaveis ainda muito bem preparados‖ [4].
A quase nula utilização dos metais para fins terapêuticos estendia-se também ao ouro,
não obstante ser por todos tido como o mais nobre, perfeito e ambicionado bem.
Acreditava-se que ele não podia ser dissolvido a não ser por acção de um ácido
altamente corrosivo [5], e cria-se que ―nele o enxofre está fixo e incombustível duma
maneira tal que o torna invencível contra todas as forças do fogo‖ [6]. Sñ nos finais do
século XVI e princípios do século XVII, com a múltipla contestação movida a muitas
das práticas da Química Galénica, se verificou um crescente recurso a fármacos
preparados utilizando metais. Na lista deles aparece o ouro.
Em 1571, Guinther defendia que prepará-lo para esse efeito seria ―o maior contributo
que os preparadores químicos poderiam oferecer à medicina, pois o seu poder era divino
e servia para curar a maioria das doenças [7]. Anos depois, em 1610, com a publicação
do seu tratado Medicinae Chymiae, Francis Anthony (1550-1623), citando Paracelso,
Penotus e Duchesne, defendia que o ouro adequadamente tratado poderia ser utilizado
35
em solução, tornando-se no mais nobre dos remédios, na forma de ouro potável. E, em
1616, voltava ao assunto, insistindo na sua apologia[ 8]. Para o mesmo efeito, poderia
ser também usado noutras formas, como, por exemplo, o óleo de ouro, o vitríolo de
ouro, o ouro diaforético, o mercúrio vivo, etc...
A sua preparação passou, então, a ser tentada por grande número de Médicos e
Farmacêuticos, cada qual guardando ciosamente segredo sobre o modo como o fazia,
mesmo quando o descrevia publicamente. É que, neste caso, a descrição é de tal modo
cabalística que nem os melhores iniciados estão de acordo quanto á sua leitura e
interpretação. Toda a arte está no isolamento da quinta-essência do ouro. Por muitas
operações químicas, o objectivo é tentar ―abrir‖ o ouro, separando o seu sal e o seu
enxofre, isolando o seu mercúrio. Só conseguida esta separação se teria o ouro potável:
separados o sal e o enxofre que entram na sua constituição, estes dissolver-se-iam num
licor que seria o ouro potável, capaz de se dissolver por todo o corpo enfermo, curando
qualquer enfermidade que nele encontrasse. Esta é a anatomia do ouro metálico, de
maior ou menor grau de pureza, com obtenção da sua quinta-essência, o mercúrio
filosñfico, na forma de ―pñ de ouro‖ ou na forma de ―ñleo de ouro‖, cujos infusões são
o ouro potável.
Em 1651, John French (ca.1616 ? 1657), no Livro VI do seu tratado sobre a Arte da
Destilação, apresenta uma receita, que com algumas variações, se tornou comum entre
os receituários da época. Em traços largos, é do seguinte teor :
Dissolva-se o mais fino e puro ouro em água régia até se obter uma solução límpida.
Coloque-se esta solução num balão de vidro de gargalo largo e junte-se-lhe gota a gota
óleo de tártaro até que a solução que antes era amarelada se torne totalmente clara e
transparente, sinal que toda a cal do ouro se depositou no fundo do balão. Deixe-se essa
solução em total repouso durante toda a noite e, na manhã seguinte, separe-se a cal de
ouro depositada da solução. Lave-se o resíduo de cal de ouro quatro ou cinco vezes com
água morna muito pura e seque-se sob aquecimento brando. Junte-se-lhe então meia
porção de pó de enxofre. Misture-se tudo muito bem e, num cadinho aberto, queime-se
o enxofre presente, primeiro sob fogo brando, depois sob um fogo mais intenso, por
mais de uma hora, até que a cal de ouro se torne brilhante e fina. A esta junte-se um
licor preparado a partir de urina humana repetidamente destilada, durante longos dias,
em condições diversas de temperatura e usando diferentes tipos de destilador. Deixe-se
a mistura digerir sob fogo brando durante algum tempo até ficar da cor do sangue. Faça-
se a decantação desta tintura e junte-se-lhe mais quantidade do licor preparado a partir
36
da urina humana e decante-se novamente e novamente se junte ao decantado uma outra
porção desse licor, repetindo a operação tantas vezes quantas as necessárias para extrair
toda a tintura. Juntem-se então todas as porções de tintura extraida e faça-se a sua
digestão durante doze dias, finda a qual se proceda à sua destilação. Obter-se-á assim
uma cal de ouro parecida com um óleo vermelho como o sangue, de odor agradável e
solúvel em qualquer licor. Esse óleo deve ser guardado como um tesouro precioso; ele é
a quinta-essência do ouro com a qual se podem preparar diversas infusões que mais não
serão que outras tantas variedades de ouro potável. A mais comum dessas infusões será
aquela que se prepara dissolvendo essa essência do ouro em álcool de vinho; mas
também o é quando se dissolva em água e noutros liquidos mais apropriados ao tipo de
doença em cuja cura se queira utilizar. Pequenas porções da quinta-essência de ouro
assim preparada serão suficientes para preparar grandes quantidades de ouro potável de
efeitos maravilhosos nos mais diversos tipos de enfermidades [10].
No mesmo capítulo deste seu livro sobre a Arte da Destilação, J. French descreve vários
outros processos de preparação de outros óleos e tinturas de ouro, todos eles a partir de
ouro puro dissolvido em água régia e tratado depois com licores diversos. De todos
esses óleos e tinturas se diz possuirem propriedades inigualáveis e de suprema eficácia
no campo medicamentoso. E outro tanto refere quanto à preparação de idênticas
soluções a partir da prata pura, designadas de modo semelhante por prata potável, óleos
de prata e tinturas de prata, também elas de muita eficácia quando utilizadas como
remédios.
Desta dissenção nos dá conta Frei Manoel de Azevedo, religioso da Ordem de Nossa
Senhora do Carmo, na sua Correçam de Abusos Introduzidos Contra o Verdadeiro
Methodo da Medicina, publicada em 1668, em que se insurge-se fortemente contra os
contestatários dos pñs de Quintilho, indo ao ponto de os rotular de ―Medequinhos de
ágoa doce‖, e considerando a rejeição que faziam dos ditos pñs, um dos vários abusos
que perniciosamente se haviam introduzido na prática médica.
No Tratado II dessa sua obra, Frei Manoel de Azevedo discorre longamente sobre o ―De
quanto proveito sejam os pñs purgativos do ouro preparado‖ em que defende
entusiastica e cegamente os pós de Quintillo. Apresenta-os como a quinta-essência
tirada da destilação repetida do ouro que dissolvidos em vinho, ou noutro licor
apropriado, são remédio seguro, proveitoso, fácil e sem suspeita alguma, para todos os
géneros de enfermidades: ―com conselho do Medico, se pode usar em todas as idades e
37
complexoens, especialmente nas enfermidades rebeldes, contumazes, malignas e
pestilentas, e para o morbo gallico‖. E aduz em favor da sua utilização, um rol
nominativo de um grande número de Médicos e Boticários, religiosos e capelães que os
usaram e receitaram com grande êxito na cura de muitas e variadas doenças [12]
Sem referir nunca o modo como esses pós fossem preparados, o autor da Correçam de
Abusos Introduzidos Contra o Verdadeiro Methodo da Medicina remete para os que
eram comercializados com esse nome em qualquer botica e para as infusões que com
eles prepararam os Protomédicos Alfaro, Bartelis e Jaen, insurgindo-se duramente
contra ―uns certos Medequinhos de ágoa doce que dizem e pregoão a boca cheia que
como estes pñs são de antimñnio não querem usar delles‖ e procurando mostrar-lhes ―ex
abundante‖, quanto se enganam [13].
Na sua argumentação, Frei Manoel de Azevedo não mostra que estivessem enganados
aqueles que não acreditavam que os pñs de Quintillo fossem verdadeiramente ―pñs
solutivos da quinta essência do ouro‖, como se depreendia da apresentação que deles
fizera o seu autor; apenas tenta mostrar que se enganam todos aqueles que não aceitam
como eficazes e de grande proveito os remédios que contenham antimónio, já que todo
o seu discurso se volta inteiramente contra aqueles que não querem usar os pós de
Quintillho por eles conterem antimónio.
Deste modo, Frei Manoel de Azevedo admitia com toda a clareza que esses pós
continham realmente antimónio, sem, todavia, alguma vez negar que fossem um
preparado de ouro. Porém, os Médicos seus adversários iam muito mais longe e tinham-
nos como mero preparado de antimónio, sem qualquer porção de ouro, como o mostrara
a análise de Zacuto Lusitano.
Curvo de Semmedo considera que estes seus pñs de Quintilio são o ―Crocus
Metallorum‖, a que ―por seus maravilhosos effeitos chamou Martin Ruland Terra Santa
e abençoada; eles são os pós a que Valentino chama oitava maravilha do mundo; estes
são os pós a que Poterio chama Pedra de Sevar para navegar segura a embarcação da
vida; estes são os pós com que se faz o vinho santo e eméctico; estes finalmente são os
pós com que se faz a Agua Benedicta, vigorada e simples, e os melhores sudoríficos e
38
diaforéticos, e mil outros remédios que deixo de referir por não enfadar‖. E continua:
―digo e afirmo diante de Deus e dos homens, que as curas mais prodigiosas que tenho
feito no decurso de trinta e sete anos, as fiz com os pós de Quintilio, ou com àgua
Benedita, ou com o vinho emético, que tudo é feito de Antimñnio preparado‖ pois não
são senão infusões preparadas com os referidos pós que também podem ser tomados em
substância, conforme o maior ou menor estado de fraqueza em que se encontre o doente
[16].
Por sua vez, D. Caetano de Santo António antes de referir a sua receita que, como
dissemos, é literalmente a de Curvo Semmedo, e é a mesma, sem qualquer modificação,
nas diversas edições da sua obra, diz que segue, para o efeito, a receita que N. Lémery
apresenta na Part.2, cp.IX do seu Curso de Química. Ora, reportando-nos nós ao
conteúdo desta referência, nela encontramos pura e simplesmente referência ao
antimónio, seus preparados, suas propriedades e suas utilizações [17].
Nunca N. Lémery, nem no seu Curso de Química, nem na sua Farmacopeia Universal
[18] se refere a quaisquer pós com o nome de pós de Quintilio.
―o ouro potavel he grande remedio contra os Vágados, dando delle cinco ou seis gotas
em agua cozida com hyssopo; em falta de oyro potavel pode servir a prata potavel, ou
mesmo a prata preparada filosoficamente, e misturada com redobrada quantidade de
esterco de pavão fêmea, se for molher, ou de pavão macho se for homem, continuando
este remedio muitos dias. Polverizar a cabeça, rapada à navalha, com pó de bichos da
seda, tem especial virtude neste caso. Dar cinco, ou seis dias, nove gottas de oleo de pão
de buxo, feito per descendo, untando também com elle as fontes da cabeça, & as arterias
que estão detraz das orelhas, he grande remedio, o electuario que se faz de huma oitava
de ambar branco, outra de pó de unha de gram besta, hum escropulo de almiscar fino,
meia onça de pó de pão de Aguila, com hum escropulo de cardomomo menor, outro de
noz moscada, misturando tudo com assucar, & humas gottas de oleo de cravo, se forme
electuario, de que darão ao doente meya oitava cada dia. Serve também para as
apoplexias e gota coral‖ [19].
Não encontramos também qualquer referência ao ouro potável nas diferentes edições da
Farmacopeia Lusitana. Seguindo de muito perto as receitas do Curso de Química de N.
Lémery, não surpreende que o seu autor, D. Caetano de Santo António partilhasse da
sua opinião sobre esse possível preparado de ouro, que o autor francês deixou bem clara
no seu livro, rejeitando com toda a veemência muitas das preparações referidas pelos
alquimistas. Tratando do ouro, escreve ele sobre o ouro potável:
―O ouro potável dos alquimistas, cuja virtude eles tanto louvam e que vendem muito
caro, não é, habitualmente, senão uma tintura de algum vegetal ou de algum mineral
cuja cor se parece com a do ouro; preparada a partir de um mênstruo espirituoso, ela
39
excita, por vezes, o suor; eles atribuem este efeito ao ouro quando, em geral, este nada
tem a ver com ele. É um modo de enganar que resulta na maioria dos casos, pois que em
matéria de remédios os utilizadores são sempre muito crédulos, sobretudo quando se
lhes fala dum remédio universal, como se faz crer que o é o ouro potável. Mostraremos
em seguida que o que é apresentado como ouro potável não é senão uma quimera‖
Marcada esta sua posição, N. Lémery refere de seguida, com bastante pormenor, que a
preparação do ouro potável por parte daqueles que habitualmente o vendem mais não é
que a fixação do mercúrio com um verdete de um composto de cobre que confere ao
mercúrio uma cor amarela, reforçada depois com uma matéria vegetal ou mineral. Na
maioria dos casos essa fixação é tão fraca que o preparado se esvai em fumo por simples
aquecimento; e mesmo nos casos em que se trate duma fixação mais forte, em geral não
resiste a provas muito simples de testes de ensaio utilizados na pesquisa do ouro
verdadeiro [20].
Por sua vez, a Farmacopeia Tubalense de Manoel Rodrigues Coelho, não se referindo
nunca ao ouro potável, na edição de 1735, apresenta a receita para um preparado a partir
de limalhas de ouro dissolvidas em água régia e tratadas com sal amoníaco que na
forma de pñs, diz ser excelente sudorífero e a que chama ―Crocus auri‖, açafrão de ouro,
ou ainda, ouro fulminante ou volátil, porque quando aquecidos numa colher de metal,
esses pñs ―produzirão hum grande estrondo como se fosse huma libra de Pólvora bem
atacada‖ [24]. A receita é reproduzida ―ipsis verbis‖ na edição de 1760 [25]. Nestas
duas edições, por iguais palavras, o autor refere uma receita para os pós de Quintilio que
explicitamente identifica com o Crocus Metallorum e a Terra Sancta de Rulando,
remetendo para as páginas 152-163 do Lexicon de Jungken e para a Biblioteca
Pharmaceutica de Manget [26] como sendo um preparado a partir de antimónio
subtilíssimo pulverizado e fundido sob fogo intenso depois de misturado com salitre
puríssimo [27]. Na edição de 1751, a apresentação é um pouco diferente. Nela não há
também qualquer referência ao ouro potável, nem a qualquer preparado de ouro; há sim
uma simples referência ao Crocus Metallorum Absynthiacus, incluido na Classe II dos
preparados descritos no Escrutíneo Médico de Ribera como sendo o mesmo Quintilio,
preparado a partir de partes iguais de antimónio e sal de Losna vitriolado [28].
40
Tendo como assente que os pós de Quintilio, em qualquer das suas variantes, eram, de
facto, preparados de antimónio e não verdadeiros preparados de ouro, não surpreende
que fossem tidos como pós de ouro posto que fazia parte da mais pura tradição
alquímica que a verdadeira Pedra Filosofal, esse ―preciosíssimo dom de Deus‖ [29] que
transforma os metais imperfeitos no ouro mais puro, seria feita do antimónio mineral,
claramente a considerava Mylus na sua Anatomia do Ouro [30].
―Para obter Ouro Potável faz-se dissolver em hum calor moderado meia oitava de Ouro
Fino em duas onças de Água Régia, ou de Ácido Nítrico-Muriático; acrescenta-se à
dissolução huma onça de Óleo Essencial de Alecrim; vascoleja-se a mistura e depois
deixa-se socegar. O Ácido perde a sua cor de Ouro, e o Óleo que se eleva à face , he
muito corado. Separa-se o Óleo por decantação; ajunta-se-lhe quatro ou cinco onças de
Espírito rectificado; tenha-se esta mistura em digestão por um mês, e adquirirá uma cor
porpurea.‖.
―Estes pñs necessitam secar-se à sombra com a maior cautella; porque hum calor muito
brando basta para o fazer detonar com violência, razão porque he chamado Fulminante‖
[31]. De facto, qualquer destas soluções assim preparadas corresponde a uma solução de
ouro que poderá ser convenientemente ingerida como bebida, satisfazendo
adequadamente à terminologia ―ouro potável‖; ela contém realmente ouro pronto para
ser ingerido na forma de bebida e é, portanto, uma verdadeira bebida de ouro na sua
integridade física, ouro com toda a sua ―massa corporal‖ e não apenas em alguma das
suas componentes anatómicas, o sal, o enxofre e o mercúrio filosófico dos alquimistas.
Só a quinta-essência destas serviria para preparar o verdadeiro ―ouro potável‖ dos
iatroquímicos. Só por acção dessa quinta-essência esse ―ouro potável‖ seria verdadeira
―panaceia universal‖ para acudir a todos os males. O ―ouro potável‖ da química
moderna não é certamente o ―ouro potável‖ dos iatroquímicos. Por maravilhosas e
eficazes que possam ser as virtudes curativas de muitos preparados de ouro, bebíveis ou
41
em qualquer outra forma de administração, em nenhum deles se encontrou ainda a
―panaceia universal‖ da Medicina.
Notas:
[1] - Christophe Glaser, Traité de la Chimie (Paris, chez l´Autheur, 1663), p.3.
[2] - M. Daumas, La Chimie des Principes in Histoire Générale des Sciences (Paris, Ed.
René Taton, Presses Universitaires de France), Tom.II, 1972, cp.VI, pp. 354-367
[3] - Ralph Oester, Alchemy: Folly or Wisdom, in J. Chem. Educ. 7 (1930), 2664-2676.
[ 4] - Duarte Madeira Arraes, Tratado das Virtudes dos Óleos de Enxofre, Vitríolo,
Philosophorum, Philosophorum, Alecrim, Salva e Agoa Ardente ( Lisboa, 1648, Ms.
193 da Biblioteca da Universidade de Coimbra), pp.22-22vs.
[5] - Matthew Gwinne, In assertorem chymiae, sed verae medicinae desertorem, Fra
Anthonium, (London, R. Field, 1611), p.109.
[7] - Joannes Guinther von Andernach, De medicina veteri et nova tum cognoscenda,
tum faciunda commentarii duo, 2 vols. ( Basel, Henric Petrina, 1571), pp.650-651.
[10] - John French, The Art of Distillation (Londres Richard Cotes, 1651), cp. VI.
42
[15] - D. Caetano de Santo António, Farmacopea Lusitana (Coimbra, Off. João
Antunes, 1704) Trat. 9, nº18, pp. 301-302.
[ 16] - João Curvo de Semmedo, op. cit., Trat. II, cp. V, p.39.
[ 17] - Nicolas Lémery, Cours de Chimie (Paris, Jean Baptiste Delespine, 1713), Part.
II, cp. IX, pp. 314-371.
[19 ] - João Curvo Semmedo, o. cit., Trat. II, cp. VIII, § 47, p.68.
[ 20] - Nicolas Lémery, Cours de Chimie, Loc. cit., Part. I, cp. I, pp. 82-83.
[27] - Manoel Rodrigues Coelho, locs. cits.,cp.80, p. 83; cp. 80, p.859.
_____________________________
43
António Marinho Amorim da Costa (1939) é professor catedrático no Departamento
de Química da Faculdade de Ciências de Coimbra. Alguns livros seus na área da
História e Filosofia das ciências:
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EU E O PAI SOMOS UM: O
ETERNO FEMININO NA NOVA RELIGIOSIDADE
ANTÓNIO DE MACEDO
I — Entreabrir o portal…
Duas notas se salientam: primeiro, o nível iniciático da «instrução» de Jesus não foi
apreendido pelos ouvintes, que somente captaram o significado físico, ou literal; e
segundo, a frase «Eu e o Pai somos um», central no conjunto da prédica, contém a
chave que nos permite entreabrir o Portal da Nova Religiosidade, se soubermos atinar
com o Espírito que vivifica o sentido da frase.
II — As três «leituras»
Penetrar no sentido dum texto pressupõe um certo tipo de «interpretação» desse texto,
ou, mais simplesmente — um certo tipo de «leitura». Tratando-se neste caso dum texto
bíblico, eu diria, duma forma breve e simplificada, que podemos considerar três
«leituras» possíveis da Bíblia:
—Laica;
—Teológica;
— Esotérica.
45
a) Incluo na «leitura laica» toda e qualquer leitura que considere os textos bíblicos
apenas pelo seu lado textual-documental — e de preferência partindo dum princípio
racional-agnóstico, de que pode servir de exemplo mais óbvio o divertido Dictionnaire
Philosophique (1764), do iluminista Voltaire. Essa leitura, duma forma genérica e
sobretudo nos tempos mais recentes, serve-se de toda uma aparelhagem de análise e de
crítica de textos idêntica à que se pode aplicar a qualquer texto profano, antigo ou
moderno, sem levar excessivamente em conta — ou mesmo nada — o lado «espiritual»
dos conteúdos;
b) Designo por «leitura teológica» a que se opera na crença de que os textos bíblicos são
a «palavra de Deus», e socorre-se de técnicas interpretacionais quer da tradição religiosa
judaica (para o Antigo Testamento), quer da tradição das Igrejas cristãs (a Católica
romana, as Protestantes e as Ortodoxas, para o Antigo Testamento e o Novo
Testamento), sem excluir, mais modernamente, os mesmos instrumentos hermenêuticos,
exegéticos, semióticos, etc. da «leitura laica», embora adaptando-os ao pressuposto de
um «conteúdo revelacional» de origem divina;
c) Finalmente a «leitura esotérica». Que se poderá entender por uma «leitura esotérica
da Bíblia»? Provavelmente haverá mais do que uma, tal como se deduz do facto de
haver diversos «esoterismos». No entanto, procurando simplificar mais uma vez,
embora correndo o risco duma certa imprecisão, podemos dizer, em primeira
aproximação, que uma «leitura esotérica» da Bíblia tem de partir dumas quantas «regras
do jogo» — por exemplo, convencionar que o ser humano não esgota a sua totalidade
no corpo físico, mas tem uma parte espiritual que é a sua verdadeira essência
consciente, eterna, e que subsiste nos mundos invisíveis após a morte; que existe um
Deus, ou uma Grande Inteligência Cósmica, com quem o espírito do ser humano pode
relacionar-se, harmonizar-se e até identificar-se; que a sucessão dos tempos quer
históricos quer iniciáticos é coordenada por um plano geral do Espírito; que a Natureza
e a Escritura se correlacionam não só como uma grande rede alegórica, susceptível de
hermenêutica, mas também como geradoras de símbolos que tornam «transparente»
uma realidade que fica além de qualquer expressão ou comunicação; etc. Por outro lado,
admite que o texto examinado não esgota a totalidade dos seus significados numa
«leitura literal», mas contém significados «ocultos» (sejam simbólicos ou iniciáticos)
que carecem de ser devidamente descodificados.
Assim, o «pecado original» cometido por Eva e Adão e que se perpetua na sua
descendência, o «plano de salvação» decidido por Deus ao longo da história da
humanidade, o nascimento virginal de Jesus por obra e graça do Espírito Santo, a
46
identificação de Jesus com Deus, as «Três Pessoas» distintas da Santíssima Trindade em
uma só natureza, a ressurreição corporal de Cristo e Sua ascensão corporal ao céu, a
«ressurreição dos mortos» no último dia, etc. são processos que correspondem a factos
esotericamente explicáveis em termos «naturais» — a matéria é espírito cristalizado! —
e não ocorrências «miraculosas» e «sobrenaturais» deliberadas por um Deus caprichoso
que transgride, quando assim o entende, as imutáveis leis universais que Ele mesmo
criou, com a agravante de não querer que os humanos entendam «certas coisas» com a
sã razão que o mesmo Deus lhes deu.
Retornando ao exemplo donde partimos, vejamos aonde nos conduziria a tripla leitura
da frase de Cristo Jesus «Eu e o Pai somos um».
2. Leitura teológica — Os teólogos, pelo contrário, vêem nesta frase uma clara
afirmação da identidade absoluta entre a «substância» do Pai e a «substância» do Filho,
ou seja, a confirmação de que Jesus de Nazaré é igual a Deus. Trazem em abono desta
interpretação outros passos da Bíblia em que os feitos e os ditos de Jesus se equiparam a
actuações que, no Antigo Testamento, são atribuíveis a Jahvé. Por exemplo: Jahvé dá o
pão (ou maná) como alimento (Êxodo 16, 8.15; Deuteronómio 8, 3), e Jesus dá o
verdadeiro pão da vida (João 6, 11.32-35.51); Jahvé, por intermédio de Moisés, faz
brotar água da rocha (Êxodo 17, 6), e Jesus dá a «água viva» que leva à «vida eterna»
(João 4, 10-14); Jahvé dá mandamentos (Êxodo 31, 18; 34, 28; Deuteronómio 4, 13; 5,
22; 10, 4), e Jesus dá um «mandamento novo» (João 13, 34); etc. Ou seja: ao conceder
dons e dádivas que no Antigo Testamento são exclusivos de Jahvé — pão, água,
47
mandamentos, vida eterna, etc. —, Jesus parece estar a atribuir-se a mesma condição
divina do próprio Deus.
Esclareça-se que esta tradição esotérica não é tão fantasiosa como pode parecer à
primeira vista. É um facto bem conhecido dos especialistas modernos, conhecedores da
enorme quantidade de documentos escriturísticos existentes, desde os mais antigos
papiros manuscritos até à profusão de cópias e versões em diferentes linguas antigas,
que a Escritura — e, neste caso concreto, o Novo Testamento — sofreu adulterações e
corrupções introduzidas pelos copistas duma certa facção das comunidades jesuânicas
para se conformar à Cristologia do que se convencionou chamar a «ortodoxia» que
finalmente deu origem à Igreja de Roma. A maior parte das passagens do Novo
Testamento em que parece afirmar-se que Jesus de Nazaré é Deus, foi obra de
«ajeitamentos teológicos», tal como as passagens que de início inequivocamente
explicitavam que Jesus, nascido naturalmente de José e de Maria, só se tornou
«especial» no momento do Baptismo.
Esta última distinção é importante. Há provas documentais, desde muito cedo, de que
certas comunidades cristãs do primeiro e do segundo séculos sabiam que Jesus não se
identificava com Deus (por exemplo, Theodotus, os Ebionitas, Cerinthus, etc.), mas que
o Espírito Divino — o Espírito Santo — o havia infundido no momento do Baptismo
com uma qualidade elevadíssima que o tornou «Filho de Deus», «Salvador do Mundo»,
em suma: «Cristo». Em contrapartida, as comunidades pré-ortodoxas e ortodoxas
defenderam por razões mais políticas e de força, que religiosas, que Jesus sempre foi
«Deus» desde o Seu nascimento, e até antes, procedendo os seus copistas às alterações
48
apropriadas dos textos para fazerem vingar essa Cristologia. (Anote-se que uso aqui o
termo «ortodoxia» não no sentido de rectidão de conteúdos, mas no de dominância da
facção que «venceu» as polémicas dos três primeiro séculos e se tornou na Igreja de
Roma).
Já agora vejamos mais um outro caso, em dois passos paralelos de Marcos e Mateus que
têm causado engulhos à ortodoxia dogmática. O Evangelho de Mateus, durante o
Cristianismo primitivo, teve uma divulgação muitíssimo maior que o de Marcos, uma
vez que este era acentuadamente iniciático e de circulação mais restrita. Não surpreende
portanto que os escribas pré-ortodoxos e ortodoxos se tivessem empenhado em
«corrigir» o de Mateus, mais do que o de Marcos, nas passagens onde os «hereges»
pudessem ir buscar argumentos para apoiar a ideia de que Jesus de Nazaré não era Deus.
A propósito do «fim dos tempos», lemos em Mateus: «Quanto àquele dia e hora
ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho [gr. oude ‗o ‗Uios], mas apenas o
Pai» (Mateus 24, 36). Ora, se o próprio Filho não sabe, é porque não é divino nem está
dentro dos segredos do Pai… A expressão nem o Filho [gr. oude ‗o ‗Uios] acha-se
suprimida em muitos dos manuscritos existentes, sobretudo os da tradição bizantina, e
foi essa versão «expurgada» que Jerónimo utilizou para a sua tradução em latim
(Vulgata Latina), texto oficial da Igreja católica: «De die autem ille et hora nemo scit,
neque angeli caelorum, nisi solus Pater». Pelas razões apontadas o passo paralelo de
Marcos (13, 32), praticamente idêntico, não foi tão expurgado pelos copistas ortodoxos
— Marcos foi de longe o Evangelho menos copiado e divulgado, logo menos
susceptível de causar «danos» —, e Jerónimo traduziu o versículo tal e qual, incluindo a
expressão melindrosa «neque Filius» («nem o Filho»), que os teólogos mainstream
reinterpretam de forma curiosa, para não dizer sofística: «Jesus, enquanto homem, sabia
49
tudo o que era necessário para realizar a Sua missão messiânica; isso não inclui, porém,
que conhecesse todos os planos de Deus» (Frei Alcindo Costa, formado pelo Instituto
Bíblico de Roma, em nota ao Novo Testamento, Difusora Bíblica, p. 51 n.).
VI — Em Água e em Espírito
Esta infusão do Espírito Santo é fulcral para se compreender como o Baptismo «em
Espírito Santo», indispensável para além do simples Baptismo em Água, é determinante
na Nova Religiosidade, que se distingue sobretudo — ainda que não só — por duas
características fundamentais: uma espiritualidade individual positiva, que contacta
imediatamente o Divino prescindindo dos «funcionários de Deus» como intermediários
institucionalizados, e o papel transcendental da Eterna Complementaridade Feminina
da Divindade. O carácter unitivo dos dois Baptismos (Água e Espírito, ou Água e Fogo:
o Espírito Santo revelou-se como línguas de Fogo no Pentecostes: Actos 2, 3-4), é
atestado em alguns passos do Novo Testamento. Por exemplo, João o Baptista diz aos
seus seguidores: «Eu baptizo-vos em Água, para o arrependimento [gr. metanoia,
mudança de mente]; aquele que há-de vir depois de mim […] baptizar-vos-á em
Espírito Santo e em Fogo» (Mateus 3, 11). Jesus confirma-o por outras palavras, nas
«instruções iniciáticas» que, uma noite e em segredo, transmitiu ao candidato aos Novos
Mistérios Cristãos, o velho Nicodemos. Entre essas «instruções» destaca-se a seguinte:
«Em verdade, em verdade te digo, quem não nascer de Água e de Espírito não pode
entrar no Reino de Deus» (João 3, 5).
