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Toda culturai se constrói a partir da mistura com outras culturas: toda história se
desenvolve a partir da intersecção com outras histórias. Exemplo disso pode ser
encontrado nas celebrações natalinas da tradição judaico-cristã. Conforme Auguste
Hollard, ninguém sabe ao certo o dia em que Jesus nasceu, pois a data do seu
nascimento não é mencionada na Bíblia e não existe comprovação histórica de ele ter
nascido em 25 de dezembro. O Natal, portanto, é uma criação cultural que surgiu entre
os séculos III e IV d.C. – e alguns historiadores afirmam que foi o Papa Júlio I que
oficializou a data em 350 d.C.
Contudo, uma das principais hipóteses sobre a origem do Natal está no festival pagãoii
do Sol Invicto ou Sol Invencível, reconhecido pelo Imperador Romano Aureliano em
274 d.C. e realizado em devoção a Mitra, uma divindade presente na mitologia indo-
ariana da Índia, da Pérsia e da Anatóliaiii. Mas antes disso, igualmente na Roma Antiga,
nessa mesma época de dezembro aconteciam as tradicionais festividades da
Saturnália, em celebração ao deus romano Saturno e em decorrência do solstício de
inverno. Acontece que com o crescimento do cristianismo a partir do século IV d.C.,
provavelmente o significado ainda presente da celebração natalina provém de uma
tentativa de ressignificação da data por parte dos cristãos, com o intuito de enfraquecer
as celebrações pagãsiv.
Dessa maneira, toda e qualquer leitura da simbologia da Arte Real precisa levar em
conta o sincretismo da cultura maçônica, o qual carrega milênios de conhecimento
acumulado com a finalidade de se lapidar a pedra bruta da essência humana.
Obviamente, é preciso reconhecer que essa visão é uma das várias possíveis visões
existentes no cerne da Maçonaria, eis que a Maçonaria é uma instituição que defende
a liberdade de expressão e o pluralismo, combatendo o sectarismo político e religioso,
como disposto no art. 1º, incisos IV e XIII da CGOBx. Mas para que a cultura maçônica
seja interpretada conforme seus princípios e suas interconexões simbólicas, parece
razoável que se peregrine em prol de uma ótica que reconheça seu sincretismo como
parte fundamental do que ela é e representa, deixando para trás interpretações
dogmáticas e ortodoxas que possam vir a comprometer a jornada maçônica.
Acontece que a inscrição “YOD”, décima letra do alfabeto hebraico, representada por
um sinal gráfico que se assemelha a uma vírgula, é de difícil tradução e interpretação.
Com o correr dos séculos, transformou-se então em um símbolo mais simples: a letra
“G”. Dado que essa transformação provavelmente ocorreu na Inglaterra, intuiu-se que a
letra “G” corresponderia a uma representação de Deus (God, em inglês), e, portanto,
de GADU – o Princípio Criador maçônico. Contudo, aventa-se mais racional supor que
a letra “G” não significa GADU, mas geometria. É o que explica Kennyo Ismail:
Criador, mas a uma manifestação desse Princípio Criador por meio de uma das suas
criações que pode ser manipulada pelo ser humano: a geometria.
Mas ainda que a geometria seja uma ciência operável pelo ser humano, compondo o
cotidiano da Maçonaria Operativa, suas implicações profundas sempre foram objeto de
estudo na filosofia e no misticismoxv. Pitágoras, por exemplo, filósofo que, segundo
Bernadette Siqueira Abrão, “teria nascido na Jônia, na segunda metade do século VI
a.C.”, apregoava que tudo o que existe pode ser reduzido a figuras geométricas
simples por meio de números, os quais expõem a natureza dual do Universo: “limite e
ilimitado; ímpar e par; uno e múltiplo; direita e esquerda; masculino e feminino;
imobilidade e movimento; reto e curvo; luz e obscuridade; bem e mal; quadrado e
retângulo”. A harmonia entre esses opostos, na lógica pitagórica, “ocorre quando há
uma medida justa (métron), exata, de cada um”, pois a “inexistência dessa harmonia é
a responsável pela desordem no mundo, tanto em relação ao aspecto biológico
(masculino e feminino) quanto ao âmbito moral e político (bem e mal)”xvi.
