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A crise do conceito de religião e sua incidência sobre a antropologia

Chapter · January 2013

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2 authors:

Carlos Alberto Steil Rodrigo Toniol


Universidade Federal do Rio Grande do Sul Utrecht University
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Steil, Carlos Alberto ; Toniol, Rodrigo . A crise do conceito de religião e sua incidência sobre a antropologia. In:
Giumbelli, Emerson; Béliveau; Verónica Gimenéz. (Org.). Religión, cultura y política en las sociedades del siglo
XXI. 1ed.Buenos Aires: Biblos editora, 2013, v. , p. 137-158.  

A CRISE DO CONCEITO DE RELIGIÃO E SUA INCIDÊNCIA SOBRE A


ANTROPOLOGIA

Carlos Alberto Steil1


Rodrigo Toniol2  

Resumo: Este artigo tem como objetivo refletir sobre aquilo que reconhecermos ser
uma crise no conceito de religião. Em um primeiro momento, estabelecemos uma
relação entre a emergência das problematizações produzidas por cientistas sociais a essa
categoria e a recusa desse termo por parte dos próprios religiosos para classificar suas
práticas. Posteriormente, recuperamos algumas das críticas elaboradas por autores pós-
coloniais e pela antropologia do cristianismo à religião enquanto categoria analítica. Por
fim, tratamos de apresentar como o modelo da rede, tal como se expressa no campo
religioso, tem contribuído para produção de narrativas menos institucionalizadas sobre
as configurações que a religião vem assumindo na contemporaneidade.

Palavras-Chave: Religião, Pós-Colonialismo, Antropologia do Cristianismo, Rede

Abstract: In this article we aims to reflect about what we recognize to be a crisis in the
concept of religion. At first, we establish a relationship between the emergence of
problematizations produced by social scientists to this category and the refusal of this
term by religious people. After, we recover some of the critics by postcolonial authors
and the anthropology of Christianity to religion as an analytical category. Finally, we
present the way the network model, as expressed in the religious field, has contributed
to the production of narratives less institutionalized about the configuration that has
been set religion has assuming in contemporary times.

Keywords: Religion, Post-Colonialism, Anthropology of Christianity , Network

A religião, enquanto categoria analítica, está presente na produção das Ciências


Sociais desde seu início, constituindo-se como um de seus temas clássicos que atravessa
                                                                                                                       
1
Doutor em Antropologia Social. Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Email:
steil.carlosalberto@gmail.com
2
Doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Email: rodrigo.toniol@gmail.com
  2  

toda sua história.3 Na antropologia, especificamente, parece ter sido uma das poucas
temáticas de pesquisa que seguiu ocupando um lugar central mesmo após sensíveis
deslocamentos em relação ao tipo de sociedade privilegiada pela disciplina.4
Reconhecer sua longa duração enquanto tema de pesquisa diante de mudanças de
orientações teórico-metodológicas, contudo, não é o mesmo que sugerir que a categoria
religião tenha permanecido inabalável. Isto é, se, por um lado, a religião não deixou de
ser tematizada nas pesquisas, por outro, aquilo que pode estar compreendido sob este
conceito - como instituições, práticas, enunciados, rituais e performances – é tão diverso
quanto as tradições e perspectivas antropológicas.
Nosso objetivo neste texto é problematizar o conceito de religião como um
mediador universal sem, por isso, deixar de reconhecer seu valor heurístico. Para tanto,
voltamos nossa atenção aos limites analíticos desse conceito a partir de sua variação na
história da disciplina. Em uma primeira parte deste artigo, estabeleceremos uma relação
entre a emergência dessas problematizações produzidas por cientistas sociais e
questionamentos dos próprios religiosos sobre a classificação de suas práticas. Em um
segundo momento, recuperaremos algumas das críticas elaboradas por autores pós-
coloniais e pela antropologia do cristianismo à religião enquanto categoria analítica. Por
fim, trataremos de apresentar como o modelo da rede, tal como se expressa no campo
religioso, tem contribuído para produção de narrativas menos institucionalizadas sobre
as configurações que a religião vem assumindo na contemporaneidade.

                                                                                                                       
3
Autores considerados fundadores da disciplina como Émile Durkheim (1996) e Max Weber
(2004a; 2004b) reconheceram, a partir de perspectivas distintas, o estudo da religião como
chave para a compreensão e análise das sociedades. A publicação de As formas elementares de
vida religiosa (Durkheim, 1996) inaugurou a área de estudos da religião na antropologia
francesa tornando-se um texto de referência no desenvolvimento desse tipo de pesquisa no país.
A centralidade atribuída à religião por Durkheim estava apoiada no caráter fundante da oposição
entre sagrado e profano para constituição e reprodução da sociedade. O princípio de
primordialidade do religioso, para Durkheim, está associado à sua capacidade em designar tanto
características organizativas das sociedades chamadas de “primitivas”, quanto contextos
ocidentais modernos onde a religião produziria coesão social. Max Weber (2004a; 2004b), por
sua vez, contribuiu com a elaboração de e pesquisas acerca de fenômenos religiosos menos em
direção à analise das diferentes manifestações religiosas que emergiam nos contextos urbanos e
mais à temas relacionados ao desencantamento do mundo e secularização.
4
Em seu livro Teorias da Religião Primitiva, de 1965, Evans-Pritchard já afirmava a longa
duração dos estudos sobre religião a partir de sua centralidade desde os textos dos primeiros
antropólogos (Evans-Pritchard, 1991).
  3  

