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IMUNIDADE/COMUNIDADE 

por fellipe dos anjos 


28.03.2020 
 
 
Ambas  as  palavras  derivam  do  radical  latino  ​MUNUS​.  Procedem  daí: ​In-munus e 
Com-munus.​   Originalmente,  a  expressão  ​munus,​   muito  utilizada  na  filosofia 
política  e  no  direito  romano,  significava  ​"tarefa", "dever", "obrigação ou "encargo"​. 
Suas  raízes  filológicas  latinas  mostram  que  a  expressão  pode  significar,  ainda,  a 
noção  de  ​"emprego"  ou  "ofício"​.  Quando  se  dizia  que  um  determinado  sujeito 
tinha  um  ​munus  a  realizar,  os  romanos  queriam  dizer  que  ele  tinha  uma 
obrigação,  uma  tarefa.  As  ​munerações  eram  as  ​funções  oficiais  no  Império.  E, 
quem  quisesse  comprar  um  cargo  público,  porque  na  época  era  assim,  deveria 
pagar  umas  ​munerações​.  (digressão  tola:  será  que  isso  continua  acontecendo 
hoje?) É daí que vem a nossa ideia de ​re-muneração​.  
 
Aplicando  esta  análise  à  nossa  atualidade,  devemos  pensar  tanto  ​i-munização 
quanto  ​com-munidade  nesta  chave  do  ​encargo  ou  da  tarefa​.  Em  in-munidade,  o 
sujeito  tem  uma  obrigação  consigo  mesmo.  Ele  se  vê  como  não  tendo  nenhum 
dever  para  com  o  coletivo  ou  para  com  o  público.  O  prefixo (in) antes do radical 
munus  indica  uma  negação  individual  da  tarefa,  da  obrigação,  do  dever 
geralmente  demandado  pela  existência  material  do  outro.  Já  em  ​com-munidade​, 
o  sujeito  se  vê  como  protagonista  de  um  dever, um ​dever comum​, como devedor 
a  algo  ou  a  alguém  além  dele  mesmo.  A  tarefa  do  sujeito  em  ​com-munitas  é 
realizar seu dever no contexto de uma comunidade. Ele se vê assim, ​encarregado, 
munerado,​   e  espera  de  si  mesmo  que  seja  capaz  de  cumprir  as  tarefas  que 
escolheu para ser útil à uma existência coletiva.  
 
Teoricamente,  então,  ​imunidade  seria  o  inverso  da  comunidade.​   Em  situação 
imunológica  o  sujeito  não  deve  preocupar-se  em  estabelecer  laços  com  quem 
quer  que  seja,  já  que,  ali,  sua  atenção  está  voltada  aos  cuidados  devidos  à  si 
mesmo.  ​A  imunidade  rompe  obrigações  comuns  e  pertencimentos​.  Se  a 
imunização  se  assemelha  a  um  “remédio”  contra  a  violência  que  ameaça  o  ser 
humano, a mesma violência, ou pelo menos uma proporcional, virá a caracterizar 
os  procedimentos  imunitários.  Imunizamo-nos  contra  o  perigo  de  sermos 
destruídos  pelo  coletivo  da  comunidade.  Esta  é  a  tese  moderna,  por  exemplo. 
Assim,  essa  se  torna  a  lógica  a  fazer  com  que  o  discurso  imunitário  se desdobre 
em  expressões  de  racismo,  fascismo,  xenofobismo  e  produção  de  inimigos.  Há 
uma  lógica  de  defesa  imunológica  que  isola  o  indivíduo  em  si  mesmo  e 
transforma o outro num objeto a ser temido, evitado e, no limite eliminado. 
 
No  entanto,  nossa  situação  histórica  diante  da  pandemia  do  COVID-19  é 
gritantemente  PARADOXAL.  O que estamos reivindicando hoje é um processo de 
imunização  com  vistas  a  proteger  a  existência  da  comunidade.  É  uma  inversão 
absurda  no  discurso  imunitário.  Não  estamos  falando  em  imunização  como 
negação  do  comum,  do  social  e  do  político.  Estamos,  sim,  dizendo  que,  se  não 
nos  cuidarmos,  se  não  imunizarmos  nosso  corpo, podemos constituir um perigo 
de  morte  para  a  comunidade. E, porque não queremos que a comunidade morra, 
voltamos  a  pensar  e  a  pedir  a  imunidade  do  nosso  corpo.  Paradoxo.  Inversão. 
Talvez  seja  a  primeira  vez  na  história  recente  que  o  paradigma  imunológico  não 
se  refira  à  proteções  individuais  e  à  defesas  de  privilégios  para  indivíduos. 
Trata-se  de  uma  situação  inédita  e  paradoxal  de  "imunização  comunitária",  de 
distanciamento  social  para  preservação  do  potencial  vivo  da  comunidade. 
Imunizar  para  comungar.  Distanciar para aproximar. Imunizar para cumprir uma 
tarefa  coletiva,  para  cumprir  um  encargo  social,  para  desempenhar  um  munus 
comunitário. 
 
