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imagem da capa
© Rozenn Len Gall.
Todas as colagens que ilustram esta edição são concebidas por Rozenn Len Gall.

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Obra do homenageado

Poemas (1930)
História do Brasil (1932)
Tempo e eternidade [com Jorge de Lima] (1935)
O sinal de Deus (1936)
A poesia em pânico (1937)
O visionário (1941)
As metamorfoses (1944)
Mundo enigma (1945)
O discípulo de Emaús (1945)
Poesia liberdade (1947)
Janela do caos (1949)
Contemplação de Ouro Preto (1954)
Poesias [1925-1955] (1959)
Siciliana (1959)
Tempo espanhol (1959)
Alberto Magnelli (1964)
Italianissima. 7 murilogrammi (1965)
Carta geográfica (1967)
A idade do serrote (1968)
Espaço espanhol (1969)
Convergência (1970)
Poliedro (1972)
Retratos-relâmpago (1973)
Ipotesi (1977)
Transístor (1980)
Janelas verdes (1989)

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Natal – RN

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Pertenço à categoria não muito numerosa dos que se
interessam igualmente pelo finito e pelo infinito.
Atraem-me a variedade das coisas, a migração das
ideias, o giro das imagens, a pluralidade de sentido de
qualquer fato, a diversidade dos caracteres e
temperamentos, as dissonâncias da história.

Murilo Mendes, Poliedro

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sumário

13 Apresentação
viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça
transcendente

21 Murilo Mendes: uma poética da dissonância


por Valmir de Souza

34 A poesia em pânico: dualismo, rebeldia e reconstrução


em Murilo Mendes
por Maria Domingas Ferreira de Sales
e Sílvio Augusto de Oliveira Holanda

47 As Berenices: religando os fios


por Maria Laura Müller da Fonseca e Silva

57 POEMAS (1)

Carlos Cardoso
Rodrigo Garcia Lopes
Cristiana Pereira da Cunha
Diogo Costa Leal
André Ribeiro
Daniel Mendes
Angelita Guesser
Milton Rezende
Huggo Iora

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121 Janelas verdes: Portugal, memória e escrita de si em
Murilo Mendes
por Filipe Amaral Rocha de Menezes

137 Marilyn, a girafa e as mil salas


por Patrícia Aparecida Antonio

150 Harpa de obuses: o fascismo na mira da poesia muriliana


por Gustavo Henrique de Souza Leão

163 POEMAS (2)

Francisca Maria Fernandes


Wemerson Felipe Gomes
Jeferson Barbosa
Sebastião Ribeiro
Lourenço de Almeida Duarte
Mariana Godoy
Fábio Pessanha
Delalves Costa

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apresentação

viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça


transcendente.
Murilo Mendes

Murilo Mendes encabeça a pequena lista dos nossos poetas


cosmopolitas. Viajou pela primeira vez à Europa em meados dos
anos 1950 e mais tarde neste continente constituiu sua vida
pessoal, intelectual e criativa. Bélgica, Holanda, Itália, França são
alguns dos países mais citados quando se busca construir seus
itinerários pelo mundo. Mais tarde, vai viver em Portugal, onde
concluiu sua existência. E todo esse périplo começa, quando se
muda de Juiz de Fora, Minas Gerais, para o Rio de Janeiro com o
irmão mais velho. É na então capital do país que se constitui, outros
trânsitos, além do geográfico: as experimentações profissionais e
também criativas. O contato com alguns nomes da vida literária de
então, tais como Ismael Nery, fará com que se constitua o poeta
que se apresenta em livro, pela primeira vez, em 1930.
Mais de três décadas depois e com uma obra capaz de sustentar
uma ainda mais robusta antologia ― a primeira publicação do tipo
foi Poesias e reunia o trabalho composto entre 1925 e 1955,
deixando de fora materiais que o poeta, severo crítico de si, revia

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ao longo do tempo como impraticáveis, “supérfluos ou repetidos”
― publica pela Moraes Editora, em Lisboa, Antologia poética.
Parte da impressão do livro foi feita no Brasil sob o selo da Livraria
Agir Editora. Numa espécie de prefácio deste livro de autoexame,
como bem podemos designar toda antologia organizada pelo
próprio autor, o poeta mineiro redige uma nota e, entre outras
coisas, diz que é este “o livro-resumo de alguém que desde
adolescente crê na força da poesia como técnica social e individual
de interpretação da matéria da vida.”
Ora, o pequeno excerto apresentado situa uma variedade de
sugestões. A primeira delas, claro está, é o aspecto periférico.
Trata-se de um registro escrito pelo próprio poeta em modo de
pista para uma leitura da sua obra; a depender de como o leitor
encontre com essa passagem os sentidos em relação ao livro se
transformam. Assim, se deparar com a nota no final da leitura pode
implicar a conclusão ainda não alcançada totalmente ou mesmo
um retorno para o ponto inicial do conjunto de textos a fim de
atravessá-lo outra vez; se, na ordem que está posta, para os
leitores mais metódicos que não mergulham numa leitura sem
antes perscrutar os elementos que antecedem o corpo do objeto
que tem em mãos, um prenúncio sobre o que este percurso lhe
reserva; se ao acaso, pode ser este o ponto desencadeador para
entrar em contato com o livro; se pelo trajeto irregular, um fio
organizador da leitura. As possibilidades, portanto, são bem
diversas. E em todas elas cumprem com um papel organizativo, o
que é, afinal, toda nota introdutória e todo trabalho de antologia.
A errância de sentidos nascida do contato do leitor com esta
nota que não se constitui do simples critério demonstrativo é uma
boa maneira de se compreender a obra de Murilo Mendes. Embora
a crítica já tenha estabelecido quais são suas regularidades,
sintetizado assim suas faces, este é um universo poético bastante
singular, propositalmente afeito ao irregular. E a razão disso se
oferece pela maneira sempre questionadora como o poeta
emprega os usos da linguagem, das formas, das estruturas, dos
temas e dos materiais para a feitura do poema. É dessa maneira
que podemos designar sua poética como resultada de um contínuo
desejo que não se deixa captar pela simples expressão de origem
subversiva. Sim, há poetas assim por uma espécie de impulso de
natureza virulenta; estes podem ser designados como rebeldes. Em
sua maioria são frágeis, não se sustentam fora das redomas que
criaram para si. No entanto, esse não é o caso aqui; a subversão do

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poeta de As metamorfoses não é impulsiva, logo, não se trata de
pura rebeldia. É rebeldia ciente. Isso significa que nada de suas
decisões inovadoras devem ser lidas como casuais ou produzidas
apenas a posteriori dos efeitos de um universo de polivalências.
Parece fazer sentido que tratamos de uma ousadia criativa
desinteressada dela própria como ideologema, isto é, da ousadia
enquanto teorética ou mesmo tema, e preocupada em oferecer
novas condições capazes de ressignificar usos, forças, sentidos,
formas e estruturas de linguagem, o que, no fim de tudo, é o
princípio em-si e básico da poesia, sobretudo, da poesia constituída
nesse período de Murilo Mendes, marcada pela inovação.
O mundo engendrado pelo poeta não é feito apenas de
contínuo questionamento das coisas mas de proposições capazes
de nos colocar, em deslocamento, em contato com outras ordens.
Trata-se de uma poética que prova dos sentidos usuais para fazê-
los por deformação, modificação ― ou seja ampliação ― em
divergências. Assim é o seu catolicismo, suas maneiras de expor os
impasses do mundo corrompido pelas artimanhas do capital, da
tecnologia em ritmo de ascensão vertiginosa e dos poderes
cinzentos, e questionar os próprios limites autoritários das
estruturas e das formas artísticas. Esta é uma poética nascida do
confronto entre o eu e o mundo, uma vez que compreende a
poesia como força propulsora da matéria da vida.
O liminar constitui um início de algo, é o que se coloca no início
de um livro, como um prólogo, um prefácio; o liminar é ainda ponto
de passagem, o limite. No âmbito jurídico, é um pedido específico
nos processos quando não existem requisitos legais; por ela, a
autoridade judicial pode confirmar ou invalidar algo; é sempre
provisória. Todos esses sentidos participam no jogo intelectivo
desse fragmento da profissão de fé do poeta. Assim, se
compreende desde o título da apresentação ao livro de 1964,
“Nota liminar”, como uma consciente provocação: o poeta
subverte o aspecto periférico de um livro, uma nota, ao torná-la
essencial. Oferece uma via de acesso entre o projeto literário
conduzido até então e os possíveis desdobramentos posteriores a
antologia; e estabelece um tratamento instrutivo e judicativo
provisórios ao seu leitor. A provisoriedade não se restringe ao
tempo do livro, isto é, um designativo para a antologia, mas à
própria compreensão da atividade criativa, toda ela feita da
variabilidade de intelecção acerca do fenômeno poético.

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O poeta especifica que desde a juventude a poesia lhe é “técnica
social e individual de interpretação da rude matéria da vida”.
Afasta-se, desse modo, a ideia romântica do acaso ou da
espontaneidade de criar, esta última algo recorrente entre os
poetas modernistas e constitui em Murilo Mendes o seu contrário,
isto é, no que podemos designar como um grau consciente da
feitura do poema; este é um objeto constituído pelo trabalho
intelectual, logo, alimentado por todas as forças que participam no
seu estabelecimento. Assim, não é apenas uma propriedade do
sentir e do pensar; sentimento e pensamento acessam o mundo e
nele buscam os elementos que lhe dão consistência. É aqui que a
poesia, como potência movente e mobilizadora, se avizinha e se
imiscui de outras manifestações e práticas de linguagem. Nesse
caso, os elementos constitutivos do universo do poeta são as suas
reminiscências de memórias, os episódios capturados pelos
sentidos, os fenômenos indecifráveis que participam da realidade
física das coisas, o funcionamento das ideologias e toda
parafernália interposta entre o eu e mundo.
Uma maneira de compreender a obra de Murilo Mendes, de
contorno desmesurado, é deixar-se errar pela variabilidade
proposta por um poeta que rejeita o estático e se integra nunca
comodamente aos múltiplos deslocamentos propiciados pela
contínua movência dos sentidos. É também essa movência que faz
encontrar o díspar e do entrechoque entre elementos de natureza
irregular se forma outra ordem, outra lógica ― e então estamos
integrados a um universo que foge das oposições, dos
estereótipos, das expressões normais do mundo. É nesse sentido
que a obra desse poeta se constitui entre as mais valiosas da nossa
literatura; produto de uma consciência desenvolta, movida pela
dispersividade e ciente de que a partir de então, desta, ninguém
mais escapará, essa obra se tornou ao mesmo tempo expressão de
seu tempo e singularidade universal e perene.

Pedro Fernandes de Oliveira Neto


Diretor da Revista 7faces

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Murilo Mendes (1901-1975)

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o homenageado

Murilo Mendes, considerado um dos grandes poetas modernos,


ainda moço, no início dos anos 1920, migrou de Juiz de Fora, onde
nasceu em 1901, para o Rio de Janeiro, perfazendo uma trajetória de
inquietação quanto às práticas vigentes na cultura brasileira. Atuou na
então capital federal de forma contundente como “artivista” cultural:
em sua casa reunia amigos-artistas-escritores e intervinha em
apresentações no espaço público, fustigando o bom comportamento
burguês. Seu anedotário registra que, certa vez, depois de
cumprimentar os funcionários do Banco onde trabalhava, tirou o
chapéu para o cofre numa reverência ao “dono do Banco”. Eventos
assim indicavam seu papel na “insurgente vaga modernista” que
provocava a ruptura com os valores vigentes (PICCHIO, 1988, p. 5 e 6).
Essa performance irreverente anda em paralelo com uma prática
literária inconformista em relação aos ícones culturais e históricos,
como se vê em obras como Poemas (1930) e História do Brasil (1932).
Com seus poemas-piada incríveis “derrubava” as estátuas de heróis da
história oficial. Espírito iconoclasta.

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Sua conversão ao Catolicismo em 1934 marcou profundamente a
vida e a produção criativa, a ponto de reestruturar o enfoque de sua
poesia: da extroversão inicial passa a uma introspecção espiritual,
produzindo uma poesia contemplativa ao lado de uma mística
ecumênica. Apesar da guinada religiosa, não perde a veia crítica em
relação à crescente mercantilização da vida moderna, postura que se
acentua com o passar do tempo.
Em 1947, casa-se com Maria da Saudade Cortesão, filha do
historiador Jaime Cortesão. Nos anos de 1952 a 1956, em viagens pela
Europa, proferiu palestras sobre literatura e cultura brasileira. Tentou
entrar na Espanha, mas o franquismo não permitiu. Logo depois, em
1957, fixou residência em Roma. Isto lhe deu uma “projeção europeia”
que poucos autores brasileiros tiveram, não só por residir fora, mas
também por sua notória cultura clássica e por suas amizades com
artistas de grande envergadura no cenário europeu.
Na Europa, não vai para uma coqueteria internacional, mas como
professor em universidades e como poeta-pesquisador, a convite do
Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty). Escrevia também em
francês e italiano. Sua dicção literária assume outras tonalidades e
produz uma prosa poética, em forma fragmentar, ligada à memória,
criando retratos de grandes autores e artistas. No entanto, sempre
teve algum contato com o Brasil, mas se sentia “despertencido” às
duas realidades, a europeia e a brasileira, conforme Maria Betânia
Amoroso (2001, p. 138 e 139).
Ao longo de sua vida escreveu em jornais, revistas e catálogos
diversos, tanto no Brasil como na Itália. Morre em 1975, em Lisboa,
Portugal.

Valmir de Souza

AMOROSO, Maria Betânia. “Passeio pela biblioteca de Murilo Mendes”. In: Revista
Remate de Males, Departamento de Teoria Literária, Unicamp, 2001, p. 123-147.
PICCHIO, Luciana Stegagno. “Introdução”. In: Poemas e Bumba-meu-poeta. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

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MURILO MENDES: UMA POÉTICA
DA DISSONÂNCIA
por Valmir de Souza

Quanto a mim, diria que meu maior instinto é o da


liberdade, que procuro aplicar a mim e a todos. Fui,
felizmente, enfant-terrible.
Murilo Mendes

Cultura dissonante

Bem informado, Murilo Mendes sorveu de várias artes e da


cultura, e exercitou a mistura de diversas camadas do verso. Vivia
em estado de experimentação. Reivindicava viver a vida em estado
de arte, mesclando arte / vida, como os surrealistas. Assim viveu
seus dias. Não estando vinculado a escolas literárias, teve uma
formação muito ampla devido a seus vários interesses culturais e
aos contatos com amigos que forneciam subsídios para sua obra.
Com uma formação baseada na alta cultura ― desde jovem lia
Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Marx, Engels, Trótski, Corneille,
Racine ―, suas provocações se davam sempre no plano das ideias.
Apesar de solitário, no Rio de Janeiro, juntou-se a outros poetas e
artistas, como Jorge de Lima e Ismael Néry, para produzir obras de
colagens surrealistas. Enfim, um “Murilo observador do Caos, olho
armado, católico ecumênico e surrealista”, mistura explosiva que
ele assumia contra os dogmas doutrinários (MENDES, p. 963-967;
PICCHIO, 1988, p. 9).