A crise do conceito de religião vivida e formulada pelos religiosos e sua incidência


nas ciências sociais

A problematização do conceito de religião parece ter surgido antes no campo


empírico que no próprio contexto de reflexão dos cientistas sociais interessados no
assunto. Inúmeras etnografias produzidas nas últimas décadas nos oferecem exemplos
de como alguns “religiosos” tem recusado a categoria religião para caracterizar suas
práticas e instituições. Observam-se, aqui, temporalidades diversas entre o vivido e o
conceito. Enquanto alguns acadêmicos insistem em utilizar a ideia de religião, parte dos
“religiosos” propõe sua substituição por outras categorias, como a de espiritualidade,
filosofia de vida e experiência. O que queremos afirmar aqui é que o conceito de
religião é uma questão que se apresenta tanto no horizonte das ciências sociais quanto
no de alguns grupos “religiosos”.
Embora essa problematização do conceito tenha se tornado mais explícita com o
movimento Nova Era e com as religiões do self, ela também tem ocorrido em
movimentos das igrejas cristãs, como o Movimento Carismático Católico e as religiões
pentecostais. Mesmo em nossas pesquisas sobre peregrinações (Steil, 2003; Steil e
Carneiro, 2008; Steil e Toniol, 2011; Toniol e Steil, 2010; Toniol, 2011) temos
encontrado essa “rejeição nativa” na caracterização de suas práticas de relação com o
sagrado como uma ação religiosa. Os peregrinos dos Caminhos de Santiago no Brasil
(Steil e Carneiro, 2011), por exemplo, frequentemente negam a existência de
motivações religiosas para justificar o interesse pela peregrinação e, ao mesmo tempo,
ressaltam o aspecto espiritual da prática.
Para os cientistas sociais, contudo, a crise do conceito de religião parece ter sido
tematizada sobretudo pelo seu avesso, que é a crise do conceito de secularização. O
esvaziamento da categoria religião é extensivo ao de secularização, uma vez que a
emergência de ambos está associada a um mesmo contexto epistemológico, a formação
dos estados nacionais modernos. Como tem sido apontando por Talal Asad, o secular
não precede o religioso, nem existe como um espaço que abarcaria a religião em sua
diversidade de expressões (1993). Ou seja, ao problematizar o conceito de religião, da
forma como ele foi elaborado no processo histórico de constituição das ciências
modernas, o conceito de secularização também é colocado em xeque, uma vez que ele é
  4  

seu duplo, com que existe e opera em oposição. Ao deixar de ser religiosa, a sociedade
deixa de poder ser secular.5
Esta percepção da implicação mútua entre estes conceitos apresenta-se como
uma possibilidade para compreender as transformações que vem ocorrendo na religião e
na política fora do impasse que as teorias sobre a secularização e o reencantamento do
mundo produziram nesses últimos anos. Talvez, pudéssemos pensar aqui na emergência
de um contexto que se apresenta ao mesmo tempo como pós-religioso, uma vez que a
religião já não dá conta de expressar as transformações do crer, e como pós-secular, na
medida em que se desnaturaliza a concepção do espaço público como um palco em que
atores e instituições atuam e se relacionam.6 Neste movimento de dupla
desnaturalização que se impõe às ciências sociais, a crítica ao conceito da religião
parece encontrar menos resistência do que aos conceitos de política, espaço público e
secularização. Mesmo porque, a crença humanista na realização plena do ser humano
como resultante de um longo processo de “saída da religião” (Gauchet 1986; Steil 1994)
vem alimentando há um longo tempo a imaginação e a esperança daqueles que
abraçaram o projeto moderno como seu horizonte histórico.
Como afirmou Otávio Velho, no texto que compõe esta coletânea, a obrigação
de ser secular nos conduziu a reificação de uma série de dicotomias que nada
contribuem para reavaliar o conceito de religião. Nesse sentido, a identificação dos
limites explicativos desses dois conceitos não implica uma redução da capacidade
heurística de fenômenos religiosos, mas, pelo contrário, expande-a.