Este  trabalho  será  muito  difícil  para  os  narcisistas,  para  os  egoístas  e  para  os 
individualistas.  Mas,  há  saída.  É  possível,  também,  uma  inversão,  uma conversão 
de  lógica,  que  seja  libertadora  até  para  essas  pessoas.  Há  um  caminho espiritual 
para  transformar  ​imunização  em  comunidade.​   Lembro-me  das  palavras  do 
Apóstolo  Paulo  (Romanos  13.9):  "​a  ninguém  devais  coisa  alguma,  a  não  ser  o 
amor"​.  É como se Paulo dissesse: "​A ninguém munizais coisa alguma".​  Nesta hora, 
fico  imaginando  um  sujeito  vaidoso,  egocêntrico,  narcisista,  ouvindo  isso  e 
dizendo:  "eu  sabia,  não  devo  nada  a  ninguém!  ​Minha(?)  vida  ​eu(?) só devo a mim 
mesmo!"  Imunização  narcísica:  negação  do  outro,  proteção  do  outro,  defesa 
contra  o  outro.  Lógica  de  guerra.  Negação  da  comunidade, cuidado diabólico de 
um  eu-absoluto.  "​Venha  a  mim  o  Reino"​.  Aí,  Paulo  diria,  não  sem  uma  dose  de 
ironia,  não sem aquele jogo de palavras que lhe é peculiar, fazendo uma sentença 
posterior  anular  e  suspender  a anterior: "Calma, tá apressado Lúcifer? Eu disse ​a 
ninguém  devais  coisa  alguma  a não ser o amor​. Ou seja, você tem um ​munus,​  sim, 
senhor!  Seu  ​munus  é  o  amor  ao  mundo.  Logo,  não  fará  o  menor  sentido  você 
pensar  numa  imunização  que  não  seja  por  amor  ao  outro".  Sorrisos  apostólicos 
de canto de boca. A isso, a este cuidado com a saúde da vida que se manifesta em 
desejo de preservação da vida do outro, a bíblia chama ​santidade​.  
 
Deus  é  santo  porque  deseja,  doa,  resgata e preserva a vida viva. E, nesse sentido, 
nós  podemos  imitá-Lo.  Santidade  não  é  a  purismo  isolacionista,  a  higiene 
ascética  que  se  transforma  em  higienismo  social,  xenofobia,  racismo, 
etnocentrismo,  fascismo,  campos  de  exterminação.  Santidade  não  é  a 
imunização moral do Um, do supereu individualista. 
 
Antes  e  além,  santidade  diz  respeito  à  saúde  integral  e  radical  da  comunidade 
como  efeito  espiritual,  teológico-político  e  ecológico  dos  cuidados  que a pessoa 
exerce  sobre  si  mesmo  e  sobre  o  mundo  do  comum.  Não  existe  indivíduo  e 
lógica  imunológica  nos  evangelhos.  O  que  existe  é  comunhão  e  trabalho  de 
cuidado  de  si  para  que  a  comunhão  seja preservada saudável e íntegra. Em Jesus 
aprendemos: imunizamos nosso como gesto de amor e de cuidado do outro. 
 
Portanto,  cuide-se.  Cuide  do  seu  corpo,  Cuide  da  sua  saúde.  Fique  em  casa. 
Imunize  o  mundo  do  vírus  da  sua  ganância.  Imunize  o  mundo  do  vírus  da  sua 
indiferença.  Imunize  o  mundo  da  sua  irresponsabilidade  para  com  a  saúde  do 
próximo.  Imunize  o  mundo  do  seu  negacionismo.  Imunize  o  mundo  do  seu 
egocentrismo.  Fique em casa. Passa álcool gel na mão. Imunize-se. Santifique-se. 
Atualmente, este será o maior gesto de amor ao próximo.  
 
 
 
 
 

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