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Murilo surrealista, dadaísta, expressionista, construtivista,
concretista, inconformista, marginal, forasteiro, transgressor,
diferente, iconoclasta, deslocado, livre pensador, gauche,
antiestablishment, enfim poeta de vertentes e veredas múltiplas.
Sua dissonância se insere no cenário do movimento modernista,
produzindo uma poética fértil e inusitada e uma obra que corria
por fora das doutrinas estéticas que preconizavam uma literatura
voltada para uma certa nacionalidade. Sem rejeitar as criações
literárias locais, reivindicava uma práxis cosmopolita, uma
literatura sem fronteiras. Poesia brasileira, mas universal. Sua
terceira margem do imaginário, muito próxima dos movimentos
surrealistas pela quebra das convenções artísticas, operava a
crítica aos valores conservadores. Mário de Andrade afirma que,
em seus inícios, MM “difama os cânones e conceitos da Arte”
(ANDRADE, 1974, p. 44). Laís Corrêa de Araújo afirma que o poeta
era “permanentemente insatisfeito com toda forma de
acomodação ou institucionalização da poesia” (ARAÚJO, 2000
apud DRUMOND, 2016). A inquietação permanente se reflete em
seu fazer literário, numa intensa reelaboração formal. O giro
poético muriliano é também linguístico, mexendo com as
estruturas aristotélicas da linguagem: um dispositivo audacioso
que perpassa sua obra.
Interessa reler a obra de Murilo Mendes por sua contribuição
para a ampliação do imaginário poético: publicou poemas, crítica
de arte e de música e prosas diversas. Sua dissonância interna ao
movimento modernista e sua audácia cultural são aspectos
relevantes para o cenário literário ainda hoje. Atualizado quanto
ao que se debatia em seu tempo, ele construiu um projeto literário
com dicção própria, inicialmente em tom satírico e surrealista,
depois mais contemplativo. Ao contrário do que pensam alguns,
MM sempre foi atento à forma poética. Afirma ele: “Sou um
‘torturado da forma’. Desde há longos anos trabalho duramente
nos meus papéis.” (MENDES, 1994, p. 50).
Como poeta de cultura, trabalha com as grandes tradições
clássicas da literatura e com as contribuições das vanguardas
artísticas, além de dialogar com as artes de seu tempo. Tece, assim,
uma relação dinâmica com a história ao construir um fecundo
universo literário. Enfim, em sua vasta poética, veste-se da
potência transformadora da rotina maquinal, seguindo a “tradição
de ruptura” e a “estética da surpresa” (PAZ, 1984, p. 17-35). Sua
obra é uma eclosão constante de novidades imagéticas. Em versos

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como “Uma forma elástica sacode as asas no espaço / e me infiltra
a preguiça, o amor ao sonho.” (“Panorama”, de Poemas, In:
MENDES, 1994, p. 98), faz brotar todo um imaginário contrastante
da rotina. Também trabalha com a perenidade de seu tempo: “Em
três épocas me observo sustentado: / Na pré-história, no presente
e no futuro.” (“Indicação”, de Parábola, In: MENDES, 1994, p. 545-
6).
Manuel Bandeira (1957, p. 166-171) registra os traços
marcantes do poeta juiz-forano: “Murilo Mendes é talvez o mais
complexo, o mais estranho e seguramente o mais fecundo poeta
desta geração”, e também um bicho da seda que tira de si mesmo
os elementos de sua poesia dialética: uma verdadeira eclosão do
“infinito íntimo” (título de um livro do poeta). De fato, assim era
visto e assim continuou a ser registrado pelas histórias da literatura
e livros didáticos, o que não deixa de fazer sentido. Lauro Escorel
também afirma as diferenças murilianas, ainda em 1944: “Murilo
Mendes convive com as ficções, com os sonhos, com as imagens,
com as ‘correspondências’, com as alucinações subjetivas, com os
mitos, que povoam o seu espírito e que dão à sua obra uma auréola
de irrealidade, embora sejam na verdade essenciais para que ele
tome plenamente posse do real.” (apud CANDIDO, 2000, p. 93).
A fama de poeta incompreensível, estranho, fantástico,
surrealista, desarticulado, exótico, se liga em parte à vida de
agitador cultural, mas também à sua “máquina poética”, com
“estilo compósito” modernista. Nesse sentido ele se faz
modernista que destoa de certa estética de alguns colegas
modernistas exatamente por seu anarcovanguardismo
individualista (MERQUIOR apud MENDES, 1994, p. 11).
Num arco maior de reflexão, pode-se dizer que as “categorias
negativas”, de Hugo Friedrich (1991), detectadas nos líricos
fundadores da modernidade, podem esclarecer pontos sobre a
poética deslinear de Murilo Mendes. “A lírica européia do século
XX, não é de fácil acesso. Fala de maneira enigmática e obscura.
Mas é de uma produtividade surpreendente.” A obscuridade dos
poetas modernos provoca no leitor a “tensão dissonante” que leva
mais à inquietação na leitura. A “obscuridade intencional”
moderna exprime-se através de “traços de origem arcaica, mística
e oculta”, os quais se opõem a “uma aguda intelectualidade”. A
poesia moderna, com um gesto de transformação do mundo e da
linguagem, faz soar o alarme, usando vocábulos “com significações
insólitas.” Enfim, com as categorias negativas talvez se possa fazer

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uma boa descrição do que seria o “poetar moderno” (FRIEDRICH,
1991, p. 15-23).
Na mesma linha, Roy Mcmullen afirma que a estratégia literária
no mundo moderno se destaca por um tipo específico de
“obscuridade” própria de poetas descontentes com o avanço da
modernização. Buscar-se-ia uma eficácia de comunicação que não
seria prosaica, mas antes pretenderia impactar o leitor com novas
informações que contrarrestassem a nascente indústria cultural.
Uma resistência que se coloca numa posição poética frente ao
desnorteio da vida moderna. Assim, a opacidade da poesia das
vanguardas do século XX propôs uma leitura desperta. “Para dizer
com palavras de Mallarmé, um poema difícil pode proporcionar à
mente de um leitor ativo ‘o delicioso gosto de crer que está
criando’” (MCMULLEN, 1969, p. 133-183).
Como veremos, essas categorias negativas estão presentes em
Murilo Mendes que, a seu modo, tornou opaca a leitura de seu
primeiro livro, Poemas (1930), formulando ideias extravagantes
para deslocar o leitor da “letargia maquinal” cotidiana, revelando
verdades interiores derivadas do choque com o mundo exterior.
Uma obra que “nem é propriamente avessa a referências
miméticas, nem renuncia a uma atitude de intervenção
(interpretativa) sobre essa mesma realidade” (DRUMOND, 2016).
Curto-circuito na realidade, na cultura e no campo literário, eis um
efeito da poesia muriliana.
É possível estudar a literatura de MM através de momentos,
fases ou de núcleos temáticos. Sua obra se caracteriza por
constantes mudanças, experimentações e modificações, e pode se
expandir a partir de núcleos poéticos (SANT’ANA apud
GUIMARÃES, 2014, p. 273-274). A ideia de um mundo em
transformação é um dos núcleos possíveis de indagação da obra
muriliana. As categorias de espaço e tempo são viradas do avesso.
Em As metamorfoses, encontramos todo um universo em mutação,
como em “Memória”: “Virar a vida pelo avesso.” (MENDES, 1994,
p. 365). Esse é um dos sentidos da dissonância que perpassa boa
parte de sua poética. Um lugar fora do lugar.
O tempo é sua matéria, não só o “tempo presente” de um Carlos
Drummond de Andrade, mas todos os tempos ao mesmo tempo.
Diz o poeta: “Passado. Presente. Futuro, / Tiro o alimento de tudo.”
E o ruído temporal-causal presente nos versos: “Em três épocas me
observo sustentado:/ Na pré-história, no presente e no futuro.” [...]
“Assalta-me continuamente o novo enigma / E uma audácia

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imprevista me pressinto. [...] “Ontem sou, hoje serei, amanhã fui.”
(“Indicação”, de Parábola, In: MENDES, p. 545-546). Um tempo
fora do tempo ao mesmo tempo.
Além disso, o que o vate faz com os elementos naturais também
é digno de nota: habitam sua poesia ― vento, nuvens, flores
diversas (magnólias, jasmins, girassóis), luas, sóis, planetas,
constelações. Pode-se dizer dele que “vivia no mundo da lua”.

Poema-ruptura

Como aperitivo, e para olhar mais de perto estes aspectos


dissonantes, vejamos dois poemas antológicos, nos quais a
realidade é subjetivada de forma inesperada e onde se percebe
também a mescla de mundos. Iniciemos com a análise do poema
“O pastor pianista”, publicado em As metamorfoses, em plena
Segunda Grande Guerra.

PASTOR PIANISTA

Soltaram os pianos na planície deserta


Onde as sombras dos pássaros vêm beber.
Eu sou o pastor pianista,
Vejo ao longe com alegria meus pianos
Recortarem os vultos monumentais
Contra a lua.

Acompanhado pelas rosas migradoras


Apascento os pianos: gritam
E transmitem o antigo clamor do homem.

Que reclamando a contemplação,


Sonha e provoca a harmonia,
Trabalha mesmo à força,
E pelo vento nas folhagens,
Pelos planetas, pelo andar das mulheres,
Pelo amor e seus contrastes,
Comunica-se com os deuses.
(MENDES, 1994, p. 343-344)

Este texto exemplifica bem sua postura poética. Já no título se


encontra a ambiguidade, jogando para dois lados: o pastor que é

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pianista ou o pianista que é pastor (?). Antonio Candido, num
estudo sobre esse poema, analisa a poesia fora das convenções
produzida por Murilo. Sem uma “camada aparente”, o texto em
questão é visto, pelo crítico, em sua organização complexa e
subterrânea, e “seria erro supor que um poema desses não tenha
organização.” A complexidade perturba qualquer intérprete
tradicional de poesia. Nessa ruptura com a normalidade, o poema
trabalha também com o elemento “surpresa” que “consiste na
ocorrência de algo inesperado, que o leitor não previa..., mas que
graças a isso o introduz num outro país da sensibilidade e do
conhecimento”. “Ora, [continua o crítico] frequentemente a poesia
se forma melhor, e sobretudo se renova, por meio das estéticas do
exagero, que rompem as associações normais e criam nexos
inesperados”. Isso acarreta “no discurso poético um teor
fantasmagórico”. Para o crítico, há um “sugestivo conflito entre a
tonalidade surreal moderna e os vestígios de um gênero arcaico”
(a poesia pastoral), operando um diálogo com o passado literário,
além de beber nas artes visuais e na música (CANDIDO, 2000, p. 81-
84).
Enfim, nesse texto paradoxal são inseridos elementos culturais
em paisagens naturais, criando uma atmosfera rica em imagens.
Elementos díspares são equiparados, criando dissonância na
expressão linguística. Além disso, a estética do estranhamento
entra em cena provocando choques na recepção.
O título do livro, As metamorfoses, em que o poema está
inserido, remete às mudanças constantes de um universo
dinâmico. E “dinamismo” é o que pode ser vislumbrado no poema
“A inicial”, que veremos mais adiante.

“O mundo às avessas”

Antes de passar para o segundo poema, cabe a retomada de um


crítico cultural, José Guilherme Merquior que, com o ensaio
“Murilo Mendes ou a poética do visionário” (1992), fez uma das
melhores análises da obra de Murilo Mendes. Deslocado da
corrente lírica predominante em língua portuguesa, com uma
“poesia da ação”, segundo o crítico, o poeta teria o sonho como
uma forma de participação no mundo, conjugando o onirismo
como “uma forma exaltada de engajamento”, misturando
“indignação” e “crítica de sua época”. Suas obras abordam a
complexidade do humano. Seu realismo penetra os objetos de seu

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interesse, abrindo-se ao social e aos temas mais pungentes de seu
tempo, vigilante sobre a realidade conflagrada do mundo (a
guerra) e sua crueldade: uma reação poética de alta densidade
humana. Suas práticas poéticas são “uma forma imaginária de
realismo”, o “imaginário enquanto realismo” (MERQUIOR, 1992, p.
68-89).
No ensaio em questão, o crítico opera uma distinção entre a
literatura fantástica e a visionária para demonstrar que a literatura
de Murilo Mendes pende para o visionário. Na literatura fantástica,
“o extraordinário” domina todo um universo, e compõe-se com o
absurdo, no qual o dínamo humano é quase ausente, sem
“nenhuma finalidade” (absurdo). Se o mundo fantástico é fechado,
o mundo visionário se compõe na diversidade, misturando o
extraordinário e a realidade, o diferente e o comum, fazendo a
transição de um plano a outro de forma natural. A obra visionária,
mais dinâmica, seria onde o humano toma o controle de suas ações
dando-lhes uma finalidade dentro de “uma lógica do acontecer, de
uma razão histórica e de uma ordem temporal ― embora não seja
esta simplesmente linear.” (MERQUIOR, 1992, p. 68-89).
A produção simbólica de Murilo se associa ao mundo concreto,
lidando com as particularidades e apresentando uma historicidade
e uma objetividade temporal, numa lógica dinâmica. Em outras
palavras, sua abstração é realizada na poesia. É o que se vê em mais
um poema de As metamorfoses, que assinalamos a seguir.

A INICIAL

Os sons transportam o sino.

Abro a gaiola do céu,


Dei a vida àquela nuvem.

As águas me bebem.

As criações orgânicas
Que eu levantei do caos
Sobem comigo
Sem o suporte da máquina,
Deixam este exílio composto
De água, terra, fogo e ar.

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A inicial da minha amada
Surge na blusa do vento.
Refiz pensamentos, galeras...
Enquanto a tarde pousava
O candelabro aos meus pés.
(MENDES, 1994, p. 338)

Ao abordar a arte muriliana, Merquior contrasta com a obra


poética de Drummond em que “o discursivo tende a impor sua lei.”
Já no poeta juiz-forano haveria “o predomínio da imagem sobre a
mensagem e do plástico sobre o discursivo”. Em suas obras o estilo
surrealista estaria muito presente, apesar de ser difícil encontrar
textos puramente surrealistas. A constância desse estilo visionário
perpassa sua produção poética e seus textos em prosa. A poética
de Murilo Mendes levaria o crítico a verificar grandes linhas do
pensamento filosófico e estético: ele teria indagado os “próprios
fundamentos do gesto artístico”. Merquior analisa as figuras
audaciosas do poeta em “A inicial”: a audácia estaria em inverter
o universo, mostrando o “mundo às avessas, o que denota também
a ideia do poeta como agente muito poderoso a ponto de
manifestar um poder de criação que contrarresta o mundo tal
como se coloca.” A poética muriliana se empenharia assim na
busca contínua da transformação do real, pois, ainda segundo o
ensaísta, “a significação do mundo reside essencialmente em seu
constante dinamismo”, e que esse movimento de mudança
poderia estar sob a “vontade criadora” do artista. Aí, o imaginário
e o real se confundem e se tocam mutuamente (MERQUIOR, 1992,
p. 68-89).
O lirismo visionário de MM se abre às propostas do Surrealismo:
ligar sonho e realidade como uma possibilidade literária,
fertilizando a realidade e criando dinamicamente um outro real. O
próprio poeta postula: “Todas as contradições se resolvem no
espírito do poeta. O poeta é ao mesmo tempo um ser simples e
complicado, humilde e orgulhoso, casto e sensual, equilibrado e
louco. O poeta não tem imaginação. É absolutamente realista.”
(MENDES, 1994, p. 834). O “As iniciais” ilustra perfeitamente essa
visão de mundo audaciosa, de uma literatura no Real.

7faces • 28
A escrita literária num mundo em crise

A produção de MM traz uma multiplicidade de temas e motivos.


João Alexandre Barbosa (1974), outro grande crítico literário,
abordando o livro Convergência, reconhece que a obra do poeta
torna difícil uma integração artificial e considera a crítica literária
insatisfatória para explicar todas as nuances e perspectivas da
literatura muriliana. Em sua análise, nota que as “interpretações
simplistas” não deram conta das diversas camadas dessa criação
cultural. Termos como surrealismo, hermetismo e nacionalismo,
colados ao nome do vate, são tidos como equivocados. Para este
ensaísta, o “equívoco crítico” sobre a produção poética do autor
ainda se mantém. Ele sustenta a ideia de uma poética baseada num
projeto, numa trajetória dissonante, não aderente às modas, cuja
linguagem sabe de seus dilemas e de sua direção. Não um projeto
premeditado por uma razão que domina o texto pela escrita, mas
percebido pelas análises posteriores.
O livro Convergência “responde a um roteiro de adequações
entre o escritor e sua circunstância, isto é, a de seu tempo histórico
e a do tempo, por assim dizer, intertextual de que a sua obra é
espaço privilegiado.” Há um trabalho voltado para a própria
linguagem, consciente de suas modificações possíveis, também
sabendo da relação entre o plano real e o poético configurado num
lirismo singular na poesia brasileira: a linguagem é sentida pelo
poeta como algo real.
No desdobramento de sua poética, haveria um movimento da
“dispersão dos primeiros livros” que abarcavam da “sensibilidade
jogada por entre as excitações da realidade” até a artesania
literária: “o poeta foi transformando a realidade da linguagem na
própria poesia do real para o qual sempre teve olhos e ouvidos
atentos” e “Entre a linguagem e a realidade passa a não mais existir
obstáculos intransponíveis” (BARBOSA, 1974, p. 120-126).
Nessa perspectiva, também se verifica a interferência nas
palavras que não é um trabalho exclusivamente metalinguístico,
voltado para uma realidade abstrata, mas intervenção em seu
tempo presente assim descrito num poema contundente de
Convergência, que apresenta a desumanização do homem. Sua
preocupação com a realidade circundante mostra as várias
desconstruções humanas.