Transformações empíricas da religião e suas repercussões conceituais

Um olhar, ainda que ligeiro, sobre o contexto religioso atual parece confirmar o
que Pierre Sanchis escreveu no início deste século, que “o campo religioso é cada vez
menos o campo das religiões” (2001:17). O que, a nosso ver, poderia ser interpretado
em dois sentidos. O primeiro refere-se à crise de legitimidade e reconhecimento do
próprio conceito de religião que o tornou inadequado, ainda que necessário, para
designar um habitus que se expressa por meio de espiritualidades, filosofias de vida e
                                                                                                                       
5
Esse tipo de afirmação tem profundas implicações para os debates sobre religião e espaço
público. Para um amplo panorama sobre este tema ver (Birman, 2003; Giumbelli, 2004; Oro,
2011).
6
Para uma análise da associação entre crença e modernidade ver (Giumbelli, 2011).
  5  

experiências do sagrado que compõem determinado regime de crer.7 O segundo remete


à crise das instituições religiosas tradicionais que vem paulatinamente perdendo a sua
hegemonia como mediadoras da experiência do sagrado e como responsáveis pela
reprodução da crença.
Estas mudanças, por sua vez, vêm produzindo um deslocamento na atenção dos
cientistas sociais da religião enquanto produtora de identidades específicas, para o das
suas interfaces com outras esferas da vida social. Um deslocamento que, como Ronaldo
Almeida sugeriu recentemente, implica tanto em um novo vigor aos estudos da religião
quanto evidencia a dissolução dos fenômenos religiosos em outras lógicas (Almeida,
2010).8 Tal deslocamento impõe aos cientistas sociais um esforço reflexivo que dê conta
do desencaixe entre a realidade empírica, descrita nas etnografias de práticas,
instituições, grupos e experiências religiosas, e os conceitos de religião, secularização,
espaço público e política elaborados e definidos a partir de outro contexto social e
histórico.
Como apresentaremos a seguir, a crítica pós-colonial, bem como a antropologia
do cristianismo têm oferecido importantes contribuições para que a problematização
desses conceitos implique numa ampliação da capacidade analítica dos trabalhos sobre
fenômenos e práticas religiosas.

Aspectos da crítica pós-colonial ao conceito de religião

Ao longo dos últimos anos, o conceito de religião tem sido usado pelos cientistas
sociais de uma forma aparentemente consensual, apesar das variações de sentidos a ele
associados. De algum modo, é este suposto consenso que torna possível produzir
comparações entre uma variedade de recortes temporais e empíricos do que é
compreendido como religião. No entanto, em que pese esse consenso, tem se observado
a emergência de uma crítica contundente que mostra a inadequação desta categoria para

                                                                                                                       
7
Sobre as transformações no regime de crer relacionadas com a recusa da categoria religião e
adesão a termos como o de espiritualidade, ver (Steil, 1999).
8
Podemos citar aqui, à guisa de ilustração, alguns temas conexos que tem aparecido com
frequência na produção recente da área: religião e etnicidade (Gonçalves e Contins, 2008;
Capiberibe, 2007; Vilaça, 2008; Montero, 2006), religião e cultura (Lopes, 2011; Figueiro,
2005), religião e estado (Giumbelli, 2002; Birman, 2003; Oro, 2003), religião e ecologia
(Soares, 2004; Carvalho e Steil, 2008; Steil e Toniol, 2011), religião e turismo (Abumanssur,
2003; Steil e Carneiro, 2008; Steil e Carneiro 2011; Toniol, 2011).
  6  

se compreender práticas culturais ou grupos sociais que se configuraram segundo


modelos e padrões estruturais distintos daqueles que forjaram este conceito.
Embora a crítica a esta inadequação venha sendo elaborada por autores que
respondem por diferentes perspectivas teóricas, destacam-se as formulações pós-
coloniais que não apenas reconhecem a impropriedade no uso do conceito, como
também articulam seu universalismo hipostasiado com projetos políticos de
determinados centros de produção de conhecimento. Talal Asad (1993; 2003), por
exemplo, sugere que a própria classificação de determinada prática como “religiosa” é
um ato inextricavelmente a serviço de certas configurações de poder. Isto é, a
nominação a priori de certos fenômenos como “propriamente religiosos” termina
apresentando o contexto descrito a partir de matizes e pares dicotômicos que é resultado
e, ao mesmo tempo, produto de determinados jogos de forças. Assim, ao descrever
práticas como “religiosas”, independentemente de seu próprio contexto empírico e
epistemológico de produção, cientistas sociais têm reificado dualismos como universal e
particular, voluntarismo e determinismo, que, ao fim e ao cabo, dizem mais sobre suas
próprias preocupações teóricas que sobre os fenômenos descritos.
A emergência da religião como categoria analítica, em certa versão da crítica
pós-colonial, está relacionada com a modernidade enquanto projeto político e
epistemológico forjado no contexto de exploração das colônias do sul pelas metrópoles
do norte. Em certo sentido, explicitar essa relação de dependência da categoria religião
com dimensões espaço-temporais características da modernidade contribui para
problematizar o hipotético valor explicativo universal desse conceito. O historiador
indiano Dipesh Chakrabarty, associado ao projeto pós-colonial dos Estudos
Subalternos9, assinalou em diferentes trabalhos (2000; 2002) o modo pelo qual os
conceitos de “história”, “religião” e “política” por mais abrangentes que possam
parecer, têm a Europa10 como o sujeito soberano, teórico, de todas as histórias,
incluindo as que chamamos de “indianas”, “chinesas” e “latinas” (Chakrabarty, 1997).
A crítica feita por Chakrabarty a esses conceitos incide no aspecto colonizador
de seus usos. É significativo da articulação entre a produção epistemológica desses