[de] que o” ser humano “possui 10 dedos e que o nosso sistema de numeração tem
base decimal”. Ademais, uma importante interface entre o 10 e o 4 é que “a quarta letra
do alfabeto grego”, o delta, “é justamente a inicial da palavra grega decas (décade [ou
10, em tradução livre]), trazendo “a forma de um triângulo equilátero”xix. Vê-se, nesse
diapasão, que o símbolo pitagórico da tetraktys, existente na cultura helênica milênios
antes de Cristo, corresponde ao Delta Sagrado hebraico do qual se transfigurou o
intraduzível “YOD” para a universalmente conhecida letra “G”.
Nesse jaez, ainda que a letra “G” se conecte com a geometria, não é equivocado supor
sua representatividade como gnose, substantivo feminino grego que significa
“conhecimento” ou “consciência”. Como a transformação da Maçonaria Operativa em
Maçonaria Especulativa implicou na passagem da Maçonaria enquanto arte da pedra
real, esta desbastada pela geometria, para a Maçonaria enquanto arte da pedra
espiritual, esta desbastada pela gnose (ou seja: pelo conhecimento), não parece errado
supor essa possibilidade, já que os Instrumentos de Trabalho da Maçonaria, como o
malho, a régua de 24 polegadas ou o cinzel, não visam a construção de catedrais
externas, mas a construção de catedrais internas mediante o contínuo aperfeiçoamento
maçônico.
Não se está afirmando (e é fundamental que isso fique sublinhado) que a letra “G”
significa gnose e não geometria. O que é afirmado, por outro lado, é que a simbologia
da geometria para a maçonaria, em não se tratando de uma geometria que se vincula
ao trabalho manual, mas ao trabalho espiritual, implica na busca pelo conhecimento
maçônico que deve permear toda a vida do Maçom. Assim, essa busca por significados
da letra “G” aqui sumariamente abordada, é literalmente uma caminhada
xx
gnoseológica , já que seu intuito é tratar da origem, da essência, do alcance e das
formas que o conhecimento pode assumir, qual menciona José Salgado Martins ao
definir o termo “gnoseologia” para a filosofiaxxi. Reconhecer que a Maçonaria carrega
heranças de diversas culturas e não apenas do contexto judaico-cristão, é verificar sua
riqueza simbólica sincrética e admitir, mais ainda, que não existe uma “cultura pura” ou
uma “história pura”, mas que toda cultura e toda a história são feitas do rescaldo de
diferentes culturas e histórias.
_________________________________________
EDUARDO MATZEMBACHER FRIZZO
AprCIM 330499
i
“Cultura é um conceito amplo que representa o conjunto de tradições, crenças e costumes de
determinado grupo social. Ela é repassada através da comunicação ou imitação às gerações seguintes.
Dessa forma, a cultura representa o patrimônio social de um grupo sendo a soma de padrões dos
comportamentos humanos e que envolve: conhecimentos, experiências, atitudes, valores, crenças,
religião, língua, hierarquia, relações espaciais, noção de tempo, conceitos de universo”. DIANA, Daniela.
Cultura: o que é, características, elementos e tipos. Disponível em https://www.todamateria.com.br/o-
que-e-
cultura/#:~:text=Cultura%20%C3%A9%20um%20conceito%20amplo,ou%20imita%C3%A7%C3%A3o%2
0%C3%A0s%20gera%C3%A7%C3%B5es%20seguintes. Acesso em 29.06.2023.
ii
“O paganismo é um movimento religioso contemporâneo que acredita em vários deuses, sendo a
natureza sacralizada e cultuada em ritos sazonais, com adaptações para a vida na sociedade moderna”.
BEZERRA, Karina Oliveira. Paganismo contemporâneo no Brasil: a magia da realidade. Disponível em
http://tede2.unicap.br:8080/handle/tede/1124#:~:text=O%20paganismo%20%C3%A9%20um%20movime
nto,a%20vida%20na%20sociedade%20moderna. Acesso em 29.06.2023.
iii
Para informações generalistas acerca do deus Mitra, consultar: ALVES, Leonardo Marcondes. O culto
de Mitra e sua pesquisa acadêmica. Disponível em https://ensaiosenotas.com/2018/10/29/o-culto-de-
mitra-e-sua-pesquisa-academica/. Acesso em 29.06.2023.
iv
HOLLARD, Auguste. As origens das comemorações do Natal. Disponível em
https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/124023. Acesso em 29.06.2023.