7faces • 29
O DESOMEM

O desomem sem h desova o desomem a desmulher a


descriança.
O desomem desova o desamor o antissemitismo o
anticristismo as câmaras de gás os campos de
concentração o pânico o serrote o martelo a torquês o
pânico dos pânicos.
O desomem desova a desarte a despoesia a desmúsica
a despedida do homem.
O desomem desova a fome a peste a guerra a morte.
(MENDES, 1994, p. 717)

O poema enfatiza a desumanização presente no mundo


presente do poeta, e se encontra num livro notadamente
experimental, muito próximo das propostas do Concretismo.
Murilo humanista pensava e produzia uma literatura de
posicionamento contra a guerra, o que denota que ele sempre
esteve sintonizado com seu mundo presente, passado e futuro.
Acompanhava atentamente os acontecimentos do mundo e
escrevia sobre eles.
Como se sabe o poeta-pesquisador também escreveu textos em
italiano e francês. E para finalizar caberia uma pequena referência
a um conjunto de textos em italiano, intitulado Ipotesi, de 1968.

LA CATASTROFE

La catastrofe sa travestirsi in figure ammirevoli


[...]
La catastrofe coltiva ottime relazioni com Wall Street
Com molti personaggi del set internazionale

A catástrofe sabe se disfarçar em figuras admiráveis


A catástrofe cultiva ótimas relações com Wall Street
Com muitos personagens do set internacional
(MENDES, 1994, p. 1509-10, tradução nossa)

O poeta não se omite em relação às questões pungentes de seu


tempo. No poema acima indica o jogo dos interesses globais,
percebendo que as condições catastróficas fazem parte de uma

7faces • 30
lógica mundial e de suas negociações políticas e econômicas. Nesse
texto alça um voo de observação do caos da realidade durante a
guerra fria.

Poesia-vida

Procuramos dar uma pequena amostra da criação literária de


um dos maiores líricos da modernidade. Sua liberdade autêntica
buscava soluções inéditas na escrita poética. E era livre em
situações incontornáveis para sua época, sem deixar de ligar-se
eticamente a seu tempo. Fazia da situação contingente um
trampolim para o exercício ousado da escrita. Para quem se dizia
pertencer a uma sociedade secreta de amigos poetas que sonhava
“dinamitar” a piazza Venezia, em Roma, acabou compondo um
grande poema sinfônico, vibrante e provocante.
Murilo não tem cheiro de naftalina, nem de mofo. Cultivou uma
linguagem inquieta, não esclerosada pela ação do tempo,
constantemente renovada, sabendo envelhecer ou mesmo não
envelhecendo porque viu o seu e o nosso tempo. É um antigo-
moderno-sempre-atual. E, como ele mesmo diria: “Não sou meu
sobrevivente, e sim meu contemporâneo” e completa: “A novidade
está nos antigos.”
Fez da poesia uma prática vital: “uma afirmação de vida, o texto
é não só uma projeção da nossa personalidade: é também um
ponto de ligação com a comunidade. O texto para um poeta é
qualquer coisa de definitivo.” (MENDES, 1972).
Enfim, um poeta que diz “Ontem sou, hoje serei, amanhã fui”
merece nossa leitura atenciosa. Evoé! Entrem e divirtam-se nesse
bacanal da poesia de Murilo Mendes, uma voz das mais singulares
de nossa universal poesia.

Referências

AMOROSO, Maria Betânia. “Passeio pela biblioteca de Murilo Mendes”.


In: Revista Remate de Males, Departamento de Teoria Literária,
Unicamp, 2001, p. 123-147.
ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo:
Livraria Martins Editora, 1974.
BANDEIRA, Manuel. Apresentação da poesia brasileira. 3 ed. Rio de
Janeiro: Casa do Estudante, 1957.
BARBOSA, João Alexandre. “Convergência Poética de Murilo Mendes”.
In: A metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974.
BRESSAN, Renato T.; PERANI, Letícia. Convergências Poéticas: de Murilo
Mendes ao Twitter. Juiz de Fora: Funalfa, 2012.

7faces • 31
CANDIDO, Antonio. “Pastor pianista / pianista pastor”. In: Na sala de
aula. Caderno de análise literária. 8 ed. São Paulo: Ática, 2000.
DRUMOND, Adriano. “Murilo Mendes: um caso de identificação
merquioriana”. In: Quanto mas, Merquior! Disponível em:
<http://joseguilhermemerquior.blogspot.com/2016/06/murilo-mendes-
um-caso-de-identificacao.html>. Último acesso em: 19 de maio de 2020.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. 2 ed. Trad. Marise M.
Curioni. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1991.
GUIMARÃES, Júlio Castañon. “Elementos de um percurso” (Posfácio). In:
MENDES, Murilo. Convergência. São Paulo: Cosac & Naify, 2014.
MCMULLEN, Roy. Art, Prosperidad y Alienación. Caracas: Monte Avila
Editores, 1969.
MENDES, Murilo. Poesia e prosa completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1994.
MENDES, Murilo. “Eu viso a conciliação dos contrários”. Entrevista de
Murilo Mendes a Leo Gilson Ribeiro. In: Veja, 6 set. 1972, n. 209.
MERQUIOR, José Guilherme. “Notas para uma Muriloscopia”. In:
MENDES, Murilo. Poesia e prosa completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1994.
MERQUIOR, José Guilherme. “Murilo Mendes ou a poética do
visionário.” In: Razão do poema. Rio de Janeiro: Top Books, 1992.
PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
PICCHIO, Luciana Stegagno. “Introdução”. In: Poemas e Bumba-meu-
poeta. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

7faces • 32
7faces • 33
A POESIA EM PÂNICO:
DUALISMO, REBELDIA E
RECONSTRUÇÃO
EM MURILO MENDES
por Maria Domingas Ferreira de Sales
e Sílvio Augusto de Oliveira Holanda

Palavras iniciais

De temática eclética e construções inesperadas, a produção


escrita de Murilo Mendes convoca os leitores à recepção de
notáveis inquietações e deslumbramentos permanentes. Nascido
a 13 de maio de 1901, Murilo Monteiro Mendes adentra o século
XX, período que seria marcado por revoluções literárias diversas ―
prenúncio da passagem do cometa Halley: O cometa me traz o
anúncio de outros mundos / e de noite eu não durmo / atrapalhado
com o mistério das coisas visíveis.1 Lança-se, então, o poeta
mineiro a um processo ininterrupto de exploração desse universo
vasto e plural, recém-descoberto, expondo-nos a medida de sua
inquietude.
Trata-se de um investigador incansável, cuja produção,
multifacetada, não admite descrição resumida, conforme
registramos em pesquisa de onde se origina este ensaio ― (SALES,
2006). Assim, o recorte aqui exigido limita-nos a ressaltar um dos
traços predominantes em grande parte de sua obra: as
dissonâncias verbais, o apelo visual das aproximações insólitas e os
efeitos caóticos das construções linguísticas inusitadas. Dessa
mescla formal, resultam temas amalgamados, tais como o místico-

7faces • 34
erótico-religioso ― meio desconcertante de abarcar formatos e
temas adversos, conciliando-os pelo traço unilateral da liberdade
expressiva.
Esse aspecto polifônico da poética muriliana encontra, talvez,
sua melhor justificativa no acentuado interesse do poeta mineiro
pelo trânsito livre de ideias e pela diversidade, tal como ele próprio
afirma: Atraem-me a variedade das coisas, a migração das ideias,
o giro das imagens, a pluralidade de sentido de qualquer fato, a
diversidade dos caracteres e temperamentos, as dissonâncias da
história.2 Pode-se afirmar, precipuamente, que tal atração o levou
às águas do movimento surrealista: Reconstituí também épocas
distantes, a década de 20, quando Ismael Nery, Mário Pedrosa,
Aníbal Machado, eu e mais alguns poucos descobríamos no Rio o
Surrealismo. Para mim foi mesmo um coup de foudre.3
A influência do Surrealismo sobre a obra poética de Murilo
Mendes justifica, de certa maneira, as construções ousadas e o
“sentido apocalíptico da sua cosmovisão” (MOISÉS, 2001, p. 16):
uma poética impregnada dos anseios de liberdade, responsáveis
pela ruptura com o melódico e pelo tom exasperado com que o
poeta desafia o “Deus antropófobo” (MERQUIOR, 1978 apud
MENDES, 1994).
É preciso esclarecer, entretanto, que a abordagem sobre o
Surrealismo sugerida nesta leitura não dá conta de todos os temas
e fatos que cercam esse movimento. Antes disso, este ensaio trata
de não mais que propor uma leitura da obra A poesia em pânico,
destacando a temática concernente à aproximação de elementos
díspares ― aspecto pertinente na obra do poeta Murilo Mendes, a
cuja perspectiva se associa o conflito religioso-existencial do poeta,
revelado pela condição humana versus condição divina, através da
qual se evidencia a temática barroca.
Nessa ótica, a união dos contrários e o conflito religioso de teor
barroquizante, imbricados, revelam a pertinência das ideias
surrealistas, marcadas pela transgressão, enfrentamento e
conciliação.

1 Surrealismo: da oposição ao equilíbrio

Não é difícil compreender por que a fusão dos opostos é um dos


mais evidentes traços caracterizadores da estética surrealista.
Tomemos o que diz André Breton, o seu representante principal:

7faces • 35
Comparar dois objetos tão afastados quanto possível
um do outro, ou, por outro processo, pô-los em
presença de uma maneira brusca e surpreendente,
continua a ser a mais alta tarefa à qual a poesia pode
aspirar. Nisso deve tender cada vez mais a exercitar-se
o seu poder inigualável, único, que é fazer aparecer a
unidade concreta dos dois termos postos em relação e
comunicar a cada um deles, qualquer que seja, um
vigor que lhe faltava enquanto considerado
isoladamente (BRETON, 1932 apud DUROZÓI &
LECHERBONNIER, 1972, p. 203).

Isto implica dizer que não há contradição, mas uma intersecção


de planos divergentes que anula qualquer contradição aparente ou
“limitação injustificável”. Seria dizer, portanto, que, ao invés de
divergências, o que se observam são convergências capazes de
suprimir uma dada oposição em favor da dupla presença (no caso
citado, matéria e pensamento) ou melhor, da não-marginalização
de um em detrimento de outro (DUROZÓI & LECHERBONNIER,
1972).
Justifica-se, daí, a prática da “escrita automática” ― técnica
inaugurada pelos surrealistas ― como um desafio ao esquema
clássico literário, que instaura o reino do absurdo, ou o
“desregramento de todos os sentidos”.4 O texto automático, como
produto do inconsciente, traria à tona a expressão não dissimulada
ou vigiada pelos sentidos que, mesmo em sua ilogicidade aparente,
é capaz de revelar o verdadeiro estado humano. Nesse viés, assim
como assinala a abordagem de cunho psicanalítico, o texto
automático também fala pelas fendas do discurso e não somente
pelos encadeamentos desarticulados das palavras.
É preciso ratificar, nesse sentido, que o traço conciliador
presente no Surrealismo justifica as duas bases de sua filosofia: o
tônus de revolta (pois a tentativa de aproximar o que o
racionalismo chama de elementos antagônicos é, de fato, a
expressão de espírito anárquico, marcado duplamente pela
insatisfação e pelo desejo de revolução) e o aspecto da construção,
na medida em que este visa à integração de associações
consideradas como desvios do discurso padrão.
Especialmente em Murilo Mendes, a “conciliação dos
contrários”5 ganha evidência na aproximação de mundos
divergentes: ao mundo físico (de onde o poeta retira o elemento

7faces • 36
natural e concreto) logo se funde o mundo onírico, visto que este
oferece meios para a ampla utilização de elementos sobrenaturais.
Na junção dessas duas realidades opostas, cria-se um mundo
caótico, onde nuvens, estátuas, pianos, rosas, pássaros e estrelas
convivem pacificamente com fantasmas, anjos, arcanjos,
demônios, sereias e cadáveres.
Conforme defende Fábio Lucas, “A poesia de Murilo Mendes foi
sempre muito explosiva, pois retrata um jogo de valores opostos
em busca de uma síntese, que frequentemente se realiza no plano
da expressão” (LUCAS, 2001, p. 28). Clara demonstração disto
podemos observar em A Poesia em Pânico, onde convivem bordéis
e igrejas, maternidades e cemitérios,6 oxímoros que, dispostos no
mesmo verso, incitam o leitor a perturbadoras imagens: Um
manequim assassina um homem por amor. / Sete pianos ululam na
extensão do asfalto. / Um arcanjo sólido descerra o vale de Josafá.7
Eros e Thanatos desafiam as distâncias dos extremos: Amor,
palavra que funda e que consome os seres, fogo, fogo do inferno:
melhor que o céu.8 O poeta reconhece, na aproximação dos
amantes, o violento amor e a ternura: Tua ternura e tua crueldade
são iguais diante de mim / Porque eu amo tudo o que vem de ti. /
Amo-te na tua miséria e na tua glória / E te amaria mais ainda se
sofresses muito mais.
“Não há equilíbrio sem oposição”: diria anos depois o Discípulo
de Emaús.10 Afirmação que resume a tônica de toda a obra de
Murilo Mendes.

2 Catolicismo, barroco e surrealismo: vozes de mesmo timbre

A busca pelo equilíbrio tornou-se razão suficiente para a


caracterização da obra muriliana como “desconcertante”,11
“irregular”, “desconforme”12 ― traços que se tornam mais
contundentes quando se trata da perspectiva religiosa. De fato,
“não nos espantemos, pois se aos conceitos repressivos Deus-
espiritualidade-consciência os surrealistas opõem Diabo-
sensualidade-inconsciência” (DUROZÓI & LECHERBONNIER, 1972,
p. 19). O dualismo que envolve o binômio Deus-Diabo se vê
permeado pelas respectivas noções de espiritualidade e
sensualidade ou consciência e inconsciência. De outro modo,
percebe-se a presença da duplicidade nos vocábulos Diabo /
Demônio que contêm em seus radicais o elemento multiplicador
(FINAZZI-AGRÒ, 1991).13

7faces • 37
A religiosidade ― pedra de toque na poética de Murilo Mendes
desde sua conversão ao catolicismo14 ― constitui-se como a
grande gerenciadora dos conflitos mais internos do poeta, sobre o
que expõe Murilo Marcondes de Moura:

Ao longo da década de 30, novos problemas surgiram


na poesia do autor, particularmente após sua
conversão ao cristianismo em 1934, cujo resultado
imediato foi Tempo e Eternidade, o livro mais unilateral
e, por isso mesmo, o menos interessante de toda a sua
obra. A religião, por outro lado, não veio apaziguar os
conflitos do poeta e passou a representar, já a partir
dos livros seguintes ― Os quatro elementos (1935) e A
Poesia em Pânico (1936-1937) ―, uma outra
possibilidade de totalização do sentido da vida
(MOURA, 1990, p. 72).

Há que se considerar dois aspectos importantes referentes a


essa temática: primeiro, a recorrência barroca, assinalada pelos
pares antitéticos mais representativos da imposição divina versus
condição humana e pelos eternos paradoxos e oxímoros
acusadores da patente aproximação entre os temas
aparentemente contraditórios; segundo, o gesto dionisíaco que
aponta um total “desregramento dos sentidos” ou desrespeito
pelas leis divinas que condenam toda sorte de manifestação da
libido.15
Em defesa desse aspecto barroquizante, observa Laís Corrêa
Araújo:

O movimento dialético continua a ser a sustentação


dessa poesia em que as “afinidades eletivas” de Murilo
Mendes se mostram com evidência: o labirinto barroco
no qual uma imagem ou palavra se enovela sobre a
própria cauda e gera outras imagens, que por sua vez
se enovelam e suscitam a nossa visibilidade no caos
(ARAÚJO, 2000, p. 92).

Para Joana Matos Frias, foi justamente esse “formante nuclear


de estirpe barroca ou maneirista” o responsável pelo “universo em
constante expansão que desde muito cedo [Murilo] designou como
surrealista (FRIAS, 2002, p. 65). É preciso salientar, pois, a estreita

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relação do Surrealismo com a religião, como afirma José Guilherme
Merquior, em suas Notas para uma Muriloscopia:

o projeto surreal não era, em substância, estético, mas


sim de cunho, antes de tudo existencial. Por isso, seu
espírito se deixa entender melhor quando cotejado
com as manifestações simbólicas das grandes religiões,
não com estilos artísticos no sentido formal
(MERQUIOR apud MENDES, 1994, p.12).

Em ensaio dedicado ao Barroco, Benedito Nunes ressalta a


aproximação das artes ao plano de fundo filosófico, tangente à
temática da finitude:

Trata-se de uma afinidade contraída em torno da


“experiência da infinitude”, associada ao pathos, às
vezes trágico, do logro da vida, do caráter ilusório do
mundo sensível e da existência terrena, que tanto se
exterioriza na linguagem, no discurso da filosofia, no
seu sistema de imagens, quanto na criação artística.
[...] Na origem do livre-arbítrio, da liberdade, assente
na vontade, estaria, portanto, o Nada, contraparte do
Infinito [...].
Foi a trágica fragilidade da sorte e do destino humanos
e a vulnerabilidade do conhecimento, sujeito ao logro
do mundo, em que o sobressalto metafísico e o temor
do religioso se misturam [...] (NUNES, 1993, p. 121-
122).