                                                                                                                       
9
Para uma apresentação dos estudos subalternos ver (Prakash, 1994).
10
Vale dizer que nos referirmos a “Europa” tal como fazem diversos autores pós-colonias
(Bhabha, 1998; Prakash, 1994) concebendo-a como um termo “hiperral no que se refere a certas
figuras da imaginação, cujos referentes geográficos permanecem mais ou menos
indeterminados”. (Chakrabarty,1997, 225)
  7  

termos e as relações de poder nela implicadas, que a naturalização de tais categorias


tenha ocorrido tanto entre pensadores europeus interessados em descrever contextos
subalternos, como também para os próprios intelectuais desses contextos que, durante
muito tempo, conceberam como irrefutáveis sua capacidade explicativa.

Há muitas gerações os filósofos e pensadores que dão forma às


ciências sociais produzem teorias que tentam explicar toda a
humanidade. Como bem sabemos estas proposições têm sido
produzidas a partir de um desconhecimento relativo, e em algumas
ocasiões absoluto, da maior parte da humanidade – ou seja das
culturas não-ocidentais. Em si mesmo isto não constitui um paradoxo,
pois os filósofos europeus mais conscientes de sua própria reflexão
sempre têm tratado de justificar teoricamente sua postura. O paradoxo
cotidiano da ciência social do terceiro mundo é que estas teorias nos
parecem, apesar de sua ignorância sobre “nós”, eminentemente úteis
para entender nossas sociedades. O que permitiu aos modernos sábios
europeus desenvolverem semelhante clarividência a respeito de
sociedades que ignoravam empiricamente? Por que nós, de maneira
recíproca, não podemos responder do mesmo modo?
(Chakrabarty,1997, 240)

A pergunta final do parágrafo citado constitui o ponto de partida da proposta


epistemológica e política do autor apresentada em seu livro Provincializing Europe
(2000). Está em jogo nessa perspectiva reconhecer e evitar a todo custo a ideia de que
enquanto a Europa constitui-se como um contexto a partir do qual se pode subtrair
categorias e questões universais da existência humana, todos os outros são apenas
variações cujas particularidades podem ser descritas a partir de questões fundamentais
já conhecidas. Reagir de maneira recíproca aos “sábios europeus” que falam sobre
determinadas sociedades sem conhecê-las empiricamente, tal como convoca
Chakrabarty, teria como efeito a produção de narrativas e enquadramentos não
hegemônicos sobre temáticas que habitualmente são acomodadas em conceitos como os
de “religião” e de “história”.
Diante desse tipo de perspectiva, o desafio da proposta pós-colonial para as
Ciências Sociais da religião, como bem assinalou Emerson Giumbelli, passa a ser o de
estudar a religião sem partir de uma definição que lhe dê prioridade epistemológica e
também que a considere como algo ontologicamente secundário, situado em uma
camada menos importante da sociedade (Giumbelli, 2011:338).
  8  

A critica da Antropologia do Cristianismo ao conceito de religião

O desenvolvimento do campo de estudos chamado de Antropologia do


Cristianismo é relativamente recente, mas desde a década de 2000 tem adquirido
significativa relevância a partir da contribuição de diversos pesquisadores (Cannel,
2006, Robbins, 2003; 2007). Embora em um momento inicial a constituição de agendas
de pesquisas afinadas com as problemáticas associadas a essa perspectiva tenha sido
mais restrita à antropologia anglo-saxônica, posteriormente antropólogos de diferentes
tradições disciplinares problematizaram-nas a partir de seus próprios universos de
investigação. Mais precisamente, a Antropologia do Cristianismo está dedicada a
produção de etnografias que tenham como foco populações cristãs, suas vidas
religiosas, sua linguagem, suas relações com o sagrado, etc. Até então, esse tipo de
trabalho era negligenciado pela disciplina, nos centros hegemônicos de produção
antropológica, e quando realizado era inserido no âmbito dos estudos regionais com
pouco ou nenhum diálogo com a Antropologia da Religião. Como afirmou Joel
Robbins, de algum modo, durante seu primeiro século de existência, a Antropologia,
especialmente nos Estados Unidos e Europa, ao conceber o mundo não-
ocidental/moderno como seu campo de estudo, abriu mão de pesquisar a religião mais
praticada no mundo, o cristianismo (Robbins, 2003). Para os fins aqui propostos, vale
assinalar a hipótese de que o potencial crítico da Antropologia do Cristianismo ao
conceito de religião reside, justamente, no fato deste campo de estudos ter se constituído
a partir de uma trajetória distinta daquela que forjou a Antropologia da Religião, nos
centros hegemônicos de produção. Ao considerarmos essa possibilidade podemos,
inclusive, questionar a afirmação de Joel Robbins, sugerindo que a escassez de estudos
sobre populações cristãs não explicita apenas uma negligência, mas, antes disso,
constitui-se como uma condição epistemológica da disciplina naqueles contextos que
invisibilizou sistematicamente suas práticas e crenças religiosas dominantes.
Essa caracterização, no entanto, não pode ser estendida à produção
antropológica como um todo, uma vez que na América Latina, por exemplo, pelo menos
desde a década de 1970, tem se estudado intensamente o cristianismo tanto das
comunidades católicas quanto das igrejas pentecostais. Nesse continente, a contribuição
dessa área de estudos não ocorreu porque tal perspectiva iluminou um universo de
investigação desconhecido para os antropólogos, mas porque fomentou a emergência de
  9  