A Água e o Espírito [Santo] associam-se assim num dos simbolismos do pólo Feminino
da Divindade.
Essa Tripla Deusa é a manifestação do triplo aspecto feminino: Neith, virgem caçadora
e tecedeira, como mais tarde Ártemis (virgem caçadora) e Atena (virgem guerreira e
tecedeira) entre os Gregos; Nut, o princípio feminino de Nu, a massa aquosa donde se
formaram os deuses e ao mesmo tempo a deusa dos céus por onde veleja o barco do
deus-Sol; e finalmente Ísis, esposa e mãe. Este triplo princípio feminino, Neith/Nut/Ísis,
consolidou-se nas tradições do Médio Oriente desde tempos imemoriais até ser
destronado pelo patriarcalismo tardio de Amon-Râ, Zeus-Dyews e Jahvé.
50
O panteão feminino grego absorveu, sobretudo a partir da Frígia, da Síria e da
Babilónia, o lado simultaneamente «terreno» e «lunar/aquoso» da «Grande Deusa Mãe»
e da «divina Virgem». Hesíodo, na sua Teogonia, associa a Tripla Deusa às três
gerações de deuses: Gaia (com Ouranos) deu origem à primeira geração de deuses; Nyx
(com Erebos) deu origem à segunda geração de deuses; Tethys (com Okeanos) deu
origem à terceira geração de deuses. Por fim esse «triplo Eterno Feminino» conglobou-
se, nos Mistérios, em deusas como Cibele, cujo nome se associa à Montanha Sagrada (a
que estabelece a ligação da terra e do céu), Deméter, a deusa maternal da terra, dos
cereais e das colheitas, ou ainda da sua filha Perséfone, a jovem deusa renovadamente
virgem que faz irromper a luxuriante vegetação e passa seis meses de cada ano (durante
a estação invernosa) no mundo subterrâneo do Hades.
É um culto acentuadamente ctónico (do gr. chthôn, chthônos, terra, solo, região) com
efeitos práticos no mundo visível, desde oráculos a curas, em que a feminina Água,
associada à feminina Terra, também desempenha o seu papel. Assim, no santuário de
Delfos, a Pítia e os sacerdotes que a assessoravam banhavam-se primeiro na Fonte
Castália, em seguida ela bebia água da Fonte Sagrada de Cassotis e só depois entrava no
templo. Um vez lá dentro descia a uma cela na cave (o elemento ctónico: o mergulhar
no seio da Terra-Mãe), sentava-se numa trípode e mascava folhas de loureiro. Os
sacerdotes então interpretavam as suas palavras, em geral ininteligíveis, como uma
mensagem divina. Acreditava-se que estes oráculos detinham «poderes ctónicos», ou
seja, poderes que emanavam das próprias energias telúricas. No templo de Asclépio, em
Epidauro, os doentes adormeciam em contacto com a terra, a fim de serem curados
durante os sonhos, e no santuário de Trofónio, em Lebadeia, os consulentes adormeciam
num buraco escavado no chão para obterem respostas às suas perguntas ou alívio aos
seus males.
Ru‘ah-Elohim pode traduzir-se por «Espírito de Deus» (ou dos Elohim) ou por «Sopro
de Deus» (ou dos Elohim); a tradução corrente deste versículo costuma ser: «E o
Espírito de Deus planava sobre as águas» («Et Spiritus Dei ferebatur super acquas»,
segundo a Vulgata Latina), mas também se pode traduzir: «E o vento dos Elohim
deslizava (ou: agitava-se) sobre a face das águas».
51
divina é acentuada na expressão compósita Ru‘ah ha-Kodesh, «o Espírito Santo», como
vemos por exemplo em Isaías: «Mas revoltaram-se, ofenderam o Espírito Santo [hebr.
Ru‘ah ha-Kodesh] [de Jahvé]; desde então tornou-se inimigo deles e fez-lhes guerra»
(Isaías 63, 10). É o feminino Espírito de inspiração e profecia, como lemos num tratado
talmúdico: «Quando os últimos dos profetas, Ageu, Zacarias e Malaquias morreram, o
Espírito Santo [hebr. Ru‘ah ha-Kodesh] ausentou-se de Israel» (Yoma 9b). Embora o
rígido monoteísmo judaico sempre visse com desconfiança — e mesmo rejeitasse — a
acepção da Ru‘ah ha-Kodesh como uma «hipóstase» ou uma entidade separada de
Deus, essa tendência individuante porém, na literatura talmúdica e rabínica, pós-bíblica,
manifestou-se em vários tratados, como por exemplo quando a Ru‘ah ha-Kodesh se
exprime por palavras (Pesahim 117a), ou actua como conselheira de defesa em nome de
Israel (Leviticus Rabbah 6, 1), ou ainda quando abandona Israel para regressar a Deus
(Ecclesiastes Rabbah 12, 7).
Num certo número de tratados talmúdicos (por exemplo Pesahim, Shabbat, Sukkah,
Sotah, Sanhedrin, etc.) as duas entidades femininas Ru‘ah ha-Kodesh e Shekhinah,
apesar de conceptualmente distintas, são frequentemente tomadas como sinónimos. No
primeiro tratado cabalístico conhecido, o Sepher ha-Bahir [«Livro do Resplendor»], da
segunda metade do século XII mas incorporando materiais místicos e ocultos muito
mais antigos, o seu anónimo autor classifica pela primeira vez as «10 emanações
divinas», que a Cabala judaica deu depois a conhecer, amplamente, sob o nome de
Sephiroth. No Sepher ha-Bahir a Shekhinah identifica-se com a última Sephirah, a
décima, Malkhuth, «o Reino» ou «a Realeza», e é descrita como a «Filha», ou a
«Princesa», o divino princípio feminino no mundo. Certos cabalistas consideram que as
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quatro letras do tetragrama sagrado, YHVH (yod-he-vau-he), têm as seguintes
conotações:
Ou seja, a letra he, nas suas duas posições no tetragrama sagrado, reúne em si o duplo
aspecto Maternal/Filial (ou Maternal/Virginal) do Princípio Feminino da Divindade, o
mesmo que na tradição grega era representado pela Deusa Mãe Deméter e por sua Filha
Perséfone.
A saudosa Natália Correia, com a exuberância que lhe era peculiar, e como boa açoriana
e simultaneamente sacerdotisa do ancestral-renovado culto feminino, não poucas vezes
dissertou — pelo menos no «Botequim», tanto quanto me recordo, e lhe ouvi —, sobre
a transcendência Paraclética do Espírito de Verdade de Deus, que ela insistia em
designar por Espírita Santa!
Está certo: a Espírita Santa é a POMBA — que em hebraico se diz yonah e que a
tradição hermética, fazendo tábua rasa das rigorosas pesquisas etimológico-científicas
da Linguística, considera relacionada com a yin chinesa (princípio feminino,
complementar do princípio masculino yang) e a yoni indiana (orgão sexual feminino,
complementar do órgão sexual masculino linga). Trata-se duma «Cabala fonética» de
que Fulcanelli foi um dos principais impulsionadores, e que, não obstante a sua rejeição
por parte da linguística histórica, revela e torna «transparentes» os mais subtis e
inesperados aspectos do REAL.
Por sua vez a tradição cristã, epítome e sequência das duas, congloba no pólo feminino
da Divindade os elementos Ar e Água, juntamente com o Céu e a Terra, do seguinte
modo:
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Virgem-Mãe — Associação complementar e indissolúvel entre o Pai Celestial e a Mãe
Terrenal: Céu, e Terra;
É pelo amor que o Pai Celestial e a Mãe Terrenal e o Filho do Homem se tornam
um. Porque o espírito do Filho do Homem foi criado do espírito do Pai Celestial, e o
seu corpo, do corpo da Mãe Terrenal.Tornai-vos, pois, perfeitos, como são perfeitos o
espírito do vosso Pai Celestial e o corpo da vossa Mãe Terrenal».
Registe-se a relevância atribuída ao AMOR que «torna UM» não só o Pai e o Filho
(«Eu e o Pai somos um»!) mas também a Mãe.
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Não é só neste Evangelho essénio que o pólo feminino da Divindade se identifica com a
Mãe, incluso a própria Mãe mistérica de Jesus: outros manuscritos antigos também o
atestam. Por exemplo, há um curioso indício transmitido pelo Evangelho dito dos
Hebreus, usado por algumas comunidades iniciáticas cristãs como os Nazarenos e os
Ebionitas, e do qual só restam fragmentos que nos foram conservados em citações feitas
pelos Padres da Igreja. Supõe-se que tenha tido a sua origem nos princípios do século II
d. C. Segundo o testemunho de Jerónimo (Dial. adversus pelagianos, III, 2) teria sido
originalmente escrito em aramaico, e nele se afirma que o Espírito Santo, além de ser
feminino — ru‘ah em hebraico é feminino —, é, ainda por cima, a Mãe de Jesus!
«Há pouco a minha mãe, o Espírito Santo [gr. ‗agion pneuma] tomou-me por um dos
cabelos e levou-me ao monte sublime do Tabor…» (É um paralelo de Mateus 4, 1 e
vem citado no Comentário ao Evangelho de João, de Orígenes: In Io. 2, 6).
Ou, noutra versão, que nos foi transmitida por Jerónimo no seu II Comentário sobre
Miquéias (Comm. II in Mich. 7, 6):
«Há pouco tomou-me a minha mãe, o Espírito Santo [lat. Sanctus Spiritus], por um dos
meus cabelos…».
Jerónimo surpreende-se, pois a ser assim, «a alma, que é esposa do Verbo, tem por
sogra o Espírito Santo»! («Et animam, quae sponsa sermonis est, habere socrum
Sanctum Spiritum, qui apud Hebraeos genere dicitur feminino, ru‘ah» — id., ibid.).
No Evangelho da Paz dos Essénios esta ru‘ah corresponde ao Espírito da Terra, perfeita
e imaculada por todo o Amor que tem para doar.
No final do Livro Primeiro de The Essene Gospel of Peace, Jesus ensina duas orações:
uma, muito semelhante ao «Pai Nosso» que conhecemos, em veneração ao Pai
Celestial; e outra em veneração à Mãe Terrenal e que é a seguinte:
«Mãe nossa que estás na Terra, santificado seja o teu nome. Venha a nós o teu reino e
faça-se em nós a tua vontade, tal como em ti se faz. Tal como envias os teus anjos
diariamente, envia-no-los a nós também. Perdoa os nossos pecados, tal como expiamos
os pecados que cometemos contra ti. Não nos deixes cair na doença, mas liberta-nos de
todo o mal, porque teus são a Terra, o corpo e a saúde. Amen».
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participando de certo modo da própria natureza divina. O livro foi composto como se o
seu autor tivesse sido Salomão, que em dado paso diz:
No tratado gnóstico a que fiz referência acima, Pistis Sophia, e que se supõe ter sido
composto no século III d. C., Jesus ressuscitado faz revelações aos Seus discípulos
sobre a queda e a redenção duma das emanações da Divindade, a Sophia (ou Pistis
Sophia : «Fé-Sabedoria»). Aqui a principal preocupação é saber quem finalmente será
salvo. Os que se salvarem devem renunciar ao mundo e seguir a ética pura do amor e da
compaixão, a fim de se identificarem com Jesus e se transformarem em raios da Luz
Divina.
No Novo Testamento, essa «Sabedoria de Deus» (Theoû Sophia) é-nos apresentada por
Paulo do seguinte modo: «Sabedoria [gr. Sophia], com efeito, falamos entre os iniciados
[gr. teleiois]; não a sabedoria deste ciclo [gr. aiôn] nem dos príncipes deste ciclo
condenados a perecer. Mas falamos antes da Sabedoria de Deus em mistério [gr. Theoû
Sophia en mystêriô], a oculta, que Deus predestinou antes dos ciclos para glória nossa»
(1 Coríntios 2, 6-7). A associação do princípio feminino — Sophia — ao Mistério da
Iniciação é aqui acentuado por Paulo: quando ele usa o termo «mistério» não o faz no
sentido eclesiástico e distanciador que a Igreja cunhou mais tarde, como por exemplo o
«mistério» da Transubstanciação, mas no sentido de «mistérios iniciáticos» como era
corrente no tempo de Paulo.
Por fim, a própria Igreja de Roma acabou por identificar a Virgem Maria, «Mãe de
Deus», com a figura da Divina Sabedoria (Sophia), e, tal como na Cristologia
mainstream se descreve Jesus como uma «hipóstase» do Pai (um ente da mesma
substância), também na Teologia mariológica acabou por prevalecer o conceito de que
Maria tem a Sophia como sua «hipóstase».
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X — O pólo feminino da nova religiosidade
A partir do momento em que Cristo nos ensinou que o Eu-Superior — o eterno Espírito
de todo o ser humano — é uno com o Pai, ou seja, idêntico à essência divina («Eu e o
Pai somos um» — João 10, 30) abriu várias portas das quais destaco duas, para
finalizar:
Mais modernamente assiste-se a uma transição entre as ideias um tanto vagas da «New
Age» para as práticas e os rituais concretos do neopaganismo, como por exemplo na
Wicca [do gaélico Wicca Craeft = Witchcraft = Feitiçaria], que podemos rotular como
um paganismo mais «vanguardista» e de bases mais latas, cujas preocupações
ecológicas (já presentes na «New Age») se traduzem numa «batalha pela Terra» em que
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os valores femininos se corporizam na figura duma Grande Deusa e na Santidade da
Terra, devidamente acompanhadas por um Deus-Natureza de masculinidade imaculada.
Portanto, levando à conclusão lógica a simbiose perfeita que nos é revelada pela frase
«Eu e o Pai somos um», as nossas mais sagradas invocações, mediadas por nosso
Cristo Interno, deverão naturalmente abranger, em paralelo, não só o Pai do Céu, mas
igualmente, como nos ensinam os rituais de um recente Manual de Magia, a Grande
Mãe, Senhora da Arte, e a Grande Mãe, Senhora da Luz!
CHORUS MYSTICUS:
(Goethe, Fausto)
EHRMAN, Bart D., The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early
Christological Controversies on the Text of the New Testament (1993), Oxford
University Press, reed. New York 1996.
Encyclopaedia Judaica, eds.Cecil Roth & Geoffrey Wigoder, Keter Publishing House,
Jerusalem 1972.
GOETHE, Johann W., Fausto, Trad. Agostinho d‘Ornellas (I Parte: 1867; II Parte:
1873), reed. Relñgio d‘Água, Lisboa 1987.
GRANT, Robert M. & TRACY, David, A Short History of the Interpetation of the
Bible, 2nd. ed. revised and enlarged, Fortress Press, USA 1984.
58
HELINE, Corinne, New Age Bible Interpretation, 7 vols., New Age Bible & Philosophy
Center, Santa Monica 1938-1961.
JONES, Prudence, & PENNICK, Nigel, História da Europa Pagã [A History of Pagan
Europe, 1995], Pub. Europa-América, Mem Martins 1999.
LAMSA, George M., Idioms in the Bible Explained and A Key to the Original Gospels,
Harper & Row, San Francisco (CA) 1985.
MACK, Burton L., Who Wrote the New Testament? - The Making of the Christian
Myth, HarperCollins, San Francisco (CA) 1995.
Pistis Sophia - Ouvrage gnostique traduit du copte en français (1895), trad. e introd. E.
Amélineau, Archè, Milano 1975.
SANTO, Moisés Espírito, A Religião na Mudança: A Nova Era, ISER, UNL, Lisboa
2002.
SZÉKELY, Edmond Bordeaux, The Essene Gospel of Peace (1937), Academy Books,
San Diego (CA) 1981.
The Text of the New Testament in Contemporary Research: Essays on the Status
Quaestionis, eds. Bart D. Ehrman & Michael W. Holmes, Wipf and Stock, Eugene (OR)
2001.
Western Esotericism and the Science of Religion, eds. Antoine Faivre & Wouter J.
Hanegraaff, Peeters, Leuven 1998.
59
A PALAVRA E O SILÊNCIO:
O ESOTERISMO DE CLARICE LISPECTOR
Através dessa concepção algo metafísica da palavra é possível ver conexões entre a
literatura e a tradição esotérica, uma vez que, como lembra Pierre Riffard, a maior parte
das cosmogonias ocultas são descritas em termos lingüísticos, seja atribuindo a Criação
a um Verbo criador, a um som primevo ou a uma língua primordial, seja expressando-se
através de uma linguagem ou escrita consideradas divinas (2). Não existe nenhum
esoterismo que não atribua um valor simbólico à palavra, que não busque a divinização
através do nome e de uma etimologia oculta. O processo iniciático, que se efetua pela
quebra do silêncio, através da atribuição de um nome místico ao neófito, encerra-se
sempre com a menção do Nome de Deus, com a recitação dos mitos e com a entoação
dos sons místicos, isto é, fazendo da palavra a ligação com o Cosmos.
60
natureza de algo é passível de ser revelada a partir do valor das letras da palavra que o
designa); hermenêuticos (a arte combinatória de letras e números, por exemplo);
iniciáticos (onde é dado ao buscador os meios de conhecer de cor os textos sagrados e
os rituais tradicionais); e mesmo artísticos, onde a ―Prática do Nome‖ é feita através da
caligrafia, do desenho na areia, da eufonia e, uma vez mais, da literatura. Mas não
qualquer literatura; somente aquela que busca devolver à palavra o seu sentido original,
seu caráter iniciático e propiciatório, o qual induz o leitor a um estranhamento com o
mundo, com o que está (aparentemente) decodificado, e, assim fazendo, restabelece o
mistério das coisas e instaura o espanto do ser que se vê ―sendo‖.
Clarice Lispector parece ter essa concepção da literatura (e do mundo, uma vez que para
ela ambos estão intimamente ligados) e fazendo da palavra um meio de apreensão e
revelação do mundo, repete o processo da Criação: Clarice brinca de ser Deus. Dentro
dessa linha de pensamento, é possível estabelecer pontos de contato entre a atitude de
Clarice diante da linguagem e aquela dos místicos cabalistas, os quais concebem a
linguagem como o instrumento de Deus (3). Assim como Deus, para os cabalistas, não é
uma entidade perfeita e precisa constantemente da ação de suas criaturas para a sua
afirmação, bem como para a manutenção e aperfeiçoamento de sua obra, os personagens
clariceanos parecem intuir uma imperfeição, um desequilíbrio no mundo e em sua fúria
rotuladora buscam (re)instaurar a harmonia. No entanto, se a palavra é apaziguante (na
medida em que dá um estofo concreto ao mundo), o equilíbrio que ela proporciona é
precário e provisório, e a consciência dessa precariedade constitui o elemento
deflagrador da escrita de Clarice; escrita essa que tangencia sempre o limiar do
indizível, da não palavra, e que revela sempre a inquietude do sujeito que infere que a
realidade não é verbal e que o mundo contém algo que as palavras não conseguem
enunciar.
Essa perplexidade com as coisas, que é quase um não saber prosseguir (uma vez que
imobiliza o sujeito), reveste-se de um tom metafísico ao longo de toda a obra clariceana,
e mesmo em seus textos mais ―tradicionais‖, onde a estrutura dos gêneros não parece
tão ameaçada, Clarice aborda o mundo por um viés ―torto‖, esquivo, fazendo com que o
que é conhecido, óbvio, adquira um tom inaugural insuspeitado. No entanto, é
justamente nesse processo de nomeação quase abstrato, onde a linguagem chega a ―se
falar‖, que a palavra entra em crise e, por assim dizer, fracassa, pois para o fim que
Clarice se propõe as palavras, banalizadas pelo uso comum, já se mostram gastas a
priori. É necessário, então, inventar um novo léxico, o qual, paradoxalmente, só se torna
possível através do seu avesso, da não palavra, do silêncio.
Por esses dois caminhos contraditórios viaja Clarice. Mas, se são contraditórios, não são
excludentes, e por vezes quase chegam a se tocar, quanto mais não seja, pela afinidade
que ambos apresentam com o pensamento místico, pois se, por um lado, a via da
nomeação, o texto clariceano se aproxima da ―Doutrina do Nome‖, da cabala (mas
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também da física quântica (4)), por outro, pela via do ―esvaziamento‖ da linguagem,
pela busca da apreensão do instante-já, ele se avizinha de algumas doutrinas orientais
como o Budismo e o Taoísmo, por exemplo, nos quais, como bem lembra George
Steiner, ―(...) imagina-se que a alma ascende dos grosseiros obstáculos da matéria,
através de domínios de percepção que podem ser transmitidos por linguagem sublime e
exata, rumo a um silêncio cada vez mais profundo (5).‖
O silêncio, em Clarice, tem tanto valor quanto a palavra e constitui, de certo modo, o
fim último e utópico de sua escrita, no entanto, ela sabe que se o silêncio é a expressão
máxima do indizível, é somente através da palavra que se chega a essa conclusão:
Ao contrário do Budismo, contudo (e isso não contradiz o que eu disse antes), a matéria,
posta em foco pela palavra, não está reduzida, no mundo clariceano, a um ―grosseiro
obstáculo‖. Ao contrário, ela tem tanta carga de mistério quanto o ―espírito‖, e talvez
seja mesmo mais fantástica, na medida em que se constitui no mistério evidente e
palpável, enquanto que o espírito reside no reino do inefável, do abstrato. A consciência
disso faz com que o texto de Clarice interaja com as coisas, com os objetos, e deles faça
parte. Por essa razão, parece-me equivocada uma análise como a de Luis Costa Lima,
que vê na obra de Clarice uma desarticulação com a totalidade concreta (7). O que
ocorre é justamente o contrário: Clarice adere ao concreto, devolvendo às coisas toda a
sua carga de materialidade imperativa e onipresente e, nesse sentido, a fala da
personagem Ângela, em Um Sopro de Vida, revela-se como uma síntese da percepção
que Clarice tem do mundo:
62
comunicação, mas de iniciação a um mistério particular, (...) usa palavras correntes em
sentidos ocultos e enigmáticos; nós as reconhecemos, mas elas nos dão as costas (9).
O círculo que leva da palavra ao silêncio, e deste novamente para a palavra, encontra
nesse conto um ponto de equilíbrio, como se ambos, palavra e silêncio, cada um em um
―momento‖ da circunferência, em um dado momento ―escorregassem‖ para um mesmo
ponto do círculo, finalmente se encontrando. Nesse sentido, esboça-se, aqui, um
processo de aproximação da música, através do artifício do contraponto, o qual atingirá
o paroxismo em Água Viva, onde se evidenciam, explicitamente, aqueles traços típicos
da escrita de Clarice que já estavam presentes em toda a sua obra anterior mas que aqui
aparecem despidos de toda amarra de gênero ou paradigma que limite o sentido: a
recusa da narrativa e a busca do silêncio, o qual, se mais do que inapreensível, é
incomunicável, ao menos é passível de ser ―tocado‖ através da aproximação daquilo
com que mais se parece: a matéria viva, representada em suas formas mais reduzidas e
absolutas, como a medusa, a água-viva. O orgânico-primordial, então, confunde-se com
o Absoluto, com o espiritual, e sob esse prisma, o elemento ―água‖, presente ao longo
do texto, longe de se constituir unicamente num sentido químico, agrega a si o sentido a
ele atribuído pelos antigos alquimistas: água como ―um princípio de fluidez, fertilidade;
umidade ao mesmo tempo mñrbida e geradora‖ (12), elemento, enfim, mais sutil que a
matéria e a linguagem, pois pode elevar-se como vapor e depositar-se como orvalho;
água como elo entre o transcendente, o silêncio; e o concreto, a palavra.
Essa fluidez de água, da qual o texto busca se aproximar, é também a fluidez polifônica
de uma peça musical, pois em Água Viva os temas nascem e se repetem num jogo de
variações e fuga análogo ao da música. Assim como a música nada mais é do que uma
moldura para o silêncio, uma maneira de tornar perceptível a ausência do som, o texto
de Água Viva é um longo adágio, um andamento lento e contínuo para além das
fronteiras da palavra:
63
Sob o aspecto da palavra como um meio de expressão do silêncio, Água Viva talvez
seja o texto mais perfeito de Clarice Lispector, pois ao mesmo tempo em que constitui o
auge do paradoxo que funda sua escrita (só através da palavra é que o silêncio pode ser
dito), também é o momento de resolução do paradoxo, através da abdicação do desejo
de relatar o mundo. O mundo, então, com tudo o que ele contém, passa a ser,
simplesmente, sem explicações:
Oposto à idéia de narrativa, de história por contar, esse minimalismo conceitual põe a
nu toda o estranhamento e a singularidade do texto de Clarice Lispector, o qual
extrapola a condição do meramente literário para atingir o status de metafísica,
cosmogonia oculta. Nesse sentido, criando uma obra que postula seus próprios
conceitos e inventa seus próprios paradigmas, Clarice Lispector se coloca,
conscientemente, à margem de toda e qualquer tradição literária (15), e se inscreve na
estirpe dos antigos alquimistas, que viam na matéria o pretexto para atingir o infinito.
__________
3 Cf. BALBUENA, Monique. Poe e Rosa à Luz da Cabala. Rio de Janeiro, Imago,
1994, p.175.
7 Apud SÁ, Olga. A Escritura de Clarice Lispector. Petrópolis, Vozes, 1993, p.71.
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Congresso de Bruxaria, em Bogotá, o que demonstra o quanto o místico, o mágico,
esteve presente em sua vida. Cf. SÁ, Olga. Op. Cit. p.214.
13 LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de janeiro, Francisco Alves, 1993, p.52.
________________________
Júlio César de Bittencourt Gomes. Professor de literatura, pesquisador na área de
literatura e cinema, coolaborador de "Teorema" - revista de cinema -, doutor em
literatura brasileira pela Ufrgs (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), com a tese
Imagens, Esquinas e Confluências: um roteiro cinematográfico baseado no
romance "O quieto animal da esquina", de João Gilberto Noll.
65
LE REBIS...
DE GÉRARD DE NERVAL À RAYMOND ROUSSEL
RICHARD KHAITZINE
Le délicat poète que fut Gérard Labrunie, dit de Nerval, se doublait d‘un érudit et il
n‘ignorait rien de l‘hermétisme, ainsi que l‘atteste sa dernière œuvre, intitulée La
Pandora. Malheureusement, cet aspect de son étrange génie est méconnu des critiques
universitaires français qui se repaissent de la lettre des textes jusqu‘à l‘indigestion. J‘ai
eu la chance de connaître, peu de temps avant qu‘il ne décède, le plus subtil des
exégètes de l‘auteur des Filles du feu. Il s‘appelait Roger Mazelier. Le dernier livre de
Roger Mazelier, Gérard de Nerval et l‘humour divin, fut publié, en 1995, aux éditions
Les 3 R. Par ce travail, je souhaite lui rendre hommage.
Ainsi que l‘écrivait mon regretté ami : «L‘écriture de Nerval est plus invisible que celle
de Joyce et par le même procédé porté à sa perfection sous les mots indigestes.» Nerval,
lui-même, avoua que le secret de son écriture résidait dans le calembour. Du procédé de
Nerval à celui de Raymond Roussel, comme des paroles gelées de Rabelais aux mots de
groseilles de Léon-Paul Fargue, l‘ami d‘Alfred Jarry, il n‘y a que peu de distance… à
peine celle couverte en déplacement instantané par un oiseau, dont on sait qu‘il fut
toujours pris pour emblème de l‘esprit. Aussi peut-on, sans crainte de se tromper,
remplacer le volatil par la substance volatile, autrement dit l‘ Esprit par le Mercure des
textes alchimiques.
Jean Richer rappelait que hierro était le mot de passe des «Jeunes-France» lors de la
bataille d‘Hernani et que V.H. sont les initiales de Victor Hugo. C‘était oublier que
Nerval poussait le raffinement, suprême distinction du lettré, jusqu‘à l‘emploi usuel de
la paralipse, de l‘omission (paraleipsis), figure de réthorique qui a pour but de fixer
l‘attention sur un objet que l‘on feint de négliger. L‘un de ces savants que Nerval
semble avoir «mangé» avec délices et mal digéré se nommait Apollonius Dyscole (celui
qui a mal digéré). Il s‘agit d‘un gnostique, peu connu, du IIe siècle Alexandrin, terrain
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de chasse favori de Gérard. Que Nerval ait réussi à extraire «errer» de «digérer» sans
avoir recours à l‘étymologie, par simple réfraction syllabique sélective, est une
acrobatie manipulatrice dont on trouve peu d‘exemples, même dans les meilleurs textes
hermétiques. Il appartient entièrement à Roger Mazelier d‘avoir jeté quelque lueur sur
les trois vers sus-mentionnés: «La lettre R était le monogramme de l‘hérésie au Moyen
Âge, erre, hommage à son professeur d‘Alexandrie qu‘il réitère avec la mention hierro,
qui n‘a rien à voir avec le fer mais avec le faire. Le calembour phonétique évacue le
nominatif et lui substitue sans aucun changement de son, le verbe errar : être dans
l‘erreur, à la première personne de l‘indicatif singulier : y erro, et j‘erre, de sorte que les
lettres V.H. ont peu de chance de se rapporter à Victor Hugo. Nous proposons, dans ce
climat tendu et trouble, plein de simulation et de simulacre : V pour Vale, H pour
Haereticus: Vale haeretice, salut hérétique; il devait bien ça à son didaskalos.»