Ou melhor, o espírito barroco e a “liberdade despotenciada” em


face do drama da “constituição terrena” é o grande propulsor da
mescla entre os discursos que associa filosofia, religião, literatura,
artes plásticas (NUNES, 1993).
Vale lembrar ainda que, pelas palavras de Murilo, catolicismo e
Surrealismo são vozes de mesmo timbre, ou seja, ambos fazem
ecoar o mesmo grito libertário:

O catolicismo era sinônimo de obscurantismo, servindo


só para base de reação. Não era possível, sobretudo a
uma pessoa de bom gosto, ser católica. Nós todos
éramos delirantemente modernos, queríamos fazer

7faces • 39
tábua rasa dos antigos processos de pensamento e
instalar também uma espécie de nova ética anarquista
(pois de comunistas só possuíamos a aversão ao
espírito burguês e uma vaga ideia de que uma nova
sociedade, a proletária, estava nascendo). Nessa
indecisão de valores, é claro que saudamos o
Surrealismo como o evangelho da nova era, a ponte da
libertação. (MENDES apud GUIMARÃES, 1993, p. 25).

Não poderia, dessa forma, ser o catolicismo de Murilo uma


predisposição à passividade ou subserviência aos preceitos de
determinada instituição. Como o próprio poeta enfatiza, não se
trata de ser católico ou não, mas de que forma o pensamento
católico teria aguçado a sua vontade de “reação”. Poder-se-ia
formular as seguintes indagações (embora não toquem os
objetivos desta pesquisa): reação a quê ou a quem? Em que pontos
o catolicismo de Ismael Nery teria acendido ainda mais as chamas
do verbo anárquico de Murilo?
Para Mário de Andrade, “Murilo Mendes conseguiu provar com
expressão dura, infalível, mesmo genial, que entrando para o
Catolicismo, não se entregara ao recurso de uma paz, porém, se
dera conscientemente à grandeza de mais uma luta” (ANDRADE,
1946 apud MENDES, 1994, p. 34). Luta: expressão certeira, pois a
conversão oficial de Murilo Mendes por ocasião da morte do amigo
Ismael Nery, impulsiona o poeta a denunciar, às vezes de forma
velada, a crueldade dos preceitos cristãos contra o espírito
subserviente dos fiéis ― condição que revolta o poeta católico.
Nosso ponto de análise nesse percurso é reconhecer de que
forma a presença de elementos religiosos pode representar a
temática do choque entre os opostos ― aspecto preferencial do
Surrealismo16. Aliás, conforme demonstramos anteriormente, a
pertinência do binômio Deus-Diabo em A poesia em pânico
reconhece-se pela intensidade da utilização direta e indireta de
vocábulos ligados a dois extremos antagônicos, tais como: Fim e
Princípio, Alfa e Ômega, Vida e Morte.
A aproximação entre esses dois polos constitui o próprio drama
do poeta que se vê diante de horizontes divergentes, porém,
igualmente, sedutores: Vejo sempre à minha frente dois
estandartes / ― Túnica negra de Berenice, / Túnica vermelha da
paixão de Deus. / Os dois estandartes cruzam-se no ar:17 De um
lado, a bandeira de Deus, para onde o poeta se lança e, de outro, a

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bandeira do demônio: Ó Deus / Eu nasci para ser decifrado por ti /
Com um pé no limbo, o coração na estrela Vênus e a cabeça na
Igreja18 Ou ainda: A fulguração que me cerca vem do demônio. /
Maldito das leis inocentes do mundo / Não reconheço a
paternidade divina.19 Trata-se dA presença real do demônio / É meu
pão de vida cotidiano / Minha alma comprime a aleluia gloriosa.20
Diante dessa possibilidade dobrada é que se acentua a
angústia21 do poeta que, em se vendo esmagado pelo monumento
do mundo22, proclama, irmanado aos homens: Meus irmãos, somos
mais unidos pelo pecado do que pela Graça / Pertencemos à
numerosa comunidade do desespero / Que existirá até a
consumação do mundo.23 Ao reconhecer-se humano ― condição
que rejeita ― o poeta confessa: Maldito das leis inocentes do
mundo / Não reconheço a paternidade divina / Eu profanei a hóstia
e manchei o corpo da Igreja: 24 Ou mais dramaticamente: Eu sou
uma moeda que deus deixou rolar no chão.25
A esse sentimento de repulsa ao divino, José Guilherme
Merquior (1976) refere-se como “antiteodicéia”, ou melhor, o
poeta não aceita a religião como forma de submissão ao mal ou
justificação dele (NIETZSCHE, 1991). Então, a religião mostra o seu
reverso: em lugar da paz cantada e apregoada pela igreja nasce o
grito provocador da revolta. O eu-lírico, portanto, impossibilitado
de dizer sim ao mundo pelas suas próprias convicções e desafiando
a Deus, resolve anunciar o embate: O que há entre ti e mim, Filho
do Altíssimo? / O mundo inteiro é tua arena.26
Nessa reflexão, a luta travada entre os opositores é severa: de
um lado, o homem e sua “condição desumana”; de outro, o Cristo
/ Deus / Igreja. O poeta sente-se provocado: Os sentidos em alarme
gritam: / O demônio tem mais poder que Deus.27 E ironiza: Hóstias
puras, / Inutilmente vos ergueis sobre mim.28
Sob outra perspectiva, o poeta vê-se desafiado pela Igreja que
se apresenta como Uma Grande Mulher: A igreja toda em curvas
avança para mim, / Enlaçando-me com ternura ― mas quer me
asfixiar. / Com um braço me indica o seio e o paraíso, / Com outro
braço me convoca para o inferno. / Ela segura o Livro, ordena e fala:
/ Suas palavras são chicotadas para mim, rebelde.29 Entretanto,
resistente, o poeta rebelde prefere a cruel e necessária Berenice,
com a qual comunga no corpo e no sangue. Ele reconhece a força
divina, mas ainda assim, desafia: Até quando deverei opor a minha
nudez / Ao mistério da Tua insaciabilidade? / Nada tenho para Te
oferecer, senão os crimes de outrem.30

7faces • 41
E, diante de novo resgate, o poeta, embora resistindo, confessa
sua humana fragilidade: Apontai-me para meu corpo, altar do
sacrifício, / Para minha cabeça, que guarda todas as imagens / Para
meu coração ansioso de se consumir em outros. / Ó filhos
transviados do mesmo Pai celeste, / Aqui estou eu... perdoo a todos
e não me perdoo. / Queimai-me.31
Então, perguntaria o leitor: quem será o grande derrotado nesse
diálogo entre o Criador e o Destruidor?32 Ao que o poeta, em
pânico, responderia: ― Não há vencedor ou vencido. Há um estado
de embate permanente.33 Há a eterna questão esfíngica do verso
que interroga, paradoxal e permanentemente, aos passantes. Mas
estes, preferindo a inquietação da luta à placidez da vitória ou
derrota, assistem, também em pânico, ao árduo combate nos
arredores do grande círculo.

Palavras finais

A poética de Murilo Mendes, portanto, é palco dessa luta dupla:


a que se trava entre os termos dissonantes que, pelas vias do
insólito, provocam as aproximações absurdas e inaceitáveis pela
lógica do consciente, em detrimento dos corriqueiros efeitos da
linguagem; e a luta mais difícil ― a que dispõe o homem frente a
frente aos inimigos mais ocultos: a angústia, o medo, a morte.
Ambas são determinadas pelo choque entre o oprimido que, em
desacordo às imposições do seu inimigo opressor, decide enfrentá-
lo em defesa da própria liberdade.
Assim, Murilo Mendes, esse “cristão ecumenicamente
interrogador,34 anuncia o caráter explosivo de sua poesia: “a vida
nos oferece em seu curso as emoções mais opostas ― emoções
necessariamente opostas, pois de outra maneira não teríamos
relações construtivas”.35 Em síntese: embora no discurso
surrealista se destaque a tônica da transgressão, é a ideia sub-
reptícia de reconstrução que prevalece, transmutada pela força do
amor, da poesia e da arte ― pilares sólidos para os espíritos mais
inquietos.

Notas

1 Esta, assim como as demais citações ou ilustrações de autoria de


Murilo Mendes (em prosa ou em verso), estarão grafadas em
itálico. Tais citações devem indicar a obra, o título do texto e a

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página referente à edição organizada pela Nova Aguilar (Cf.:
MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Luciana Stegagno
Picchio (Org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994).
2 MENDES, Murilo Mendes por Murilo Mendes, Microdefinição do

Autor, p. 46.
3 MENDES, Retratos-Relâmpago, André Breton, p. 1238.

4 Expressão utilizada por Rimbaud que, por estabelecer afinada

conceituação de certa prática de escrita com os preceitos do


Surrealismo, passa a ser bastante citada entre os autores e críticos
surrealistas.
5 Expressão usada por Manuel Bandeira para caracterizar a obra de

Murilo Mendes e muito divulgada pelos críticos.


6 MENDES, PP, Poema visto por fora, p. 285. (Doravante,

utilizaremos a sigla PP para nos referirmos à obra A poesia em


pânico de Murilo Mendes).
7 MENDES, PP, Quatro horas da tarde, p. 300.

8 MENDES, PP, Amor-Vida, p. 285.

9 MENDES, PP, Poema do fanático, p. 294.

10 MENDES, O Discípulo de Emaús, aforismo 150, p. 829.

11 A respeito desse aspecto “desconcertante” em Murilo Mendes,

Laís Corrêa de Araújo comenta: “inquietude e contradição, vontade


e coragem de renovar, hesitando porém entre vários caminhos:
repúdio ao passado enquanto forma de vida e cultura, mas
pesquisa e tentativa de encontro das raízes: rompimento de todas
as regras estanques da linguagem, mas a ousadia do retorno à
higidez semântica da palavra comum, da palavra desvestida de
artifício que prenuncia ou, as mais das vezes, exprime com violenta
objetividade as mudanças ideológicas de um tempo em crise” (Cf.
ARAÚJO, 1972 apud JAKSON, 1998, p. 265).
12 Citando Álvaro Lins sobre o que ele chama “a maior

desconformidade” ao referir-se à obra muriliana, Joana Frias


aponta para a possível precipitação do crítico em não perceber em
Murilo “a sua coexistência dialética com uma regularidade interna
ineludível”. Para ela, a poesia muriliana conta com uma
“desconcertante variação” que resulta de “uma heterogênese de
cariz tanto histórico quanto tipológico que definiu a textura
poliédrica de toda a sua produção”, mas que se mantém uníssona
justamente por essa “irregularidade” (FRIAS, 2002, p. 64).
13 Em Finazzi-Agrò, “o Dia-bo, em suma: aquele que ‘separa’ (do

grego dia-bàllein) e que aparece, ele mesmo, como dividido,

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múltiplo, contra a sacralidade do Não-divisível, do Sim-bólico, do
que se apresenta, com efeito, como In-dividuus”
14 A morte de Ismael Nery em 6 de abril de 1934 é um dos fatos

cogitados para a conversão de Murilo ao Catolicismo.


15 Consideremos esta afirmação de Merquior: “É preciso

compreender a religiosidade muriliana em seu rosto ambivalente e


em seu coração dilacerado de contrários”
16 Ferdinand Alquié reprova a ideia de que o Surrealismo se funda

nas forças malditas ou propaga a inexistência de Deus. Para ele, o


Surrealismo “reprocha a la idea de Dios el limitar al hombre, el
impedirle marchar a la conquista de la totalidad de sus poderes” E
acrescenta: “No hay satanismo en eso, sino confianza humanista”,
ou seja, “la rebelión contra Dios ya no es rebelión desesperada
contra el Ser, sino rebelión contra las ilusiones que, según Breton,
precisamente impiden al hombre llegar a ser” (ALQUIÉ, 1974, p.
63).
17 MENDES, PP, Os Dois Estandartes, p. 299.

18 MENDES, PP, A Esfinge, p. 291.

19 MENDES, PP, A Danação, p. 286.

20 MENDES, PP, O Impenitente, p. 291.

21 Em capítulo intitulado “Angústia e liberdade”, em Passagem

para o Poético, Benedito Nunes assinala: “Como um existentivo, a


alegria é o estar à vontade no meio do ente, dissipado o que há
nele de ameaçador. Tão raro quanto a angústia, o verdadeiro
sentimento de alegria interrompe a tônica do medo ou do temor
que domina o cotidiano”. Tal proposição sobre a alegria se fixa
justamente para uma justificativa do temor: “O que se teme é
sempre algo intramundano, um perigo a que se está exposto,
surdindo de determinada passagem, em sítios tornados
infamiliares, em relação nunca se está à vontade. Só um ente em
que o ser está em jogo é capaz de atemorizar-se. A facticidade o
expõe ao desabrigo do seu ser-no-mundo, de seu aí, e nisso reside
o perigo que o torna essencialmente vulnerável” (NUNES, 1992,
p.108).
22 MENDES, PP, A Danação, p. 286.

23 MENDES, PP, A Destruição, p. 287.

24 MENDES, PP, A Danação, p. 286

25 MENDES, PP, O Átomo, p. 303.

26 MENDES, PP, A Destruição, p. 287.

27 MENDES, PP, O Exilado, p. 286.

28 MENDES, PP, O Impenitente, p. 286.

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29 MENDES, PP, Igreja Mulher, p. 303.
30 MENDES, PP, A Casa dos Átridas, p. 295.

31 MENDES, PP, O Resgate, p. 297.

32 Percebamos a ironia presente não apenas no termo “diálogo”,

mas também em “Criador e Destruidor”, expressão que


desorganiza o par bíblico “Criador” e “Criatura”.
33 Flora Süssekind, aproximando Murilo Mendes a T.S. Eliot, chama

a atenção para as relações entre tempo, mudança e permanência:


“para que se possa superar o transitório, é preciso superar as
oposições fim/começo, juventude/velhice, construção/destruição.
Isso porque, se no plano terreno estas oposições se delineiam
claramente, no Eterno se apagam” (Cf.: SUSSEKIND, Flora. Murilo
Mendes: Um bom exemplo na história. In: Encontros com a
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v.8, n. 7,
p. 147-169, Jan.,1979).
34 Expressão utilizada por Josué Montelo para referir-se a Murilo

Mendes. (Cf.: MONTELO, Josué. Pretexto para louvar Murilo


Mendes. Revista Brasileira. Fase 7, out./nov./dez., 2001, v. 8, n.29,
p. 7.)
35 MENDES, O Discípulo de Emaús, aforismo 19, p. 818.

Referências

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Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 33-34.
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Barcelona: Barral Editores, 1974.
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FINAZZI-AGRÒ, Ettore. “O duplo e a falta: construção do Outro e
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LUCAS, Fábio. Murilo Mendes: poeta e prosador. São Paulo: Educ, 2001.
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Brasileira. Academia Brasileira de Letras, Fase 7, out./nov./dez., 2001, v.
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SALES, Maria Domingas Ferreira de. Murilo Mendes: pânico, amor e
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SÜSSEKIND, Flora. Murilo Mendes: Um bom exemplo na história. In:
Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, v.8, n. 7, p. 147-169, jan. 1979.