problematizações sobre religião nas pesquisas de etnologia indígena que, até


recentemente, tinham pouco diálogo com o campo das ciências sociais da religião. A
tematização do cristianismo nos contextos dos coletivos indígenas concentrou-se,
sobretudo, na análise de conversões coletivas. Embora esses processos já tivessem sido
investigados no contexto da América Andina (Demera, 2005) e entre alguns coletivos
indígenas do sul da América do Sul (Ceriani, Citro; 2005; Citro, 2003; Wright, 1983),
ele não havia sido explorado nas populações das terras baixas da Amazônia. A
Antropologia do Cristianismo, nesse sentido, embora formulada inicialmente nos
Estados Unidos, provocou uma espécie de alargamento dos universos de investigações
das pesquisas sobre religião no contexto latino (Demera, 2009).
Ainda que a empresa colonial na América Ibérica tenha sancionado a execução
de um projeto evangelizador sobre os coletivos indígenas até, pelo menos, o final do
século XIX, a atenção dos etnógrafos pouco se deteve nas tentativas de cristianização
destas populações. Este desinteresse etnográfico, como sugerem Vilaça (2007) e
Simonian (1999), talvez esteja relacionado com a própria história da consolidação da
disciplina antropológica que aponta para uma ambivalência na relação com missões
religiosas. Se, num primeiro momento, os antropólogos inseridos num paradigma
evolucionista além de se valerem de relatos de missionários para a obtenção de dados,
consideraram a prática destes religiosos como um catalisador do progresso; noutros
momentos, os antropólogos foram tomados por um afã crítico que concebia o contato
com a “cultura cristã” um descaracterizador da autenticidade étnica.
Assentados neste contexto de proposições teóricas, os estudos dedicados a
evangelização de povos indígenas, afirma Lux Vidal (2007), enfatizaram
sistematicamente a sujeição dos coletivos às tentativas de conversão, sempre concebidas
como ações impositivas e unilaterais. Ao adotarem esta postura, tais pesquisas terminam
caindo numa armadilha em que a denúncia da evangelização implica em desconsiderar a
possibilidade de agência e de intencionalidade indígena nestes processos. A
Inconstância da Alma Selvagem, nos alerta Eduardo Viveiros de Castro (2002),
contrapõe-se a ideia de uma docilidade inata ou ao mito do bom selvagem, passivo em
tudo aquilo que lhe é proposto. Em um trecho do livro citado, Viveiro de Castro retoma
o Sermão do Espírito Santo do Padre Antônio Vieira para aproximar o gentio
encontrado pelos portugueses à murta:
  10  

(...) o gentio do país era exasperadoramente difícil de converter. Não


que fosse feito de matéria refratária e intratável; ao contrario, ávido de
novas formas, mostrava-se entretanto incapaz de se deixar
impressionar indelevelmente por elas. Gente receptiva a qualquer
figura mas impossível de configurar, os índios eram - para usarmos
um símile menos europeu que a estátua de murta - como a mata que os
agasalhava, sempre pronta a se refechar sobre os espaços
precariamente conquistados pela cultura. Eram como sua terra,
enganosamente fértil, onde tudo parecia se poder plantar, mas onde
nada brotava que não fosse sufocado incontinenti pelas ervas
daninhas. Esse gentio sem fé, sem lei e sem rei não oferecia um solo
psicológico e institucional onde a Evangelho pudesse deitar raízes.
(2002: 184,185)