Et Gérard de Nerval illustra ce thème de l‘errance, aussi bien dans sa vie que dans son
œuvre. Dans Aurélia, au chapitre II, il écrit: «Cette nuit-là je fis un rêve qui me
confirma dans ma pensée. - j‘errais dans un vaste édifice…» Au chapitre V, il récidive:
«Je me vis errant dans les rues d‘une cité très populeuse et inconnue.» Ici, Nerval s‘est
amusé du vieux calembour, qu‘autorise le français, en usant de la même traduction des
verbes errare et iterare, errer sur les routes ou dans la foi. Ce calembour, les gnostiques
en ont usé et abusé. La gnose, on le sait, emprunta son vocabulaire à Platon. Ce dernier,
dans Gorgias, émet la pensée, qu‘il reprendra dans Cratyle, que la vie est peut-être une
mort, que le corps est un tombeau, que l‘existence est une chute. Dans Phédon (l‘étude
de l‘âme sur l‘âme), Platon peint l‘âme dans la vie, «gisant sous des montagnes de
maux» et plus avant: «qu‘à la mort, l‘âme cesse d‘errer (…) Le corps trouble l‘âme, il
est cause qu‘elle erre, qu‘elle est troublée, qu‘elle a le vertige comme si elle était ivre.»
RERE
RER
Cette curieuse inscription, placée sous la mérelle de Saint-Jacques, est flanquée de trois
grenades ignées. Chez les anciens, le Chemin de Saint-Jacques, était symbolique. Il
représente la Voie Lactée, lieu de passage des âmes du monde terrestre au monde divin.
Le sage Salloustios, qui refusa la succession de l‘Empereur Julien, considère la voie
lactée comme «la limite supérieure de la matière sujette au changement». Quant au nom
de Compostelle, il ne peut être compris que par le calembour campus-compos (qui a de
bons sens)». Cette étoile - stella (1) - vers laquelle se dirige le pèlerin, c‘est la serena
stella d‘Ovide, l‘Étoile qui jette un vif éclat, c‘est le Soleil. Elle deviendra, sous la
plume de Gérard de Nerval, dans El Desdichado (2), «Ma seule Étoile est morte». Nous
aurions tort de croire qu‘il s‘agit d‘un astre banal; il s‘agit d‘une Étoile unique, la stella
Serena, le Soleil-Dieu ou son parèdre, Sophia, le souffle divin.
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- RERE équivaut à REBIS
Roger Mazelier, précise: «On peut clarifier la chose en ordonnant l‘inscription sur un
plan horizontal; nous obtenons:
RERE: raser, effacer, dépouiller, maltraiter, n‘était plus usité au XVe siècle, alors qu‘il
était courant sous la plume de Chrétien de Troyes: Cist m‘ont si pres rese et tondue.
Jean Lallemant nous conseille d‘effacer RERE, terminaison de inquirere pour trouver
ERRER. La duplication de la lettre R est une faute constante chez Nerval (…) on trouve
bièrre en place de bière, deux fois R ou R bis.
«Tout me favorisait désormais; je sortis dans la journée et j‘allai revoir mon père. Puis
je me dirigeai vers le ministère de l‘intérieur où j‘avais à voir plusieurs amis. J‘entrai
chez le directeur des Beaux-arts et je m‘y arrêtai longtemps à contempler une carte de
France: Où pensez-vous, me dit-il, que doive être la capitale? Car Paris est situé trop au
Nord.
Cette conversation de Nerval avec Auguste Cavé est totalement illusoire. Il «pointe son
doigt» sur Bourges. Dans les gravures du Moyen Âge, désigner avec l‘index (indicare)
un personnage ou un objet remarquable, servait à attirer l‘attention dessus. Outre que
Nerval joua sur l‘anagramme Bourges et bougres (nom des cathares, considérés par
Rome comme des hérétiques), il ne pouvait ignorer l‘existence de l‘hôtel Lallemant et
de sa curieuse crédence.
Le R Cistercien
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pontife. Ce serviteur, c‘est celui que les traités hermétiques qualifient de «loyal
serviteur», celui qui ouvre la matière élue ou dragon. À ce sujet, ouvrons une courte
parenthèse.
Souvent, les enlumineurs traçaient ce R en lui conférant une évidente minceur laquelle
suggérait l‘inévitable calembour entre R étique et hérétique. Les lettres de l‘alphabet
considérées comme puissances hiéroglyphiques de la forme ou du son, qui éveillent un
écho dans une langue aux prises avec une pensée, peuvent se déceler pour la première
fois dans le Cratyle, encore que, déjà dans Homère et Hésiode, des étymologies
recherchées révèlent leur appropriation au mythe. Dans Mimétiques, Gérard Génette
mentionne de la mimema phôné, l‘imitation du sens par le son, comme d‘un hasard de
rencontre alors que, dans la volonté systématique de ce rapprochement c‘est le son -
parfois la forme -, qui met l‘écouteur sur la voie. Cet enseignement, Nerval le
perfectionna, au grand dépit des lecteurs superficiels et pour le plus grand plaisir des
plus lettrés. Cette constatation évoque inéluctablement, pour moi, ces quelques lignes
d‘un autre très grand poète, hélas disparu: Léo Ferré, qui écrivit : «Quand j‘emprunte
des paradoxes, je les rends au centuple, j‘enrichis ainsi mes prêteurs qui deviennent plus
intelligents. Le taux usuraire de l‘astuce n‘est jamais trop élevé!» Cette citation de Léo
Ferré me permet de faire la transition avec un poète qu‘il a chanté: Rutebeuf.
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Roger Mazelier observa: «La vue du R fait grigner (montrer les dents de fureur) ce qui
nous fera entendre beaucoup de grigneurs des textes romans. Cîteaux peut être
considéré comme le fer de lance contre l‘hérésie avant l‘apparition des dominicains. Les
grands bûchers, au lendemain de l‘an mille, Orléans (1022) et Charroux (1028) furent
allumés à l‘initiative cistercienne.»
Il s‘agit d‘une croix croisée, de feutre (pana) et qui adhère (au vêtement), signe
infâmant cousu sur le dos des hérétiques et dont le talent de Goya nous a laissé plusieurs
croquis. El Libro de Buen Amor, l‘Amour du Bien, proclame dans son titre premier, en
lettres majuscules : ESTA ES ORACION QUE EL ACIPRESTE FIZO A DIOS
QUANDO COMENCO ESTE LIBRO SUYO, alors que le mot ARCIPRESTE est
constamment transcrit avec son R recouvré partout ailleurs.
Mais s‘agit-il, seulement d‘une allitération poétique? La vérité oblige à dire que ce n‘est
pas le cas. Quand on sait que les Alchimistes se qualifiaient fréquemment de jardiniers,
de laboureurs, etc… ce bruit de râteau semble bien suspect. Quant à Virgile, j‘ai
démontré, ailleurs, que son Énéide est une allégorie hermétique (3). Enfin, il me faut
encore signaler le texte de François Villon, intitulé La Ballade qui se termine tout par R.
Ce texte en contient une avalanche, on en relève vingt-huit, mais pas un qui laisse filtrer
le mot hérésie. Le pays des R, suggéré par Villon, c‘est le pays d‘Oc dont la langue,
affirmait le pape Honorius III, était la «langue de l‘hérésie»; et le pseudo-Villon conta la
plus cruelle et la plus longue des guerres qui, au XIIIe siècle, donna naissance à la
nation française (4).
70
Raymond Roussel et le Rebis
Le Rebis revient à maintes reprises au sein de l‘œuvre de celui qui fut l‘élève et, sans
doute, l‘ami de Fulcanelli. À n‘en pas douter, Roussel dut jubiler en constatant que ses
initiales R-R étaient identiques à celles de la plus luxueuse des voitures… la Rolls-
Royce. Il est probable, également, qu‘il s‘était amusé de ce R doublé ou R-bis. Puisque
j‘évoque Raymond Roussel, il n‘est peut-être pas inutile de révéler un détail ayant
échappé aux critiques littéraires. Ainsi qu‘en font foi ses papiers personnels, légués à la
Bibliothèque Nationale, le personnage central de Locus solus (1913), lors d‘un premier
jet, n‘était pas nommé Canterel. Raymond Roussel l‘avait appelé Boudet. Ce Boudet,
s‘il n‘a pas attiré l‘attention des gens de lettres, se montre très évocateur pour les
amateurs de «petite histoire».
À la fin du XIXe siècle, puis au début du XXe, les projecteurs de l‘actualité se fixèrent
sur une modeste localité, sise dans le sud-ouest de la France, dans le département de
l‘Aude: Rennes-le-Château. Modeste village, situé sur un piton rocheux, à une altitude
de 600 mètres, Rennes-le-Château se retrouva au cœur d‘une étrange affaire. Pour ceux
qui seraient néophytes en la matière, je vais en résumer l‘essentiel. Un jeune prêtre,
massif, fougueux et au sang chaud y fut nommé curé desservant. Son nom? Bérenger
Saunière. L‘église est dans un état lamentable. Il entreprend des travaux de rénovation.
En déplaçant l‘un des piliers de l‘autel et, après l‘avoir reversé, le curé trouve quelque
chose. Il rejette la décoration de l‘église à l‘extérieur et refait celle de l‘intérieur. À
dater de cette découverte, Saunière va se livrer à des agissements qui suscitent le
scandale. Il chamboule les pierres tombales du cimetière voisin, en gratte les
inscriptions. Ajoutez à cela le fait que ce jeune curé, au tempérament sanguin, vit sous
le même toit que sa servante, une toute jeune fille. Les langues vont bon train. Du jour
au lendemain, Saunière mène une vie fastueuse, dépensant sans compter. Il se fait
construire une villa bourgeoise, une tour néo-gothique qui lui sert de bibliothèque. Il
achète des livres rares, richement reliés. Il créé un mini zoo, une serre, fait ériger un mur
d‘enceinte. Il fait construire des routes et amener l‘eau et l‘électricité dans le village. Il
rénove l‘église, y ajoutant une décoration outrageusement saint-sulpicienne, laquelle
côtoye des symboles maçonniques et rosicruciens. Que penser de la présence de deux
enfants-Jésus dans l‘église, l‘un dans les bras de Joseph et l‘autre tenu par Marie?
Comment mieux évoquer le rebis ? Saunière reçoit chez lui des célébrités parisiennes.
On évoque les visites, notamment, de la cantatrice Emma Calvé et du Député radical-
socialiste Dujardin-Beaumetz. Curieusement, la hiérarchie de Saunière fait la sourde
oreille quant aux frasques de l‘abbé. Mieux, Monseigneur de Bonnechose semble le
couvrir. Son successeur, Monseigneur Billard, fera de même. Il faudra attendre que les
deux prélats décèdent pour que le curé de Rennes-le-Château soit confronté à quelques
problèmes. Sommé de s‘expliquer sur la provenance des fonds qu‘il dilapide, Saunière
se tait. On l‘accuse de trafic de messes. Il est suspendu. Finalement, sa cure lui est
restituée et les poursuites abandonnées. La rumeur fait état de dépenses pharaoniques,
de l‘ordre de plusieurs milliards de francs. À ce jour le mystère demeure entier et
alimente la « soupe littéraire » servie par des auteurs, souvent plus mal inspirés, que
bien informés. Ainsi, régulièrement, évoque-t-on un trésor Templier, voir Cathare (sic!),
ou wisigoth, quand il ne s‘agit pas de faire appel à un fantômatique Prieuré de Sion et à
une descendance du Christ, dont on voit mal comment il aurait pu l‘engendrer en sa
qualité de fiction littéraire et d‘allégorie hermétique. À moins, bien sûr de vouloir se
71
montrer plus papiste que le Pape, en feignant d‘ignorer la lettre adressée par Léon X-fils
de Laurent de Médicis dit Le Magnifique, à son ami l‘érudit cardinal Bembo: «Combien
cette fable du Christ nous est-elle profitable…».
En revanche, les faits attestés sont les suivants. La meilleure amie d‘Emma Calvé fut la
comédienne Georgette Leblanc, sœur de Maurice, l‘illustre romancier auteur du cycle
consacré à Arsène Lupin et dont j‘ai démontré, par ailleurs (5), que les aventures
recelaient en lecteure infra-textuelle des allusions répétées aux deux livres écrits par
Fulcanelli. En outre, Leblanc, dans La Comtesse de Cagliostro, fit figurer un prélat du
nom de Mgr de Bonnechose! Ce même Monseigneur de Bonnechose, évêque de
Carcassonne et supérieur de l‘abbé Saunière, avait été nommé archevêque de Rouen où
il baptisa et confirma le jeune…Maurice Leblanc. Quant à Mgr Félix Arsène Billard, sa
personnalité mérite que je lui consacre quelques lignes. Selon l‘usage ancien, son
prénom usuel était Arsène. À sa mort, il fut enterré en la Cathédrale de Carcassonne,
laquelle contient les relique d‘un saint douteux: Lupin. Ainsi, Arsène repose-t-il à côté
de Lupin. À signaler que les deux ecclésiastiques, sus-mentionnés furent de curieux
personnages. De Bonnechose n‘alla-t-il faire ses dévotions, à Carcassonne, à Saint
Hermès?
Enfin, je me dois de signaler que René Renoult, le beau-frère de Maurice Leblanc, fut
député socialiste et Ministre de l‘Intérieur et des Cultes. À ce titre, il est peu probable
que l‘affaire de Rennes-le-Château lui ait été étrangère. Renoult, était Franc-Maçon,
Chevalier Rose-Croix. Membre du Grand Orient de France, il ne put ignorer un autre
frère, déjà mentionné: Dujardin-Beaumetz!
Si l‘abbé Saunière fut un étrange curé, il eut un rival en la personne de l‘original curé de
Rennes-les-Bains, village distant de 7 kilomètres de Rennes-le-Château.
Boudet était un érudit, lisant et parlant plusieurs langues, y compris les langues mortes.
Il publia un ouvrage hilarant qui déclencha la fureur des érudits locaux, lesquels
n‘étaient que peu sensibles à son sens de l‘humour. Outre que son ouvrage titré: La
vraie langue celtique et le cromleck de Rennes-les-Bains, prétendait de façon absurde
que le celte dérivait de l‘anglais, il s‘étendait longuement sur un cromleck que l‘on
aurait bien du mal à trouver sur le terrain. Essayons de comprendre ce que voulait nous
enseigner l‘abbé Henri Boudet.
72
Comment mieux évoquer les 2 pierres des Philosophes qu‘en en «travaillant» deux
autres, tangibles et bien physiques celles-là? C‘est ce que fit Saunière en effaçant les
inscriptions de la stèle ayant appartenu à la tombe de la marquise de Nègre d‘Ables,
puis celles de la dalle trouvée à Coume-Sourde. Notons, également, que Pi R² ou 2 Pi R
est un équivalent surprenant de R bis, autrement dit le Rebis des alchimistes, l‘union du
«mâle et de la femelle», le dissolvant et le corps dissoluble, ou encore, dans l‘Oeuvre au
Blanc, le Mercure animé de son Soufre, ces deux choses étant issues de la même racine.
Enfin, et contre toute vraisemblance, Boudet voulut qu‘il existât deux Cromlech. Ce ne
fut que par nécessité. Il fallait impérativement qu‘il y ait deux aires ou aires bis afin
d‘évoquer ce Rebis. Mais pourquoi Saunière éprouva-t-il le besoin de démolir l‘église et
d‘en rejeter les éléments à l‘extérieur? Il est probable, qu‘en ce domaine, aussi, il
obéïssait à des impératifs dictés par l‘abbé Boudet. Après avoir défait leur matière
première, mis le chaos, ils organisèrent ce chaos; la formule est bien connue de ceux
ayant ouvert des ouvrages consacrés à l‘Alchimie. Tout comme Roussel le fit, lors de la
rédaction de son stupéfiant livre Les Nouvelles Impressions d‘Afrique (6), les deux
prêtres illustrèrent l‘axiome de base de l‘art hermétique: Solve-Coagula: «Dissous et
coagule». En l‘occurence, il s‘agit de dissoudre le corps et de coaguler l‘Esprit.
Pour en terminer avec ce sujet, je signale que Gaston Leroux, de son côté, évoque très
nettement l‘abbé Saunière, au sein de l‘un de ses romans les moins connus. Je renvoie
mes lecteurs à La Mansarde d‘Or, non sans préciser qu‘une mansarde constitue
l‘attique d‘un immeuble. Il s‘agit d‘un clin-d‘œil humoristique de Gaston Leroux en
direction du sel attique (7) dont les auteurs grecs assaisonnaient leurs œuvres littéraires.
Le sel, qualifié d‘attique, était un synonyme de fine plaisanterie. Et en matière de
plaisanterie, l‘abbé Boudet s‘y entendit.
.FRVSTRA.
Fulcanelli commente :
«Vainement. C‘est la traduction lapidaire des quatre feux de notre coction. Les auteurs
qui en ont parlé nous les décrivent comme autant de degrés différents et proportionnés
du feu élémentaire agissant, au sein de l‘Athanor, sur le rebis philosophal. Du moins
est-ce là le sens suggéré aux débutants, et que ceux-ci s‘empressent, sans trop de
réflexion, de mettre en pratique.
73
d‘abord à découvrir ce que les Anciens entendaient par l‘expression imagée du feu, et
celle des quatre degrés successifs de son intensité. Car il ne s‘agit point en ce lieu du
feu des cuisines, de nos cheminées ou des hauts fourneaux.»
Fulcanelli rapporte ensuite que, selon Philalèthe «le feu ordinaire ne sert qu‘à éloigner
le froid et les accidents qu‘ilpourrait causer». Le même auteur ajoute que la coction est
linéaire, égale, constante, régulière et uniforme d‘un bout à l‘autre feu de de l‘ouvrage
et que tous les auteurs, ou presque, ont pris comme exemple du feu de coction, non pas
au regard de la température, mais à celui de l‘uniformité, l‘incubation de l‘œuf de poule.
À ce sujet, Gaston Leroux évoque, dans La Mansarde d‘Or, d‘une manière très triviale,
ce passage de Fulcanelli. Évoquant la température d‘une horizontale, autrement dit
d‘une poule de luxe, il écrit que sa température ne doit pas dépasser 36,5°!
Fulcanelli, toujours dans le même passage, rappelle le rapport établi par les sages entre
le feu et le soufre afin d‘obtenir cette notion essentielle que les quatre degrés de l‘un
doivent infailliblement correspondre aux quatre degrés de l‘autre, ce qui est dire
beaucoup en peu de mots. Enfin, citant Philalèthe, il insiste sur le fait que l‘opération
réelle comporte plusieurs phases ou régimes, simples réitérations d‘une seule et même
technique.
Il est possible de se montrer encore plus charitable. Rebis, étant la chose double et, en
latin, res désigant la chose, la substance, voire un phénomène, cela va nous amener à
réfléchir. En latin Res publica, ayant donné République, signifie la Chose publique,
celle qui appartient à tous. C‘est le moment de se souvenir qu‘une prostituée est une
femme publique et qu‘on l‘appelle aussi une péripatéticienne, par analogie avec la
manière d‘enseigner d‘Aristote. En effet, le grec peripatein possède le sens de se
promener. Mais qu‘est-ce qui est publique et se promène? Une fois, encore, ce sont les
mythes grecs qui vont nous mettre sur la voie. Dans le mythe consacré à la vision
Pélasgique de la Création, on lit le nom d‘Eurynomé. Il s‘agit de la première déesse-
lune, dont le nom signifie «celle qui voyage au loin» ou «Grande voyageuse». Son nom
sumérien était Iahu, la colombe d‘en haut, qui donna Iahvé. Nous commençons à
entrevoir la raison d‘être des quatre cornes - ou croissants - qui figurent sur le caisson 9
de Dampierre. Par conséquent n‘est-il pas tentant de lire régimes ou phases comme
étant les quatre phases de la lune?
Je signale, afin d‘être complet, que Fulcanelli, à la fin de son exposé, s‘est montré très
charitable en insistant sur les bévues de Louis Audiat: «Le plaisant, écrit-il, se mêle
aussi à nos textes. Voici une grosse malice en un petit mot: Frustra. Des cornes
flamboyantes! C‘est en vain qu‘on garde sa femme!» Relever l‘interprétation fautive de
M. Audiat, était encore le meilleur moyen pour le Maître d‘associer les cornes du
pauvre mari cocu, à la lune de la femme adultère….de dire sans avoir l‘air de le dire!
74
Richard Khaitzine
_______________
(1) Il y aurait beaucoup à dire concernant les lettres qu‘adressa le Doyen de Saint-
Patrick, un certain Jonathan Swift, à Stella. S‘agissait-il uniquement de courriers
adressés à Esther Johnson en «petit langage» ? Ne pourrait-on y déceler un sens
hautement plus symbolique? Rappelons pour nos amis Portugais, qu‘après la mort de
son oncle Godwin, Swift vécut des maigres subsides que lui adressaient un autre oncle
et un cousin, le propre fils de Godwin, établi au Portugal.
(4) Sur François Villon, lire de Richard Khaitzine: La Langue des Oiseaux (éditions
Dervy). Sur la papauté et les humanistes de la Renaissance, lire «La Joconde, histoires,
énigmes et secret» éditions Le Mercure Dauphinois
(6) Sur ce sujet, et comme il serait trop long de le développer ici, lire les chapitres qui
lui sont consacrés dans La Langue des Oiseaux (Dervy)
75
EL FAUSTO DE GOETHE:
LA REFRACCIÓN DE UN MITO
76
ocultista le concedió la independencia del espíritu y del pensamiento, fortaleciendo su
adhesión al esoterismo y al hermetismo filosófico de Hermes Trimegisto.
En un primer momento este personaje fue partidario del reformismo junto a Lutero, pero
rompe con este círculo a causa de su extremo y apasionado gusto por la antigüedad
pagana y sus prácticas mágicas.
Numerosos pactos diabólicos son puestos de relieve en las Demonologías de Juan Wier
y Juan Bodin. El pacto fáustico se asemeja a los realizados durante la edad pagana, que
abundan en documentos de la antigüedad. Se dice que Satanás acudió al llamado del
pactante bajo la forma de un monje franciscano, mientras que Mefistófeles se presentó
mucho más elegante, a la moda del tiempo, con espada al cinto (5). El pacto con el
Diablo del luciferismo de determinadas sectas y de Heliodoro el Mago, o de Simón el
Mago, procede de los poetas de las sibilas y de los virgilianos exploradores de Dante. Es
muy probable que Goethe se haya servido del Gran Grimorio y del Grimorium Verum
para representar el pacto fáustico. Estos dos libros, con certeza, ya eran muy conocidos
alrededor del año 1500, tiempo de la posible vida del doctor Fausto. En la primera parte
del Gran Grimorio se detalla el rito de evocación del Lucifer Rofocal, quien es
lugarteniente de Satanás. Este texto se dedica a la descripción de las diversas fases de
preparación y de la ceremonia. Inclusive la formulación del Círculo protector está
incluida, así como también cada paso del procedimiento para configurarlo. En cuanto al
Grimorium Verum, éste es más rico en los detalles referentes al contrato con el
demonio. En realidad, el pacto de Fausto era el de Hércules y Teseo bajando a las
regiones infernales, el viaje a los infiernos de Orfeo, mágicamente llevado por el poder
de su lira, de creer Ovidio. Este pacto para la alquimia, siguiendo los datos
astronómicos, rememora el descenso del Sol durante el equinoccio de otoño. Es decir,
experimenta una temporal muerte, ya que baja a las regiones infernales. De igual
manera, simboliza los viajes esotéricos de Baco (6), Hércules, Orfeo, Asklepios,
quienes bajaban al averno para ascender al tercer día, como posteriormente hizo
Jesucristo. Según Widman, el pacto fáustico fue distinto al narrado por Christopher
Marlowe en su drama Tragical history of Doctor Faustus (7). Las pautas a cumplir, a
decir de Widman, son las siguientes:
III. No prestar oído a las discusiones de los clérigos y de las personas de la iglesia, y
hacerles todo el mal posible.
Fausto firmó aquel acuerdo con su sangre, dejando el escrito en su mesa de trabajo para
que Satanás fuera a buscarlo. Exigió, como contrapartida, que Satanás no se apareciera
más bajo la forma de monstruo velludo y cornudo, sino con apariencia humana, como
un monje, con la campanilla en la mano para anunciar su llegada. Así lo hizo seguido de
la compañía de Mefistófeles.
77
Una última precisión acerca del pacto, lo confiere Las leyendas de los Países Bajos o
Niederlandische Sagen de Johann Wilhelm Wold. En este texto se infiere que durante
su estancia en Holanda, Fausto causaba gran impresión por su erudición, y la
fabricación de filtros mágicos, así como también por sus intentos de búsqueda de la
piedra filosofal. Sin embargo, la crónica refiere que sus ensayos no fueron concluyentes
cuando el Diablo vino una noche a ofrecerle sus servicios y entonces acordó con él un
pacto de siete años.
Debido al pacto, Fausto adquirió poder causando asombro sobre el común de los
mortales. Como todo ocultista, tenía bajo su tutela a un ―famulus‖ o confidente para sus
trabajos alquímicos. El nombre de este personaje fue Cristóbal Wagner, joven aprendiz
que deseaba ser sabio en ciencias, pero inclinado más al mal que al bien. Su importancia
radica en que en vida, Fausto redactó muchos escritos no sólo biográficos, sino también
ocultistas y mágicos. Antes de su muerte, le pidió que todos aquellos documentos fueran
destruidos. El famulus, siguiendo literalmente la voluntad de su maestro, destruyó todo
referente escrito, pero oralmente contó muchos de los sucesos que observó de su
maestro Fausto. Entre ellas las evocaciones de espíritus, la invisibilidad o el Secreto de
los secretos, facultad importantísima para toda eminencia en magia, y el descenso a los
infiernos. El descenso o V.I.T.R.I.O.L.O. (9) se llevó a cabo cuando Belcebú aceptó la
propuesta de Fausto para hacer un viaje por el Infierno. En esta aventura, Fausto cae del
carro por el que era conducido debido al choque que sostiene con una serpiente gigante,
posteriormente es regresado a la Tierra por el mismo Belcebú.
En una ocasión, Fausto no poseía dinero suficiente y en tal ocasión decidió recurrir a un
prestamista judío. Le pidió sesenta táleros a cambio de uno de sus miembros. El judío
acepta la propuesta y recibe una de las piernas del mago que habían ambos cortado con
un serrucho. Al verse el judío ante una posible estafa, decide arrojar la pierna a un río.
Fausto se enteró de lo sucedido debido a las voces que oía, y decidió regresar y
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devolverle el dinero prestado. Ante tal situación, el prestamista le confiesa lo sucedido y
Fausto decide cobrarle sesenta táleros más por su pierna.
Cierta vez, en la calle del Castillo, en la ciudad de Erfurt, un joven amigo de Fausto
tenía una bonita casa con rñtulo ―El Áncora‖. Era conocido que el mago muchas veces
tomaba hospedaje en aquel lugar, por lo que un grupo de señores reclamaba su
presencia. En esos momentos, Fausto se encontraba en Praga, por lo que el posadero
intentaba calmar los ánimos de la gente. Inesperadamente se escuchó unos golpes a la
puerta, y al observar quién podría llamar a esas horas de la noche se dieron con la
sorpresa de que era Fausto. Como de costumbre, fue muy bien recibido, y procedió a
entretener al público con algunos de sus sortilegios y hechizos. Uno de ellos consistía en
barrenar los cuatro lados de la mesa y de aquellos agujeros empezó a brotar vino. Entre
ellos, excelentes cosechas de España, Francia e Italia, para satisfacer la demanda de los
presentes. Entonces, entró el hijo del posadero y le dijo que su caballo se estaba
comiendo casi toda la avena. El mago al escucharlo, no fue capaz de contener el esbozo
de una sonrisa y decirle que si así lo quería el caballo, podía comerse todo y nunca
saciar su apetito. En efecto, aquel caballo era Mefistófeles, y al sonido de su relincho
Fausto sabía que debía regresar a Praga, por lo que el caballo alzó vuelo y se alejaron de
aquélla posada.
Al término de los siete años concluyó el pacto, y tuvo que renovarlo por otros siete más.
Como todo pactante, al final de aquellos siete años Fausto se entregaría a Lucifer en
cuerpo y alma. Muchas son las hipótesis acerca de la muerte del mago. Pero todas ellas
coinciden en que a los cincuenta años su muerte fue horrible. Algunos cuentan, como
Gustavo Schwab, que estaba refugiado en el convento de Maulbronn. Otros que murió
en una granja de Frisia, en el país de los wurstos, cerca al burgo de Cappel, al norte de
Dorum. La mayoría de testimonios y crónicas aseguran que Fausto estaba tendido con el
rostro vuelto hacia la espalda, con los sesos desperdigados por toda la habitación, pues
se escucharon forcejeos y ruidos como de una lucha. Muchos testimonios satanistas
explican que una de las formas predilectas de asesinato de Satanás es lanzar el cuerpo
contra la pared, preferentemente de cabeza.
Muerto Fausto, su mujer Helena y su hijo deciden partir hacia un país pagano y
desaparecer del todo, haciendo fallido el intento de Wagner, el famulus, por retenerlos.
Sin embargo, el fantasma del mago se le presentaba a su aprendiz por mucho tiempo
haciéndole importantes revelaciones. Cansado de estas apariciones, decide Wagner
hacer un conjurar que desaparezca para siempre el fantasma del mago.
La leyenda de Fausto fue la base para que Goethe llevara a cabo la creación de su obra
dramática (10) que tiene como título el apellido del mago. Sin embargo, el alemán no es
el único en haber usado esta leyenda, pues aparte de Marlowe también Lenau, Heine,
79
Peer Gynt, Louis Pauwels y Thomas Mann han manifestado su interés por este mítico
personaje. Goethe explica que tomó la leyenda no para plasmarla a manera de crónica o
testimonio. La función es hacer una obra en la cual se mezcle el aspecto real, biográfico
del ocultista con la poesía, es decir, conferirle al texto un grado de esteticismo, de
hacerlo ubérrimo en el campo literario sin dejar de lado el aspecto mítico-mágico.