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AS BERENICES:
RELIGANDO OS FIOS
por Maria Laura Müller da Fonseca e Silva

O poeta encontra a Musa Berenice e


inaugura o estado de febre permanente.
Murilo Mendes

Diante de um texto de Murilo Mendes, o leitor é, muitas vezes,


convidado (ou desafiado) a se aventurar em embaraçadas trilhas.
Não se trata de uma poesia de fácil revelação; por outro lado, não
é propriamente uma obra hermética. Sua natureza intertextual é
seu enigma, sua metamorfose, sua convergência ou seu poliedro,
como indicam os provocativos títulos murilianos.
São escritas constantemente referenciais e autorreferenciais a
ecoar os contemporâneos e as vozes de outrora. Por isso, o leitor
precisa estar disposto a encontrar os fios interpretativos nesses
ecos de antanho. Referimo-nos a uma leitura dialógica, propensa a
ouvir, tantos anos depois, as ressonâncias modernistas do século
XX. Falamos, ainda, da percepção de uma temporalidade remota,
a reverberar a tradição literária ocidental em movimento
intertextual e metaliterário.
Talvez pela consciência da dinâmica de sua própria poética,
Murilo tenha comparado leitura / escrita a itinerários (feitos para
serem ― ou não ― decifrados) ou a construções coletivas,
operadas em um mesmo texto em busca de sua relação com
“textos alheios” (MENDES, 1994, p. 739). Talvez seja por isso,
também, que o poeta tenha explicitado, constantemente, suas
referências através de uma prosa poética voltada a pessoas e a
lugares que o inspiraram. Como resistir às instâncias do texto

7faces • 47
muriliano e não esquadrinhar seus caminhos de influências e de
tantos predecessores?
As veredas que seguiremos estão anunciadas no título deste
ensaio. Berenice é a musa que inspira quase todos os poemas de A
poesia em pânico (1936-1937), mas, na prosa inaugural ― O sinal
de Deus (1935-1936) ― ela já irrompia: “Sou uma sentinela
espiritual de Berenice”, diria o poeta. O texto a descreve como
persona melancólica e dada às reminiscências: “Ela pensa em si
mesma, no passado, na sua angústia, no fim das coisas (...)”
(MENDES, 1994, p. 755). Essa primeira Berenice inspira, ao poeta,
proteção. A segunda, por sua vez, será causadora de grandes crises.
Curiosamente, uma tela de Ismael Nery, pintada entre as
décadas de 1920 e 1930, foi nomeada Berenice. Sendo a pintura
antecedente aos citados textos de Murilo, supomos que a tela seja
a principal inspiração para a construção da musa de A poesia em
pânico. Porém, seria a única influência? E, ainda, quais teriam sido
as referências de Ismael, nesse caso? Responder a essas questões
requer um recuo temporal.
Murilo e Ismael são artistas cuja juventude testemunhou as
primeiras décadas do século XX no Brasil, justamente quando o
nascente período republicano desejava imprimir, no espaço
arquitetônico e cultural, um novo tom. Viveram intensamente os
anos de culto às artes em geral, especialmente à europeia ― e,
sobretudo, à parisiense; os anos de cuidados com o vestuário e de
dandies urbanos a povoar ruas e imaginações, com a elegância e o
requinte burgueses. Era a belle époque nos trópicos, percebida
com maior intensidade em algumas cidades brasileiras que, por
particularidades históricas, econômicas ou culturais, favoreceram
o acesso à ambivalência das vitrines europeias em solo tão diverso.
Rio de Janeiro e São Paulo, centros econômicos nacionais,
urbanizavam-se, ganhando ares modernos e cosmopolitas. Belém
e Manaus, na bonança advinda das libras esterlinas ao ritmo da
extração da borracha, também assimilavam novos conceitos e
mobilizavam agitada vida cultural. De modo semelhante, certas
cidades mineiras, como Juiz de Fora, iam na contramão dos sinos
que badalavam nas igrejas barrocas e abriam-se a turnês cariocas
em uma “alegria” que era “revolucionária”, na descrição de Pedro
Nava (1974, p. 21). Ou, na percepção de Murilo Mendes, podia-se
comtemplar uma espécie de vitrine de “caleidoscópio” (PEREIRA,
2004, p. 151).

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Foi justamente a imersão nessa geografia da “era do ouro” que
contribuiu para a formação cultural e intelectual de Murilo Mendes
e Ismael Nery no trânsito pela belle époque brasileira. Os artistas
desejavam se mover através da arte e viviam na mobilidade física
do “bonde, navio, avião, zepelim” ― “Inércia” (MATTAR, 2004, p.
282), como explica Ismael Nery em um de seus poemas.
Aliás, Ismael Nery é um exemplo significativo desse movimento,
pois vive parte da infância em Belém. A capital paraense, desde o
fim do século XIX, convivia com iluminação elétrica nos espaços
urbanos higienizados na euforia do látex e assistia a exibições de
óperas em meio à natureza tropical que cercava o Theatro da Paz.
Porém, a atração pelo conforto oferecido pelo pai da Sra. Marieta
Macieira (mãe de Ismael) é determinante para que, em 1909, a
família se mude para o Rio de Janeiro. Proprietário de muitos
imóveis no bairro Madureira, Capitão Macieira seria, após a morte
do pai de Ismael, um avô facilitador. No Rio, Ismael pode
frequentar a Escola Nacional de Belas Artes e, depois, completar
seus estudos em duas estadas em Paris, sendo a primeira, em 1920,
na Academia Julian. Já casado com Adalgisa Nery, em 1927, realiza
a segunda viagem à capital francesa, onde permanece por meses e
estabelece contato direto com Breton e Chagall.
Sujeito excêntrico e versátil, recebe em casa amigos pintores,
músicos e escritores, entre eles, Murilo Mendes ― presença
assídua desde 1921, quando se conhecem em ofício no Ministério
da Fazenda. Discussões filosóficas marcadas pelo Essencialismo,
revistas de moda, visitas a exposições e frequência aos teatros da
Praça Tiradentes (em audiência à companhia francesa Bataclan)
fazem parte do cardápio flâneur do grupo. A periodicidade desses
encontros no número 170 da rua São Clemente, no bairro
Botafogo, diminui por volta de 1931, devido ao agravamento do
estado de saúde de Ismael e a sua consequente internação no
Sanatório Correia para o tratamento da tísica. Em 1933, Nery
falece, ainda sem reconhecimento de público e de crítica.
Murilo Mendes, por sua vez, nasce e cresce em meio às sirenes
das fábricas e à vida burguesa de Juiz de Fora, localidade a que
Sílvio Romero nomeou “Europa dos pobres” (1910, p. 11). A cidade
seguia à risca o binômio progresso e civilização, com grande
contribuição de Bernardo Mascarenhas, responsável por instalar,
ali, a primeira usina hidrelétrica da América Latina e por fomentar
a indústria têxtil e o mercado financeiro (com a criação do Banco
de Crédito Real de Minas Gerais).

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Não por acaso, quando Francisco Serrador cria a primeira rede
de exibição de filmes estrangeiros no Brasil, instala salas em São
Paulo e no Rio de Janeiro, mas também em Juiz de Fora. Assim, é
diante das telas do incipiente cinema mudo do Circuito Serrador
que Murilo é atraído pelo “fascínio irreversível de Paris”,
personificado na beleza vamp de Gabrielle Robinne (MENDES,
1994, p. 941). Enquanto isso, o ambiente intelectual de tendência
europeia moldava, aos poucos, suas percepções, em meio a
audições de piano e a apresentações de árias de Rossini.
O aprendizado que recebe de Mme. Amélie, francesa emigrada
durante a Primeira Guerra, e as lições do professor Almeida
Queirós permitem-lhe não só privilegiada pronúncia do idioma
francês, mas também contato precoce com mestres do século XVII,
especialmente Racine. Tempos depois, reconhecendo a
contribuição das letras francesas em sua formação, Murilo diria
sobre o professor Queirós: “mas era em Racine que a sua atenção
se detinha mais tempo; seus heróis passaram a fazer parte da
minha vida cotidiana.” (MENDES, 1994, p. 964).
Quando se muda para o Rio de Janeiro, no início da década de
1920, o aporte cultural de Murilo é ampliado na dinâmica daquela
sociedade. Gradualmente, novos vínculos também lhe são
benéficos, em especial a amizade de Ismael Nery (que tem início
em 1921 e se estende até a morte do pintor, em 1933). A Europa
mítica da infância e da juventude passa a ser ressignificada na
retórica de Ismael, que conhece o velho continente no elã das
vanguardas e conduz Murilo ao Surrealismo de peito aberto. E é
sob essa estética, permeada pela pseudofilosofia Essencialista, que
as nuances dos primeiros textos murilianos, antes estimulados pela
Semana da Arte Moderna, vão sendo paulatinamente alteradas.
Ademais, a arte de um reverbera a arte do outro, sendo Murilo
quase um discípulo de Nery nesta época.
Essa breve narração de caráter biográfico conduz o leitor,
naturalmente, à percepção de que a Murilo e Ismael têm formação
europeia de tendência francesa. E é este o ponto a que queríamos
chegar. Retomemos, agora, nossa questão inicial: Berenice.
A tela de Ismael, hoje conhecida como Figura feminina ao piano,
integra a coleção de Hecilda e Sérgio Fadel, mas já pertenceu a três
proprietários. Nesse trâmite, perdeu o nome original e, por isso,
nublaram-se as evidentes relações que provoca. Contudo, para
compreendermos o que consideramos ser o primeiro grande
diálogo da literatura de Murilo Mendes, precisaremos recuperar

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Berenice, o título original da pintura, informado pela primeira
proprietária.

A inspiração de Ismael para tal criação, possivelmente, é o conto


“Berenice”, de Edgar Allan Poe. A narrativa, publicada originalmente
na Southern Literary Messenger (1835), foi traduzida para o francês
por Baudelaire (em 1856-57), um dos grandes responsáveis pela
divulgação e popularização da obra do escritor norte-americano na
Europa. Acreditamos que Ismael tenha chegado a Poe via francês,

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intermediado pela tradução de Baudelaire, ou seja, trata-se de um
caso em que uma influência literária (Baudelaire) conduz a outra (Poe).
Analogias entre o conto e a tela são facilmente identificáveis: a
Berenice de Poe adoece misteriosamente, sucumbindo em uma
metamorfose destruidora e fatal. Isso inquieta o narrador, mas,
paradoxalmente, o conduz a uma atração mórbida pelos dentes da
prima, única parte daquele corpo esquálido a permanecer
vigorosa. O final aterrador associa necrofilia e fetichismo através
de menções a um túmulo violado e à possibilidade de Berenice
ainda estar viva.
Habitando na abstração, entre o real e o metafísico, a figura
central da pintura de Nery é mesmo esse espectro destituído de
beleza a conjugar vida e morte em perspectiva byroniana. O jogo
de cores que constitui o ambiente, com predomínio do verde,
divide a tela em formas geométricas e em contraste de tons
escuros, na ambígua consonância entre existência e fenecimento.
Sugerido no modo surreal, o piano é tocado por dedos esguios,
semelhantes a garras. Cadavérica, a Berenice de Nery é enlutada,
opaca e inquietante.
Em evidente diálogo com Ismael, anos depois, Murilo nomeia
Berenice sua musa de A poesia em pânico (1936-1937), uma
amante que precisa ser abandonada. A obra volta-se à angústia
gerada por essa figura feminina a ameaçar a fé e a colocar o sujeito
em constante tensão ou pânico. A fim de ilustrar como é construída
a crise poética em torno de Berenice, reproduzimos este poema:

ECCLESIA

Berenice, Berenice
Uma Grande mulher se apresenta a mim
E te faz sombra.
Ela exige de mim
O que tu não podes exigir.
Ela quer minha entrega total
E me oferece viver em corpo e alma
A encarnação, a paixão, o sacrifício, e a vitória.
Desenrola diante de mim a liturgia do mundo.
Querendo que eu tome parte nela contra mim mesmo.
Berenice, Berenice, tua rival me chama,
Ataca-me pelos cinco sentidos,
Desdobrando diante de mim a toalha da comunhão.

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Eu recuo aterrado
Porque não me permites, Berenice,
Comungar no teu corpo e no teu sangue.
(MENDES, 1994, p. 293-294)

Nesses versos, o erotismo surreal cria uma inversão caótica:


sacraliza o elemento pagão e erotiza o discurso litúrgico. Dividido
entre o amor de Berenice e o chamado da Grande mulher (a
ecclesia), que permitiria a experiência intensa e completa com o
sagrado, o poeta busca impossível equilíbrio.
A releitura da mística cristã é uma das bases de construção do
poema, já que o sujeito quase atinge o estado carismático
(descrito, entre outros, por Santa Teresa de Ávila1), mas a
superação do desejo secular, o último estágio da mística, não
ocorre. Seria necessária uma grande renúncia; negar o amor, ou
negar a si mesmo, ao preferir ecclesia à musa-persona. É
precisamente esse ponto ― a renúncia ao amor ― que obriga o
leitor a considerar, em torno dessa musa de Murilo, outro eco de
antanho bem evidente: a tragédia Berenice, um clássico da
literatura francesa seiscentista de Jean Racine.
Conhecendo o dramaturgo por intermédio do professor
Queirós, Murilo parece ter apreendido bem as lições do mestre
juizforano. Em Convergências (1963-1966), Racine figura entre
aqueles a quem Murilo faz “Homenagens” (MENDES, 1994, p. 717),
sinalizando preferências ao leitor atento. Em O discípulo de Emaús
(1945), torna-se notório o reconhecimento de um dos grandes
nomes das letras francesas: “Um verso de Camões tem para a
poesia de língua portuguesa a mesma importância que um de
Racine para a poesia francesa.” (MENDES, 1994, p. 858), concluiria
Murilo. Ademais, contrariando a frase proverbial “Racine passera
comme le café”, Murilo afirmaria que “tanto Racine quanto o café
têm osso duro e aroma infalível” (MENDES, 1994, p. 1109). Essas e
outras reiteradas menções reforçam o vínculo explícito entre a
musa Berenice e a peça homônima. Racine, de fato, é uma das
grandes fontes para a literatura de Murilo.
Berenice, a tragédia raciniana escrita em 1670, faz frente à peça
de Corneille sobre o mesmo tema e apresenta, em cinco atos, a
histórica separação do imperador romano Tito e da rainha
Berenice, filha de Herodes Agripa I, rei da Palestina. No prefácio,
Racine explica que o enredo está em acordo com a historiografia
romana de Suetônio, por isso não traz mortes ou derramamento

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de sangue, mas a simplicidade de poucas intrigas, paixões
inflamadas e “tristeza majestosa”, ingredientes capazes de
emocionar o público, tanto quanto os desfechos funestos.
De fato, o único sacrifício da trama é o do amor, que precisa ser
abandonado em favor da estabilidade de Roma. Quanto a Roma,
não há hesitações; entre Berenice e Roma, não há dúvidas. Assim,
o conflito instaurado é entre o sonho da paixão bucólica e a
realidade política implacável. Ainda que a ame apaixonadamente,
mesmo contra a vontade de ambos, Tito faz sua opção e despede
Berenice logo nos primeiros dias de seu governo (invitus invitam),
pois a amada é estrangeira. Embora tenha sofrido e cogitado a
morte, ela aceita, com esforço, aquela decisão e volta à Palestina.
Condenados à solidão em seus reinos distantes, tendo frustrados
os desejos mais honestos, os personagens são, contudo, fiéis a seus
ideais.
Enquanto, em Racine, Roma é imperial e política e obriga a
expulsão da mulher adventícia, em Murilo, Ecclesia é a
personificação da igreja, ou seja, a Roma católica, exigindo que o
poeta renuncie à amada em entrega absoluta e comunhão. A musa,
entretanto, diferente da personagem de Racine, permanece
insensível ao poeta, sendo ele o único atormentado pela força das
emoções ambíguas e pela instância da iminente separação.
Desse modo, tanto no teatro de Racine quanto no poema de
Murilo, um triângulo amoroso singular é formado, envolvendo o
amante (Tito / o sujeito poético), Berenice e Roma. Porém, ao
recriar esse triângulo em novo fundamento, Murilo ressignifica,
nas convenções de sua poética, o elemento trágico suscitado pelas
paixões inflamadas que comprazem e comovem o público. Esse
recurso, no entanto, de acordo com o próprio dramaturgo francês,
sempre foi elemento poético2. Explorado por Murilo, torna sua
poesia intensamente dramática nas bases racinianas.
À guisa de conclusão, lembramos que há, ainda, outra Berenice
a inquietar nossa leitura e a desafiar o leitor. Trata-se da narradora
do romance A imaginária (1959), de Adalgisa Nery. Vinte e seis
anos após a morte de Ismael Nery, a poeta e jornalista Adalgisa
publica sua obra, na qual narra, através da persona Berenice, o
casamento com o pintor, bem como a conturbada relação familiar
dos Nery.
Em contraste às descrições quase messiânicas de Murilo3, o
Ismael desta narrativa é egocêntrico, neurótico, megalomaníaco e
adúltero. Vampirizada pelo relacionamento opressor e pelo

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ambiente familiar desordenado, a narradora descrê de sua própria
sensibilidade artística, sendo limitada à condição de modelo das
pinturas do marido. Anulada, assiste às constantes reuniões em sua
sala e delas pouco participa. Somente após a morte de Ismael esta
Berenice é alçada a primeiro plano, emancipando-se, através da
literatura e da política, em consonância com a biografia de
Adalgisa, que se inseriu em círculos intelectuais e manteve,
inclusive, a amizade com Murilo Mendes.
Quando intencionalmente adota o nome Berenice para sua
protagonista / máscara, Adalgisa reivindica espaço no cruzamento
das obras de Murilo e Ismael, sugerindo um novo triângulo. Nesse
jogo de simulação e veracidade, ela poderia ser tanto a figura
feminina vampirizada no pincel de Nery quanto a musa indiferente
no lápis de Murilo. Habilidosamente instaurada nesta
ambiguidade, Adalgisa reforça nossa hipótese de que Berenice é,
antes de tudo, um código representativo de diálogo intertextual
em Murilo Mendes.
Em busca desse código, percorremos incitantes veredas
artísticas, seguindo fios, refazendo cruzamentos e sendo levados a
vozes de outros tempos. Na compreensão de Berenice, que
julgamos ser o primeiro grande jogo de referências da literatura de
Murilo Mendes, resgatamos a memória de outras épocas,
ressignificada em experiências estéticas múltiplas, disseminadas e
não hierárquicas. Porém, uma nova indagação se apresenta: tal
como Berenice, outras convergências estariam ocultas nesta
poética? Sem dúvida, muitas. Nas teias do texto muriliano, o leitor
é desafiado a mover-se através do jogo intertextual e, quando o
faz, entende o que Murilo afirmou: “O invisível esconde-se no
visível” (MENDES, 1994, p. 1045). Eis o incógnito desta poética.