v
Embora a transformação da Maçonaria Operativa em Maçonaria Especulativa não se trate do foco
desse trabalho, é interessante a seguinte nota: “[...] com o fim do Renascimento, o movimento gótico
lentamente se extingue e as lojas de pedreiros operativos começam a declinar e a perder membros, mas
na razão inversa, começam a ser visitadas por burgueses e estudantes de ciências ocultas (alquimistas,
rosacruzes, etc.) que tentados pelos conhecimentos e forma de estar dos pedreiros operativos, influíram
para elas. E partir do momento em que as lojas operativas aceitaram estes novos pedreiros, que se
transformaram em lojas especulativas. Não lojas onde se tratam assuntos de construção e fraternidade
entre homens, mas para lojas onde o Homem é o centro da discussão. Originado um pensamento, o
Homem deixou de ser construtor de catedrais, templos externos para construírem/desenvolverem o seu
templo interno, o seu Eu”. NUNO, Raimundo. Maçonaria Operativa/Maçonaria Especulativa. Disponível
em https://www.freemason.pt/maconaria-operativa-maconaria-especulativa/. Acesso em 27.06.2023.
vi
ANATALINO, João. O primeiro Maçom. Disponível em
https://www.recantodasletras.com.br/resenhasdelivros/3227754. Acesso em 27.06.2023
vii
SPOLADORE, Hercule. Maçonaria: passado, presente e futuro: o Maçom dentro do contexto histórico.
Disponível em
https://www.gvaa.com.br/revista/index.php/OBuscador/article/viewFile/5066/4325#:~:text=A%20Ma%C3
%A7onaria%20Operativa%20n%C3%A3o%20era,encaixa%20muito%20nos%20acontecimentos%20hist
%C3%B3ricos. Acesso em 27.06.2023.
viii
GARCIA, Célio de Pádua. Entendendo o Sincretismo. Disponível em
https://revistasenso.com.br/cristianismo/entendendo-o-sincretismo/. Acesso em 27.06.2023.
ix
Art. 2º. São postulados universais da Instituição Maçônica:
I – a existência de um princípio criador: o Grande Arquiteto do Universo;
II – o sigilo;
III – o simbolismo da Maçonaria Universal;
IV – a divisão da Maçonaria Simbólica em três graus;
V – a Lenda do Terceiro Grau e sua incorporação aos Rituais;
VI – a exclusiva iniciação de homens;
VII – a proibição de discussão ou controvérsia sobre matéria político-partidária, religiosa e racial, dentro
dos templos ou fora deles, em seu nome;
VIII – a manutenção das Três Grandes Luzes da Maçonaria: o Livro da Lei, o Esquadro e o Compasso,
sempre à vista, em todas as sessões das Lojas;
IX – o uso do avental nas sessões.
x
Art. 1º. A Maçonaria é uma instituição essencialmente iniciática, filosófica, filantrópica, progressista e
evolucionista, cujos fins supremos são: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Parágrafo único. Além de buscar atingir esses fins, a Maçonaria:
I – proclama a prevalência do espírito sobre a matéria;
II– pugna pelo aperfeiçoamento moral, intelectual e social da humanidade, por meio do cumprimento
inflexível do dever, da prática desinteressada da beneficência e da investigação constante da verdade;
III – proclama que os homens são livres e iguais em direitos e que a tolerância constitui o princípio
cardeal nas relações humanas, para que sejam respeitadas as convicções e a dignidade de cada um;
IV – defende a plena liberdade de expressão do pensamento, como direito fundamental do ser humano,
observada correlata responsabilidade;
V – reconhece o trabalho como dever social e direito inalienável;
VI – considera Irmãos todos os Maçons, quaisquer que sejam suas raças, nacionalidades, convicções ou
crenças;
VII – sustenta que os Maçons têm os seguintes deveres essenciais: amor à família, fidelidade e
devotamento à Pátria e obediência à lei;
VIII – determina que os Maçons estendam e liberalizem os laços fraternais que os unem a todos os
homens esparsos pela superfície da terra;
IX – recomenda a divulgação de sua doutrina pelo exemplo e pela palavra e combate, terminantemente,
o recurso à força e à violência para a consecução de quaisquer objetivos;
X – adota sinais e emblemas de elevada significação simbólica;
XI – defende que nenhum Maçom seja obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei;
XII – condena a exploração do homem, os privilégios e as regalias, enaltecendo, porém, o mérito da
inteligência e da virtude, bem como o valor demonstrado na prestação de serviços à Ordem, à Pátria e à
Humanidade;
XIII – afirma que o sectarismo político, o religioso e o racial são incompatíveis com a universalidade do
espírito maçônico;
XIV – combate a ignorância, a superstição e a tirania.
xi
CASE, Paul Foster. A Letra G Maçônica. Trad. de S. K. Jerez. Disponível em https://bibliot3ca.com/a-
letra-g-maconica/. Aceso em 27.06.2023.
xii
CASTRO, Boanerges B. O Delta Sagrado. Disponível em https://www.freemason.pt/o-delta-sagrado/.