A imagem da murta que precisa constantemente ser podada e controlada para


permanecer numa determinada forma, aponta para a agência indígena ignorada em
diversos estudos sobre estas tentativas de conversão. Entretanto, destacar a
possibilidade de ação intencional nestes processos não é o mesmo que dar ênfase à
utilização de estratégias para escapar da proposta missionária, isto seria apenas inverter
o equívoco da constante subjugação indígena. Enfatizar a intencionalidade nestes
processos, portanto, também implica em poder considerar as conversões como
legítimas, como possíveis de serem pensadas a partir de uma cosmológica. Conforme
aponta Almeida (2004) em um estudo sobre a presença de igrejas cristãs em aldeias
Kaingang, o pressuposto do qual partimos é o de não se conceber “os sistemas
dominantes (das sociedades colonizadoras) - em termos de ideologia, crença e etc -,
como um rolo compressor que atropela as concepções culturais compartilhadas pelo
grupo.” (Almeida, 2004:10).
Este tipo de perspectiva coloca em xeque uma visão bastante disseminada da
força homogeneizadora de processos como o de conversão e da passividade das culturas
locais diante de fenômenos aparentemente globais. Afirmar a sujeição das culturas
locais aos discursos evangelizadores termina por desconsiderar a possibilidade de
autonomia e de intencionalidade histórica de alguns agentes nesses processos. Marshall
Sahlins (1997a, 1997b) já havia assinalado a necessidade de se contrapor aos
paradigmas que aderem a certo “pessimismo sentimental” e que tendem a conferir à
globalização capitalista (ou evangelização cristã) o poder de dissolver a diversidade das
culturas numa única “aldeia global”, em que a singularidade e a criatividade local nada
mais são do que uma versão condensada do Ocidente. Para essa compreensão
  11  

“pessimista” o fenômeno das conversões coletivas, por exemplo, desencadearia um


processo de “desculturação” das populações locais que tenderiam a desaparecer sob a
força avassaladora dos processos hegemônicos.
Na contramão desta perspectiva, respaldado por um grande número de exemplos
etnográficos de diversas regiões do planeta, Sahlins contradiz a hipótese do
desaparecimento e da assimilação das culturas locais. Estas etnografias, longe de
evidenciarem a presença de um sistema mundial monológico e determinista, tornam
patente a capacidade das culturas locais em manipularem e agenciarem, a partir de suas
próprias lógicas e dinâmicas, os elementos culturais exteriores e diversos de sua
tradição, que a globalização lhes torna acessíveis. Assim, fenômenos como o das
conversões coletivas poderiam ser percebidos em seu caráter ativo e até contra-
hegemônico e não como indicativo do desaparecimento iminente das culturas locais.
O antropólogo colombiano Juan Diego Demara (2009) elabora em seus textos
sobre protestantismo étnico uma crítica àquilo que reconhece ser uma concepção
culturalista do processo de conversão de populações indígenas ao cristianismo. Para
Demera (2009), a aceitação massiva de algumas denominações religiosas pentecostais
em coletivos indígenas está associada à convergência entre certos rituais religiosos
dessas igrejas e a cosmologia desses coletivos. Assim, o ato de conversão passa a poder
ser compreendido menos como uma descontinuidade absoluta e mais como uma
continuidade relativa.

Ciertos puntos de contacto entre ambas tradiciones rituales


[indígena e cristã] así como una evidente continuidade entre lós
registros, evidenciada tanto en el éxito del pentecostalismo en el
medio indígena como em la interpretación del espiritu santo y de
los rituales extáticos pentecostales o incluso em la conversión de
numerosos chamanes al universo pentecostal, se acompañan
simultáneamente de una persecución sin pausas de las prácticas
rituales chamánicas y tradicionales. (Demera, 2009: 55)

Ao lançar mão deste tipo de perspectiva, os etnólogos latinos não estão


desconsiderando a arbitrariedade de algumas ações levadas a cabo por missionários ao
longo do processo de colonização e da histórica recente. Como afirmaram Vilaça (1996)
e Capiberibe (2007) trata-se unicamente de evitar a ideia fácil de que a conversão se dá
unicamente por imposição externa, para então propor um tipo de análise que enfatize a
importância da cosmologia como chave heurística destes processos. A conversão, bem
  12  

como qualquer outro fenômeno, não ocorre em um vácuo cosmológico em que as


relações já estabelecidas são interrompidas. Deste modo, as tentativas e os processos de
cristianização de povos indígenas passaram a ser interpretadas por alguns autores a
partir das sociocosmologias destes coletivos. Ao situar a sociocosmologia no centro das
preocupações é possível compreender, por exemplo, como a incorporação de alguns
elementos cristãos em coletivos indígenas pode estar mais relacionada com o imperativo
de uma cosmológica englobante, familiarizante, predatória (Fausto, 2001), do que com a
eficácia da ação missionária.
Ao tratar do cristianismo a partir de características cosmológicas de coletivos
indígenas conversos, os antropólogos têm encontrado formas para descrever as práticas,
rituais e maneiras de se relacionar com o sagrado desses sujeitos sem ter,
necessariamente, que recorrer a categorias como a de religião. A produção de descrições
da dinâmica de relação com o sagrado em populações cristãs a partir de “conceitos
alternativos” não está limitada a contextos de conversão religiosa. Joel Robbins (2011),
por exemplo, insiste na capacidade de compreensão de práticas cristãs a partir das
diferentes modulações da relação entre transcendental e mundano, do individualismo e
das ideologias da linguagem11.
Não nos interessa aqui fazer uma revisão sobre como cada um desses aspectos é
tratado pela Antropologia do Cristianismo, mas assinalar o modo pelo qual a produção
de descrições sobre populações cristãs a partir desses termos permite elaborar narrativas
menos cristalizadas sobre suas práticas e experiências. Noutras palavras, abre a
possibilidade de se refletir sobre um cristianismo transformado na medida em que é
posto em relação com características singulares de determinados contextos. A
apropriação “não cristã” do cristianismo leva os antropólogos a estranharem a sua
própria visão do cristianismo. Assim, se existe uma influência cristã na elaboração do