Notas

1 As moradas do castelo interior, de Santa Teresa de Ávila.


2 No prefácio de Berenice, Racine explica que a simplicidade da ação

intensifica a emoções: “(...) todo o engenho consiste em fazer algo


a partir de nada e que todo este grande número de acontecimentos
sempre foi o refúgio dos poetas...”
3 Recordações de Ismael Nery, de Murilo Mendes.

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Referências

MATTAR, Denise (Org.). Ismael Nery. Rio de Janeiro: Curatorial Denise


Mattar / Banco Pactual, 2004.
MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1994.
MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São Paulo: Editora
Giordano, 1996.
NAVA, Pedro. Baú de ossos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.
PEREIRA, Maria Luiza Scher; SILVA, Teresinha Vânia Zimbrão da (Orgs.).
Murilo Mendes & Chronicas mundanas. Juiz de Fora: EFJF, 2004.
RACINE, Jean. OEuvres complètes I: Théâtre – Poésie. Paris: Gallimard,
1999.
ROMERO, Sílvio. Prefácio. In: ESTEVES, Albino. O Theatro em Juiz de
Fora. Juiz de Fora: Typographia d’O Pharol, 1910.
SILVA, Maria Laura Müller da Fonseca e. Murilo Mendes em diálogo:
intertextualidades. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Faculdade
de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, p. 288, 2017.
TERESA, de Ávila, Santa. As moradas do castelo interior. Trad. de
Fernando Borges. São Paulo: É Realizações, 2014.

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POEMAS (1)

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Carlos Cardoso
Rio de Janeiro – RJ

Nasceu no Rio de Janeiro em 30 de dezembro de 1973. Formado em engenharia, sua carreira


na literatura começa com a publicação de Sol descalço (editora 7Letras, 2004); depois vieram
Dedos finos e mãos transparentes (editora 7Letras, 2005), Na pureza do sacrilégio (Ateliê
Editorial, 2017) e Melancolia (Record, 2019).

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CAVALOS-MARINHOS

Há na palma de minha mão


um cavalo-marinho.

No fundo do que sou


mergulho
em raras profundezas.

Talvez assim entenda


que viver
não é acordar após dormir
e que não há maior beleza
que a solidão
e o fechar os olhos e partir.

Vejo que são rasas as pessoas


pelas partículas que vejo.

Se assim creio, assim crio


nesse mar selvagem
e apenas sumo
entre os redemoinhos
e os cavalos-marinhos

entre ondas
que abrigam e afogam
para dentro me jogam
me deixando lá.

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UM SOPRO DE AR

Para Silviano Santiago

Comemore, Silviano,
o que te pertence,
a razão irrelevante
é pó, nesse instante
só o que em todas
as cores se dissipa ficará.
Esse algo em formato
de arco-íris ou Jabuti é mágico,
pois não é um sopro
a mais ou a menos
que percorre os noticiários,
é você, amigo, que fez
nascer de sua plenitude
com Mil Rosas Roubadas
sobre a folha branca de papel,
Machado, Stella Manhattan
e muitas outras histórias.

Lembro que quando o conheci,


vi — um homem forte
de andar lento, tácito,
intrínseco ao silêncio
dos sábios e do vento,
falamos de poesia,
de música, negócios,
artes plásticas e política,
falamos de um Brasil
com poucas
esperanças no peito,
esse que habitamos
entre famintos
e homens ricos de moedas
e perdidos em suas
ambições de reis e presidentes,

falamos do poder
e de poder ser,

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falamos da metafísica
e de imagens plásmicas
e geométricas,
do talvez, do imediato
e do hermetismo
que se esconde no espírito
e faz-se corpo místico
nessa intervenção
que ouço e que digo
nas telas do ontem
e no silêncio do hoje.

Eu — esse poeta
que publica o oximoro
da pureza no sacrilégio,
e que por um
décimo de instante,
encontrei, eu,
esse homem tão só em si,
um semelhante para falar
não usando palavras escritas
ou o som do silêncio imagético,
mas a voz.

Silviano, brindemos,
pois nesse décimo de instante
um sopro de ar
pegará uma nuvem
e pausadamente respirando
percorrerá os oceanos.

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O ROLAR DA PEDRA

A pedra que percorre


o Rio de Janeiro
iniciou seu percurso
na fonte, pedra na banda
podre que se espalha
na escuridão com tiros,

bombardeios, sacrifícios,
crianças armadas de neblina,
tiro no escuro, furo,
que do alto do morro
ninguém acerta,
ninguém vê ou alerta.

A pedra rola pela escadaria,


as trincheiras estão por ali,
o calabouço já não é um refúgio
e ser preso faz parte do cenário.

Pedra que vira manchete


de revista, pedra que está
no pó, no centro do morro,
pedra sem horizonte.

Pedra de coca, pedra de crack,


pedra na pedra.

É dura essa vida tão curta,


criança que já nasce armada,
pedra que corre e se esconde
vai de um morro a outro
como se voar fosse nada.

Pedra no dentro da madrugada?

Madrugada no dentro da pedra?

Pedra que brincar desconhece,


pedra em escola não vai,
pedra aviãozinho, pedra no asfalto,
pedra na Maré, pedra na Rocinha,

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pedra no Leblon, Pavãozinho?

Rola essa pedra na margem,


já que a tangente é nada,
essa viagem é curta, abrupta,
pedra na jaula jogada.

Pedra.

A pedra não vacila, nem nada,


a pedra fica espreita, atenta,
entocada, é ríspida,
foi assim que foi criada,
sabendo do entorno curto
ou do entorno longo
nada além do previsível,
a pedra se acalanta com sua amada,
amada essa que é pedra!
Pedra com pedra
que faz nascer pedra.

Assim tudo fica como é,


como era e como está,
pedra na guerra, pedra rolando,
pedra pra lá, pedra pra cá.

Pedra.

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FUI A PORTUGAL

E por falar em encantamento,


fui a Portugal e sem esperar ou vê-la,
eu, aquele que olha e não diz,
que em festa não vai,
e fogos de artifício não solta,
aquele que dentro de toda incompletude
de que se apropria e se completa,
aquele eu, esse homem pasmo,
que ao ouvir do seu rosto
uma voz que não sei, mas ecoou,

eu a vi ali ali,
e por falar em encantamento,
tão mal chegara e
já se preparava para partir,

se reparou o meu olhar,


ou na cor da pulseira do relógio
que meu pulso usava, não sei,
pouco sei dela ou da vida,

mas lembro que de tão claro


o seu sorriso, sua pele,
de tão intenso o seu olhar,
lembro que entre câmeras
e fotos e vozes e luzes,
lembro que lembrei de ti, lembrei,
e por um instante,
por um instante, não te esqueci.

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CAMALEÃO

Feito um camaleão rastejo pelo


silêncio do meu quarto.

É poesia o encontro das paredes?

São ópio as estrelas aplumadas em


cada esquina do meu ego?

Ou será benevolente a lágrima que escorre por


minh’alma quando brado louco por felicidade?

Os arredores repletos de melancolia


ainda se refazem do gelo.
A ausência de um ombro, de um
corpo catatônico que seja,
faz-me lembrar o quanto era bom
o diálogo com os meus olhos.

Tocar a escuridão quando a voz do


desespero insistia no apego.

Mozart me enlaça com um fio de


náilon na garganta.
São as trevas rodeadas de luzes
intangíveis,
metáfora do abominável descaso
público a um quase morto.

Ninguém, nem mesmo a solidão, tem


mãos assim tão pequenas.

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O BONDE DO SILÊNCIO

Já é noite e o bonde do silêncio


permanece intacto.

Nas ruas as pessoas observam os


pássaros a sobrevoarem as
correntezas.

E tudo permanece intacto.

Os amantes, os Deuses, as estátuas.


Só a poesia perambula.

Acaso os versos caminham ágeis e


desapercebidos.

E tudo permanece intacto.

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Rodrigo Garcia Lopes
Londrina – PR

Rodrigo Garcia Lopes nasceu em 1965. É poeta, romancista, tradutor, compositor, ensaísta
e jornalista. Publicou os livros de poesia Solarium (1994), Visibilia (1996), Polivox (2002),
Nômada (2004), Estúdio realidade (2013), Experiências extraordinárias (2015) e O Enigma
das ondas (2020). É autor do romance policial O Trovador (finalista do Prêmio São Paulo de
Literatura de 2015).

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VONTADE DE CRER

Preso no inferno da torre


ou sem boia, em mar aberto.
Impossível curar este porre.
Tudo vai dar certo.

Nada será como nunca.


O real abraço e nada aperto.
Cansaço desta espelunca.
Tudo vai dar certo.

Estamos à beira do abismo.


O amor naufragou aqui perto.
Tempos de barbárie e cinismo.
Tudo vai dar certo.

Do nada, pessoas somem.


Nosso plano foi descoberto.
Deletaram nossos nomes.
Tudo vai dar certo.

Pior do que está pode ficar.


Dias sombrios, céu encoberto.
Mentiras turvam o ar.
Tudo vai dar certo.

Sem grana, cama, namorada.


Da janela só este deserto.
A espera deu em nada.
Tudo vai dar certo.

Patifes e assassinos por toda parte,


Hipócritas ditam o que é correto.
Só nos resta o agora, esta arte.
Tudo vai dar certo.

Acabou a caneta, o vinho tinto.


O esplendor será secreto.
O espelho nunca esteve tão sozinho.
Mas tudo vai dar certo.

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IDÍLIO

Uma carroça passa


pesada de acácias.

O mar e seu manto


de brancas feridas.

Mãos frias naufragam


na manhã sem lábios.

Árvores eriçadas. Luz antiga.


Estilhaços de névoa.

Revoada de pássaros negros.


Sombras em carne viva.

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RIMAS POBRES

Dar
o que ninguém quer

Querer
o que não se pode dar

Amar
doa a quem doer

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Cristiana Pereira da Cunha
Leiria – Portugal

Cristiana Pereira da Cunha nasceu no dia 25 de abril de 1987 na cidade de Leiria. Filha de
Elisa da Conceição Pereira Viola e de Rui Manuel Lopes da Cunha, viveu a sua infância e
adolescência numa aldeia chamada Touria. Formou-se em Biologia Marinha e Biotecnologia,
completando os seus estudos com o mestrado em Ciências do Mar. Desde a adolescência
que a poesia tomou conta da sua vida, escrevendo até agora mais de 300 poemas. Neste
momento encontra-se a terminar a sua primeira obra literária.

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POR TI, ESPERAREI O ANO INTEIRO…

Maria, o que vejo à tua volta,


Será somente uma revolta,
A guerra que dá luz à esperança, ou o tempo
Que se deixou vencer pelo medo?

Maria, esses teus olhos distantes,


Já não brilham como antes,
Será que também tu partiste sem mim, ou é
A possibilidade de te perder, que me deixa sem chão?

Maria, abraça-me forte, de forma que a própria morte,


Como a que atendo no fundo daquela rua,
Sorria de corpo cheio, sentindo o receio
De se esconder ao ver um amor sem igual.

Maria, não te vás embora, ou


Promete-me que voltas noutra hora,
Quando o outono chegar, a primavera ainda vai a meio.
Por ti, esperarei o ano inteiro.

Maria, foi preciso percorrer as Terras Distantes,


Aquando as chamas devastavam o teu corpo,
Para que no silencio da noite, a possibilidade do teu perdão,
Fosse a única razão que guiava os meus passos.
Amo-te Maria!

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HOJE MAIS QUE O NORMAL

Penso e a realidade me consome,


Tal tormenta sem aviso.
Em fragmentos me desfaz,
Logo eu, Mulher de intemporal emersão.

Corroí-me, nada existe,


Para além do que subsiste
No interior do que sou,
Contrariando a expectação.

Sufoco hoje mais que o normal.


Se o normal alguma vez me pertenceu,
Procurá-lo-ei sem cessar.
Afinal quem sou eu?

Arrebato tudo e o tudo é tão pouco,


Que até as minhas vísceras
Tentando exteriorizar-se, têm mais valor.
Onde estás tu meu fado, meu amor?

Sou a timidez social que me afasta,


As lágrimas que quero derramar,
A dor que de berço me ama,
A verdade que quero calar,
O caminho que percorro.

Morro nas esquinas que não vi,


Nos corações que não amei,
Nas viagens perdidas em pensamentos,
Nos abraços que não troquei.

Penso, de caneta em mãos sentada,


Espero o que não vem,
Tudo se move e eu permaneço,
Quero fugir, mas não me mexo.

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Diogo Costa Leal
Porto – Portugal

Diogo Costa Leal é natural e residente no Porto, Portugal. Publicou os livros de poemas No princípio
era a nudez (2017) e Voz alta (2018). É também dizedor de poesia. Coautor do grupo de performance
e improviso de música e poesia “Poemó’Copo” (desde 2014). Apaixonado pela escrita aliada à
oralidade das palavras e outras artes, parcerias e iniciativas, estando envolvido nas mesmas desde
2010. Tem vários poemas publicados em revistas portuguesas e brasileiras. Em 2017 foi formador de
uma oficina de poesia oral e escrita com jovens num intercâmbio artístico Erasmus+ (Limony, França).
Coautor dos programas de rádio sobre poesia Eclético Azul (RUA FM, Faro, 2011-2012) e Vadiação
Poética (Rádio Manobras, Porto, 2013-2015). Criou também o projeto de entrevistas com poetas
intitulado “Um poeta para con-versar” (2016-2018). Coorganizador (desde Set/2020) das tertúlias
livres de “Poesia à Nora” na Cachaçaria Macaúva no Porto. Gosta também de dizer poesia nas ruas.
É licenciado em jornalismo e formado no curso “Voz: técnica e comunicação". Dentro do jornalismo,
escreveu para o Jornal de Notícias, revista Blitz, JPN e P3 (Público).

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a medula do momento sem derreter no espasmo
entrincheirar-me no poema contra as ordens
pássaros acontecidos no barulho dos gritos
as mãos escrevendo como ponteiros caídos
contra o meu poder
contra a minha ideia
contra a minha cabeça
a favor do grande ringue
onde o prazer encosta deus às cordas

há um desfile de elegias no carnaval da maturidade


há este espaço alucinado entre esquecimento e invenção
há ziguezagues furibundos no trânsito das coisas que me desconheço

e a medula do momento sem derreter no espasmo


um banho no sangue só por destrançar cabelos
amores que rodam e sobem como hélices tresloucadas

de que me importam os números se há verde do outro lado da janela?


de que me importa a vida feita sim a vida feita
se não há bolsos nas árvores?
de que me importa a morte se não para malabarismo da própria sombra?

e há nuvens cantando quando os gatos te lambem os dedos das mãos


e há gargalhadas colheradas alvoradas
há um arco-íris para escorrega das lágrimas entre as têmporas destes versos

e a medula do momento sem derreter no espasmo


um grande momento de delicadeza
uma grande febre um grande humor
um grande gesto um grande amor

acontecer nos pequenos minutos


a grande identidade
a céu aberto

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A minha memória é uma escada
com o mar ascendente
O meu espanto por um triz
que não era espasmo
Num olho tenho o canto de um funeral
No outro o plasma das flores

O rigor do meu pensamento


dava para desenhar invisíveis
florescentes cerejas explosões

Os meus dedos têm dez dioptrias de impossível


E rugas vulcânicas
Sou um peixe às gargalhadas nas nuvens pálidas
Sou um trânsito caótico de deceções e belezas
ao som dos recém-nascidos a chorar o primeiro sangue
E os meus olhos adolescem onde a casa começa
e tocam as borboletas

Sou uma inundação de incêndios


nos sonhos felizes das pedras quentes
Sou a hora de ponta do vermelho
O sexo dos gatos no telhado do mistério
Um candeeiro triste por matar de choque
as próprias traças
Sou a janela aberta no espelho da porta fechada
A pungente alegria na escancarada compreensão
Sou um lençol lavado sacudido pelas mãos da criança
E as lágrimas do mendigo que todos somos
Sou aquela rua que desconheço e idolatro pela força possível
Sou de uma terra lembrada por anjos de anatomia completa
uma linha reta entre a paixão e o amor
E outra que se espeta à superfície das disputas

Sou a inveja do sangue pelas pétalas


O meu medo é uma tatuagem viva
a camuflar a cicatriz da infância
E os pedais da minha sorte rodam nas orelhas
onde o amor assobia

E tudo é tão belo ao mesmo tempo


sim
que eu podia jurar

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que ontem
só de te olhar
ressuscitei
e um enxame de pássaros
entrou-me pela janela
e levou-me pelos ombros
ao princípio do princípio
onde simplesmente bastava
a expansão
pela expansão

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Decerto haveria muito a dizer
A sensatez das horas que nos mostram os seios
O amor nos olhos das varandas
Um lençol do tamanho brutal do afeto
Ou então uma inspiração fácil
E que tudo o que é belo fosse íntimo
Inocente imortal
absoluto
(E o que não é
Que rompesse das rochas como uma flor)

Decerto haveria muito a dizer


A paixão a cavalgar sobre grandes colinas
A grande piedade a grande ternura
Sim o nobre convite da comovente ignorância
à sombra das árvores

¿Porque não usamos


o escuro dos outros e o nosso
também assim, com casca?