Goethe reconoce que para esta empresa es necesario seguir el concepto de mímesis
aristotélico. La mímesis consiste en el proceso por el cual el artista plasma en la obra un
modelo similar de la realidad. Es una imitación, ya que es ésta quien recoge, organiza y
crea una imagen de la realidad, que será luego reconocida y reconstruida por el receptor.
Compara la conexión entre ambas realidades, entre la textual y la fáctica y es así como
reconocerá el artificio literario (11). Sin embargo, la mímesis aristotélica supone
también en el artista cierta individualidad. La mímesis no es completamente
reproductiva, desde luego, para que sea una pieza artística, se necesita de la originalidad
creativa del autor. Este aspecto está encerrado en el concepto de poiesis.
Sin embargo, esta metodología reproductiva no explica con exactitud la manera en que
Goethe reconstruye la figura de Fausto dentro de la realidad textual. Obviamente el
autor cumple lo postulado por Aristóteles, produce un modelo imitativo del mago y le
agrega elementos y situaciones, diálogos y secuencias para realzar la historia y otorgarle
el grado de texto literario. Pero resulta todavía insuficiente, para dar una mejor
explicación a este hecho, me sirvo de la teoría de la refracción bajtiniana. En ella nos
señala que:
Es decir, la literatura toma como tema las distintas ideologías que existen en la realidad,
precisamente en el horizonte ideológico. Este horizonte es la conciencia social, formada
por ideologías, ya sean éstas artísticas, políticas, sociales, etc.. La literatura se forja en la
conciencia del hombre, en el interior del artista. Será él quien recoja las ideologías que
le sean pertinentes y útiles y las plasma en el texto literario. Las ideologías son tomadas
en su proceso generativo, en el momento en que se están formando, ya que si están en
estado completivo, el autor nos referiría una crónica o testimonio periodístico. Estas
ideologías se funden con la capacidad productiva y creativa del autor y dan vida al
objeto literario. Una vez completado este proceso, el texto retorna al horizonte
ideológico, ésta es la refracción de la realidad a la que se refiere Bajtín. Pero el retorno
no es un reflejo de la realidad, es decir, el texto no es un espejo, ya que la obra literaria
presenta una versión de la realidad, una visión particular entre las muchas que se
encuentran en la esfera de lo ideológico.
Tomando como ejemplo el texto mismo de Goethe, tenemos por un lado que en el
horizonte social del siglo XVI están generándose diversas ideologías. Una de ellas es la
artística, o sea, un estilo artístico en la escultura, pintura. Pero es en la literatura donde
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se desarrolla el romanticismo como corriente literaria. La leyenda de Fausto está
tomando matices generativos, recuérdese a Marlowe, quien no sólo toma como
documentación las crónicas escritas, sino también las orales. Lo mismo sucede con
Goethe, toma entre las muchas ideologías las necesarias para componer su pieza
dramática. Una vez tomadas, las funde con su particular percepción y concepción
literaria y procede a la creación de una versión distinta de las que circulan como
oficiales dentro del núcleo social. Así Goethe refracta al hombre junto al mito, su vida y
destino dentro de otro mundo, el textual.
En esta versión goethiana del mito fáustico, podemos observar que como artificios
predomina la fusión de los tiempos, exactamente el pasado con el presente. De igual
manera, separa el tiempo del suceso del lugar concreto donde tuvo lugar (13). Por
ejemplo, la Noche de Walpurgis, en la que se refiere el lugar concreto pero no la fecha
exacta. En otros casos Goethe, ante todo busca, y encuentra un movimiento visible del
tiempo histórico, inseparable del ambiente natural y todo el conjunto de objetos creados
por el hombre y relacionados con el ambiente natural, ésta es el cronotopo central de
Fausto.
A lo largo de la leyenda vemos que Fausto no necesita de Mefistófeles para realizar sus
evocaciones a espíritus o a personajes fenecidos. Tampoco para sus hechizos o
sortilegios varios, ni mucho menos para la elaboración de filtros mágicos o sus tareas
alquímicas. Mefistófeles sirve al mago como transporte o como protector. No es extraño
que lo encontremos transformado en caballo, en Pegaso, inclusive adopta la apariencia
de un perro negro, y de acompañarlo adonde vaya. En Fausto, la figura de Mefistófeles
es el nexo entre el deseo y la satisfacción. Por ende, no desarrolla su presencia una mera
herramienta utilitaria, por el contrario, Mefistófeles cumple los diversos deseos
produciéndole placer y regocijo, justificando los beneficios del pacto. El ejemplo central
del deseo es la posesión de Margarita y de su amor. Además de esta función, el demonio
cumple otras, aunque sean accesorias y complementarias de la primera. Entre estas
destacan la adoctrinación del mago. Recordemos los consejos a lo largo del texto, los
filtros que le concede, y la explicación de los fenómenos que ocurren durante la Noche
de Walpurgis. Es en esta escena en donde los dones aleccionadores se aprecian con
mayor claridad. Le explica con detalle los ritos de las brujas, sortilegios diversos, lo
previene de la medusa, etc. Inclusive le detalla el papel que cumple y las restricciones a
las que se ve sujeto al momento de rescatar a Margarita:
Te acompañaré allí, que es todo cuanto puedo hacer, pues bien sabes que ni en el cielo
ni en la tierra soy omnipotente. Turbaré la razón del carcelero, para que te apoderes de
las llaves; pero debo advertirte que sólo una mano humana puede liberarla. Yo
vigilaré; tendré los caballos encantados a punto, y os sacaré de allí. Es todo lo que
puedo hacer.
El momento del pacto ha sido retratado con más fidelidad que la figura de Mefistófeles.
En la obra del poeta alemán se encuentra este diálogo:
Fausto - (...) ¿qué quieres de mí, maligno espíritu: bronce, mármol, pergamino o
papel? También dejo a tu elección el si debo escribirlo con un estilo, un buril o una
pluma.
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Mefistófeles - ¡Cuánta palabrería! ¿Por qué te has de exaltar de este modo? Basta un
pedazo de papel cualquiera con tal que lo escribas con una gota de sangre.
Este pequeño diálogo toma en cuenta el principal elemento del pacto: la sangre. Si bien
es cierto, no se pone de manifiesto ninguna de las exigencias que un pacto satánico
requiere. Sin embargo, posteriormente se entenderá que el propósito del pacto es la
posición del cuerpo y alma del mago. En la leyenda, Mefistófeles se presenta ante
Fausto junto con Satanás, mientras que en el texto no media Satanás entre el doctor y el
demonio. La desaparición de Satanás obedece a la intención de dar a Mefistófeles
mayor participación e independencia a lo largo de la obra, quien únicamente se ve
sujeto a las órdenes del mago porque así lo estipula el acuerdo y además es verosímil
con los detalles dados por los grimorios (14).
Otra de las variaciones es la ausencia de Helena como mujer del doctor, aunque en la
Segunda Parte su presencia sea importantísima, y la del hijo de ambos: Justus Faustus.
La presencia de Margarita, quien es una doncella inocente, bella, perteneciente no a la
alta clase social sino lo contrario. Su imagen se emparienta con la mujer bucólica,
acentuando el matiz de pureza y castidad que desborda su timidez. Es ella el objeto de
deseo por el cual Fausto entrega su alma a Mefistófeles. Toda la Primera parte está
plagada de ejemplos que evidencian so obsesión amorosa, aunque Goethe no manifieste
el aspecto sexual de su personaje, quien es una construcción de tendencia asexual. Más
bien el deseo por Margarita es un deseo placentero y de contemplación. La veneración
es evidente pues Fausto cosifica a su doncella, siéndole principalmente placentero su
posesión que su compenetración vital. La salvación de Margarita obedece a que no
acepta perder el motivo mismo de su perdición, pues necesita justificar tal hecho.
La figura del protagonista es también reconstruida de modo diferente a lo que narran las
crónicas. En ellas Fausto es un ser sumamente poderoso, independiente muchas veces
de Mefistófeles y hasta del mismo Lucifer. Conocedor y erudito de las ciencias ocultas,
es capaz de preparar sus propios filtros, embrujos, encantamientos. No necesita de nadie
para traer de vuelta a espíritus o muertos. Inclusive, éstos mismos le son obedientes, hay
que recordar que mantuvo una relación amorosa con Helena de Troya, con quien se
casó, según la leyenda. En cambio en el relato de Goethe, este mismo personaje se ve
endeble anímicamente, desprotegido, indefenso, no es autosuficiente, por lo tanto
pertenece al común de los mortales. Para integrarse dentro de la representación de
82
mundo reproducida en el texto, Fausto necesita de Mefistófeles, de su poder, sus
consejos, su astucia, ya que es la fuente que satisface cada deseo del protagonista.
Finalmente, dentro de todo el Primer Acto sólo hay una acción que es tomada casi
literalmente, sólo que con pequeñas modificaciones. La escena en el relato mítico se
desarrolla en la ciudad Erfurt, en la casa llamada ―El Áncora‖, ya mencionado en este
trabajo anteriormente. La escena en Fausto se lleva a cabo en una taberna de Auerbach,
en Leipzig. Como es de suponerse, si en l original fue Fausto quien barrenó la mesa y de
ella brotó el vino, en el drama fue Mefistófeles quien lo hizo, y no para deleitar a los
presentes sino para embromarlos. El juego consistía en que los que tomaran el vino no
dejasen caer ni una gota del líquido al suelo. Uno de ellos deja caer un poco al suelo y al
instante se ve ardiendo por toda la posada. Luego Fausto y su compañero desaparecen
del lugar y los embromados descubren que todo fue un hechizo, una ilusión, ya que no
hubo heridos ni quemados.
Steiner, Rudolf: El significado oculto de la sangre. Buenos Aires. Editorial Kier. 1994.
_____________
NOTAS
(2) Es famosa la frase que utilizó para invitar a desarrollar esta empresa a los poetas de
su tiempo: ―¡Volvamos a la naturalidad! ¡A las fuentes de la lengua alemana, del pueblo
alemán!‖ Además crea el vocablo Volkied, que quiere decir ―canciñn popular‖. op. cit.
36
(3) A la muerte de Sabellicus, gran poeta pagano, y en tributo a éste, acoge su nombre.
En cuanto a Junior, Johannes quería separarse del inventor de la imprenta en
Guttenberg. Historia de la magia. pág. 40.
(4) Algunos estudiosos de Paracelso creen ver una mixtificación entre el mítico doctor
Fausto y la praxis vital del mencionado alquimista. Inclusive se cree que la imagen que
da Goethe a su personaje en el Acto II, es decir cuando crea al homúnculo, es la propia
unión entre el mito y la vida de Paracelso. Pierre Mariel: Paracelso o el tormento del
saber. Edaf. 1976.
(5) Será a partir de 1580 en donde un biógrafo anónimo le asigna a Fausto un demonio
llamado Hafistñfeles, aunque debe recordarse que en ―vida‖ el doctor Fausto no dejñ
ninguno de sus tratados sino que fueron quemados por su discípulo Wagner por orden
de su maestro.
(6) Fausto solía compararse con Baco en los Elíseos debido al pacto que realizó. op. cit.
pp. 309.
83
(7) Marlowe es más osado que Goethe al incluir en su tragedia las palabras de
evocación y describe, aunque no detalladamente los detalles del círculo mágico que lo
protegerá del demonio. La oración de invocación está en latín y es la siguiente: ―Sint
mihi Dei Acherontis propitii! Valeat numen triples Jehovæ! Ignis, aeris, aquæ, terra
spiritus, salvete! Orientis princeps Belzebub, infern ardentis monarcha, et Demogorgon,
propitiamus vos, ut appareat et urgat Mephistophilis. Quid tu moraris ? per Jehovam,
Gehennam, et consacratam aquam quam nunca spargo, signumque crucis quod nunc
facio, et par vota nostra, ipse nunc surgat nobis dicatus Mephistophilis‖. Tragedias. pp
148.
(9) Visita Interiora Terra Rectificando Invenies Occultum Lapidem, que en castellano
quiere decir Visitando el interior de la Tierra, y rectificando, encontrarás la piedra
oculta.
(10) Es preciso señalar que este ensayo hermenéutico tan sólo aborda la primera parte
del Fausto goethiano debido a que es esta sección la que va más acorde con la leyenda,
por tal razón me permito delimitar el tema, puesto que ya la segunda parte se funde más
con los aspectos biográficos de Paracelso que con la vida del nigromante.
(12) Bajtín, Mijail. El método formal en los estudios literarios. pp. 60.
Bibliografía
Bajtín, Mijail: El método formal en los estudios literarios. Madrid. Alianza editorial.
1994
84
Marlowe, Christopher: Tragedias. Bogotá. Oveja Negra. 1983.
Ribadeau Dumas, Francoise: Historia de la magia. Barcelona. Plaza & Janes S.A.
Editores. 1973.
Steiner, Rudolf: El significado oculto de la sangre. Buenos Aires. Editorial Kier. 1994.
_________________________
Reinhard Huamán Mori (Lima, 1979). Estudiante de literatura en la Universidad
Nacional Mayor de San Marcos. Dirije la revista de poesía Ginebra Magnolia bajo el
seudónimo de Mag 1. Ha traducido poemas del italiano al castellano de los autores
oplepianos, entre ellos Edoardo Sanguineti, Luca Chiti y acrósticos onomásticos del
OPLEPO. Ha participado en ponencias sobre literatura en la ciudad de La Paz (Bolivia)
y en Lima. Tiene inédito el poemario El huésped que será publicado a finales de este
año bajo el seudónimo de Ramón Tomás.
85
PRECAUCIONES CONTRA
LOS ABUSOS DE LOS ALQUIMISTAS
Comentarios a Padre Benito Jerónimo Feijoo
86
Curiosamente, Feijoo dedica moitas páxinas a defenderse da acusación de tomar boa
parte dos seus materiais e argumentos das Mémoires de Trevoux, diccionario
enciclopédico editado entre 1704 e 1771, e do que o monxe benedictino coñecía as
primeiras ediciñns, que son unha refundiciñn da obra do protestante ―Dictionnaire
Universel de M. Basnage de Bauval et M. Huet, ministre‖, editado no exilio da Haia en
1701, poucos anos despois da revocación do Edicto de Nantes. Esta circunstancia
resulta clarificadora sobre a visión máis racionalista e escéptica con a que o noso autor
aborda o tema da Alquimia.
Este experimento non era inédito, sobre 1680 foi intentado ante o Marqués de
Brandenburgo, avó do Rei de Prusia, pero foi abandonado. Vinte anos mais tarde foi
proposto ao Landgrave de Hesse-Kassel, pai do Rei de Suecia, ainda con menos éxito.
Para conseguir o resultado buscado, as cousas deberían desenvolverse da seguinte
maneira:
Ponse a ferver dez pintas de auga nunha pota de chumbo, e bótase nela cuatro libras de
Vitriolo azul en pó. Feita a disolución, introdúcense vinte onzas de ferro novo, dividido
en pedazos delgados e colocado nunha cesta de vime, tendo suspendida ésta encima do
licor. Despois dun cuarto de hora de ebulición e fermentación retírase a cesta e
deberíanse atopar pedazos de ferro tinguido de vermello polo cobre que se debería
depoñer sobre eles. Sumérxese despois a cesta nunha tina vidriada chea de agua fresca,
e, abanándoa, os pedazos de ferro deponen na agua un pó vermello misturado con
briznas de cobre, que por razón do seu peso baixan ao fondo da tina. Devólvese a cesta
á solución de Vitriolo, e despois de algún tempo os pedazos de ferro cargáronse de novo
con cobre. Fáise por segunda vez a dilixencia de sumerxilos e axitarlos na auga fresca
87
con o que volven a soltar a o novo cobre recibido na segunda infusión. Así vanse
alternando até que a solución de Vi! triolo non logra extraer mais porción de cobre
sobre o ferro e sae como entrou, sen coloración, ficando tan só unha lámina de ferro
liso. Finalmente, quítase a auga clara e déixase secar a fogo lento o cobre precipitado en
pó ao fondo da tina, que despois mézclase, habendo atinxido unha cor parecida a do
café,, con cuatro libbras de Tártaro vermello, detonado con duas libras de salitre. Feita
esta mezcla exactamente, bótase pouco a pouco no crisol, colocado no forno con fogo
suficiente para a fundición. Unha vez perfeccionada, debería resultar nunha masa de
cobre puro, que pesaría catorce onzas e tres adames. E o peso do ferro resultante debería
ser de só tres onzas e tres adames!
Pero o Padre Feijoo non ve as cousas tan claras e diáfanas como pode parecer na receita
que acabamos de describir, e citando ao mesmo Mr Gofredo, que é o autor de donde
saca a fórmula, observa que o ácido vitriólico vai roendo e disolvendo pouco a pouco o
ferro, de modo que éste váise depositando no ―licor‖, ocupando o lugar que antes
ocupaba o cobre, demostrándose en que solución vitriólica adquire unha cor verdosa por
razón da mezcla con o ferro en lugar da cor azul resultante da mezcla con o cobre. Así a
transmutación non existiría, e sólo unha disolución do ferro e precipitación do cobre
contido no Vitriolo.
A continuación, Padre Feijoo aborda a Pedra Filosofal, da cual a idea das inmensas
riquezas que pode ofrecer ―pica vivamente la imaginaciñn de los hombres‖. Así, citando
a Mr. Gofredo, enumera toda a serie de trucos empregados para facer creer que a tal
pedra existe:
―Como su principal intención es por lo ordinario hacer hallar Oro, o Plata en lugar de
las materias minerales que pretenden transmutar, se sirven muchas veces de Crisoles, o
Copelas dobles, en cuyo fondo han puesto cal de Oro, u Plata, y fácilmente vuelven a
cubrir este fondo con una pasta hecha de polvo de Crisol, incorporados con agua
engomada, o con cera, lo cual acomodan de manera, que éste parece el verdadero
fondo del Crisol.» {Lo que resulta es, que derritiéndose al fuego la cera, o la goma con
se que trababa el aparente fondo del Crisol, éste se deshace, y el Oro, o Plata que
estaban cubiertos con él se aparecen después de la operación incorporados en el fondo
verdadero, y la gente que no está advertida del dolo, cree que aquel Oro, o Plata se
formó por transmutación de alguna porción de la materia mineral al que se arrojó en !
el mismo Crisol.‖ (Teatro Crítico Universal, Tomo quinto-1733, Discurso XVII,
Edición de Madrid de 1777)
Ou ben outros procedementos ainda mais inxeniosos, como facer un buraco nunha peza
de carbón, encherlo con pós de ouro ou prata ou solucións dos mesmos metais, e
moléndoos facer pós de proiección para botalos sobre os metais que se pretenden
transmutar, resultando nunha soluciñn de ―mera farándula‖. De modo mais artesanal
ainda, pódese intentar con varas de madeira con a extremidade furada, e no oco
resultante introdúcense limaduras de ouro ou prata, pechándose o buraco con serradura
sutil da mesma madeira, e meneando ou queimando as variñas libéranse os metais
preciosos conseguindo o fin desexado. Outro artificio ben coñecido consistiría en facer
unha especie de mezcla de ouro e prata calcinados con cal de Antimonio, Chumbo e
Mercurio. No chumbo poden ir incluídas pequenas cantidades de ouro e prata.
Branquéase o ouro con mercurio e fanse pasar por estaño ou prata, provocando a ilusión
de que o ouro e prata que resultan de estas operaciones obténse por transmutación.
88
Otro truco mais simple consistía en fabricar cravos metade en ferro, metade en ouro, de
modo que introducido na solución adecuada surxiría tan só a metade dourada,
producindo así a ilusión da transmutación. Un de estos exemplares podía atoparse
alegadamente no Gabinete do Gran Duque de Toscana. Outro exemplo similar era a
transformación de moedas constituídas por varios metais en outras dun único material,
evidentemente o mais costoso.
―Es la Crisopeya en el sentir común de los hombres del juicio, un empeño antiguo, pero
vano de la codicia; un apacible embeleso que empieza sueño, y prosigue manía; un
entretenido modo de reducirse a pobres los que aspiran a opulentos, porque en las
experiencias se consume el oro poseído, y no se logra el esperado. Los más de los
Filósofos tienen este Arte por absolutamente imposible; por el contrario los Alquimistas
le aseguran existente. Pienso que unos, y otros se engañan. Yo, siguiendo el camino
medio, asiento a su posibilidad contra los Filósofos, y niego su existencia contra los
Alquimistas.‖Teatro Crítico Universal, Tomo Tercero –1729, Discurso Octavo, Edición
de Madrid de 1777)
O Xeneral Prikel, que militaba para o Rei de Polonia contra o seu propio Soberano, o
Rei de Suecia, foi feito prisioneiro na Batalla de Cracovia en 1705, e en 1707 é
condenado a morte. Para seguir vivo, alegou que era en posesión da Pedra Filosofal, e
non só ofrecíase en aumentar o Tesoro Real, sino que ademais pasaría o preciado
secreto ao propio Rei de Suecia. Así encargou que se comprasen determinadas drogas
que se preparasen de determinada maneira, despois do que entregou certos pós que
arroxados na mezcla, deron como resultado a obtención dunha materia que, examinada
na Casa da Moeda, resultou ser verdadeiro ouro. Feijoo deduce que todo foi un intento
de corrupción dos guardas, por valor de douscentos escudos, porque en dous anos que
estuvo preso tería tempo para fabricar o ouro non só para enriquecer os guardas, senon
para ―conquistar el Mundo‖. Parece que a proposta encontrou o total desprecio do
Monarc! a sueco.
89
pobreza e despertábase pola mañá mostrando moedas de ouro e prata, feitas con a Arte
da Alquimia.
E de todos, o que pudera merecer eventualmente mais crédito é Nicolas Flamel, veciño
da Rue des Ecrivains en Paris, perto da Capela de Saint Jacques-la-Boucherie, e que,
segundo escribe en 1399, tuvo acceso aos libros dos ―Filñsofos‖, donde descubre que
―Abraham Xudeu, Príncipe, sacerdote, levita, astrñlogo e filñsofo‖ para axudar a sua
nación cautiva a pagar os impostos aos emperadores romanos, e mais cousas que non se
poden explicar, ensináballes a arte da transmutación con palabras comúns e, mellor
ainda, con gráficas representaciñns artísticas de ―belas figuras iluminadas ou pintadas
con grande artificio‖. Durante vinte anos intentou interpretar as fñrmulas representadas,
sen grandes (sen ningún) resultado, polo que fixo unha promesa a Santiago de Galiza
para solicitar a interpretación das mesmas a algún sacerdote xudeo camiño, porque
como para chegar alá hai que cruzar antes España, en calqueira das sinag! ogas de aquel
país. Así, tomou o hábito e o bordón, chegou a Santiago, cumpríu o seu voto con grande
devoción, e a volta en León encontrou un médico xudeo convertido ao cristianismo que
lle axudou a empezar a descifrar o principio. Acompañóuno na volta a Francia, pero
desgraciadamente morreu en Orleáns ―moi cristianamente‖. Esto non impediu a
obtención do que estaba buscando, e o 17 de Xaneiro de 1382 convertíu mercurio en
prata pura, e o 25 de abril, ouro por fin, e moito mellor do ouro corrente. Así con a
fortuna acumulada, e despois dunha vida devota, deixóu doacións perpetuas a catorce
hospitais en París, construido tres capelas, bens e rentas a sete igrexas, mais outros
innumeraveis beneficios a órfaos e demais. Finalmente, resolveu facer pintar no cuarto
arco do cemiterio dos Inocentes (entrando pola Rue de St. Denis, do lado dereito) os
misterios da resurrección futura, e o que mais interesa, para os entendidos en filosofía
natural, todas as principias e necesarias op! eracións do Maxisterio. E deixóunos uha
pormenorizada relación sobre a interpretación que se pode dar a tales hieroglifos.
Até aquí, todo moi ben, pero Feijoo, devólvenos outra vez a unha visión mais terrenal
do asunto, e citando ―Autores franceses de buen juicio‖ nos informa que Flamel, que
chegou a posuír a prodixiosa suma de quinientos mil escudos, conseguida con roubos e
extorsións, sobre todo entre os xudeos do Reino, e para ocultar os seus métodos
delictivos e evitar o merecido castigo, finxiu deber todos aqueles tesouros ao segredo da
Pedra Filosofal.
90
causa. Respondió el Forastero que el motivo de la suspensión era, que habiendo visto
infinitas pinturas de la Pasión, aquella era la única que había hallado enteramente
conforme al original. Replicóle el Religioso, que de dónde, o cómo podía saberlo? A lo
que el Forastero frescamente satisfizo, diciendo que había sido testigo de vista de la
tragedia que representaba aquel lienzo. Juzgó el Religioso que hablaba por ! pura
chanzoneta; pero él prosiguió en asegurar que había alcanzado aquellos tiempos, y que
era uno de los que habían asistido a aquel gran suceso. Continuando el Religioso en
despreciar lo que testificaba el huésped, llegó el caso de explicarle éste el misterio, el
cual no era otro sino que tenía la Piedra Filosofal, con cuyo beneficio había vivido
tantos siglos, y esperaba vivir muchos más; porque de cincuenta a cincuenta años se
rejuvenecía con el uso de ella. El modo era este. Tomaba una porción de aquellos
preciados polvos (que polvos dicen que son, aunque les dan el nombre de Piedra), y al
punto quedaba dormido. Duraba el sueño tres días naturales, al fin de los cuales
despertaba, hallándose reducido a la más florida juventud. Persistiendo siempre el
Dominicano en despreciar como fabulosa toda la narración, se ofreció el Forastero a
comprobar la verdad de ella con la experiencia. Esta se hizo en un perro, el más viejo
de su especie que se pudo hallar. En la celda del Re! ligioso dio el Forastero sus
polvillos al Perro, el cual al momento cayó en un profundo sueño; y advirtiéndole al
Religioso que no le despertase, o inquietase hasta ver en lo que paraba, se despidió,
como que se volvía a su posada. El perro durmió los tres días, los cuales pasados
despertó con todo el vigor, y robustez que había tenido en sus mejores años. Visto este
prodigio por el Dominicano fue a buscar a su Forastero, verosímilmente para solicitar
de él, ya que no el descubrimiento del secreto, por lo menos alguna cantidad de
aquellos polvos, siquiera para remozarse dos, o tres veces. Pero el Forastero no
pareció, ni en la posada, ni en la Ciudad, ni nadie pudo dar razón del rumbo que había
tomado.
Hasta aquí la Relación del Alquimista Matritense. Dios tenga en descanso su Alma, que
según me dijo un sujeto, ya murió: y no pienso que en su testamento haya dejado
grandes legados, ni fundado muchas obras pías. Este cuento es verosímil que se haya
fabricado a imitación de otro que oí de uno que el siglo pasado decía haberse hallado
en las Guerras de los Macabeos (o fingió la existencia de tal hombre algún Alquimista),
y también debía su larguísima edad a la Piedra Filosofal. Lo que en el 8 Tomo, Disc. 5
num. 18 referimos de Federico Gualdo, es también natural fuese invención de algún
Alquimista.‖ Teatro Crítico Universal, Tomo Tercero –1729, Discurso Octavo, Edición
de Madrid de 1777)
91
Cadid, Jazich, Bendegid, etc, e de aquí tomaron todo o que escriberon Lulio, Vilanova,
Paracelso, Trevisano e demáis europeos.
En fin, dice que con os Libros dos Alquimistas debería facerse o que fan estos con os
metais, é decir, calcinalos, disolvelos, amalgamalos, fundilos e precipitalos. E se non se
chega a este rigor, fágase de eles a estimación que fixo León X dun libro que lle dedicou
un alquimista: esperaba o autor unha considerable gratificación de aquel Protector das
Artes e Letras, pero o que o Pontífice fixo redúxose a unha bosa valdeira que lle enviou
decindo que , coñecendo a arte de facer ouro, non precisaba que un recipiente donde
botalo.
O evidente descrédito que a Alquimia tiña xa na primeira metade do século XVIII entre
os autores que se poden calificar de ilustrados e racionalistas, provocado tanto por unha
maior difusión do saber como polo avance das Ciencias, é o primer signo da
sensibilidade contemporánea hacia estos fenómenos, nos que poucos creen a pesar da
curiosidade que suscitan. Se ben a procura do ouro continúa, e con métodos cada vez
mais milagrosos...
E así conclúe Feijoo que todo o que dicen os Alquimistas sobre a Chrysopeya é
―invenciñn y sueðo‖
___________
Bibliografia:
Victor Zabildea, Victoria Paniagua, Elena Fernández de Cerro y Casto del Amo –
Alquimia e Ocultismo, Textos de Hermes, Zózimo, Geber, Bacon, Flamel, B. Valentim,
A. Vilanova, R. Lúlio, Helvécio, Agrippa, Paracelso, Barbault et al. Ediçoes 70, Lisboa
1991.
Flamel, Nicolás. Libros de las Figuras. Bibliothèque des Auteurs Chimiques (1628),
Sumarium Philosoforum, Museum Hermeticum.
92
1704, DICTIONNAIRE UNIVERSEL FRANCOIS & LATIN VULGAIREMENT
APPELE DICTIONNAIRE DE TREVOUX, Dédié à son Altesse Serenissime
Monseigneur Prince Souverain de Dombes, chez E. Ganeau, 3 volumes.