                                                                                                                       
11
Sobre ideologia da linguagem, Robbins afirma: “Esse termo refere-se às noções
compartilhadas pelas pessoas sobre a natureza da linguagem (como ela funciona e como deve
ser utlizada). Ideologias da linguagem variam muito entre os grupos, constituindo um
componente crucial da visão humana, não só no que diz respeito à comunicação, mas também
nas esferas da natureza do indivíduo, da ação e da moralidade. Por essas razões, as ideologias
linguísticas têm provado ser uma área muito rica de estudo, e o interesse por tais temáticas
ultrapassou muito rapidamente a fronteira dos círculos daqueles tecnicamente mais voltados
para a Antropologia Linguística. Poderíamos até dizer que a noção de ideologia da linguagem
tem sido um dos mais bem sucedidos produtos teóricos recentemente lançados pela
Antropologia como um todo” (Robbins, 2011: 21-22)
  13  

conceito de religião no Ocidente, também há um estreitamento da compreensão do


cristianismo, na medida em que ele permanece atrelado a um conceito de religião
engendrado no horizonte de uma determinada cultura cristã.

O conceito de rede: uma nova chave de compreensão da religião

A partir da década de 2000, diferentes pesquisadores passaram a problematizar


aquilo que reconheceram como um enfraquecimento das instituições religiosas frente a
um panorama fluido das crenças individuais que não se manifestou apenas por meio do
esvaziamento de fiéis das grandes tradições religiosas, como também pela pane da
laicidade que, tornou-se naquele período, um tema de pesquisa bastante explorado
(Giumbelli, 2004; Birman, 2003, Ranquetat Junior, 2010). A transformação do cenário
religioso tem colocado novas questões ao Estado laico, que entra em choque, por
exemplo, quando a administração da crença deixa de estar sob o comando de
determinadas instituições religiosas e passa a ser reivindicada por grupos
descentralizados, organizado em células e sem uma estrutura hierárquica verticalizada.12
O uso da ideia de rede nas ciências sociais da religião está relacionado com o
reconhecimento dos limites do conceito de campo para tratar da dinâmica religiosa
global e do papel assumido pelo sujeito na mediação com o sagrado. Para pesquisadores
interessado neste tema, a descrição dos fenômenos religiosos a partir da noção de campo
terminou projetando as fronteiras dos Estados-nação na análise das práticas e
instituições religiosas, invisibilizando o caráter estruturante de suas relações translocais.
Assim, diferentes pesquisadores passaram conceber a circulação de evangelizadores e
fiéis em redes internacionais articuladas pelas instituições religiosas como um elemento
central para a compreensão das dinâmicas locais e globais da crença. Com isso não
estamos afirmando que houve um aumento nas pesquisas sobre religião que adotaram
procedimentos teóricos e metodológicos afins à ideia de rede, mas que diferentes
investigações passaram a privilegiar e seguir os sujeitos e objetos em seus trânsitos
transnacionais. Em certo sentido, esse tipo de empreendimento está relacionado como
uma transformação mais ampla do cenário religioso em que os sujeitos adquirem mais
autonomia, centralizando a experiência religiosa na sua subjetividade. Diante desta

                                                                                                                       
12
Para uma descrição e análise da conformação de igrejas pentecostais não denominacionais e
organizadas em células, ver (Alves,2011).
  14  

forma de desinstitucionalização das religiões cujo efeito pode ser observado no


enfraquecimento das pertenças, as pesquisas também passaram a privilegiar mais a
reflexão acerca do crer que ao de pertencer. A consolidação de uma agenda de pesquisa
em torno dessa configuração do contexto religioso empírico – e, vale dizer, teórico que
com ele se articula – materializou-se a partir de conceitos como globalização, fluxo,
trânsito.
Ao refletir sobre o efeito do fenômeno da globalização para a antropologia da
religião, Otávio Velho (1997) assinalou, justamente, o desenraizamento dos sujeitos
como uma característica resultante dessa de fluidez do pertencimento dos sujeitos às
instituições. A própria definição do que seja globalização que Otávio Velho elabora está
relacionada a essa característica: “a globalização é um processo de decomposição e
recomposição da identidade individual e coletiva que fragiliza os limites simbólicos dos
sistemas de crença e pertencimento” (Velho,1997: 32). Para além das controvérsias em
torno do conceito de globalização, o que queremos assinalar é a produção de uma nova
mirada sobre fenômenos religiosos em que noções como de globalização e seus
análogos informam parte da produção das ciências sociais da religião no Brasil. Em
parte, esse tipo de articulação entre religião e globalização desdobrou-se em pesquisas
que deslocaram a
(...) atenção da função de cada religião para o modo como
constituem sistemas de comunicação que permitem aos
indivíduos reduzir a complexidade em que vivem aqui e agora
ao mesmo tempo imaginar “o mundo” unificado por problemas
comuns que interessam a toda espécie humana, em suma,
sistemas simbólicos capazes de pôr em relação a realidade local
com a perspectiva global (Velho, 1997: 33)