O primeiro que aponte o dedo


interrompe
o mistério da alegria suprema
Interrompe
Os pássaros a descolar da língua numa saudade extinta
A urgência das borboletas dentro dos olhos na pertença
Interrompe
O sexo do genial entendimento
Um vestido com decote na curiosidade
e fecho na atenção
As côncavas mãos do colo como duas pautas

Sim
O primeiro que aponte o dedo
interrompe
O movimento das setecentas translações do poema
O diálogo que a paisagem nos devolve
quando nos estende uma brisa
Uma mulher a fazer de planta com os pés
num vaso cheio de terra e os dois braços estendidos no ar
só para ilustrar a alquimia das metáforas

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A escala desmesurada dos sonhos despertos
E os sorrisos de portas escancaradas
E as casas as casas inauguradas à mesa de um brinde
E o perdão como fruta a fazer de brincos na festa
E a nudez sofisticada como um anjo de cauda
E o infinito e a demora de uma mão uma só mão
sobre o amparo de um rosto
E procurar nas palavras a consolação das abelhas
E esperar por ti com os olhos de cama feita
E dançarmos até ser âmago
E atravessarmos desertos com vista a encontrar
a água mestra na perfuração do real do oásis

¿Porquê?
¿Porque é que não usamos
o escuro dos outros e o nosso
Também assim, com casca?

a gravidade tranquila
sim
a gravidade tranquila
não é o que cantamos sempre?

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Eu quero duas vezes a morte
para renascer com olhos peixes
Eu quero a vida extrema sim a vida extrema
Para exprimir o que não é de espremer
Dois poemas por cada soco
Um olhar inútil por meia rotina
Três abismos plantados por cada cautela
Eu quero um campo aceso de girassóis corações
em cada rotação das ancas
Um decreto de cegueiras visões para a paixão
a amizade o amor só para que o tacto respire
reinando os sentidos todos
Eu quero nuvens razões para regar de chuvas intenções
os prados descalços
Uma ventania atribulada para que dancem as árvores
Um sangue vibrato para músicas ancestrais
Eu quero Eu sou Eu faço
Centopeias de luz com janelas pernas
Escadas deitadas para jangadas
Lanternas paisagens para a vigília dos quase mortos
Rotundas flores para redirecionar cicatrizes
Um barco de festa para atravessar o deserto
Musgo a sair das olheiras coisas
Orvalho por cima dos lençóis amados
Um teleférico descapotável só para te poder olhar no azul

Um trovejar de vinho para sonhos copos


Um verso por cada cabeça cortada
até não haver guilhotinas
Eu sonho Eu quero Eu vejo

Elevar os saltos até ultrapassar a gravidade


Oferecer um copo a deus para debater sinfonias
Falar vermelho até ter hálito criança
Deitar-me até seres tu

Eu quero malabarismos de memórias perfeitas


Abrir a porta até fazer outra porta
Eu quero perdoar as flechas todas
Instaurar o verde como constituição
Bater as asas até ser neve

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Derreter como um rio para chegar a toda a gente

Ficar levantado até sorrirem as ruínas


Colocar um nariz de palhaço na sombra
e um punhado de andorinhas a voar contra a inveja
Eu construo Eu falo Eu quero

Esquecer-me irremediavelmente de mim


para poder parir mais certezas
Inaugurar uma constelação na tua língua
Continuar a viver até crescerem mil braços
Chegar ao mar pelo rasto da roupa caída
Contar a coragem pelos medos e beijá-los
Poder acontecer nas migalhas
A cor das chaves nos braços abertos
Uma curva por cada mistério
Um prazer por cada sinal
Um beijo por cada negação
E no fim
poder boiar
até que chegue o novo dia

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André Ribeiro
Brasília – DF

É doutor em música pela Universidade de São Paulo (USP), compositor e etnomusicólogo, é


cofundador da Associação Guqin Brasil de difusão da música para cítara Guqin (2019), e
diretor artístico do Ensemble Gaoshan Liushui de música chinesa, desde 2012. É
coordenador do grupo de pesquisa POEM Poéticas Orientais em Música, vinculado ao
programa de pós-doutorado do Departamento de Música da USP. Filiado ao LINES
Laboratório Interdisciplinar de Estudo do Som da UnB, pesquisa os processos identitários na
composição musical contemporânea.

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« protonauta — decurso »

detidamente incerto
traça o mapa da angústia

como quem sai de uma terra


deserta de ontem

e salta nas claras espumas


das âncoras frágeis

supura com aço as cristas


tremidas e os olhos

surgidos horizontes possíveis


novos outros

instantes quilhados de mar.

mirar as águas tranquilamente


soprar as tardes respirando
os feixes dourados
trazidos do capim endêmico

restaurar a paz dos outeiros


ao norte de hoje.

Aiá,
Santa Catarina!

Somos desafeitos as serranias


com ou sem futuros
somos aquilo que faz a medida
das pedras visorizonte

Miserere Nobis!

Somos frontes, ombros e fortes


tranquilos remansos quase
à beira do sul e do norte
somos isso de ontem.

sendo de abraços traslados no tempo

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Salve, Amigos!

em traços traídos de ventos


um pavilhão de memórias sonhadas

encontram-se vozes saídas


do porto vertidas em longos vestidos d’água

cetins e esmolas, quem sabe a forma


de viver sem partir, essa que me vai
descolorindo-se agora.

7faces • 92
« protonauta — in-curso »

cruzam correntes
aos ventos e lentes

se entremeasse buscas
o navegante circundaria
ou ia circum-enfeixando
os brilhos nas cristas
e as luas
e os seus manuscritos

contudo
perder-se-ia na esperança
da quilha rasgando o mar.

reluto entre as coisas

irmãos,
ando por aí auscultando-me

paisagens!
os ruídos que me deixam vagar

esperançando pedaços.

7faces • 93
« transbordo »

e o pátio naval
à espera do homem:

sua imagem riscada


jorra
no tanque de centeio-granel
(esmiuçadas vistas)

como estrangeiro
que perde o contorno
seu corpo é fendido
em múltipla perscrutação

é um homem no pátio
à espera de
verter-se jorrando
de volta ao tanque.

me cala
a estrada estridentes
estrelas

os ferros trepidando
siderúrgicas

no quase limite
dos verdes

me ouço puídas
auroras das muitas

e sobem-me eixos
entremeadas retóricas
pinos e
navegadas correntes

afora
o teu mundo estou
entre auroras.

7faces • 94
*

sempre terna fratura

ancora a realeza
do outono

quando o mar
se abraça aos rochedos

depondo lágrimas
de verão

em alturas
um tino febril
à luz dos invernos [frios]

brisam-me logo ali.

7faces • 95
« silêncio »
após Fernão Mendes Pinto

ter outro tempo para sangrar


extemporâneas as tuas
outras feridas.

e erguendo-se em prol de tantas


perlaborar teu senso silente.

navega-te entremeadas
tuas flutuantes correntes.

de vinte-um-anos clausuras
levanta a bandeira rasgada
impõe o teu

e reticente desdobra itinerários


de antes, das naus e ferros
ao sul do Oriente, sonha
os teus filhos descrentes.

7faces • 96
Daniel Mendes
Elísio Medrado – BA

Nasceu em 1984 na cidade de Simões Filho, Bahia. É jornalista e mestre em Cultura e


Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Escreve desde os 19 anos tendo como
especialidades o poema, a prosa poética, o conto e a crônica. Integrou com dois poemas a
coletânea Liberdade: antologia poética (Cogito, 2017) que reuniu versos de 100 poetas
baianos contemporâneos. Atualmente vive em Elísio Medrado, onde desenvolve projeto de
tese para o doutorado em paralelo à organização do seu primeiro livro de poesia.

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7faces • 98
INFINITO

Impressionante como me isolei.


Como me afastei
do que não me levou à nada.

Impressionante como me iludi.


Como me perdi
dos discos da madrugada.

Impressionante o que me aconteceu.


Como tudo cedeu
para me fazer voltar a escrever.

Impressionante o tanto que minto


nesse caos infinito
que precisei morrer.

Impressionante como tenho andado


nesse quarto fechado
que me furtou na massa.

Impressionante como não confiei em mim.


Como me dei fim
nesse fim que não passa.

7faces • 99
AMOR ABERTO

O sopro do meu coração me levou às veredas


de espinhos que me feriram para a vida.

E o meu amor ficou muito maior.

Antes do baile verde minha valsa era cinema.


Eram passos presos em poéticas de bibliotecas.
A paixão e a espada me foram apresentadas.

E o meu amor ficou muito maior.

A falta e a fúria se bifurcaram em meus atos Neandertais


que pediram tua pele na rotina da minha pele;
que traçaram teu corpo nos traços do meu corpo;
que sentiram saudade feito um lobo uivando em noites vazias.

Mas que amaram sem sentença de prisão perpétua.

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RAÇA DE POETA

É, perdi, devo reconhecer.


Não há nada mais conflituoso
do que conflitar você.
Se faz de morto por um tempo
para me fazer pensar em avançar.
Mas logo me puxa pelos pés
para me fazer pestanejar.

Assim eu me reinquieto.
E você rir, desgraçado!
Retorno ao meu canto, quieto.
E você me diz, armado:
Escreve...

É, cedi, mas nada me resta.


Sim, perdi, de novo tudo me inquieta.
Devo mesmo fazer parte
desta raça de poeta.

7faces • 101
7faces • 102
Angelita Guesser
São José – Santa Catarina

Nasceu no Rio Grande do Sul (Brasil) em 1976. É formada em Psicologia e Direito, tem
formação em Psicanálise, é doutoranda na Universidade de Coimbra em Estudos
Contemporâneos. Adquiriu o hábito da escrita através da transcrição das sessões de
psicoterapia em que trabalhou por 18 anos. Desenvolve seu lado artístico através das
palavras e principalmente através dos desenhos. Lançou Foda- se (Ed. Autora, 2020) seu
primeiro livro de poemas totalmente independente, seu segundo livro Entre um eco e outro
(Ed. Letramento, 2020).

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7faces • 104
CASACO AZUL

Desaparecer, desaparecer. Queria eu desaparecer! Diferente de tudo o que já desejei, hoje,


apenas penso em desaparecer, assim como aquele casaco azul que te emprestei no sábado.
Ele simplesmente despareceu da minha vida. Eu poderia desejar qualquer outra coisa, mas
peço apenas, entre tantas outras formas de morrer, desaparecer. Assim como aquela
pontinha de fio de linha que estava solta em meu casaco, aquele azul, que misteriosamente
desapareceu no sábado. Lembra quando passeávamos de mãos dadas à beira da praia em
pleno inverno, e você puxou meu cachecol, aquele cachecol que se transformou em vento?
Lembra do meu casaco azul ou do tapete cheio de areia que tinha seus pés desenhados? Eles
simplesmente desapareceram. Como eu queria ser aquele cachecol e desaparecer no vento,
ou me banhar nas águas frias do mar agitado de agosto e me desfazer em plena água gelada.
Ah! Como eu queria ser qualquer coisa que não lembrasse do que sou hoje, assim como
aquele casaco azul.

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INCENDIÁRIA

Quando tudo me falta aos olhos, quando me falta o juízo e me falta a poesia, percebo que
sempre fui incendiária. Me apego ao destruído, me apego às pessoas comuns que nada têm
de extraordinário, que não querem ser extraordinárias, essas, são as que sentirei falta.
Quando me faltam os sorrisos de domingo e os loucos para me ofertarem suas lágrimas,
lembro que a maioria das pessoas está sempre com os olhos cheios, mas vazias de coração.
Dessas eu não sentirei falta. A felicidade absoluta não é uma dádiva, ela não traz certeza de
nada e me pego pondo fogo no conforto da certeza. Eu rasgo em fogo o absoluto. Quero
enxergar o futuro e ainda ser capaz de sentir saudade de fazer as perguntas erradas nas horas
certas. Quero incendiar mais uma vez, mas não um incêndio controlável, quero aquele que
arrasa com suas labaredas os corações de pedra, na certeza de que me sinta um pouco mais
eu.

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NOSTALGIA

Eu sinto saudade do tempo que ainda não se foi, das palavras que não foram ditas e dos
abraços que ficaram guardados. Eu sinto saudade das pessoas que passaram por mim no
metrô e das longas conversas que não tivemos. Dos banhos de chuva que ainda não caiu e
dos sonhos que a mente não criou. Sinto saudade da moça do quinto andar que nunca me
visitou e da brisa que pela janela jamais entrou. Eu sinto saudade de dizer que te amo, dos
membros trêmulos depois do adeus que nunca falamos e dos rasgos que não fizemos nas
constelações. Eu sinto saudade do tempo em que não tínhamos a certeza de que jamais se
pode ser feliz.

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Milton Rezende
Campinas – São Paulo

Nasceu em Ervália, Minas Gerais, em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em
Juiz de Fora, onde foi estudante de Letras na Universidade Federal de Juiz de Fora, depois
morou e trabalhou em Varginha. Funcionário público aposentado, atualmente reside em
Campinas, São Paulo. Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de doze livros
publicados. Os três poemas apresentados nesta edição estão em Da essencialidade da água,
os dois primeiros, e Andarilho dentro de casa, o terceiro.

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ACROBATA

um pessegueiro roxo
braços em formas de garras
dedos intumescidos
pernas retesadas.

quando estamos dormindo


tudo parece fácil:
pé fora da cama
e acrobacia de quedas.

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ANÍMICA

quando eu tinha todos os movimentos


eu era sol entre nuvens
aves de arribação
qualquer coisa de menos sólida
por haver.
eu via cachoeiras em meus sonhos
remanso de rios
pedra grande de sentar menino
florestas a esculpir.

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PROVA

a equação da vida
não bate nunca
porque sempre haverá
no mínimo dois
lados para olhar,
dois modos de contemplar
e duas perspectivas
a anularem-se.

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Huggo Iora
São José – Santa Catarina

Huggo Iora (pseudônimo de Victor Hugo Pinheiro) é natural de Florianópolis. Formou-se no


curso errado de Educação Física e escreve durante seus rompantes criativos. Publicou E sem
demora – versos diversos num liquidificador (Ed. Insular, 2018) e Balada desafinada e outros
concertos (Ed. Autor, 2019), ambos de poesia.

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ALARMES

O despertador ruge em cima da cômoda.


As cômodas de agora não suportam mais
porta-retratos. As fotografias sobrevivem, efêmeras, na memória
de celulares diversos, que também servem de despertadores a milhões e milhões de
[trabalhadores.
Acordo com os olhos em chamas, como se nada tivesse dormido, o peso
das horas em cruz sobre meus ombros.
É normal sentir-se assim hojemdia... pelo menos é o que falam psicólogos e filósofos no
[programa da Fátima Bernardes
[enquanto estou em serviço.
Minha mulher, que se exilou em outras mulheres
quando desenterrou o homem,
dorme com profundidade (já já acordará!).
O quarto é escura madrugada. E assim também é a rua...
Logo, passarinhos que não conheço bem amanhecem cantos nos fios de luz.
Seus assobios me chamam como o dever me chama. Deste,
todavia, os assobios saem esdrúxulos... quase cinzas,
tipo as buzinas dos carros
ou alarmes de relógio.
Olho-me no espelho:
orelhas, lembranças de cabelo, um modo único de beijar.
Jogo água na cara. Depois fico atento, passei já da idade de ter pálpebras relaxadas.
E não são mais meus pais que me acordam todas as manhãs
com doçuras.