______________________
93
SINAIS DO DEMIURGO CEGO
EM TODOS OS QUE CAEM,
DE SAMUEL BECKETT *
94
aspirações patéticas que constituem a nossa cartesiana duplicidade, enquanto
organismos vivos e entidades pensantes. O resultado é que apenas a tragicomédia será
para Schopenhauer a mimese dramática apropriada para captar a essência vivente do
humano. Beckett subscreve e torna operativa esta visão ao subintitular de tragicomédia
os dois actos de À Espera de Godot (bem como tragicómicos serão os seus personagens,
de Winnie a Krapp, de Hamm a Mrs. Rooney). Aliás, esta mistura explosiva entre
austeridade metafísica e paródia burlesca será sempre causa para que a tragicomédia
deste palco singular atinja inevitavelmente as tentativas dos hermeneutas, que, como é o
caso agora do autor destas linhas, se afadigam em descortinar sentidos implícitos nos
dramas de Beckett, não obstante a já lendária revelia do autor face a tais empresas
especulativas. Ainda recentemente, o outrora pouco beckettiano George Steiner (e digo
isto remetendo o leitor para o primordial cepticismo manifestado por Steiner perante o
teatro de Beckett, em A Morte da Tragédia, 1961), em conferência dada em Lisboa,
(Fundação Luso-Americana, Junho de 2002), juntava um ingrediente de farsa prosaica
aos conhecidos intentos de descodificação hierológica do nome da mais célebre peça de
Beckett. Assim, segundo nos advertia Steiner, seria conveniente atentarmos em fontes
explicativas a que os exegetas não prestam habitualmente atenção, como seja o domínio
do desporto. E dava o exemplo com o título À Espera de Godot. Enquanto os neurónios
dos comentadores se consomem com a imagem de um Deus escondido na palavra
Godot (estou ironicamente a parafraseá-lo), ninguém repara num ignorado pormenor
biográfico. Beckett, dizia o ensaísta multilingue, era aficcionado de umas corridas de
bicicleta a que os franceses chamavam velodrôme. Durante seis dias e seis noites, os
esforçados ciclistas pedalam sem parar num dado circuito, fazendo apenas pequenas
pausas para as necessidades fisiológicas indispensáveis. Consta porém que havia um
destes atletas que chegava invariavelmente no fim, bem depois de todos já terem
terminado aquela maratona no selim. Era então que a voz de um fiscal de linha
anunciava e repetia altissonante: En Attendant Godot... en attendant Godot! Porque o
mais lento dos ciclistas se chamava Godot, disse Steiner, Armand Godot (e mais me ri
eu ainda, por o nome próprio deste Godot ser um homónimo francês do modesto
beckettiano que sou); eis portanto desvendado o segredo, segundo Steiner, que divertiu
a sala. Mas esta foi uma face burlesca do enigma, que não enevoou a minha tendência
para exegeses de metafísico alcance. Tivesse Steiner dado a oportunidade a que a
assembleia pudesse colocar perguntas, e eu já tinha um argumento na manga. De facto,
a explicação desportiva era contundente no seu prosaísmo, mas não me parecia esgotar-
se em si mesma, porque os obstinados ciclistas pedalavam, sublinhe-se, durante seis
dias e seis noites, ou seja, o tempo mítico da criação do mundo, segundo o Génesis;
tempo este que servirá depois para a anedota do alfaiate (que cose umas calças perfeitas
durante longos três meses, exasperando o cliente, mas o artesão não admite
comparações entre o seu labor escrupuloso e a pressa com que Deus terá alinhavado este
mundo em seis escassos dias) contada por Nagg em Fin de Partie/Endgame/A Última
Jogada (1957). Mas mesmo que a origem do nome proviesse desse contexto de dura
competição, Beckett poderia tê-lo escolhido em consciência, motivado pelo tempo
simbólico da sua duração; reforçado, além do mais, pelo facto de Godot ser realmente
um nome peculiar, que contém o diminutivo ou corruptela de um deus menor no seu
interior - esse deus a quem os gnósticos designavam por Samael, que significa «deus
dos cegos», nome enfim tão semelhante com o nome próprio do autor (Pagels, p. 79). A
explicação paródica unia-se assim à hermenêutica hierológica; a comédia imediata
continuou a ser também metafísica - visão, aliás, que o autor de Gramáticas da Criação
decerto não recusaria. E esta é uma virtude típica dos textos beckettianos, dotados de
um elevado potencial significador; mesmo que a sua estratégia dominante se centre na
95
aparente pobreza e despojamento discursivos, eles são capazes de satisfazer, com
plausibilidade, diversos pontos de vista interpretativos e, em analogia ao que o seu
amigo e compatriota Joyce desejara para os romances seus, também Beckett continuará
por certo a ocupar as novas gerações de académicos, mercê dos segredos cifrados na sua
escrita, tão transparente quanto enigmática.
É nesta linha de perseguição de pistas sémicas que proponho aqui um breve relance por
All That Fall/Todos os que Caem (TOQC), de modo a identificar os traços dessa mítica
personagem central do cosmodrama gnóstico, antagonista do espírito humano, presente
nas especulações desses heréticos sublimes dos primeiros séculos da era cristã: o
demiurgo é o deus menor responsável por uma criação desastrada com que a condição
humana está comprometida; Samael, cuja cegueira é imagem de ignorância e
incapacidade, e não de iluminação interior (como acontece com a clarividente cegueira
do adivinho Tirésias). Mas antes de fornecer um esboço desta presença arquetípica nos
insterstícios de sentido do texto, convém apresentar a peça propriamente dita.
Não é esta das peças mais conhecidas do autor, muito por culpa de ele teimar na não
autorização a que o texto conheça outra forma de encenação que não a radiodifusão para
a qual foi concebida. Beckett sempre afirmou que estas figuras só lhe fariam sentido
emergindo da escuridão («coming out from the dark») (Knowlson, p. 565), isto é,
brotando o seu acontecer de um universo que o receptor mentalmente constrói pela
audição das vozes e dos sons, destituídos de imagem concreta. Beckett chegaria ao
cúmulo da «demiurgia» autoral, ao recusar a proposta que lhe foi feita pessoalmente
(entre outros) pela dupla Laurence Olivier e Joan Plowright, em 1969 (Knowlson, p.
565), desejosos de interpretar em palco ou no cinema os protagonistas deste Todos os
que Caem; peça que retrata as misérias da condição humana com um humor patético e
cúmplice, a partir de um casal de idosos, o cego Mr. Rooney e a sua mulher, Maddy,
que o vai esperar à estação ferroviária. A espera é um motivo que se prolonga da peça
de Godot, ainda que ela se preencha agora de um modo diverso e de tal modo objectivo,
que, não obstante a sua destinação radiofónica (e também graças a ela), All That Fall
prescreve um conjunto de elementos sonoplásticos de carácter naturalista (em texto
didascálico), que por vezes, para o leitor/ouvinte mais desarmado, podem parecer não
mais que pitorescos (e estou a pensar nos sons ilustrativos de animais, sobretudo
domésticos e insectos, que se vão nomeando e ouvindo ao longo da peça; porém, esta
insistência na fauna, como se algo houvesse aqui de testemunho de Noé, o salvador
mítico das espécies animais, encontrará outras ressonâncias que adiante pretendo
96
destacar). A espera agora é activa e constitui-se na peregrinação de Mrs. Rooney em
direcção ao caminho de ferro de Boghill - nome da localidade forjada onde decorre a
acção -; ao contrário da espera abstracta e estática de Vladimir e Estragon, sempre
tagarelando junto da sua árvore solitária. Contraste aqui também porque a espera diz
respeito a uma pessoa identificável, o velho marido cego de Maddy, e não, como no
caso de Godot, por um indivíduo do qual nunca se descortina devidamente a identidade.
Mas repare-se, bem antes deste momento textual, nas imagens de uma queda fisiológica
como putrefacção do corpo em vida (esse mesmo corpo incómodo da velhice que
dificilmente entra e sai do automóvel de Mr. Slocum que a transportará no final do
trajecto, e é por isso fonte de comédia), e logo a seguir, uma confissão de falha de afecto
(numa passagem que legitima o facto de Beckett afirmar que a sua escrita se tornava
subitamente sentimental quando escrevia na materna língua inglesa, pelo que a
expressão em francês será fuga a essa voz interior da anima) que Mrs. Rooney enuncia,
falando sozinha na sua via sacra, como se fosse uma versão feminina do Job bíblico.
97
«MRS. ROONEY: (...) Que fiz eu para merecer tudo isto - o quê?!
(Os pés arrastando-se) (...) Como posso continuar? Não posso!
Oh, vou simplesmente parar e deixar-me cair na estrada como um
grande bocado de geleia viscosa escorrendo de um frasco -
derramando-me molemente no solo para nunca mais tornar a
levantar-me. Uma coisa grande, espessa e mole, viscosa como
lodo - coberta de terra, de poeira e de moscas que, para ser
removida tivesse de ser despegada do solo com uma pá. (...) Oh,
eu sei que não passo de uma velha bruxa histérica, arruinada física
e moralmente pelo sofrimento, pela crua erosão da dor e da
vontade sempre insatisfeita e permanentemente incumprida, pelo
peso da própria gentileza e pela frequência regular do templo -
pela obesidade, pelo reumatismo e por toda uma existência sem
filhos. (Pausa. Entrecortadamente) Minnie! Minha pequena
Minnie! (Pausa) O amor - eu não pedia mais nada: um pouco de
amor todos os dias, um pouco de amor a cada dia, duas vezes ao
dia: cinquenta anos de amor-duas-vezes-ao-dia - como se se
tratasse nem sequer de amar mas de ir ao talho comprar carne de
cavalo com a estrénua perseverança de uma dona-de-casa
parisiense ocupando-se das suas compras. Que mulher normal
ocupa os seus sonhos mais profundos com o afecto?» (TOQC, p.
6)
98
superior - mas sempre recordando, sempre recordando (a voz vai-
se-lhe tornando entrecortada) como se... como se toda a estúpida
infelicidade... como se nunca tivesse existido... mas onde é que eu
meti o lenço? (Som do lenço a ser usado) (...)» (TOQC, p. 11)
Uma constante destes encontros de Maddy, não obstante o traço forte de uma paradoxal
e insana felicidade arrancada ao infortúnio (de que Winnie será depois o máximo
expoente), é a ideia inescapável de fim anunciado, de decadência vivente, fisiológica e
anímica, que contagia tudo e todos, de forma insidiosa, sofredora mas também risível,
nesse registo de humor negro habilmente cultivado por Beckett.
99
Abrindo com sons rurais de animais entre o arrastar de pés de Mrs. Rooney, a
significativa presença musical em fundo é de A Morte e a Donzela, de Schubert; e a
primeira frase da peça pode ser lida/ouvida como comiseração auto-referencial da
protagonista, que no ocaso do corpo se retrata: «Pobre mulher! Completamente só
naquela casa em ruínas!» (TOQC, p. 5) São três as pessoas que Mrs. Rooney encontra
antes de chegar à entrada da estação, todas elas homens, e cada um aparece num
diferente meio de transporte, cuja sequência não está isenta de significação alegórica:
primeiro a carroça de Christy, depois a bicicleta de Mr. Tyler, e finalmente o automóvel
de Mr. Slocum - que a levará de boleia - numa espécie de sequência evolutiva dos meios
de transporte, e do domínio humano da técnica, para percorrer um único e mesmo
caminho, em direcção à última estação de um percurso que é a existência.
100
interpretaram nesse filme de culto de John Houston, porém com data de 1960, posterior
a esta peça); e não esqueçamos o quanto Beckett, ele próprio um paciente de
psicoterapias, se mostrou sensível na vida àqueles que designamos por mentalmente
alienados. Não é só riso que se produz na apresentação desta Miss Fitt, em ligação
directa com uma divindade cujo caminho ela encontra dentro de si mesma (no que é
uma marca característica da noção de transcendência interior gnóstica); a experiência
mística sempre foi transgressora das ortodoxias, porque invalida a função dos
intermediários eclesiásticos. De facto, Miss Fitt prescinde de sacerdotes-funcionários;
ela é uma crente em auto-gestão, que descobre os seus momentos de euforia na ascese
solitária dos altares. Schopenhauer não está longe de novo, quando afirmava, apesar do
seu tenaz ateísmo, que duas são as fugas à tirania da vontade cósmica: a representação
estética e a experiência ascética de renúncia subjectiva e consequente evasão de um eu
que carrega consigo o selo do mundo instrumentalizado.
Miss Fitt é uma estrangeira face à vida; não tendo chegado ao grau limite dessa jovem,
tratada sem sucesso por Jung, que Maddy evoca, e que terá morrido pelo facto
paradoxal de nunca ter nascido para a vida. Como sempre em Beckett, o sofrimento de
existir é demasiado sério, e por isso mesmo, há que saber rir dele e com ele, para poder
sobreviver nele, homeopaticamente, com alguma sanidade (o biógrafo Knowlson
considera que a escrita de All That Fall reflecte em catarse criativa, dois anos passados,
o choque e a sensação de impotência vividos pelo autor junto do seu irmão Frank, um
adepto convicto da doutrina cristã, suponho que protestante, por ser a religião de
família, e que morrera de doença incurável, numa prolongada agonia: Knowlson, p.
430).
Aliás estou persuadido de que esta peça poderia ter o nome dantiano de A Humana
Comédia, na qual a Beatriz salvífica (expressão medieval do arquétipo que Goethe
designará por Eterno Feminino) é agora uma incomparável Louquinha ou, se quisermos,
uma emanação da redimida e liberadora Maria Madalena, a guiar o seu Dante (Mr.
101
Rooney chama-se Dan, não sabemos se de Daniel, se de um disfarçado Dante em
abreviatura). Os papéis invertem-se ou condensam-se, conforme os casos, como na
lógica do sonho: em vez de ser Dante que busca Beatriz, é a Beatriz Maddy que vai em
demanda dele, fazendo também as vezes de um feminino Virgílio cicerone deste cego
(numa genderização beckettiana, de céltica cepa, ao dotar de maior passividade as
personagens masculinas, se comparadas com a determinação e desenvoltura das
femininas, de que Winnie, Maddy e Nell são exemplos maiores), enquanto Dan mata a
visão pueril em si e por isso é literalmente cego e literalmente velho (esqueceu já a
idade que tem, como o demiúrgico Senhor do Tempo das aventuras gnósticas da minha
cénica Lianor no País Sem Pilhas: «Fiz cem anos, hoje?... Já tenho cem anos, Maddy?»,
TOQC, p. 18), fisicamente doente e inimigo mortal das crianças que representam em
concreto o potencial da vida e, simbolicamente, o tempo das gerações futuras; segundo
a confissão psicopática que ele faz à mulher:
E neste aspecto sinistro do seu perfil, radica um acesso possível ao título que motivou
esta minha leitura: ele é um sinal de Samael, o demiurgo cego. Na carta já referida a
Aidan Higgins, na qual Beckett traça a gestação prevista de Todos os Que Caem, para
além das referências a personagens e lugares reconhecíveis do seu tempo de meninice,
ele remata no seu estilo de críptica concisão, sobre uma personagem mais que por lá
deambulará: «e o Diabo cambaleando no fosso» («and the Devil tottered in the ditch»,
Knowlson, p. 428). Que diabo é este? perguntamos nós. E onde está ele na peça? Será
uma personificação respeitante às tendências infanticidas de Mr. Rooney? Estará esse
diabo implícito na própria (in)humana natureza de Dan Rooney, que assusta o chefe da
estação, deixando-o como se este tivesse visto um fantasma, quando encara com ele no
comboio à chegada? O mesmo Dan que dirá à mulher ter conversado no comboio com
os seus habituais demónios do ocaso. E o nome Dan, não poderá ser uma deturpação de
damn (danado), numa espécie de demonologia dantesca?
Foi por certo este tipo interrogações que terão levado Knowlson a estranhar a
abundância de signos religiosos (onde até da caixa de velocidades do carro de Mr.
Slocum se diz que está a ser crucificada) numa obra que, aparentemente, recusa
conferir-lhes veracidade, tal é a abordagem paródica (e semi-abjeccionista) a que os
submete.
102
A não ser que esse agnosticismo tenha bem mais que se lhe diga, como é minha
convicção, a partir das informações que os textos nos fornecem. É aqui que entra na
cena analítica a personagem do demiurgo. Como já referi nas páginas de Falar no
Deserto - Estética e Psicologia em Samuel Beckett (Lisboa, Cosmos, 2000), tendo em
conta o prazer de Beckett nos jogos onomásticos, para deles tirar significados múltiplos,
isto por um lado, e por outro, a sua declarada postura de irrisão existencial e religiosa,
habitualmente conotada como peculiar teologia negativa; é bem possível que o autor
tivesse conhecimento da proximidade entre o seu nome próprio e a designação dada
pelos antigos gnósticos (que ele lê, juntamente com Platão, Aretino e Aristóteles, na
biblioteca do Museu Britânico em Londres, em 1932, segundo o testemunha o biógrafo
Knowlson: p. 161) ao deus menor responsável pela criação do cosmos que habitamos:
Samael. É provável que a mundividência expressa nas suas obras tirasse partido dessa
analogia curiosa. Especulações à parte sobre o nome de Samael atribuído ao demiurgo,
o certo é que a inversão e subversão do sentido alegórico dos mitos tradicionais da
ortodoxia, característica da rebeldia exegética da imaginação gnóstica, é um dado
importante dos textos beckettianos, nomeadamente deste sobre o qual se detém a nossa
atenção. Para além das divergências entre as várias sensibilidades do gnosticismo
antigo, desde a visão marcionita mais desesperançada até à promessa viva da
iluminação hermética e alquímica (que inspirarão e encontram linhas várias de sintonia
em autores novecentistas como Pessoa, Artaud, Jung, Pascoaes, Philip K. Dick, António
Patrício, Jorge Luis Borges, Camus, Lawrence Durrell, Guimarães Rosa, Hermann
Hesse, Natália Correia e, entre os fisicamente vivos, o crítico Harold Bloom), a resposta
comum da interrogação gnóstica sobre a origem do mal e do sofrimento é a de conceber
uma dualidade cosmogónica altamente dramática. A questão gnóstica é que o mal e o
sofrimento não podem ser dependentes directos da responsabilidade humana (como a
interpretação eclesial do mito adâmico nos pretende fazer crer, ao culpar os humanos
por uma desobediência primordial); mas devem ser atribuídas ao autor que nos criou.
No entanto, se ele nos fez assim, é porque ele próprio não soube e/ou não foi capaz de
fazer melhor. A cegueira deste deus incompetente é a causa primeira de uma criação
falhada. Mas ele não está sozinho no trono universal. O gnosticismo é um monoteísmo
em fissão nuclear; a sua mitologia possui duas personagens centrais (para além de
outras entre as quais nós, humanos, nos incluimos, por sermos também pequenos
deuses, à nossa dimensão), raiz para um autêntico cosmodrama, dividido entre um deus
menor, arrogante e prepotente (que corresponde ao Javé brutal do Antigo Testamento),
fazedor do mundo físico, e carcereiro das divinas centelhas nas dimensões fenoménicas
do tempo, do espaço, e da morte (aprisionamento este de que se lamenta, por exemplo, a
personagem de Andrei no último acto de Três Irmãs de Tchekov, impedindo o
desenvolvimento genuíno das crianças da sua cidade); e um Deus estrangeiro e ignoto,
com o qual a nossa natureza interior tem afinidade (o Pai de Cristo, que comparece
apenas no Novo Testamento), mas que se encontra exilado deste mesmo universo de
que não é autor. E por isso também nós estamos exilados como ele, sujeitos ao
esquecimento perpétuo da nossa verdadeira origem transcendente.
103
Reino, etc. Isto para dizer que a temática gnóstica, ainda que numa apropriação
exclusivamente secular moderna (apropriação esta que tem em Voltaire o seu primeiro e
importante expoente na Idade Moderna) está presente na geração intelectual que é
contemporânea da aparição de Godot nos palcos franceses. Cioran, o filósofo niilista
romeno, próximo de Beckett, também como este radicado em Paris, e com quem por
vezes almoça (e imaginar as conversas de ambos à mesa seria um belo exercício de
escrita dramática), é um interessado nesta matéria, e publicará mesmo um ensaio mais
tarde, em 1969, intitulado O Mau Demiurgo, onde desabafa que a história da cultura
ocidental teria sido bem diferente se se tivesse dado ouvidos ao heresiarca Marcião, o
mais pessimista de todos os antigos gnósticos (que alguns recusam mesmo em
classificar como gnóstico, dada a sua concepção demasiado deceptiva de salvação). É
ainda da responsabilidade do filósofo Hans Jonas a revitalização reflexiva, na 1ª metade
do séc. XX, em torno da antiga religião gnóstica, que inclui uma influente
reinterpretação desta à luz da mundividência existencialista; Gnosticismo e Niilismo
Moderno é um ensaio seu que surge em inglês em 1952 (anexado mais tarde como
epílogo da sua obra incontornável: The Gnostic Religion, 1958). E é claro que não
podemos esquecer aqui a importância do gnosticismo na psicologia analítica de Jung,
autor que impressionaria Beckett de forma perdurável, desde que com ele se cruzou ao
vivo em Londres, em 1935, (confronto este, entre Beckett e Jung, que foi central para a
minha abordagem em Falar no Deserto). E enfim, o próprio Beckett manifestará a sua
proximidade em relação à metafísica maniqueia, ao comentar que só o combate
perpétuo entre a Luz e as Trevas, que identifica esta corrente gnóstica dos primeiros
séculos da era cristã, poderia tornar compreensível a simbologia subjacente às
alternâncias luminoplásticas previstas para A Última Fita de Krapp, peça (muito
autobiográfica) escrita em 1958, a seguir a Todos os Que Caem. (E nos textos
maniqueus, os olhos, do género feminino no aramaico, são alegoria de receptividade
feminina face à luz fecundante do conhecimento; sendo luz do género masculino).
Porque ao contrário do que afirma Anthony Cronin, em Samuel Beckett: The Last
Modernist, com inaceitável ligeireza, não é minimamente crível que Beckett só
conhecesse do gnosticismo aquilo que consta no verbete da enciclopédia britânica
(Cronin, p. 486). Basta invocar um exemplo. Apaixonado como era pela obra de Dante,
razão pela qual aprendeu a língua italiana para a ler no original (tal como Joyce fizera
em relação à língua de Ibsen), e além do mais francófilo, é praticamente certo que
Beckett conhecia ou tinha notícia do polémico livro de Eugène Aroux: Dante hérétique,
revolutionnaire et socialiste; publicada em França em 1853 e reeditada em 1939, que
desenvolve uma tese de leitura iconoclasta d' A Divina Comédia, ao ver nela um fruto
imenso da heresia albigense (neomaniqueia), disfarçada com as vestes próprias para ser
aceite pela Igreja Católica, e para que o seu hábil autor pudesse escapar ileso à fogueira.
Quanto mais não fosse pelo prazer do sarcasmo, e com o intuito de atingir as ortodoxias
cristãs dominantes (católica e protestante), esta visão subversiva, de um Dante cátaro
escondido na odisseia medieva que escreveu, devia ser do maior interesse para a
imaginação dramática de Beckett. Ora o radicalismo das heresias neomaniqueias
medievais traduz o dualismo, que esquematizei atrás, dos gnósticos antigos, por uma
leitura que identifica o demiurgo com Satanás, fonte do mal e da matéria mortal, e
príncipe deste mundo, enquanto o verdadeiro Deus continua a ser exterior a este
cosmos, de que ele não é autor, mas onde a nossa alma expia penosamente o seu
fascínio pela criação diabólica.
Agora voltemos a Todos os Que Caem, e com estes dados olhemos para vários
pormenores sintomáticos. As inúmeras referências do texto ao demoníaco agrupadas,
104
em especial, em torno de Dan Rooney não são casuais; esta personagem parodia a
criação falhada de um Javé demiúrgico, porque criado à imagem e semelhança dele,
assim a sua condição é a de um velho cego, doente e decrépito, com impulsos
psicopatas. Mas ponhamos a hipótese de que em Dan Rooney nós temos a condensação
(de novo um topos de interpretação onírica, que bem se quadra a uma peça plena de
ambiguidades como esta) entre uma figura humana e a representação simultânea do
demiurgo cego Samael, dos gnósticos, numa troça de heresia hierológica ao Deus uno
dos monoteísmos dominantes (troça esta que Beckett acabara inclusive de personificar
no cego paralítico Hamm de A Última Jogada, no qual inscreveu múltiplas irrisões
teológicas). E em benefício desta minha perspectiva, elucidou-me o tradutor Carlos
Machado Acabado que Dan em inglês é um termo que designa, nada mais nada menos,
do que um indivíduo católico romano; mas também, pasme-se, um guarda de latrina
pública (e com efeito Dan dirá à mulher que se encontrava na casa de banho dos homens
desde que o comboio parou). Um sarcasmo radical no seu mecanismo excremencial de
inversão e implosão sémicas (esse teatro da derrisão, na expressão cunhada por
Emmanuel Jacquart, que tem em Beckett o seu mais acerado gume).
105
Daí que Dan Rooney, personagem da peça que sucede a Godot na sua pública
realização, possa ser visto como um retrato possível desse mesmo Godot, que continha
os sinais alegorizantes para ser identificado como demiurgo cego. Da leitura desta peça
multívoca, destinada apenas pelo seu autor a ser ouvida, materializou-se esta minha
arriscada hipótese hermenêutica. Talvez ficção da imaginação mitocrítica. Mas Godot
pode muito bem ser esse diabo cambaleando no fosso, camuflado no rosto de Dan
Rooney. E assim sendo, a criança que ele empurrou para cair na linha poderá ter sido o
Boy que era seu crístico mensageiro em À Espera de Godot. Beckett é sério e paródico
em simultâneo, como é sabido: auto-cita-se e baralha dados anteriores. O Godot como
demiurgo cego em Mr. Rooney é um Javé filicida que mata o seu simbólico filho
cristológico. E como Javé que é, apenas se pode dar a conhecer através do som, da fala,
e nunca da visão. Por isso, Beckett proibirá a montagem em palco ou ecrã de Todos os
que Caem. Godot, qualquer que seja o seu figurino, jamais se dará a ver, porque ele
próprio não vê nada além de si, no seu autismo déspota. E como toda a palavra é
polissémica, demiurgo significa artífice e obreiro; ou seja, é também a imagem do
artista. Beckett encontra-se então espelhado no Samael de Dan Rooney: a cegueira do
velho dependente nesta sexta-feira de um Junho em que as folhas apodrecem,
amontoadas de todos os anos anteriores, de todos os Verões da vida acumulados. Sinais
nele de um demiurgo mítico e psicoactivante? Vestígios de auto-retrato alegórico do
autor? Talvez tudo isso reunido num Dante cego guiado, na purgatorial poeira dos
caminhos, por uma Beatriz idosa e enfermiça. Um poeta das trevas (essas trevas que o
auto-biográfico Krapp confessa serem a sua melhor e mais forte fonte criativa, em
Krapp's Last Tape/A Última Fita de Krapp) projectado no velho pueril que odeia
crianças, de braço dado em casamento com a sombra da sua inesquecível educadora de
infância.
Referências bibliográficas
BECKETT, Samuel, The Complete Dramatic Works, Londres, Faber & Faber, 1990.
BECKETT, Samuel, Todos os que Caem, trad. de Carlos Machado Acabado, 2000,
dactiloscrito inédito com notas de leitura.
CRONIN, Anthony, Samuel Beckett: The Last Modernist, Londres, Harper Collins,
1996.
PAGELS, Elaine, Os Evangelhos Gnósticos, trad. de Luís Torres Fontes, Porto, Via
Optima, 1999.
_______
* Uma versão inicial deste estudo foi apresentada como conferência em 15 de
Novembro de 2002 no Teatro Garcia de Resende, em Évora, numa sessão promovida
pelo Cendrev (Centro Dramático de Évora).
106
O AGENTE DUPLO
107
Este texto corresponde à resposta a um desafio lançado por uma boa amiga para
participar no colñquio ―Discursos e práticas alquímicas‖. Com ele pretendemos
contribuir para desmistificar a actividade de Intelligence, que subsiste no imaginário
português ainda com alguns fantasmas e incorrectas interpretações que têm tornado os
Serviços de Informações impopulares. A nível académico também tem faltado o debate
e a reflexão sobre estas temáticas (1).
Vivemos hoje num período em que se assiste à construção de uma nova ordem
internacional, caracterizada por um mundo interdependente, praticamente globalizado,
da era da informação; onde os teatros de operações estão mundializados; onde as
soberanias são múltiplas e partilhadas; onde proliferam os riscos e perigos, uns novos,
outros velhos, mas que apenas subiram na hierarquia das actuais preocupações das
unidades políticas com a segurança; onde também cresce gradualmente o poder de
outros actores não estatais. Num mundo com estas características cremos que ―(...)
nenhum país, por mais poderoso que seja, pode conceber uma política externa, de
defesa, económica ou qualquer outra sem dispor das informações que proporcionam o
conhecimento essencial, sobre o qual tais políticas assentam (...)‖ (3). Esta frase de um
―velho Senhor‖ da Intelligence portuguesa, espelha bem a necessidade de as unidades
políticas disporem de serviços especializados que prestem apoio isento e esclarecido aos
diversos órgãos de soberania.
108
O enquadramento dos serviços de Intelligence nas democracias estabilizadas ocidentais,
onde em princípio impera a transparência e o reconhecimento do direito das liberdades e
garantias dos cidadãos, pressupõe que esta actividade seja fiscalizada e controlada
política e judicialmente, tendo em vista, no mínimo, a responsabilização democrática
dos mesmos serviços (7). Contribuem também em larga medida para o controlo dos
serviços, os órgãos de comunicação social. Ao nível da empresa, as regras são
normalmente as dos preços e mercados, da concorrência, sendo o controlo feito pelos
mercados de capitais, pelos media e pela opinião pública, normalmente mal informada e
facilmente instrumentalizada.