Pode-se observar, desde o final da década de 1990, um significativo conjunto de


pesquisas sobre a temática religiosa a partir da articulação global e local que
privilegiaram a análise da transnacionalização de igrejas pentecostais e práticas de
religiões afro-brasileiras no Cone Sul. Parte dessas pesquisas tem descrito a circulação
de práticas que tomam como referência as instituições religiosas, denominações e
igrejas caracterizando-se, segundo Oro (2009), como fechadas, isto é, centralizadas, sem
intercâmbio com redes locais e com um fluxo que apenas vai do Brasil para outros
países, ou então, podem ser abertas, isto é, descentralizadas e multidirecionais. Na
  15  

tentativa de dar conta desse contexto em que a religião é pensada transversalmente as


pesquisas que tem tematizado a transnacionalização também têm oferecidos importantes
contribuições metodológicas relacionadas à realização de etnografias multissituadas.

Conclusão

O reconhecimento da implicação mútua entre um processo mais amplo de


globalização e as transformações nos regimes do crer já assinaladas impõe aos cientistas
sociais da religião a necessidade de acompanhar e analisar os “efeitos do
desaparecimento de fronteiras simbólicas rígidas entre diferentes campos religiosos,
entre campo religioso e campo mágico e esotérico, entre religião e novas crenças
seculares ou para-religiosas” (Velho, 1997:57). Trata-se de situar o horizonte das
ciências sociais da religião além daquilo que supostamente é o “propriamente religioso”.
O que está em jogo, portanto, é derivar do reconhecimento da articulação entre práticas
religiosas com outras dimensões da vida social a possibilidade de elaboração de
pesquisas que escapem da reificação do conceito de religião.
As críticas produzidas desde o pós-colonialismo e da Antropologia do
Cristianismo têm contribuído para viabilizar descrições e análises que, sem deixar de
reconhecer o valor heurístico do conceito de religião, são capazes de ultrapassar os
limites relacionados a seu contexto de produção político e epistemológico. A ideia de
rede igualmente nos parece central para a formulação de abordagens mais adequadas à
atual configuração do fenômeno religioso em que a fluidez do pertencimento e as
articulações transnacionais das instituições religiosas têm levado pesquisadores a
problematizarem os localismos implicados em conceitos como o de campo religioso.
O que está em jogo não é deixar de reconhecer a importância dos processos
locais na análise dos fenômenos religiosos, mas sim de evitar a circunscrição de práticas
e signos locais à localidade. Nesse sentido, autores como Arjun Appadurai (2004) e
Jean e John Comaroff (2003) têm problematizado as consequências analíticas da
invisibilização de fenômenos globais na produção – real e epistemológica – do local.
Trata-se de questionar a máxima geertziana de que os “antropólogos pesquisam nas
aldeias”, para sugerir reflexões sobre os inúmeros fluxos globais que atravessam esses
contextos. A invisibilização das forças globais é uma espécie de conseqüência
metodológica de uma perspectiva teórica funcionalista que privilegiou os espaços de
  16  

intimidade como lócus, por excelência, da observação antropológica. Diante de


fenômenos como o da globalização, como afirmam Jean e John Comaroff (2003), parte
dos antropólogos foi tomado por um receio de perda de “objeto”, dando pouca
visibilidade aos fenômenos globais de modo que, em algum sentido, pudessem
preservar seus universos de pesquisa.
A crise do conceito de religião passa tanto pelo questionamento de sua suposta
capacidade explicativa universal, como pelo caráter local que pode imprimir nos
contextos a que se refere. A religião, seja como fenômeno empírico seja como unidade
de análise, não é algo que existe em si, como uma substância permanente, mas, antes, se
apresenta como uma configuração histórica que resulta da negociação contínua entre
formas diversas de expressar a experiência religiosa. E, o que podemos observar é que o
conceito de religião muda juntamente com os contextos sociais. Isso implica, conforme
procuramos mostrar nesse artigo, tanto a impossibilidade de projeção das fronteiras
geográficas dos países na análise da dinâmica das práticas e instituições religiosas,
como também a necessidade de produção de pesquisas que tratem a religião não como
um fenômeno autônomo da vida dos sujeitos, mas articulado conforme as disposições
criativas e multidimensionais que a modernidade, supostamente a-religiosa, tem
produzido.

 
  17  

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