Acesso em 27.06.2023.
xiii
ISMAIL, Kennyo. A letra “G” na Maçonaria. Disponível em
https://www.noesquadro.com.br/simbologia/letra-g-na-maconaria/. Acesso em 27.06.2023.
xiv
“Caos. Do grego káos, do verbo khainen, abrir-se, entreabrir-se. 1. Termo utilizado aparentemente
pela primeira vez na Teogonia de Hesíodo (séc. VIII a.C.), designando o vazio causado pela separação
entre a Terra e o Céu a partir do momento de emergência do Cosmo. Designa também para os gregos o
estado inicial da matéria indiferenciada, antes da imposição da ordem dos elementos. 2. Na física
moderna, designa a imprevisibilidade de sistemas complexos, isto é, a existência de fenômenos em
relação aos quais não é possível fazer previsões ou cálculos precisos dadas alterações, mesmo que
pequenas, nas condições iniciais”. JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de
Filosofia. 5. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. Disponível em
https://sites.google.com/view/sbgdicionariodefilosofia/caos. Acesso em 29.06.2023.
xv
“Não! Absolutamente, o Misticismo não é uma religião! Nunca se esqueça de que toda e qualquer
religião deriva, direta ou indiretamente, do Misticismo. Misticismo é um tipo de Conhecimento – conforme
já foi dito anteriormente – e Religião é um tipo de crença baseada na Revelação, nos Rituais e nos
Dogmas. O religioso não experimenta, não aceita a menor dúvida sobre o cerne de sua crença ou
doutrina, pois aquilo em que acredita é a Verdade Suprema e Absoluta revelada por uma “Entidade
Superior” – um deus, um espírito, um anjo, etc. – para o “Eleito”, o fundador daquela religião. Já o
Misticismo parte de princípios obtidos através da experimentação pessoal e individual – sem a mínima
conotação de Revelação – e também da comprovação e repetitividade de tudo aquilo que é ensinado
para os seus estudantes. O Misticismo admite inovações e retificações, enfim, aceita acréscimos de
novos conhecimentos ou, então, até mesmo a supressão de algumas coisas que antes eram entendidas
de uma certa maneira e que, com o decorrer dos tempos e das experimentações, constatou-se serem
exatamente daquela maneira como era ensinada anteriormente e, por esse motivo, deverão ser
abandonadas ou modificadas”. MILHOMENS, N. O Misticismo à Luz da Ciência. São Paulo: Ibrasa,
1997. In: RODRIGUES, Marcel Henrique. A Rosa-Cruz: os primórdios de uma fraternidade esotérica.
Disponível em https://www.metodista.br/revistas/revistas-
unimep/index.php/impulso/article/download/3026/1942. Acesso em 28.06.2023.
xvi
ABRÃO, Bernadette Siqueira. História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2004. pp. 28-29.
xvii
xviii
NOBRE, Nídia. Sobre a Tetraktys Pitagórica. Disponível em
https://www.matematicaparafilosofos.pt/sobre-a-tetraktys-pitagorica/. Acesso em 28.06.2023
xix
SILVA, Roberto Aguilar M. S. Pitágoras e a Maçonaria. Disponível em
https://www.freemason.pt/pitagoras-e-a-maconaria/#:~:text=resto%20da%20sociedade.-
,A%20Tectraktys%20Pitag%C3%B3rica%20e%20o%20Delta%20Ma%C3%A7%C3%B3nico,ou%20seja
%2C%20a%20perfei%C3%A7%C3%A3o%20inici%C3%A1tica.. Acesso em 28.06.2023.
xx
Para que não se confunda gnoseologia com gnosticismo, consultar: QUIRINO, Sérgio. Gnosticismo
Maçônico. Disponível em http://bensodicavour.org.br/artigos/163-gnosticismo-maconico/. Acesso em
29.06.2023.
xxi
MARTINS, José Salgado. Preparação à Filosofia. Porto Alegre: Globo, 1978.