O facto de, ao nível das unidades políticas, existir um controlo que contribui para a
transparência das actividades desenvolvidas pelos serviços de Intelligence, não significa
que, em termos funcionais, estes não disponham de formas de actuação próprias, em
regra, através de práticas e técnicas ―pouco ortodoxas‖ para o cidadão comum, com
grande autonomia, ao bom estilo da série televisiva ―Vingadora‖ ou do famoso James
Bond. Contudo, sempre com o garante do controlo sobre as actividades operacionais
―cobertas‖, para que estas não ultrapassem as ―franjas da legalidade‖. As operações
―cobertas‖ ou de espionagem das empresas são dificilmente controladas, e cremos que
dependem apenas da ética empresarial; quando detectadas, devem ser punidas
judicialmente.
Seja qual for o tipo de fontes, o grande problema que se coloca é a gestão dessas
mesmas fontes, pois, a ―avalanche‖ de dados obtidos - a matéria-prima fundamental -
por quaisquer meios e processos HUMINT (Human Intelligence), IMINT (Imagery
Intelligence), COMINT (Communications Intelligence), dificulta o trabalho de selecção
criteriosa e sobretudo atempada, para uma análise consistente desses mesmos dados.
Para não fugirmos ao tema deste pequeno texto, vamos cingir-nos apenas às fontes
cobertas, cuja principal caracterísitica é a dissimulação. Dentro destas fontes podemos
109
considerar o agente duplo, que pode ser entendido como um elemento de um serviço de
intelligence de uma unidade política, organização ou empresa, que, por ―traição‖
também serve uma outra unidade política, organização ou empresa. Estas situações
ocorrem normalmente por falta de observação e controlo, assim permanecendo até uma
eventual detecção. Os fundamentos dessa ―traição‖, entre outros, podem ser ideolñgicos
ou financeiros. Os agentes duplos e a sua dupla personalidade levantam um problema
para aqueles que dirigem serviços ou órgãos de Intelligence: a quem entrega o agente
duplo a sua fidelidade?, a quem serve efectivamente? e até quando?.
Kim Philby, nascido na Índia mas filho de ingleses, converte-se ao comunismo quando
estudante em Cambridge no ano de 1929. Foi recrutado pelo KGB (Komit
Gosudarstvennoy Upravleni) soviético em 1934, em Viena, onde se encontrava de
férias, altura em que recebe instruções para se ―infiltrar‖ no aparelho de Estado
britânico, de preferência na área do Intelligence. Em Londres consegue fazer-se
membro de uma organização de extrema direita, a Anglo-German Fellowship, e em
1936 acompanha a guerra civil espanhola ao lado de Franco, como correspondente do
London Times. Em 1939 o MI6 (Secret Intelligence Service), sem uma verificação
cautelosa sobre o seu passado, recruta-o para o Departamento D (sabotagem e
propaganda). Em 1941 é transferido para analista na área da contra-espionagem em
países estrangeiros, e em 1944 é nomeado para a Secção IX (combate à subversão
soviética e operações de Intelligence), aquilo que ironicamente pode ser considerado
como o homem certo no local certo. Em 1949 é colocado como chefe de um dos postos
mais importantes, Washington D.C., o que lhe permitiu não só aceder a documentação
do MI6 mas também da CIA (Central Intelligence Agency).
110
Depois de quase ter sido desmascarado pelo longo braço oculto da CIA num episódio
complexo no ano de 1951, Philby é chamado de novo para Londres, sendo-lhe vedado o
acesso a material considerado com interesse para o KGB, e sendo mantido sob
vigilância. A partir de 1961 a situação complica-se estreitando-se o ―cerco‖, e em 1963,
de Beirute, onde trabalhava com a cobertura de correspondente de um jornal, Philby
foge para Moscovo, onde o esperava um asilo político doirado, mas, por falta da velha
questão da efectiva confiança, sem aproveitamento no Intelligence local. No ano de
1980, Yuri Andropov convida-o para consultor das operações na Grã-Bretanha. Morre
em 1988, tendo merecido honras militares correspondentes ao seu posto, General.
Um outro agente duplo que ficou famoso foi Oleg Penkovsky, nome de código Chalk,
Yoga, entre outros. Este Coronel do GRU (Glavnoye Razvedyvatelnoye Upravleni)
soviético, numa tarde de Agosto de 1960, sobre uma ponte em Moscovo, aproxima-se
de um casal de turistas norte-americanos e, arriscando a vida, entrega-lhes em mão um
envelope para entregarem na CIA. Com esta atitude Penkovsky colocava-se à
disposição da América para espiar a seu favor.
NOTAS
111
(3) CARDOSO, Pedro, ob. cit., pp. 227 - 228.
(4) A este propósito devemos consultar o magnífico texto Informação, Informações &
Estratégia Económica e Empresarial do Professor Ernâni Rodrigues Lopes, in
Coordenação de MOREIRA, Adriano e GARCIA, Proença, "Informações e Segurança -
Estudos em Homenagem do General Pedro Cardoso". Lisboa, Prefácio, 2003 (no prelo).
(7) Sobre este assnto podemos encontrar detalhes interessantes em CARDOSO, Pedro,
ob.cit. pp.143 - 151, e em ESTEVES, Pedro, Estado e informações: uma perspectiva
sistémica, in Coordenação de MOREIRA, Adriano e GARCIA, Proença "Informações e
Segurança - Estudos em Homenagem do General Pedro Cardoso". Lisboa, Prefácio,
2003 (no prelo).
(9) TZU, Sun, "A Arte da Guerra", Lisboa, Ed. Futura, 1974. p. 235.
(10) Para Sun Tzu, "(…) somente um soberano iluminado e um general valoroso é que
são capazes de empregar as pessoas mais inteligentes como agentes e estarem certos de
alcançar grandes resultados (…)"; Sun Tzu considerava cinco espécies de agentes
secretos: o nativo, o interior, o duplo, o queimável e o vivente. "A Arte da Guerra", p.
120 e seguintes.
(11) GRIFFITH, Samuel, na Introdução de "A Arte da Guerra", de Sun Tzu, ob. cit., p.
21.
(14) Podemos verificar inúmeros exemplos na obra que utilizamos como fonte para este
texto da autoria de VOLKMAN, Ernest, "Spies - The secret agents who changed the
course of History". London, 1994.
112
UMA ESPIRITUALIDADE NIETZSCHEANA?
GLEDSON SOUSA
Nunca um filósofo viveu tão intensamente seu próprio pensar quanto Nietzsche,
realizando a perfeita fusão entre vida e obra, apesar do seu final dramático. Dos dias
113
nascentes da convivência com Wagner até chegar aos dias eufóricos de Turim, onde em
poucos meses produz obras de um poder estupendo (O Anticristo, O Crepúsculo dos
Deuses, Ecce Homo... ), seguidos dos dias de loucura que se prolongam até sua morte,
nunca um filósofo vivera tão intensamente seu próprio pensar, nunca se vivera tão
passionalmente a busca da verdade e da transformação espiritual quanto Nietzsche. O
que procuraremos mostrar aqui é que a atitude nietzscheana preconiza o ambiente
espiritual de nossa época e se coloca na vanguarda do espírito, vivenciando um universo
que de alguma maneira já havia sido vislumbrado anteriormente, mas que em Nietzsche
se livra de sua capa religiosa e cristã para ganhar as asas do além do homem.
Não é possível haurir, de Nietzsche, algo que seja semelhante a um sistema, filosófico
ou espiritual, porque antes de tudo ele foi um filósofo assistemático; reconhecia na
sistematização a incapacidade de garantir para o pensar o poder do devir. Mas ele é o
epicentro de uma crise de transformação subterrânea da consciência européia, sua
experiência mais radical e profunda, de onde podemos , aí sim, tirar um rol de
experiências e atitudes de transformação, além de um pensar que fundamenta essa fusão
entre vida e obra. O que importa em Nietzsche não é somente o que se enuncia, o que se
articula verbalmente desde sua toca do pensar, mas o que se expressa além do pensar
consciente, aquilo que é uma transfiguração das forças do inconsciente e que trazem à
tona o pensar trágico, dionisíaco.
II
É preciso ter cuidado com as palavras; tanto quanto o pensar, tanto quanto os hábitos e
todas as predisposições adquiridas pelo homem ao longo de milênios, as palavras vêm
revestidas de sentido adquirido, de modo que é preciso despi-las de suas roupagens , é
preciso deixá-las nuas para que possamos assim aproximar-nos de sua verdade. Isso
para lembrar que palavras como espiritualidade, alma e psique, que frequentemente
aparecerão no texto, estão nuas, ou seja, é preciso despi-las de sua conotação cristã para
serem devidamente compreendidas.
114
É necessário que, em retrospecto, passemos por alto o que era a espiritualidade
emergente na Europa de Nietzsche: em primeiro lugar, havia um ateísmo crescente,
teoricamente derivado de fontes variadas - seja dos sensualistas do sec. XVIII como
Condilac e Helvetius, ou seja derivado da chamada esquerda hegeliana, que congregava
nomes tão díspares quanto Feuerbach, Bruno Bauer, Marx e Max Stirner, sem falar no
ateísmo Schopenhauriano. Em todos eles o ateísmo aparece como uma convicção
teórica, uma constatação filsófica: deus fora um episódio voraz da história da
consciência humana, mas a tocha do iluminismo viera tirar o homem do seu sono
sombrio. A ratio seria a guia segura, a qual tiraria o homem dos becos escuros da
história. Stirner, numa crítica antropológica radical, dizia que era preciso o homem se
livrar de seus fantasmas culturais e conhecer a si mesmo para conseguir se realizar.
Nesse aspecto, de que o homem é que faz a si mesmo e que a única coisa concreta
existente é o seu si mesmo, o único e ele mesmo, ainda que seja uma idéia derivada da
alienação hegeliana, a idéia de Stirner é próxima da crítica de valores Nietzscheana.
O ateísmo do século XIX era uma expressão tardia das idéias renascentistas de devolver
ao homem seu papel no universo, mas se desenvolvera num universo teórico-
psicológico marcado pelo cientismo positivista que por sua vez vinha inserido de idéias
cristãs. Os conceitos de igualdade da sociedade burguesa bem como o conceito de
evolução darwiniana são imbuídos de valores cristãos: a democracia é uma expressão
direta da igualdade cristã, e a idéia darwiniana de uma evolução que é progresso,
aquisição para os melhores fins é, como toda idéia de progresso, cristã até a medula, é
Santo Agostinho na Cidade de Deus, é Joaquim de Fiori com as idades do pai, do filho e
do espírito santo. Ao mesmo tempo que bandeira do iluminismo, o fundo raso do
ateísmo do século XIX serviu para diminuir o homem, reduzí-lo a coisa, transformando-
o no objeto perfeito para o uso do capitalismo em expansão.
115
Sei que Nietzsche não leu o Zanoni, pelo menos não há conhecimento disto, mas tanto o
Zaratustra quanto Zanoni são próximos em temas que eram caros a Nietzsche: a solidão
do homem superior, o desprezo pelas massas, a coragem das grandes tarefas espirituais,
o risco, a tragédia, e expressam aquilo que deveria ser uma convicção íntima de uma
elite da inteligentsia europeia, a de que o homem é responsável pelo próprio destino
frente a si mesmo e frente a eternidade, e que fazer o próprio destino é arriscar na
solidão.
A atitude de Nietzsche, seu esforço para se livrar dos valores cristãos, niilistas, é única:
é como se a história o tivesse como ponto de passagem, e ele fosse a vanguarda,
voluntária ou não, de um mundo por nascer: Nietzsche antecede a psicanálise com sua
visão dos processos inconscientes e de que a moral esconde valores que em si são
imorais; a diferença maior estaria na forma terapêutica adotada por Nietzsche, que na
realidade não é terapêutica mas maiêutica, pois visa a uma transformação total de si
mesmo.
III
Não posso, e não devo, ceder à tentação de transformar Nietzsche num digerível
almanaque acadêmico para ser lido nas salas institucionais, nos debates onde homens de
olhar arrogante dizem aquilo que Nietzsche provavelmente não pensara. Essa é a pior
imagem que se poderia fazer de um filósofo que não foi um erudito, um scholar, mas
sim, antes de tudo, alguém que sofreu com a busca da verdade, de sua verdade, bem
como sofreu com a luta por uma transformação espiritual.
Não para assimilar a experiência nietzscheana à minha própria, não para me tornar um
discípulo, Nietzsche-Zaratustra já havia alertado sobre a inutilidade da crença ( e o que
116
é um discípulo senão alguém que crê ? ) quando disse ― Não tínheis procurado vñs
mesmos; então encontrasteis a mim. Assim acontece com todos os crentes, por isso a fé
tem um valor tão insignificante.‖ Não, a leitura de Nietzsche servira para apontar a
busca de um caminho próprio, um caminho para a formação e libertação de si mesmo,
porque Nietzsche aparecera como o filósofo de uma experiência de vida e não de uma
teoria de vida.
Não há como permanecer indiferente a leitura de livros como o Also Sprach Zaratustra
ou La Gaya Cienza, justamente porque Nietzsche, a par de elaborações teóricas que são
surpreendentes, fala uma linguagem simbólica, e o símbolo é o elemento atemporal e
universal da linguagem, de modo que ele fala ao nível de uma experiência que é
possível a todos, no plano psíquico. Mircea Eliade dizia que ―As imagens, os símbolos e
os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e
preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidade do ser‖, o que em
Nietzsche vai se revelar, principalmente no Zaratustra, numa corrente simbólica que
vem varrer a água estagnada dos velhos valores cristãos para mostrar a vida
transvalorizada, poderíamos até dizer sublimada, sem corrermos o risco de parecermos
excessivamente freudianos na interpretação da simbologia de Nietzsche.
117
Um episódio do Zaratustra ilustra bem a dinâmica simbólica de todo o livro, é o
episódio do pastor que Zaratustra encontra com uma serpente negra pendendo-lhe da
boca; Zaratustra tenta, a todo custo, tirar-lhe a serpente da boca, mas não o consegue,
então grita Morde, morde, arranca-lhe a cabeça, morde!, ao que o pastor obedece-lhe e
arranca a cabeça da serpente e ele se transforma. Os componentes simbólicos do
episódio são evidentes: a serpente é um símbolo por demais antigo para que fosse
deturpado pelos exegetas de Nietzsche - ora representa as forças instintivas, as energias
da natureza em livre manifestação - como a serpente Ófion no mito Pelásgico ou a
serpente que rodeia o universo, nos mitos egípcios, ou as forças do inconscientes ( e não
é o inconsciente a expressão das energias da natureza em nós ? ); no caso do pastor, a
transformação ocorrida após cortar a cabeça da serpente talvez represente a
transformação psicológica ocorrida após a assimilação do inconsciente, a incorporação
das forças instintivas-naturais do homem. Na Índia, a serpente kundalini é a
representação das forças criadoras na natureza e no homem, sendo que no homem é a
própria energia sexual. O grande objetivo das correntes tântricas que advogavam uma
yoga sexual (a prática do maithuna)- era a correta transformação da libido em energia
criadora consciente - na linguagem simbólica, a ascensão da kundalini pelo canal
medular, na sua mítica viagem de chacra em chacra; quem o conseguisse fazer se
transformaria numa espécie de super-homem.
118
teia da subjetividade, há sempre o risco de se literalizar um conteúdo psíquico, o risco
de se tomar o arquétipo pela sua forma. A lucidez consiste justamente em aceitar a
ambiguidade própria da vida, a impossibilidade de realizações absolutas ou de
proposições absolutas. Se a Paranóia é um delírio de interpretação, como dizia Karl
Jaspers, o delírio Nietzscheano começa quando ele confunde o particular com o geral,
quando, às forças que irrompem nele, não sabe reconhecer aí sua esfera subjetiva, mas
acredita-se continente e conteúdo, acredita-se o próprio Dionísio e não seu servidor...
Se não dá para separar num processo aquilo que é início e fim, pois tudo é continuidade,
não dá para separar a lucidez da loucura nietzscheana, ou melhor, não dá para separar a
lucidez da loucura: loucura e lucidez são só pontos de vista de uma sociedade que
precisa classificar os processos psíquicos para melhor controlá-los. A loucura
nietzscheana é resultado de sua lucidez. Um ditado grego dizia : os amados dos deuses
morrem cedo. A loucura de Nietzsche foi a sua morte.
IV
Essa é a experiência da ruptura nietzscheana: ele sabe que é preciso varrer com o
pântano da idéia de deus, mas sabe também quão dolorosa é arrancar de si o solo sobre
o qual se erguia os fundamentos não só de uma cultura, mas de toda uma história, de
toda uma trajetória não somente do homem, mas da psique humana no caminho de seu
crescimento espiritual.
119
É quase simbólico que Nietzsche tenha morrido em 19OO: 19OO é o ano da publicação
de A Interpretação dos Sonhos, de Freud, bem como é o início de um século que, passo
a passo, verá caírem por terra todas as certezas, todas as falsas esperanças de uma
civilização que construíra seu edifício moral sobre terreno pantanoso, ao ponto de a
civilização se ver ameaçada pelos poderes de seus próprios instrumentos, sem que o
homem conseguisse determinar o curso de sua história. As promessas milenaristas, os
discursos de salvação das religiões e dos partidos políticos revelaram sua impotência
histórica, e hoje estamos frente a uma cultura e civilização que só sobreviverá se cada
indivíduo agir como uma mônada responsável não só pelo seu destino, mas também
pelo destino do planeta. Nietzsche tinha razão: não recebemos a vida de graça. É nossa
contribuição para com a vida não só ajudar a mantê-la, mas defendê-la, transformá-la,
para que não haja um além a nossa espera, mas que nossa terra seja ela a terra do além
120
órgãos de conhecimento também estão viciados em procedimentos lógicos e percepções
epistemológicas que falseiam o conhecimento, ou melhor, falseiam o conhecido, que no
fundo permanece desconhecido.
A mesma crítica pode ser feita quanto ao conceito de corpo, ou do que é orgânico ou
inorgânico: numa percepção orientada para o fluxo, para o devir, o próprio corpo é
também inorgânico, já que nos níveis mínimo em que se estrutura o que há são
elementos. O mais correto é dizer, como o fez Nietzsche num dos fragmentos póstumos:
não há o inorgânico, e o próprio corpo só aparece como unidade, como mônada, no
confronto com os outros corpos, quando precisa afirmar sua individualidade.
Quando no Ecce Homo Nietzsche diz que é dinamite pura, de alguma maneira tinha
razão: as possibilidades abertas por sua crítica de valores levam muito além de uma
mera crítica, mas exigem, na realidade, uma nova fundamentação do conhecido em
perspectivas pouco imaginadas.
Há um aforismo de La Gaya Cienza, o de No. 124 do livro III que expressa a sensação
de Nietzsche ao explorar o novo universo vislumbrado; ele se chama No Horizonte do
Infinito, e diz ―Deixamos a terra firme e embarcamos ! Queimamos a ponte - mais
ainda, cortamos todo laço com a terra que ficou para trás! Agora, tenha cautela, pequeno
barco! Junto a você está o oceano, é verdade que ele nem sempre ruge, e às vezes se
estende como seda e ouro, como devaneio de bondade. Mas virão momentos em que
você perceberá que ele é infinito e que não há coisa mais terrível que a infinitude. Oh,
pobre pássaro que se sentiu livre e agora se bate nas paredes dessa gaiola! Ai de você, se
for acometido de saudade da terra, como se lá tivesse havido mais liberdade - e já não
existe mais ―terra‖.
VI
Foi a confluência das dimensões simbólica e racional numa práxis ativa que me fez ver
em Nietzsche um precursor daquilo que agora chamo de espiritualidade nietzscheana, e
que se traduz em: a- superação do conceito de deus; b-compreensão das possibilidades
do homem como criador de valores; c-superação da moral pelo uso de um código
próprio de leis; d-disciplina e persistência para buscar criar um outro mundo. Como
falei, essa não foi uma exclusividade nietzscheana : a gnose antiga já alertara sobre a
inocuidade da moral sobre os indivíduos e salientara o fato de que o caminho espiritual
era feito de exceções e não de regras, mas a gnose tinha como eixo a idéia de deus,
121
ainda que o conceito de deus entre os gnósticos já diferisse radicalmente do conceito
cristão ortodoxo. Como dizia Antonio Machado: Caminante / no hay camino / el
camino se hace / al caminar.
Um universo sem deus, sem leis e sem acaso, porque leis e acasos são
antropomorfismos; a possibilidade de uma existência singular no além do homem,
lembrando que o além do homem é a junção da imanência e do devir, porque o homem
é uma ponte para algo maior, mas esse algo maior já está nele, in potentia; a luta por
viver com dignidade, dando à vida a nossa paga, nosso presente por tudo que ela nos dá,
a gratidão para com a vida, a alegria de existir, de viver : tudo isso Nietzsche viveu, não
como quem exibe pomposa e academicamente suas teorias, mas do fundo trágico de sua
existência, de sua desesperada tentativa de vivenciar a verdade e de sepultar o velho e
falso mundo que ele conhecera. Ouvira a flauta de Dionisio e se tornara seu porta-voz:
Dionisio queria mostrar a eterna alegria de existir, mesmo quando o discurso de um
deus fala pela voz da loucura.
Referências Bibliográficas
NIETZSCHE, Friedrich
122
O Nascimento da Tragédia ( ou Helenismo e Pessimismo ) - Tradução, notas e Posfácio
de Jacó Guinsburg; São Paulo: Comp.das Letras, 2000
A Gaia Ciência – Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza; São Paulo:
Comp. das Letras, 2001
Ecce Homo – Tradução de Pietro Nasseti; São Paulo: Ed. Martin Claret,2000
MULLER-LAUTER, Wolfgang
SAFRANSKI, Rudiger
ELIADE, Mircea
STIRNER, Max
123
CALASSO, Roberto
Os 49 degraus –Tradução de Nilson Moulin, São Paulo: Ed. Comp. das Letras,1997
HILMAN, James
124
Nesta era pós 11 de Setembro (o de 2001, é claro), tomou-se efectiva consciência de
como o fenómeno religioso não estava, ao modo positivista de ver a evolução humana,
posto de parte.
Habituámo-nos a ver a religião como um aspecto cada vez mais periférico do nosso
Mundo Ocidental, um campo retrógrado, ultrapassado; no fundo, o tal ópio do povo que
proclamava Marx há mais de um século – mais tarde ou mais cedo, o sentido das
sociedades era o esquecimento das religiões, a sua subalternização face a novos desafios
da humanidade. E, de repente, aí estava ela.
A afirmação de Malraux, ao dizer que o século XXI seria religioso ou não seria,
ganhava foro de plena realidade.
Que a tão proclamada morte de deus redundou em ressurreição parece não haver dúvida.
Desde os anos sessenta que se assiste a um contínuo e sustentado crescimento de grupos
religiosos até então quase inexistentes.
Mas este retorno do sagrado a que é que corresponde, no quadro dos saberes? É aqui
que nos centramos. Por exemplo, nos tais anos sessenta a que me refiro, viu-se o(s)
meio(s) católico(s) portugueses a afirmarem a necessidade de um local, de uma
instituição, que desenvolvesse o trabalho e a reflexão no campo teológico. Esta busca
terminaria com a criação da Universidade Católica e com a instituição de um curso de
licenciatura que não se destinava apenas ao sacerdócio.
Ora, este quadro parece-nos claro: vive-se a religião, vivem-se as práticas religiosas,
mas essa vivenciação em nada implica uma busca de conhecimento (nem conhecimento
teológico, confessional, nem conhecimento científico).
***
Como podemos compreender melhor este quadro? Vejamos mais alguns tópicos de
reflexão.
125
Em Portugal está consignada a liberdade de ensino no que concerne ao espaço
confessional na escola. De facto, e trata-se de um princípio constitucional, todas as
confissões se podem candidatar a um espaço escolarizado, no ensino secundário, para
uma disciplina de «Religião e Moral».
Há cerca de dez anos que o mundo evangélico efectivou esse direito, a par com a
tradicional prática de católicos.
Porquê esse desejo tão forte de manter a religião dentro do espaço escolar? Será que só
se consegue manter esse espaço através da força dos decretos, dos diplomas legais?
Ora, as confissões em causa parecem não perceber que desta forma apenas estão a
perpetuar uma cada vez mais fraca relação com a sociedade civil. A religião não é aceite
por todos, é imposta. Torna-se guetto.
Mas mais. E onde estão todas as sensibilidades que não encontram na mediatização a
sua forma de expansão? Enfim, quer umas quer outras, estão confinadas a si mesmas,
numa não dinâmica de conhecimento que resulta no quadro antes apontado.
***
Recentemente, já em Setembro deste ano de 2003, teve lugar uma importante reunião
ecuménica. Mais uma vez, a 17ª, a Comunidade de Sto. Egídio, reuniu um grupo
significativo de religiosos ou simples interessados pelo fenómeno religioso, para debater
temas próximos do ecumenismo e da sã convivência religiosa. Desta vez o local
escolhido foi Aachen / Aix-la-Chapelle, na Alemanha, e o tema central é «Entre guerra
e paz, religião e cultura encontram-se».
Ainda há pouco tempo, o palco foi Portugal, com especial acolhimento da Fundação
Mário Soares – figura pública que também participou no encontro que agora decorreu.
Desde 1968, no clima do pós Concílio Vaticano II, que esta comunidade realiza estes
encontros. Têm todo o sentido num mundo que actualmente cada vez vê mais a religião
como uma parcela significativa da guerra e dos fundamentalismos, e cada vez menos
como uma parte e peça fundamental da paz e das culturas humanas.
126
Na antiga capital de Carlos Magno, lá se encontram líderes religiosos de muitas
confissões, centenas deles, entre os quais alguns iraquianos que equacionam
profundamente o destino do seu pais.
Mas a situação destes encontros leva-nos ao equacionar de um problama que nos parece
central: qual o peso destes encontros na verdadeira vida das confissões e dos seus
crentes. O que destes tão bem intencionados encontros passa para os efectivos líderes
religiosos, para a sua relação com os crentes de outras religiões, para a relação entre
credos que, de facto, deveria ser pacífica e garante da paz entre as nações?
Já 17 vezes estes encontros se deram. Já muita gente morreu em nome de Deus desde
então.
Mas mesmo a escolha de Aix é complicada pelo peso simbólico que tem. Sede do poder
da Carlos Magno (na passagem do século VII para o IX), aí se centrou
administrativamente a nascente luta entre o Islão e a Cristandade (O Islão chega à
Península Ibérica em 711). Nessa época, ecumenismo era palavra que nenhum
significado teria. A guerra pela expansão da fé era um dado adquirido por ambas as
partes.
Mas é também na corte de Carlos Magno que terá sido forjada a famosa Doação de
Constantino que legitimava o domínio temporal do papado sobre parte dos territórios da
Península Itálica, abrindo assim caminho para um centro da Igreja cada vez mais
desejoso de poder temporal, como qualquer efectivo reino.
Carlos Magno, pela sua chancelaria, dava ao papado a legalidade territorial através de
um documento falso feito cinco séculos depois da sua data oficial; o papado dava ao
monarca franco o Império, o título imperial que receberia em coroação na noite de Natal
do ano 800.
É complicada a reflexão sobre a cultura da paz numa cidade como esta. Será que estas
buscas de ecumenismo, à imagem da cidade onde decorreram, estão votadas ao
fracasso?
De facto, somos permitidos a tal equação. Que fazer, que significado prático
encontramos em acontecimentos como este? Pegando no ponto anterior, parece que as
religiões saem do tal guetto nestes momentos ... mas, e os restantes momentos dos
restantes anos que vão correndo? Os anos dos crentes, das pessoas?
***
Inevitavelmente, a religião está aí, está actuante, clama por espaço e tempo, mas o lugar
que lhe entregamos é, simplesmente, o dos fundamentalismos.
127
Levar, confinar a religião ao puramente religioso é esquecer que durante milhares de
anos tudo teve no elemento religioso o mais forte englobante, o mais forte elemento de
criação de identidades.
Mas é o próprio horizonte das religiões que cimenta esse seu local. São muito poucas as
iniciativas efectivamente de abertura religiosa e de apresentação pública de princípios.
Efectivamente, nada há de errado nessas duas posturas. O que não está certo é que,
civicamente, a religião, enquanto fenómeno humano tranversal, está cada vez mais
afastada das pessoas, da cidadania, cada vez mais de costas voltadas para o mundo.
Os fundamentalismos são isso: uma não integração, pela não aceitação, do mundo.
128
É comum o poeta ser indagado acerca de seu método de criação. Há uma curiosidade
natural em saber como nos desentranhamos de nós mesmos. Contudo, paira uma certa
confusão em torno do termo (método), pois não se trata precisamente de um caminho
prefixado. Há casos em que se nota certa prefiguração, mas em muitos outros o demônio
da escrita faz perder a respiração de quem por acaso creia em um domínio completo da
criação. Poetas que tratam do assunto como método acabam justificando a
previsibilidade da própria obra.
Imaginemos uma entidade qualquer que tenha que partir do vazio, da ausência completa
de forma e entendimento sobre o que seja, para ir compondo um cenário que a legitime.
Não toma emprestada a ninguém a ordem que busca fundar. Quanto mais se concentra
em si mesma mais se sente a manejar formas. Chega então ao fim do poema, e a leitura
o enche de terror e angústia: todos aqueles objetos e afazeres da linguagem estavam já
em tantos outros poemas que li. Como posso ser igual a mim mesmo sem os considerar?
O poeta está lá fora e está aqui dentro. Há algo que o habilita a percorrer essas trilhas
invisíveis. Trata-se da dor? O outro que tenho em mim e que por vezes está em outra
parte somente conecta-se com aquele que me desconhece sendo parte de mim quando a
dor se instala entre nós? Como considerar a alteridade em um cenário onde cada um de
nós perdeu a confiança em si mesmo? Que outro nós somos em cada um que nos
habita? Uma equívoca consciência da dor acaso nos leva a perceber o mundo segundo
zonas de interesse? Quando sou eu em mim ou no outro que me deseja?
129
Em que se distingue o outro que tem em si o poeta do que poderia ser encontrado nos
becos existenciais de qualquer um de nós? Acaso a idéia de Lautréamont de que a
poesia deve ser feita por todos restringia-se tão-somente a um domínio de sobreposição
ou acumulação de versos e imagens? Lautréamont falava do extravio de nossos vícios
razoáveis, da dissolução do ego no caudal sangüíneo de um rio dos seres. O verbo terá
que ser mágico e não comportará acomodação a efeito algum. O poeta deve estar
presente em todas as cerimônias que lhe definem uma poética. Misturar-se a seus versos
com a mesma intensidade com que supõe a vida abuse de si.
Quantos somos em nós no cotidiano e por que razão nós buscaríamos a poesia? Ao
mesmo tempo, quantos de nós um poeta consegue ser e por qual razão sua poesia não
nos toca? Sem cair no equívoco recorrente dos estatutos ideológicos associados à poesia
e sua decorrente entrada na ilusão do grande cartel de espetáculos, o poeta em nosso
tempo segue devedor de uma cumplicidade que não seja manipulação. Todas as
ideologias abusaram da propaganda. No entanto, a única propaganda recriminável é a do
outro. Para nós que estamos a conviver com o que não parece ir além de um espetáculo,
fica a pergunta: quem é o outro do poeta em nós?
O fato é que a poesia foi para bem longe de nós. A obsessão pelo domínio de uma
linguagem é a mesma em qualquer instância. O domínio é inequivocamente o território
da grandiloqüência. Uma espécie inconciliável de isolamento. Há uma observação do
Georges Hugnet que deve ser aqui considerada: ―O poema é uma restituição à imensa
voz que ressoa para todos. Não é um jogo de sociedade mais ou menos elegante, mas
sim o jogo trágico do que não tem nome e um crime contínuo do medíocre orgulho da
personalidade‖. Poucas vezes encontrei uma definição tão precisa. Os poetas acabaram
por associar-se ao culto da personalidade. Reclamam hoje que não têm voz em uma
sociedade marcada essencialmente pelo mercado das almas, mas esquecem que a
dissociação entre ser e linguagem levada a termo por muitos deles é a única raiz desse
abismo do qual se ressentem.
Que ouro nós perseguimos? Com que espécie de transmudação nós sonhamos hoje? Ao
que parece, ao menos por efeito, o mundo ainda se move. Diante de nós sempre passa
uma vaca voando, os corpos desfeitos do amor, a lousa fria dos dias. Mas o que ainda
pretendemos de nós? Discutir qualquer paralelo ou percepção alquímica, para mim,
deve ser prato servido com um molho existencial. Esqueçamos os vícios terminológicos.
Quantos estamos aqui, percebendo a necessidade de sair de si para dar chance ao outro?
Sair dos vícios de linguagem, sobretudo. Até que ponto a poesia foi possuída por uma
idéia de ausência do humano, tornando a linguagem um ser à parte?
130
O DUPLO EM SITUAÇÃO DE PARÓDIA
CÓMICO DE LINGUAGEM E DE SITUAÇÃO
BIBLIOGRAFIA
ANEXO
131
emitidas pela International Society of Nomenclature e reeditadas regularmente em
várias línguas (Código Internacional de Nomenclatura/Botânica/Zoológica/). Significa
isto que não há um texto naturalista, sim uma vasta polifonia, que em regra começa em
1758, com a décima edição do Systema Naturae, de Lineu, e se mantém em processo.
Esta polifonia com princípio e sem fim surge às vezes como paródia, citação
intencionalmente satírica, independente do escolasticismo do "Fulano disse que
Beltrano disse que Sicrano disse que...", passível de surtir efeito cómico involuntário.
Os meus estudos sobre o naturalismo levaram a concluir que tem havido intervenção da
ciência na distribuição geográfica da fauna actual, através da introdução de híbridos na
Natureza, como o declarou de resto Bedriaga, considerado na época o maior especialista
em Lacertidae, em carta aberta ao Congresso de Zoologia de Moscovo, referindo-se a
répteis e anfíbios. Os híbridos não são espécies, sim rebis, coisa dupla: eles acumulam
caracteres de duas espécies, e por isso é obrigatório designá-los por duplo nome, que
explicite o cruzamento entre os progenitores. Supondo: "Bufo calamita x Bufo viridis",
em que o "x" é sinal de cruzamento, na boa tradição do esoterismo, que faz dele o
símbolo de Kundalini, o fogo sexual. Esta obrigatoriedade raramente é respeitada,
mesmo na literatura sobre as Baleares (incluídas as Pitiusas e alargado o nosso estudo às
ilhas próximas de Valência), em que, desde as primeiras explorações herpetofaunísticas
até hoje, o grupo das lagartixas tem vindo a ser classificado como círculo de raças. Não
só é explícita a categoria de "rassenkreis" (Eisentraut, 1949; Colom, 1978; Cirer, 1987,
etc.), como há notícia de experiências de hibridação: "Antiguamente, se introdujeron en
el islote de Es Daus, donde no existían con anterioridad lagartijas, 8 machos
procedentes de Escull Vermell y 20 hembras de Ibiza, cuyos descendientes serían
híbridos: P. p. maluquerorum x P. p. pityusensis" (Barbadillo Escriva, 1987). Este é o
único exemplo que conhecemos de esclarecimento do carácter híbrido de uma
população, no laboratório natural das Baleares. As experiências foram levadas a cabo
por Böhme & Eisentraut num ilhéu desabitado de lagartixas, Dado Grande, perto de
Ibiza. Cinco anos depois, os naturalistas verificaram que a hibridação aumentava a
variabilidade e as dimensões do corpo dos animais. Qual a intenção da experiência? -
perguntamos nós. Se estas lagartixas são híbridas, as outras também, e a biologia tem
meios para o confirmar (já que parece não ter para o negar).
132
que por ello se prejuzgue la afiliacion á ninguna de las escuelas que aún discuten sobre
la orígen de las especies (Boscá, 1880).
Como se vê, os responsáveis declaram os seus actos num outro discurso duplo, o da
língua das aves, linguagem cifrada dos alquimistas e poetas. É o caso ainda de Boscá,
ao usar um signo esotérico - o R étique -, como carácter discriminante de espécie. Este R
é subversivo, significa herético, como assinala Richard Khaizine. Boscá distingue pelo
canto duas formas de sapo, uma delas a variedade, e por conseguinte o híbrido balear -
Bufo viridis var. balearica - afirmando que esta emite o som "crreu", com "la r doble"
(RR duplo, híbrido), à semelhança "de algunas personas, y especialmente los
extrangeros al hablar el espanhol", ao passo que a outra canta "creu", sem o carácter/a
letra dobrado/a dos híbridos (Boscá, 1880). Em suma, a variedade baleárica é
estrangeira, híbrida, por conseguinte herética e subversiva a sua presença nas ilhas.
A herpetologia das Baleares tem no TriploV uma base de dados, com uma ficha para
cada espécie, que remete para a respectiva bibliografia (Vários, 2002-2003).
"Herpetologia" é termo diferente de "herpetofauna" - a primeira é a ciência que estuda
os répteis e os anfíbios, a segunda o conjunto de animais desses grupos que vivem em
certa região. O meu estudo não pressupõe o conhecimento da herpetofauna, sim de
textos acerca dos sapos, rãs, salamandras, lagartos, serpentes, etc., que possam ou não
existir nas principais ilhas espanholas do Mediterrâneo - Maiorca, Minorca e Ibiza - e
ilhéus adjacentes. E sim, claro, há registo antigo da presença de salamandras, ainda não
redescobertas, tal como havia menção de sapos parteiros, que já apareceram, várias
espécies vivas e fósseis, mas por sinal só listámos uma no círculo de Baleaphryne, ou
Phryné das Baleares. Frineia foi uma célebre cortesã da Antiguidade, cuja extraordinária
133
beleza inspirou muitos escultores e pintores. Não se chamava assim, mudou o nome
para Sapo. Os sapos obstétricos também têm mudado bastante de nome, de Alytes
passaram a Frineia, para voltarem a ser Alytes. Estes animais são interessantíssimos, até
na distribuição geográfica. Pertencem à família Discoglossidae que, tanto quanto
sabemos, só tem representantes em duas partes do mundo afastadíssimas: Europa e
Ásia, salvo erro Filipinas, antiga colónia espanhola. Devem ter vindo nas caravelas,
porque podemos provar que já no século XVIII viviam na Europa. Os Discoglossus do
Norte de África devem ser sobreviventes de Alcácer-Quibir.
Várias explorações se fizeram na transição do séc. XIX para o séc. XX. Além de
revelarem que o número de taxa era bem menor do que hoje, os zoólogos fazem questão
de garantir que, apesar das pesquisas minuciosas, nada mais fora encontrado. Isto dá a
medida da intenção do levantamento herpetofaunístico: era preciso controlar o que
apareceria a seguir. Além de Boscá, outros naturalistas deixam a informação da pobreza
colada à de que não há mais nada além do que se cataloga. É o que faz Colom em
134
1952, acrescentando que nessa data as Baleares estavam virgens de estudos de
povoamento, apenas Boscá e Álvarez Lopez as tinham explorado, o que não é correcto
de maneira nenhuma. Mais naturalistas exploraram as ilhas, e muito em especial os
ingleses. Lord Lilford coligiu os exemplares-tipo de Lacerta lilfordi, tal como o nome
da espécie declara, e esta é a mãe de todas as suas variedades, ou um dos progenitores
do círculo de raças. Em 1952 já se tinham catalogado muitas subespécies de
(Lacerta=)Podarcis lilfordii e de P. pityusensis, que Colom identifica como "círculo de
raças de Lacerta muralis", a lagartixa vulgar europeia. É conhecida a população mínima
nas Baleares e Pitiusas, com seis indivíduos de Podarcis lilfordi kuligae no "islote del
Fonoll" (Mayol, 1984), apesar de Salvador o desmentir, quando cita Eisentraut,
atribuindo a este o comentário de que a concentração de Podarcis lilfordi kuligae é por
vezes prodigiosa em certos locais da ilha Conejera, vendo-se saltar e correr em todas as
direcções à frente das pessoas. A maior densidade, ainda segundo Mayol, é a do ilhéu
Escull Vermell, com 50 indivíduos de Podarcis lilfordi maluquerorum em 350 metros
quadrados, apresentados como raça - os indivíduos e não os metros quadrados, embora
dos naturalistas tudo seja de esperar.
A contrariar a tendência dos naturalistas mais antigos para darem parte de que só há isto
nas Baleares, e de que as lagartixas dos ilhéus não existem nas ilhas grandes e ainda
menos no continente, portanto o que nas ilhas existe hoje apareceu depois de eles lá
terem andado em altas investigações, autores recentes atribuem milhões de anos ao
indigenato das lagartixas nos ilhéus, quando sabem a idade dos ilhéus (Cirer, 1987). É
assim que os Podarcis da Isla Negra de Llevant começaram a especiar há 6 milhões de
anos, mas já o início da especiação dos da I. Characa não é indicado, porque Cirer não
sabia a idade das pedras. Espero que ninguém pergunte que relação existe entre a
antiguidade do habitat e a data à qual dada espécie começa a transmutar-se em outra,
isso seria matéria para outro ensaio, acerca da escravização do pensamento ao
paradigma (evolucionista) e à presença de outro factor que desvia para a geologia o
discurso relativo aos animais, a inferência. O resultado a que chega Cirer é por isso
bastante elucidativo: En los tres análisis realizados el porcentaje de clasificación
correcta es notablemente bajo para el conjunto de las poblaciones. Si se consideran los
porcentajes obtenidos en cada población en particular, la mayoría de ellas obtienen
valores comprendidos entre el 75%-25%, que resultam inferiores al límite propuesto
para considerarlas buenas especies. Se as espécies são más é porque as populações
deviam ser designadas por duplo nome intercalado pelo esotérico X, o que exigiria
estudo de acordo com o paradigma do cultural e não do natural.
A mesma situação ocorre em Cabo Verde, quanto ao Macroscincus coctei, por exemplo,
cuja idade como espécie vai de um extremo ao outro: uns autores consideram-na uma
relíquia, portanto um fóssil vivo, sobrevivente aos dinossauros, outros uma espécie
recém-formada a partir de uma Mabuya modificada.
135
umas pedras no meio do mar terem nome, apesar de poderem não estar todas
cartografadas, merece um sorriso de admiração. Ora a máscara não é só nomenclatural.
Apesar de mínimas e desabitadas, apesar de nem todas estarem registadas nas cartas,
algumas pedras são duplas, e então uma é designada por "Grande", outra por "Petit",
uma por "de Fora" e outra subentende-se que por "de Dentro", ou, sabendo-se que são
dois os rochedos, o autor trata-os como se fossem só um, causando ao exegeta uma crise
de nervos. Os naturalistas redigem os topónimos em línguas diversas, castelhano,
catalão, dialecto das Baleares, etc., o que faz delas agentes mais duplos ainda que os
secretos.
Caso digno da maior atenção é o da ilha Carbonera, cujo nome lembra logos os
carbonários, e já falámos dele justamente em "Carbonários" (Guedes & Peiriço).
Estabeleçamos uma anáfora com Mellado & Salvador, acerca da lagartixa carbonária,
Podarcis lilfordi carbonerae:
136
locating exactly this islet does not permit any inferences regarding the relative age of
this subespecies wich might be presently extinct‖.
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ANEXO
REPTILIA
3. Lacerta dugesii
HERPETOFAUNA TERRESTRE DAS BALEARES
REPTILIA
TESTUDINES
1. Emys orbicularis
2. Mauremys caspica leprosa
3. Testudo graeca
4. Testudo hermanni
5. Testudo fósseis
6. Cheirogaster nov. sp.- fósseis
SAURIA
138
7. Tarentola mauritanica mauritanica
8. Hemidactylus turcicus
9. Hemidactylus turcicus spinalis
10. Saurodactylus mauritanicus mauritanicus
11. Psammodromus algirus
12. Trogonophis wiegmanni
13. Podarcis sicula
14. Lacerta siccula ssp. Cetti
15. Lacerta perspicillata
16. Lacerta vivipara
17. Lacerta lepida lepida
18. Lacerta stirpium
19. Lacerta viridis Laur.
20. Acanthodactylus erythrurus erythrurus
21. Lacerta muralis
22. Podarcis bocagei bocagei
23. Lacerta bocagei atrata
24. Podarcis lilfordi lilfordi
25. Podarcis lilfordi addayae
26. Podarcis lilfordi balearica
27. Lacerta lilfordi brauni
28. Podarcis lilfordi carbonerae
29. Podarcis lilfordi codrellensis
30. Podarcis lilfordi colomi
31. Podarcis lilfordi conejerae
32. Podarcis lilfordi espongicola
33. Podarcis lilfordi estelicola
34. Podarcis lilfordi fahrae
35. Podarcis lilfordi fenni
36. Podarcis lilfordi gigliolii
37. Podarcis lilfordi hartmanni
38. Podarcis lilfordi hospitalis
39. Lacerta lilfordi isletasi
40. Podarcis lilfordi jordansi
41. Podarcis lilfordi kuligae
42. Podarcis lilfordi nigerrima
43. Podarcis lilfordi planae
44. Podarcis lilfordi pobrae
45. Podarcis lilfordi porrosicola
46. Podarcis lilfordi rodriquezi
47. Podarcis lilfordi sargantanae
48. Podarcis lilfordi toronis
49. Podarcis lilfordi xapaticola
50. Podarcis pityusensis pityusensis
51. Podarcis pityusensis affinis
52. Podarcis pityusensis ahorcadosi
53. Podarcis pityusensis algae
54. Podarcis pityusensis calaesaladae
55. Podarcis pityusensis caldesiana
56. Podarcis pityusensis canensis
139
57. Podarcis pityusensis canaretensis
58. Podarcis pityusensis caragolensis
59. Podarcis pityusensis carlkochi
60. Podarcis pityusensis characae
61. Lacerta pityusensis ssp. Columbretensis
62. Podarcis pityusensis espalmadoris
63. Lacerta pityusensis espardellensis
64. Podarcis pityusensis formenterae
65. Podarcis pityusensis frailensis
66. Podarcis pityusensis gastabiensis
67. Podarcis pityusensis gorrae
68. Podarcis pityusensis grossae
69. Podarcis pityusensis grueni
70. Podarcis pityusensis hedwigkamerae
71. Podarcis pityusensis hortae
72. Podarcis pityusensis kameriana
73. Podarcis pityusensis maluquerorum
74. Podarcis pityusensis martinezi
75. Podarcis pityusensis miguelensis
76. Podarcis pityusensis muradae
77. Podarcis pityusensis negrae
78. Podarcis pityusensis puercosensis
79. Lacerta pityusensis ssp purroigensis
80. Podarcis pityusensis ratae
81. Podarcis pityusensis redonae
82. Lacerta pityusensis sabinae
83. Podarcis pityusensis schreitmuelleri
84. Lacerta pityusensis subformenterae
85. Podarcis pityusensis tagomagensis
86. Podarcis pityusensis torretensis
87. Podarcis pityusensis vedrae
88. Podarcis pityusensis zenonis
89. Blanus cinereus - fósseis
OPHIDIA
90. Coronella austriaca austriaca
91. Natrix maura
92. Macroprotodon cucullatus
93. Malpolon monspessulanus monspessulanus
94. Elaphe scalaris
95. Callopeltis flavescens
96. Natrix natrix astreptophora
AMPHIBIA
97. Hyla meridionalis
98. Bufo viridis
99. Bufo calamita
100. Bufo viridis balearicus
101. Bufo bufo spinosus
102. Alytes obstetricans
103. Alytes (Baleaphryne) muletensis
104. Alytes cisternasii
140
105. Rana perezi
106. Triturus boscai
107. Triton taeniatus
108. Salamandra salamandra
141
―(...) Decidi reconstruir as ruínas do antigo castelo de Vorderhohenschangau, perto das
cataratas de Pollat, no verdadeiro estilo dos velhos castelos dos cavaleiros germânicos,
e devo confessar-te que me entusiasma a ideia de habitá-lo. (...)‖
Correspondência de Luís II, rei da Baviera a Wagner, datada de 1868 (1)
Embora esta unidade indissociável, concebida pela vontade de D. Fernando II (2), Rei-
consorte de Portugal, apresente afinidades indiscutíveis quanto à génese revivalista que
presidiu à intervenção no Castelo de Vorderhohenschangau, distingue-se pelo
vanguardismo e eclectismo inerentes à personalidade do seu criador. É lamentável,
contudo, constatar que o desconhecimento da originalidade desta criação e da
invulgaridade cultural do seu real e sereníssimo promotor, as impede de se destacarem
internacionalmente e ocuparem o lugar proeminente que lhe é devido a nível da História
de Arte.
Antecedentes
Não se pense, contudo, que esta obra realizada em Portugal permanece isolada no
contexto europeu. Entre os vários antecedentes que remontam ao séc. XVIII encontra-se
o castelo de Löwenburg, construído no parque do palácio de Wilhelmshöhe a instâncias
do landgrave Guilherme IX de Hessen-Kassel em 1791, o qual teria a pretensão de fazer
ressurgir ―a época das superstições, da magia, dos espíritos e dos cavaleiros andantes‖
(3). Embora concebido como ―ruína artística‖, à semelhança de muitas das construções
grandiosas que subsistiam do passado, dispunha no interior de todos os confortos de
uma casa de campo aristocrática, tal como o Real Palácio da Pena.
Pode pensar-se que dezenas de construções revivalistas, muitas delas projectadas por
Shinkel, serviam de mero refúgio para sonhos românticos onde estas personagens
esqueceriam a recente revolução social e industrial, apurando, contudo, os requintes que
esta última assegurava. Na verdade, na base desta atitude estaria a exaltação cultural,
nomeadamente germânica, através da identificação destas estruturas como símbolos de
liberdade nacional e testemunhos de um passado glorioso, referências indeléveis em
épocas de crise que acabariam por ser usadas como modelos. Contudo, a maior parte
destes castelos construídos ou reconstruídos no século XIX inseria-se em parques ou
jardins de feição paisagista, cujos antecedentes imediatos remontam às paisagens
bucólicas, nostálgicas, arcadianas e até mesmo épicas do Século das Luzes. Estes
modelos idealizados foram amplamente divulgados em publicações, gravuras e
desenhos, que então circulavam e admirados e estudados no decurso de viagens
efectuadas por vários príncipes germânicos a Inglaterra, sendo reproduzidos com as
devidas adaptações.
142
Diversas publicações temáticas, nomeadamente as promovidas por Goethe, Sckell,
Gustav Meyer, e pelo príncipe Hermann Pückler-Muskau permitiram a divulgação de
novos de conceitos, soluções estéticas e técnicas a nível da concepção da paisagem.
Contudo, mesmo nas obras mais tardias persistiam algumas considerações paisagistas
que, embora justificadas em pleno séc. XVIII, se revelaram como pouco coerentes
enquanto fundamento e contexto para algumas das composições acasteladas.
Nos antecedentes mais evidentes, talvez mais do que nos romances historicistas e
medievalistas de finais de setecentos (7), inclui-se a descoberta de paisagens até então
ignoradas pelos modelos barrocos, adversos à itinerância e à apreciação dos valores
143
naturais, e que, de forma pontual, se descobrem em composições como Hafod e
Hawkstone.
Pouco depois, este novo interesse é reafirmado por outro escritor. Haller, médico
naturalista e artista, com o seu grande poema de 49 estrofes, Die Alpen, de 1733,
introduziu a montanha na literatura, a qual mais tarde se revelaria nas restantes artes.
Documenta-se o interesse gradual pelas paisagens diversificadas da montanha, onde
tanto coexistiam cenários pitorescos como outros desoladores de caos de blocos, em
tempos refúgios de eremitas e pequenas comunidades de religiosos. Interesse este, que
viria a suportar as futuras exposições de Schlegel quanto a uma suposta relação de
sublimidade entre o gótico e a Natureza.
Edmund Burk, em 1757, publica A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas
of Sublime and Beautiful, obra na qual suporta este novo estado de espírito e realça a
importância das várias sensações, as quais poderiam ir do prazer ao medo ou espanto e
que algumas décadas depois foram transpostas para a paisagem.
Desta forma e com muitos outros contributos elegeram-se as bases das estéticas que
vieram a integrar o movimento romântico, nas quais as distinções efectuadas entre o
belo, o elevado e o sublime suportaram também teorias a nível da concepção de parques
e jardins. Na concepção da paisagem, tal como na pintura, na poesia e nas restantes artes
de oitocentos, procurou-se a consagração dos sentidos e o explorar ou sublimar das
emoções.
144
A Pena
―Quando se pretende criar um jardim, deve dirigir-se a atenção mais à Natureza que à
Arte, na qual não se deve utilizar mais do que o necessário para reforçar a Natureza‖
Dézallier d‘Argenville, 1709
Se a Serra de Sintra encantou D. Fernando pela sua localização, pelas suas panorâmicas
sublimes tão ao gosto da época e pelas suas peculiaridades climáticas, não menos o
encantou pela carga de mistério e lendas que desde tempos remotos a individualizavam
nas imediações de Lisboa. Monumentos megalíticos e topónimos estranhos
denunciavam a consagração desta zona a cultos celestes e terrenos (PEREIRA,
CARNEIRO, 1999:11). Geógrafos da antiguidade a consideraram como Finisterra ou
como Mons Sacer, o Monte Santo de Varrão e Columella ou ainda como o Monte da
Lua de Ptolomeu. Acresciam-se a toda a esta carga mítica as referências ao passado
islâmico que tanto atraía o futuro rei consorte e a um lendário passado medieval pelas
histórias dos castelos de Colir e de Cintra narrado por João de Barros.
Este parque, que atingiu cerca de 150 Ha, foi sendo adquirido e construído de forma
gradual em torno do antigo convento jeronimita de Nossa Senhora da Pena,
aproveitando as reminiscências da antiga cerca conventual. De 1839 à década de 60
desenvolveram-se os principais trabalhos de arruamentos, aquedutos e plantações
constantes da planta do Real Parque da Pena, de 1856. As construções e plantações
arrastaram-se até à morte do rei em 1885, tendo a manutenção sido assegurada até ao
séc. XX sob a gestão de Elisa Hensler, que veio a ser Condessa d‘Edla e segunda
mulher de D. Fernando.
A composição, que se arrasta por várias décadas e se adapta aos critérios estéticos de
cada momento, compreende a plantação de uma vasta floresta que envolve não só a
encosta do palácio bem como todas as linhas de cumeada, cruzando propriedades ou
tapadas que viriam a manter ou receber designações de Encosta da Cruz Alta, Mata
Dourada, Jardim Inglês e Encosta do Chá entre outras.
145
―Toda a magia surge do bosque, da natureza, do inconsciente. Se atinge captando as
forças geradoras que palpitam no interior de todas as coisas: A erva, a fonte, o barulho
das folhas, o canto dos pássaros... Se se atreverem a perder-vos no bosque como
ascetas, para encontrar entre as frondas e as rugosidades do inconsciente, para
reconhecer vosso rostro na superfície de um tanque escuro...alcançarieis, amigos, todos
os poderes da magia.‖
Garcia Font, 1998 (Trad. Aut.)
146
São poucas as edificações levantadas na vasta área do parque, limitando-se apenas a um
mirante como o Templo das Colunas, ou a uma fonte como a dos Passarinhos, além dos
anexos exigidos por questões funcionais dos quais se destaca a Abegoaria. Nestas
construções é óbvia a feição manuelina, orientalizante, arabizante ou mourisca, que
dominou a construção do palácio, tal como o recurso à arquitectura de vanguarda
europeia.
Assim, a Pena pode surpreender... tanto pela negativa, se admitida como adaptação
falhada de um modelo paisagista, desprovida de profundidade e coerência, como pela
positiva, se compreendida como composição inovadora cuja interpretação se baseia em
princípios complexos e herméticos, talvez afins aos que vieram a ser exibidos sem
pudor na Quinta da Regaleira.
Ao longo dos vales principais, marcados pelas seculares reminiscências religiosas e pela
construção mais recente do chalet designado como ―da Condessa‖, criaram-se lagos,
plantaram-se jardins, colecções de camélias, feteiras, além de viveiros devidamente
enquadrados por estufas e estufins, indispensáveis à replicação de plantas e manutenção
de colecções. Ao sabor da época, foram plantados fetos arbóreos, rododendros,
castanheiros, castanheiros da Índia, faias, aceres, nogueiras, cedros, freixos, carvalhos,
pinheiros, tuias, criptomérias, sequóias, e muitas outras espécies também oriundas dos
"Quatro Cantos do Mundo‖.
PEDRO DE ANDRADE
Formalmente, este texto não é apenas um texto, mas apresenta-se como dois textos
articulados entre si. Assim sendo, deve-se nomear, com mais propriedade, bi-texto ou
147
texto-espelho. O bi-texto desvela-se enquanto entidade híbrida, fronteiriça, dissolvida e
dissolvente, na qual nenhum texto predomina, domina ou se entende como uma única
domus (casa) da linguagem. Igualmente, consiste numa matéria bífida, na medida em
que mobiliza duas línguas, os idiomas estilísticos próprios de cada um desses dois
textos. Para além disso, assume-se como texto duofónico que reflecte o mundo, antes de
reflectir sobre o mundo. Desta feita, não se confunde com o hipertexto, já que o texto-
espelho origina-se amiúde nas dicotomias, para melhor as desconstruir, e não tanto em
tricotomias (redes de três pólos) ou pluricotomias (teias de múltiplas polaridades).
Quando muito, só pode ser entendido como caso particular do hipertexto, se o
considerarmos estruturado numa rede especular, aquela figura de rede hipertextual
formada apenas por dois nós, onde as referências se desrealizam na reflexão ad
perpetuam desses dois pólos.
Daí que, substantivamente, não nos interesse discorrer sobre um só tema, mas acerca de
dois assuntos intimamente relacionados. O próprio título deste ensaio é duplo,
encerrando dois títulos (e não sub-títulos) aos quais subjazem duas temáticas. De um
lado desta rede especular do bi-texto, falaremos do processo que nomeámos Efeito
Pessoa. De outro lado do texto-espelho, aplicaremos a figura epistemológica da
reflexividade sociológica, ao procurar meditar, neste ciber-congresso, sobre a
possibilidade de uma Sociologia dos Congressos Digitais, em diálogo com a reflexão
inicial sobre o Efeito Pessoa.
1. O Efeito Pessoa.
Para discutir a pluralidade do poeta e exegeta Fernando Pessoa, nada melhor do que o
ambiente interdimensional da Internet. Nesta rede que tricota todos os tecidos sócio-
simbólicos, e mais intensamente do que no mundo não enredado, o efeito é sempre
qualquer coisa que surge depois de um evento ou trabalho feito cada vez mais no
ciberespaço (e-feito). Para além disso, a cada feito e-feito corresponde um certo e-feitio.
Nesta óptica, o feitio que subjaz a Pessoa é, de raiz, reticular. Dito de outro modo: ainda
antes de Julia Kristeva ter falado da intertextualidade, Fernando Pessoa emergiu como
um dos mais notáveis percursores (aqueles que conduzem os per-cursos) da Internet, e
não apenas do hipertexto. Senão vejamos: a sua personalidade múltipla e intertextual
encontra hoje uma confirmação insuspeitada no Efeito Pessoa, particularmente visível
no ciberespaço. O Efeito Pessoa é a capacidade, para um infonauta, de construir e viver
diversas personalidades digitais através da ciber-escrita, ou escrita efectuada no
ciberespaço. Cada uma destas e-personalidades prismáticas encerra uma linguagem
plural e uma intertextualidade nativa. Um tal processo de desdobramento pessoano da
pessoa autora, ou heteronímia digital, executa-se a partir da possibilidade, concreta e
prática, de assinar várias moradas electrónicas de e-mail, ou de manter diversas web
pages, ou ainda de participar em múltiplos chats e foruns de discussão, e de edificar um
estilo próprio em cada um desses locais da rede (cf. a fig. 1).
148
2. O ciber-congresso.
Antes de mais, neste colóquio virtual sobre alquimias, passa-se, entre outros fenómenos,
alguma alquimia das e-personalidades dos conferencistas digitais. Este processo é
fundado, desde logo, na própria cumplicidade dos participantes, fundida em torno de um
projecto comum que decorre na rede. Uma tal promiscuidade, em certas condições,
pode evoluir para uma verdadeira identificação entre esses infonautas, ou mesmo
enveredar na direcção de uma identidade (efémera) comum.
Nesta perspectiva, o congresso reúne uma micro-comunidade global que concorre, entre
outros alvos, para a produção da e-democracia cultural, a partir de diferentes
estratégias concretas de participação, como por exemplo as seguintes.
149
Em segundo lugar, no trajecto de um congresso deste tipo, somos capazes de saber,
simultaneamente, o que acontece na generalidade dos grupos de trabalho do encontro.
Esta ubiquidade do ciber-congressista fá-lo entender melhor o colóquio como uma
totalidade. Ou, pelo contrário, permite-lhe compreender mais profundamente cada
debate, se, ao mesmo tempo, se procurar informar sobre os temas a ele inerentes, na
própria WWW.
Em terceiro lugar, é possível usufruir mesmo do poder de escamotear, como este ciber-
congresso pioneiro o faz, as presidências de mesa de certos colóquios que usurpam a
criatividade dos participantes. De facto, a exibição das comunicações em linha permite a
sua crítica incessante. Depois, na web page de um colóquio digital é corrente a
apresentação mais personalizada dos congressistas. Para além disso, um ciber-forum
sugere a adaptação e mudança contínuas, imediatas e aliciantes dos temas a debater, de
um modo mais global do que um evento (mesmo um ‗congresso internacional‘)
localizado numa sala concreta desligada da rede. O que mais se aproxima destas
virtualidades planetárias, incorporadas e sedimentadas no congresso digital, é a video-
conferência empreendida no congresso ‗físico‘. Finalmente, o ciber-congressista
assume-se, no colóquio reticular, como um sujeito parcialmente co-organizador do
mesmo, na medida em que colabora, interactivamente, na modificação tanto dos
conteúdos como nos respectivos timings parciais, o que não deixa de influir na agenda
do acontecimento no seu todo. Desta forma, o congressista digital não se reduz a um
mero fornecedor de conteúdos, como se verifica correntemente nos colóquios
tradicionais.
150
A RELIGIÃO QUE ANDA NO AR,
OU A DOR DO DIÁLOGO
JOSÉ AUGUSTO MOURÃO
(UNL-DCC)
«Je suis persuadé qu'en lutant contre le gnosticisme, le deuxième évêque de Lyon a
combattu, il y a exactement dix-huit siècles, la déviance Ia plus redoutable que
rencontre aujourd'hui la foi chrétienne, du moins en Occident» (Decourtray)
151
Se há ideologia que ainda atravessa o ar e os figurinos do pensamento, essa ideologia é
o niilismo. 0 niilismo representa hoje a dissolução de qualquer fundamento último. As
religiões deixaram de ser apólices de seguros, entraram no vórtice do tempo e
fragmentaram-se, como a própria cultura.
O processo vem de longe. Duns Scot - o Doutor subtil - inaugurou a ruptura com a
tradição realista de inspiração agostiniana e tomista ao separar a metafísica da teologia.
O humanismo renascentista marcava já o início de um processo de secularização da vida
e da cultura. Perderam-se entretanto várias formas do humano - o monaquismo, v.g. O
humano está hoje a tomar as formal quiméricas do ciborgue e do clone. Um problema
nos assaca: como descrever realisticamente o mundo se este está ainda por vir?
Existe um movimento teológico chamado Radical Orthodoxy que afirma que tanto a
filosofia como a teologia devem desfazer-se da herança escotista e ochamista se querem
evitar cair no niilismo. E porquê? Porque este pensamento (nominalista) favorece a
saída da teologia e da metafísica, assegurando deste modo a passagem à modernidade
secular e niilista (3). Para a Radical Orthodoxy, o sagrado interpenetra tudo. O conceito
de fé perceptiva" de Merleau-Ponty permite a Ph. Blond, por exemplo, afirmar que só o
cristianismo pode dar conta da relação entre a visibilidade e a invisibilidade, sem abolir
qualquer destes pólos (4).
A Idade Nova
O paradigma antigo regia-se pelas propostas de mundo contidas nas Escrituras judeo-
cristãs. 0 aparecimento do novo paradigma desenha-se já no começo do século XIX, na
passagem do racionalismo ao romantismo. Se a experiência da presença dos deuses era
em Hölderlin e alguns eruditos, pura, já em F. Schlegel, essa mesma experiência, com o
seu desejo de englobar o Oriente, se torna gasosa, e ambígua em Nietzsche. E porquê?
Porque vem ligada à perversão de uma comunidade holística – que se torna terrível no
mundo tecnológico -, a vontade do povo alemão. A própria esperança num regresso de
Dionísio através da música esfarela-se e a paródia acaba por ganhar. Em último caso,
experiência vai confundir-se com o sentimento que tem Nietzsche da sua própria
divindade. A “revolução‖ da ―New Age" aparece como a etapa final duma
evolução. Há autores que situam a sua eclosão em Inglaterra, no final dos anos
cinquenta. O despertar da Teosofia abre caminho para esta deriva que comporta todavia
alguns princípios comuns:
David Spangler (6), cita as principais características da visão Idade Nova, a saber:
152
- holística (globalizante, porque existe uma única realidade-energia);
- ecológica (a Terra-Gaia é nossa mãe, cada um de nós é um neurónio do sistema
nervoso central da Terra, Gaia é a alternativa a Deus Pai; o Deus da New Age é
uma energia impessoal, imanente ao mundo);
- andrógina (o arco íris e o Yin/Yang são dois símbolos New Age que indicam a
complementaridade dos contrários, v.g. masculino e feminino;
- mística (vendo o sagrado em toda a parte);
- planetária (os homens devem ancorar-se à sua própria cultura e abrir-se ao
universal).
Escolhos não faltam: a espiritualidade ―nova idade‖ traz consigo uma metafísica e uma
psicologia; a primeira é uma clara nova forma de gnose – Jesus é apenas uma das muitas
manifestações históricas do Cristo universal e cósmico; a segunda resume-se a uma
experiência de transformação. Narcisismo espiritual? Negação da história? União
mística ou união virtual? Tudo é Deus e tudo é espírito de Deus? Fundir-nos-emos no eu
cósmico? (7)
No libelo de Hergot, o impressor a que já fizemos alusão, é o Espírito Santo que ensina
a verdade, que não se encontra nos Livros. 0 Espírito vem em ajuda dos homens não
instruídos contra os escribas e os exegetas que não acreditam em nada e apenas pensam
na sua própria utilidade (9). A revolução vem de baixo, mas é inspirada pelo alto. Os
executantes desta ―newen Wandlung" serão homens do grau mais baixo da escala social,
―das gemeyne Volk'' e os guias serão homens inspirados por Deus. Na tábua 12 do livro
das figuras a terceira idade do Espírito trará uma nova ordem. Nesta ordem todos são
iguais. Não há dúvida que bastas razões havia para que os movimentos revolucionários
modernos se tenham apropriado do ideal que reveste este libelo.
Parece claro que o movimento religioso que dá pelo nome de ―new age‖ faz da
experiência e da livre interpretação da Escritura os seus mais notórios alicerces. Alan
Purves chama a atenção para a alteração profunda que as novas tecnologias da
informação podem introduzir no campo da leitura (10). A ciberliteratura traz consigo o
153
fim do texto, a disseminação da escrita, a partilha do texto e do sentido que faz com que
o autor se tenha transformado em gerador de textos automáticos. Esta máquina activa,
não determinista, permite ao leitor gerar o seu próprio texto, independentemente da
intenção do actor. O abandono da narrativa, o ñdio à ideia de ―intenção‖, o abandono da
ideia de autoridade, senão mesmo de autoria ameaçam o mundo do ―Great Code‖
outrora ferreamente guardado por exegetas e demais autoridades. ―O sentido do texto
não está aqui‖. Haverá melhor Boa Nova para o Texto a vir?
É comum associar os ―entusiastas‖ à "new age". ―Spirit‖ tanto pode ser entendido num
sentido Joaquimita como num sentido Montanista para indicar a marca de uma nova
idade que transcende os estádios da salvação representados pela incarnação e pela
Igreja. No método exegético que Joaquim de Flora pratica, a ―concñrdia" é a palavra-
chave, a letra do Antigo Testamento, a do Novo Testamento e a inteligência espiritual
em relação com a idade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Este tipo de leitura enraíza
o sentido dogmático na histñria, não evacuando ―o carácter social duma revelação feita
ao povo de Deus no curso duma história" (11). Por outras palavras, o cerigma
neotestamentário é também um Testamento, uma letra, uma nova Escritura a interpretar.
Em termos literários modernos, a questão coloca-se deste modo: como pensar
simultaneamente a ligação necessária e o abismo inevitável entre a Escritura e nós, se a
inteligibilidade dos textos depende da posição do leitor na história?
Coda
Devíamos ter o ouvido afinado para escutar aquilo que no nevoeiro da religiosidade
vagabundeante se faz ouvir. O vento que sopra não conhece instituições nem projectos
de nova evangelização, marca apenas uma nova sensibilidade, uma nostalgia também
pela música dos sinos, pela marcação ritual da vida, pelos modos perdidos de humano.
Não sei se as culturas da mundialização contrariam aquilo que mais profundamente
marca a modernidade: a irrupção do indivíduo-sujeito que reivindica o direito de definir
o fito dos seus projectos e da sua auto-poiése. Vem de Jung a crença num ―deus
interior‖. A New Age tem uma concepção bem prñpria da ―theosis‖ ou divinização, que
consiste em reconhecer e em aceitar a nossa natureza divina (12). O social e a arte
ocupam desde há muito o lugar da religião. ―Os deuses manifestam-se, antes de mais,
como acontecimentos mentais‖, escreve R. Calasso (13). A única maneira de evitar uma
redução à patologia encontra-se na literatura que os reintroduz no mundo e representa o
lugar possível das epifanias. O nosso mundo é profundamente escotista. A
―imanentização do mundo'' afasta Deus da criação e espacializa a cidade terrestre. A
―estética de cinza" tem muito mais peso do que a ―estética de ressuscitação" que alguns
estetas cultivam. O realismo dos números devora a impulsão para criar mundos-outros.
A economia do datum está a substituir a economia do dom. O processo de
―nominalização‖ do mondo apaga os vestígios da passagem do Anjo no mondo visível.
Que restará então dessa poeira (religiosa) que anda no ar?
NOTAS
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1 Giani Vattimo, ―Nihilisme et émancipation‖, in LV, 257, 2003, p.10.
2 Ibidem, p. 9.
3 J. Milbank, The Word Made Strange. Theology, language, culture, Oxford, Blackwell,
1997; C. Pickstock, After Writing. On the liturgical consummation of philosophy,
Oxford, Blackwell, 1998.
4 2 Ph. Blond, "Perception. From modem painting to the vision in Christ‖, in Radical
Orthodoxy. A new theology, ed. J. Milbank e al., Londres-New York, Routledge, 1999,
p. 221.
8 Inge Lonning, "The Reformation and the Enthusiastic‖ in ed. M. Hans Küng e Jürgen
Moltmann, Conflicts about the Holy Spirit, The Seabury Press, New York, 1979, p. 33.
Ver, na mesma obra, John H. Yoder, ―the Enthusiasts and the Refomnationn‖, pp. 41-
47.
9 Johann Hergot, Von der newen Wandlung eynes christlichen Lebens, ed. A. Goetze
Schmitt, in Flugschriften aus der Reformationszeit, Halle 1953, p. 60.
10 Ver o ensaio de Alan C. Purves, Web of Text and the Web of God, The Guilford
Press, New York, London, 1998.
12 Cf. Brendam Pelphrey, ―I said You are Gods. Orthodox Christian Theosis and
Deification in the New Religious Movements‖, in Spirituality East and West, Easter
2000, nº 13.
155
A DIALÉTICA DIABÓLICA DA POESIA
RODRIGO PETRONIO
Nada mais tentador e, ao mesmo tempo, nada mais óbvio e reducionista, do que
começar a exposição do tema proposto por algumas divagações etimológicas. Porém, é
difícil fugir delas, dada a naturalidade com que algumas associações nos ocorrem.
Comecemos pelo termo híbrido: todos os bons dicionários derivam-no do latim
hibridus, que quer dizer algo sem unidade, misto, misturado, compósito, dividido, algo
geralmente referido como a união estável e previsível de dois ou mais elementos de
natureza diversa. Impossível não associarmos esse étimo, por maiores que sejam as
recriminações de filólogos e especialistas, à hybris grega: a divina loucura de que foi
acometido Édipo ao descobrir o caráter incestuoso de sua relação com Jocasta mas
também, e sobretudo, aquele furor divino que, como diz Platão no Íon, é o que anima
toda a poesia e está na sua origem. Nesse caso, o poeta viveria a hybris no momento da
criação: deixando de ser ele próprio para ser um outro que canta por intermédio dele,
faz-se instrumento de uma voz que o transcende sem, contudo, anulá-lo em sua
singularidade. Como diria Sócrates a Íon, para saber o que vem a ser a poesia, seria
preciso saber quem canta nele quando ele canta, o que, a despeito dos protestos sem
sucesso do mesmo, que reivindica de maneira renitente e inútil a autoria integral de tudo
quanto compõe, colabora para quebrar a própria expectativa que o indivíduo faz de si
enquanto indivíduo: seria uma forma de romper sua integridade e dissolvê-lo no devir
do mundo.
O poeta seria então aquele para quem o exercício do duplo, mais do que algo natural, é
necessário, essencial e sua razão mesma de ser: a outra voz de que fala Octavio Paz, que
se insurge da voz mesma daquele que enuncia o verbo e anuncia o mundo e o nomeia de
novo, age ironicamente contra o sujeito que a profere, dilacerando-o. Porém, sua
destruição é divina, pois mostra aos homens que ela é a chave de que necessita o criador
para mergulhar na estrutura profunda do mundo e dele trazer Eurídice à tona, como
verdade revelada ainda que sempre sabida. Haveria uma relação substantiva e
substanciosa entre poesia e loucura, nesses termos, relação que pode ser lida e entendida
como uma apologia do alheamento, da divisão, do que desagrega a unidade primeira do
mundo aparente para preservar incólume, intacta e íntegra a unidade profunda do
mesmo, que se desprende do abismo e encontra na voz do poeta uma intérprete. Mais:
um veículo. Sua dissolução está na base da divisão de sua personalidade e na
duplicidade de sua voz que se desdobra para cantar o Outro, essa alteridade infinita que
não coincide com nenhuma idéia preconcebida ou quaisquer conceitos cristalizados de
ordem política, ética, moral, étnica ou outros congêneres. Semelhante à vítima
sacrificial, o canto nasce da perda da unidade do sujeito que se estraçalha ou, para dizer
com Fernando Pessoa, simplesmente não se achar em nenhum lugar onde quer que
esteja ou sequer e muito menos naquele em que se imagina, pois o próprio sonho lhe é
hostil, refratário e avesso à hospitalidade. E assim se sente estrangeiro até de si mesmo,
para quem todo o mundo é um exílio, e não só um exílio da carne que aspira ao reino
celeste, como Camões disse em Babel e Sião, mas sim uma nostalgia do tempo em que
essa mesma carne abrigava deuses em si e supunha em si algo além capaz de redimi-la,
mas sim o exílio de um homem que não mais se reconhece nem mesmo naquilo que
156
suas mãos produzem: o abandonado dos deuses, para quem a loucura não mais anima e
dá vida e unifica as formas sensíveis do mundo, mas apenas faz dele um teatro sádico
no qual fomos inescrupulosamente atirados e no qual representamos como marionetes,
como disse Rilke.
157
movimento que representa sempre a superação de si mesmo rumo a um ideal perfeito
embora não perfectível nesta existência. Outra não é a função de seu Zoroastro
moderno, que a de regressar aos rudimentos da religiosidade de Ahura Mazda e da
síntese dos opostos, vigente e natural nessas eras remotas.
É claro que há muita generalização nessas premissas, e tomar o cristianismo como uma
totalidade só é possível se depois esmiuçarmos suas peças e práticas, pouco a pouco,
sistematicamente, o que não é o caso aqui. Mas um horizonte se descortina destas
reflexões. E, em um certo sentido, estamos desde Platão presos a uma concepção
dualista do ser, que é a causa primeira de nossa doença. Tudo o que para Parmênides é
movido pela entelékia e nela e na matéria imóvel se consuma em um círculo harmônico,
onde todas as partes convergem para o centro e onde a própria idéia de uma oposição
entre causas essenciais e acidentais é de antemão descartada, com Platão e, sobretudo,
com Aristóteles, será objeto de cisão: e se há uma metáfora precisa para a queda e para a
expulsão do Paraíso, é a imagem do homem sendo expulso do círculo cósmico no qual
ele estava integrado às potências anímicas e sua ulterior entrada na história, e, com ela,
na relação dual, dialética e material de uma existência que a partir de então visará a
consumatio e projetará toda a felicidade terrena e real em um futuro sobrenatural e
hipotético, fazendo o pacto luciferino de troca da evidência sensível pela conjectura
possível, em um movimento teleológico de conseqüências graves. Aqui inicia a loucura:
ela é a um só tempo antídoto e veneno, corresponde àquela acepção preciosa e precisa
que Jacques Derrida desvela em Platão, e que repousa na gama de sentidos da palavra
phármakos, a um só tempo veneno e antídoto, remédio e doença, cura e degeneração.
Porque a cura pelo discurso, ou o ato de filosofar e por meio desta atividade contemplar
as esferas puras, cujo correlato político a capacidade de legislar e organizar a República
ideal, sustentada pela mediação racional do homem visto como animal político e,
portanto, infenso às desarmonias e paixões circunstancias do homem enquanto animal,
em nenhum momento pode ser tomado como um ato alheio a todas as artimanhas que
todo discurso, como fato de linguagem, engendra em si: a filosofia seria um amor da
sabedoria, mas também o amor da serpente, ófis, que se enrosca em si mesma e encontra
na autofagia o seu paraíso artificial e sua redenção paradoxalmente semelhante a como
Narciso encontrou em si mesmo o seu inferno. É assim, desvendando o vazio conceitual
e categórico da razão filosófica, tal qual ela se desenvolveu no Ocidente, pensando os
limites mesmos do discurso produzido sobre o ser, que podemos rever sua eficácia e seu
sentido. Da mesma forma, a poesia, fonte infinita de ambigüidades, a ponto de
podermos dizer que apenas a ambigüidade a funda e estatui seu ser no mundo. E sua
ambigüidade maior está posta como sua polaridade originária e original: sendo a voz
que canta e celebra a unidade, ou a Substância de todas as substâncias, como diria o
magnífico poeta Augusto dos Anjos, só por meio do dilaceramento do cantor é que ela
se efetiva entre os homens em toda sua plenitude e que se instaura no mundo com toda
sua glória. Loucura sagrada e divina, por paradoxal que pareça, porque em sua
dimensão ética está implicado o seu fim e não os seus meios. Loucura que começa
exatamente com a polarização da experiência humana em um horizonte fenomênico
dividido e hierarquizado, cuja pedra-de-toque é, em primeiro lugar, Platão e, em seu
encalço, o cristianismo, entendido como platonismo para o gado, como já disse
Nietzsche.
158
em sua descoberta fundamental, colhida em algumas linhas dos filósofos físicos da
Antigüidade, segundo a qual uma das acepções de alethéia, ou seja, de verdade, seria:
aquilo que aprece no discurso, no logos. A verdade seria então um epifenômeno
lingüístico, uma aparição e, em última instância, um fantasma que se instaura sob certas
condições e dentro de certos regimes de sentido. Há uma série de razões subliminares
nesse pequeno encadeamento etimológico, a começar pela revisão drástica da herança
substancialista de toda uma tradição filosófica devedora do idealismo. Mais ainda: há
aqui uma subversão da própria filosofia, criticada como atividade que, ao invés de se
propor como ciência das ciências, formulando e perscrutando as suas próprias causas e
implicando o sujeito cognoscente em todo ato de conhecimento, se contenta com a
repetição de certos agregados de conceitos mais ou menos convenientes e
convencionados pelas práticas e pela rotina do ofício, deixando de lado a amplitude
noética, de mergulho vertical na estrutura do mundo, que é, em suma, justamente o que
a caracteriza. Questionamento radical e, sob certos aspectos, último, temos aqui uma
reversão de tudo quanto foi pensado em termos de dualismo desde Aristóteles, e
também um passo fundamental para revermos a polaridade balizada no Górgias e em
tantos outros diálogos, cujo itinerário entre nós é milenar, e que consiste numa oposição
sistemática e exclusiva entre a doxa, a opinião, reino dos discursos sofísticos, e a busca
dos universais inteligíveis e puros, ocupação maior de toda a filosofia. Porém, ter a
ciência desse processo não nos leva a incorporá-los pacificamente à nossa consciência.
E será Hölderlin o poeta que arderá nas chamas da loucura mais profunda por ousar
cantar o efêmero como eternidade e a louvar a unidade panteísta do mundo que se lhe
afigurava em seus momentos de delírio, pois em nada disso ele reconhecerá o mundo tal
e qual ele se ordena em sua exterioridade cotidiana, e tudo lhe passará sempre como um
sonho bom que quer perdurar sem sucesso, sonho este que, mais tarde, será lido e
politicamente utilizado pelos poetas fin-de-sciècle como refúgios para os sentidos e
como paraísos artificiais.
Esse movimento de destruição epistemológica não é gratuito e muito menos tem como
finalidade reduzir o pensamento a um jogo formular de frases e efeitos. Quer sim abrir
uma via de acesso ao que não tinha sido pensado ou meditado pela tradição filosófica
racionalista, seja ela aristotélica, cartesiana ou positivista. A partir de então o
pensamento se ocupa de suas próprias margens, abre-se um leque amplo e inaugura-se
um campo fecundo para uma das questões mais belas do espírito: o imponderável.
Reflexão que se faz a partir do coração do próprio ato reflexivo, inserção no mundo que
se dá como radicalização de uma visada metafísica, entendida aqui naquela acepção
especialmente tocante e comovente que Heidegger desenvolve em sua famosa
conferência na universidade de Friburg, em 1932, ou seja, entendendo-se a metafísica
como aquele tipo de conhecimento de um objeto onde, em última instância, o próprio
sujeito que conhece está implicado e posto em xeque, eis que os limites entre razão e
linguagem se desmancham, e estamos às voltas com a matéria incandescente da vida em
sua nascente. Eis em suma no que consiste a queda no ser, o desvelamento do ser que
emerge do Dasein, o homem recomposto e doado à sua infinitude de origem e o sujeito
reconciliado com o Outro, com aquela alteridade infinita que funda a própria
possibilidade de existência do Eu, enfim, o homem reconciliado com o ser, por tanto
tampo esquecido, bloqueado ou obnubilado por conta de projetos escatológicos. Nessa
fissura se inaugura uma nova passagem para o infinito e para a Unidade. Não aquela
candente e devedora de névoas transcendentais que tantas vezes eclipsaram o que há de
maravilhoso em todas as religiões e ludibriaram a nossa inteligência com jogos
engenhosos de sentido e de artimanhas, mas vazios de sustentação empírica. Não aquela
159
que se faz à revelia e à reboque do homem, oprimindo-o para poder finalmente se
revelar por intermédio dele, ou, pior ainda, aquela que se refunde no homem e lhe
enseja o simulacro de um poder ilimitado, fazendo dele um pequeno deus capaz de
deliberar sobre o curso das coisas, dos seres e de seus próprios semelhantes. Falo da
Unidade que é o reino do ser implantado neste mundo, do horizonte transcendental onde
o homem se encontra como criatura que reconhece o Criador que cria por meio de suas
mãos terrenas de barro sem dividi-lo ou cindi-lo ou anulá-lo em sua especificidade
ontológico. Nesta dimensão, provavelmente o movimento natural do dyabolus será
regressar ao ventre da relva e ao seu sono eterno, e a loucura, a hybris enfurecida, não
mais será necessária para cantar o Uno, porque este já estará bem aí, onde quer que
estejamos, sempre idêntico a si mesmo e coincidente conosco em cada um de nossos
atos, quando suprimidas as contingências do pensamento que ainda nos prende à razão
dualista que quer a qualquer custo se preservar hegemonica e ideologicamente bem
estruturada no poder, para assim perpetuar o império da loucura por outras vias que não
a da transfiguração poética.
160
CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO. 15.10.2003
0 – Introdução
Este artigo pretende propor um modelo para o sagrado de modo a dar conta da sua força
de unificação presente no Homem e na Sociedade mas que ao mesmo tempo não se
esgote num sagrado estritamente religioso. De facto, o que nós desejamos definir é um
modelo de um sagrado, digamos generalizado, de molde a incluir não somente as
formas religiosas e mágico-religiosas, mas também um sagrado «secular» que, pelo
facto de estar no mundo, disfarçado, não deixa no entanto de apresentar algumas
características do outro sagrado, o religioso e o mágico-religioso – por exemplo,
recordando-nos da obra de Mafesolli (Le temps des tribus), as ―tribos‖ do nosso
―tempo‖ (a política, o desporto, a discoteca, etc.,).
Haverá, pois, um modelo que integre estas diversas situações e que dê conta desta força
de reunificação característica de todo o sagrado, dessa ―dimensão unificadora da
experiência‖, de que Gregory Bateson nos falava?
161
A noção de ―centro organizador‖ (René Thom), desenvolvida por Lucien Scubla no
contexto da Antropologia do Simbólico, para aproximação do seu «objecto total»,
parece ser um bom modelo do Sagrado, quer para o sagrado religioso, quer para o
secular, tanto para o sagrado das «religiões históricas», como para o sagrado
«primitivo», tanto para o sagrado «domesticado» das grandes instituições religiosas,
como para o sagrado «selvagem» dos «novos movimentos religiosos» e «mágico-
religiosos» e das «seitas».
Por outro lado, si atravessarmos os autores que reflectiram sobre o sagrado (de
Durkheim e Otto a Eliade, Caillois, Bastide e Girard), poderemos inventariar e resumir
as seguintes características principais ambivalentes et antinñmicas (―conjunto de traços
de tal modo numerosos e tão diversos, mas geralmente incompatíveis e separados‖,
como diz Scubla):
sagrado/profano;
transgressão/respeito,reverência;
impuro/puro;
temível, perigoso/fascinante, benfeitor;
interior/exterior (que têm a ver com a delimitação e a separação);
interdito/permitido;
violência/dom (mas sempre reciprocidade – mimética?);
morte/vida;
162
natureza/cultura;
caos/ordem.
É preciso pôr em evidência que no Homem, não pode haver mistura ou confusão entre
esses termos, mas somente no sagrado que denominaremos de divino poderemos
encontrar a união desses opostos . As mediações entre polaridades opostas –
―coincidentia oppositorum‖ – constituem uma experiência espiritual sagrada que pode
ser feita estaticamente ou dinamicamente – e neste último caso ela será realizada a
través da experiência de morte e ressurreição (a qual segundo M. Bloch constitui a
estructura mínima de todos os rituais).
2 – O Sagrado, hoje.
163
Surgiu entretanto, face aos ―centros organizadores‖ religiosos tradicionais e em
resultado destes deslocamentos, um novo-―velho‖ centro organizador que é o eu
individual, o qual passou assim da periferia da circunferência para o seu centro,
enquanto que esses centros organizadores passavam a gravitar no seu exterior; a
distância sacrificial do eu ao ―centro organizador‖ (agora ele prñprio) se tornou nula
(ver situação c) do quadro).
3 – Conclusão (provisória)
164
enfraquecimento deste devido à competição de outros centros organizadores (ciência,
filosofia, política, etc.) até chegar à situação actual na qual – sobretudo no caso das
«novas espiritualidades» – o Homem é o centro que organiza em seu redor,
sincrèticamente e a través dum ―bricollage‖ identitário, os outros centros, sacralizando e
divinizando já não esses centros mas ele próprio, o seu Eu.
4 – Bibliografía
- Bateson, Gregory et Mary Catherine, La peur des anges, Paris: Seuil, 1989
- Bloch, Maurice, La violence du religieux, Paris: Éditions Odile Jacob, 1997
- Douglas Mary, Purity and Danger, Londres: Routldge, 1966
- Durkheim, Émile, Les formes élémentaires de la vie réligieuse, Paris: Le Livre de
Poche, 1991
- Eliade, Mircea, Le sacré et le profane, Paris: Gallimard, 1965
- Girard, René, La violence et le sacré, Paris: Grasset, 1972, réed. Hachette, 1998
- Otto, Rudolf, Le sacré, Paris: Payot, 1969
- Rappaport, Roy, Ritual and Religion in the making of mankind, Cambridge:
Cambridge University Press, 1999
- Rivière, Claude, Socio-anthropologie des religions, Paris: Armand Colin, 1007
- Scubla, Lucien, Lire Lévi-Strauss, Paris: Éditions Odile Jacob, 1998
(*) Este artigo foi-me solicitado (em francês) pelo Doutor Basarab Nicolescu, para um
livro por ele organizado e que será publicado em Dezembro de 2003, nas Éditions du
Rocher, em Paris, com o título Le sacrée aujourd‘hui (reunindo contribuições de
diversos autores).
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