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RISO

Há um modo teu triste,


único,
de sequestrar o riso (e qualquer prenúncio) que me deixa
com saudades dele. Uma saudade que arde a pele
e abre feridas superlativas que não sangram — tampouco
coagulam.
Não sei onde enclausuras teu riso
nem faço ideia se dele preciso... mas, às vezes, a pensar sobre isso, eu fico.
E não acho solução!
Assim como não acho solução para as formigas em casa, ou para a vidraça que bate inces-
[santemente por causa do vento nor-
[deste. Sim! Há tempestades
quase todos os dias agora, sublevando sombrinhas,
descendo sobre os paralelepípedos nos quais pisamos nossos pés de insegurança.
Quem sabe se em gibis vivêssemos
o teu riso puro não romperia o cinza denso das nuvens dando lugar a um sol totalmente
[novo dentro da boca?
Se quando criança tivesse lido menos
desconheceria sofrimentos. Teria espírito bruto e, provavelmente, tais questões
habitariam cabeças outras; não a minha... À propósito,
cadê o teu riso?

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PARTIDA

Quando eu morrer
fará um dia ameno, talvez de outono, quem sabe
primavera. A natureza seguirá seu curso imperturbável
e os moradores de meu bairro, em cujos rostos demorei-me
mais que uma sequela,
não mencionarão sequer o luto em suas redes sociais, ocupados demais
de planilhas e happy hours.
Apenas minha mulher debulhar-se-á em lágrimas viúvas, atrasada para
suspirar “te amo” ao pé d’ouvido.
Cadáver não escuta, nem percebe, nem cheira. Só fede!
Quando eu morrer,
meus filhos — estáveis em suas áreas de atuação profissional
mas atemorizados com as mesmas dúvidas
que me assaltavam em vida — viajarão latitudes, nas quais meu corpo horizontal não se
[atravessa,
para presenciarem a partida.
E serei cremado!
Assim é definitivo...
Pois vai que a alma, já no meio do caminho, dê a doida de querer
voltar atrás.

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JANELAS VERDES: PORTUGAL,
MEMÓRIA E ESCRITA DE SI EM
MURILO MENDES

por Filipe Amaral Rocha de Menezes

Pois haverá coisa mais bela do que o espaço livre? Só


mesmo o homem livre no espaço livre.
Murilo Mendes

Murilo Mendes se encanta com as janelas de Guimarães. No


texto que homenageia cidade portuguesa, ele registra uma
recordação de sua infância em Juiz de Fora, Minas Gerais. Lá não
havia tantas janelas quanto em Guimarães, e as juizforanas eram
feitas de madeira, não de granito como as vimarenses. Através
dessas janelas, Mendes contempla Portugal e anota suas emoções,
sentimentos e memórias nas páginas de Janelas verdes. As janelas
transformadas em verbetes poéticos e memorialísticos seriam
enquadramentos emocionais e afetivos, com os quais o narrador
desenha uma cartografia imaginária e recria um panteão de
personalidades lusitanas. Elas são verdes, não por analogia ao
Museu das Janelas Verdes, mas sim, como o próprio autor explica
em notas ao final: “refere-se a espaços abertos, à liberdade; ao
campo e mar de Portugal, ao verde que ali nos envolve sempre”
(MENDES, 1994, p. 1444). O verde constante tanto no mar, quanto
nos campos, montanhas e vales portugueses, outro mar.
Janelas verdes teve sua primeira edição em 1989, publicada
parcialmente de apenas a primeira parte intitulada “Setor 1”,
impressa em 250 cópias para a Galeria 111 de Lisboa,
acompanhadas por ilustrações da artista plástica Maria Helena
Vieira da Silva, sendo que o exemplar continha duas serigrafias

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originais. Posteriormente, em abril 2003, saiu pela Quasi Edições,
o texto integral, apenas em Portugal. Esta edição perfaz o projeto
inicial do autor, no qual continha diversos elementos textuais
diferentes e partes que já haviam sido integradas a outros textos
como a nota autobiográfica “Microdefinição do autor” e cinco
poemas, chamados de ‘murilogramas’: estes foram publicados
anteriormente em Poliedro (1972) e em Convergência (1994),
respectivamente. Sua única publicação brasileira se deu como
parte integrante de Poesia completa e obra, pela editora Nova
Aguilar e com organização da professora italiana Luciana Stegagno
Picchio.
O estilo adotado por Mendes em Janelas verdes corresponde ao
de outras obras do mesmo período como Carta geográfica (1965-
1967) e Espaço espanhol (1966-1969), em que desenvolveu a
chamada prosa-poesia, em descrições e comentários sobre lugares
que marcaram sua memória; e em Retratos-relâmpago (1ª série de
1965-1966, 2ª série 1973-1974) e A invenção do infinito (1960-
1970), em que se utiliza da mesma prosa-poesia para falar de
pessoas ― personagens literários, amigos e personalidades
intelectuais, artísticas ou acadêmicas. Mendes sempre escreveu
em prosa, iniciando-se como escritor de crônicas na adolescência,
permanecendo este estilo literário em toda sua trajetória,
entrecortado pela forte presença da poesia stricto sensu. Em sua
prosa poética de textos curtos, porém entrecortados de alusões,
imagens e referências, desenvolveu uma grande produção literária,
como seu ponto alto nos últimos anos de vida.
Segundo o próprio Murilo Mendes, em uma das últimas cartas
escritas à Laís Corrêa Araújo, em 1974, Janelas verdes seria uma de
suas obras mais originais, pois teria conseguido completar uma
tarefa muito difícil de escrever textos sobre temas exploradíssimos
fugindo de clichês (ARAÚJO, 2000, p. 234). Tal apelo de
originalidade é retomado na nota final do texto, em que o poeta
descreve não só sobre o seu exercício de escrita, mas expõem o
desejo de que seu afeto tenha sido bem expresso:

trata-se dum exercício do estilo; e, querendo


dessacralizar a temática e as fórmulas, quase sempre
convencionais ou ridículas, ‘Portugal pequenino’,
‘Portugal de meus avós’, procedi com extrema
liberdade e desenvoltura. Espero, entretanto, que

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tenha deixado aqui a marca do meu afeto (MENDES,
1994, p. 1444)

A obra é subdividida em quatro partes: “Microdefinição do


autor” é um texto autobiopoético, no qual Mendes se coloca
liricamente no mundo, em meio as suas referências e antecessores,
como um manifesto iniciado pela justificativa de seu trabalho:
“Sinto-me compelido ao trabalho literário:”. Este manifesto
pessoal de cunho autobiográfico fora publicado anteriormente em
Poliedro, em 1972, porém constatava no projeto inicial de Janelas
verdes. As demais partes do livro são: “Setor 1”, que seria uma
cartografia portuguesa de Mendes, no qual em verbetes, o poeta
canta as cidades, acidentes geográficos ou localidades, em meio a
anedotas, lembranças pessoais e afetivas; no “Setor 2” se
encontram os “murilogramas”, pequenos e sintéticos poemas que
buscam na linguagem telegráfica sua forma rápida e cortante; e, o
“Setor 3”, um panteão de personalidades portuguesas nas quais
em cada verbete o poeta elenca histórias, memórias, sentimentos
nos quais localizam-se seu sogro e amigo Jaime Cortesão, a artista
plástica Vieira da Silva e os poetas Fernando Pessoa e Mariana
Alcoforado, personas lusitanas que, de alguma forma, deixaram
suas marcas na história do poeta e são homenageadas por ele. Ao
fim do volume, muitas e curiosas notas do autor, que procuram
esclarecer alguns pontos; no entanto, Mendes afirma que, embora
cite diversos versos de “Camões, Bocage, Cesário Verde, etc. sem
aspas”, não o faz, a citação devida, por considerar uma injúria ao
leitor “pensar que os desconhece.” (MENDES, 1994, p. 1445).
Outra característica específica de Janelas verdes são as
dedicatórias contidas em cada um dos textos. Diferentemente de
outras obras de Murilo Mendes, em que os homenageados são
objetos, os verbetes são ofertados a personalidades intelectuais,
artísticas, contemporâneas à vivência do poeta por Portugal.
Estabelecer a interrelação entre homenageado e texto é um
exercício de imaginação e erudição. Em “Lisboa”, a associação é
facilmente compreensível, pois é oferecida a João Gaspar Simões,
que foi o primeiro biógrafo de Fernando Pessoa,
reconhecidamente um dos maiores apaixonados pela cidade. Em
outros textos, a relação é apenas afetiva, do homenageado para o
local ou personalidade descrita, ou simplesmente uma
homenagem, uma lembrança.

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Murilo Mendes e Alberto de Lacerda, Quinta da Bacalhoa, Azeitão, 1962.
Arquivo: Alberto de Lacerda
As homenagens às cidades e às pessoas soam como
agradecimentos. Uma retribuição ao acolhimento que o poeta
recebeu da esposa e sua família, e dos demais portugueses com os
quais se relacionou e pelos lugares que transitou maravilhado. Suas
descrições das obras de arte, das comidas, das festas, dos locais,
das pessoas que transitavam por elas no momento que Mendes as
enquadrou, são cheias de adjetivos carinhosos e enaltecimentos
que demonstram seu encanto. Seu olhar se atém ao comum, ao
cotidiano. Como o próprio Mendes afirma, não que não goste dos
monumentos, museus ou catedrais, mas: “entendo que se vem à
Europa também para conhecer vinhos, comidas, doces: quando de
alto estilo, integram o contexto cultural de cada país, entrando não
só na boca, mas na literatura e na sociologia. Lévi-Strauss dixit”
(MENDES, 1994, p. 1370).
Os sabores portugueses, fundamental pilar da cultura lusitana,
não ficaram fora do livro. Pode-se elaborar uma culinária
sentimental apenas dos doces citados pelo autor: pasteis de feijão,
rabanadas, queijadinhas de Sintra.
Mendes transita no “Setor 1” como um etnógrafo, registrando
a alma portuguesa. Quando observa, detalha, analisa desde estilos
arquitetônicos a vestimentas tradicionais, ele descreve a cultura
portuguesa, presente como uma das grandes influências sobre a
brasileira, embora lhe seja exótica em determinados pontos.
Dentre as anotações sobre arquitetura, podem-se destacar as
dedicadas às janelas manuelinas do convento de Cristo, segundo
ele, “o vértice da invenção de arte em terra portuguesa” (MENDES,
1994, p. 1375), ou sobre Évora: “ninguém ignora que Évora reflete
de modo exemplar a cultura portuguesa, suas origens romanas e
influências árabes” (p. 1381), e também sobre Lisboa,
“consideremos a Lisboa de planos contrastantes, descidas, subidas,
largos (estreitos), pequenas praças, ‘altas ruazinhas’, vielas, becos,
jardins escondidos onde algumas vezes surpreendi ‘as dálias a
chorar nos braços dos jasmins’; a Lisboa mãe da Bahia” (p. 1409)
Os ricos detalhes completam a descrição das roupas típicas das
mulheres na festa de Senhora d’Agonia, que “vêm luzir trajes, ricos
em combinações de cores, desafiando o tempo; arrecadas. Argolas,
colares de ouro, corações em filigrana” (p. 1380). Da mesma forma,
atentamente, ele observa as mulheres em Nazaré, que esperam os
maridos na praia, por horas ou semanas, e Mendes descreve:
“Enroladas em severos xailes pretos, moças e velhas trajam ainda
sete saias: cada uma concentrará por acaso em si o fôlego de sete

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mulheres” (p. 1387). Parecem tristes viúvas, que por baixo do xale
preto, vestem o deslumbrante traje das sete saias coloridas.
No texto de “Setor 1”, Mendes elabora uma noção do Brasil
como a maior invenção de Portugal. O primeiro momento em que
expressa essa ideia é quando fala sobre o Pinhal de Leiria, que teria
sido plantado por Dom Dinis, e segundo Mendes, lá é a “origem das
futuras naves portuguesas; portanto nós brasileiros descendemos
deste pinhal” (p. 1377). Em outro momento, ele relaciona que as
casas caiadas de fresco de Viana do Castelo teriam gerado outras
em Mariana, São João del-Rei e Ouro Preto, e de lá “haviam
partido, manejando o caos, inaugurando-se, muitos homens ávidos
de conhecer a nova terra de braços alegorizáveis” (p. 1381). Assim
como as ladeiras de Lisboa são, para o poeta, a principal motivação
dos portugueses terem se lançado ao mar: “Contestando Camões,
Jaime Cortesão e Vitorino Magalhães Godinho sobre os
descobrimentos, penso que os antigos portugueses fizeram-se ao
mar [...] não para dilatar a fé e o império, antes para fugir as
terríveis ladeiras lisboetas; a elas devemos, em última análise, a
invenção do Brasil” (p. 1409). Mendes vê Portugal e a Europa com
respeito, devotando-se em homenagens pela ‘criação’ do Brasil,
todo seu legado cultural.
Uma constante percorre o texto repleto de memórias do poeta,
de suas lembranças, estimuladas ao passear por Portugal, sentir os
cheiros e sabores lusitanos, ver as pessoas, os monumentos. Os
flashs autobiográficos são desencadeados pelas paisagens,
sabores, odores. Um doce, as janelas, os monumentos e as
construções históricas produzem em Mendes o mesmo efeito que
a madeleine embebida no chá produziu em Proust: o rememorar e
a ativação de uma memória involuntária. Num arremedo ao
mecanismo involuntário, neste fazer poético, o poeta se desdobra
em criar as pontes entre suas lembranças e os diversos
mecanismos que a desencadeariam, como sobre a palavra
“castelo”, quando o poeta inspira-se no momento nacional do
Castelo de Leiria:

Meu primeiro encontro com Portugal determinou além


de outras coisas fundamentais a descoberta do castelo.
No Brasil não havendo castelos, esta palavra
frequentou minha imaginação desde as primeiras
letras, desde as primeiras figuras; e a persistência desta
palavra nos textos de poesia simbolista tornava o

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castelo quase um personagem, atraindo-me mais que
uma outra, paralela, palácio; embora num soneto
famoso se erga, não etereamente, mas
anterianamente o “palácio encantado da Ventura”,
verso aliás dos maiores. Muitas vezes, viajando num
trem espandongado, aos solavancos, entre Madri e
Lisboa, Saudade e eu víamos de repente despontar dos
restos da noite meio espanhola meio portuguesa a
pessoa do castelo de Almourol: concretizando-se uma
miragem de infância, à qual eu de certa maneira
regressava. O castelo era também para mim, que não
tive Idade Média, uma figuração dessa época
fascinante pela sua cultura, seus mitos e sua
cenografia, resumida que foi numa fórmula sintética: le
Moyen âge, énorme et délicat. (MENDES, 1994, p.
1376).

Nesse recorte, o narrador após uma confissão que sua relação


com Portugal teria determinado muitos de seus conceitos
fundamentais, explica como o vocábulo castelo habitou sua
imaginação infantil. A primeira parte do trecho pode ser resumida
em três pontos: o castelo dentro de seu imaginário, a frequência
dessa palavra na poesia simbolista e a ocorrência no poema de
Antero de Quental. Esse tipo de rememoração está mais próximo
do exposto por Proust como memória voluntária. Em Proust,
Beckett explica minuciosamente como funciona este mecanismo
ao analisar a obra do escritor francês, chegando a afirmar que é
uma “simples consulta ao índice remissivo do Velho Testamento do
indivíduo” (2003, p. 22) Neste caso, o narrador ao se apoderar da
palavra castelo, consulta o seu índice e expõe sua pesquisa, com
retorno de múltiplos resultados, interligados entre si, como uma
rede.
Já na segunda parte do trecho, o autor lembra de viagens que
fez com a esposa entre Madri e Lisboa. No trajeto, ao surgir a
imagem do Castelo de Almourol, paisagem presente próxima a
linha do trem à época, há o retorno a uma miragem da infância.
Esse choque, ou reflexo instantâneo, aproxima-se da definição da
memória involuntária, como também exposta por Beckett: “a
memória involuntária é explosiva, ‘uma deflagração total, imediata
e deliciosa’. [...] Escolhe seu próprio tempo e lugar para a operação
do milagre” (p. 33).

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O texto muriliano coloca o leitor a par de que as memórias
voluntárias e involuntárias repercutem nesta e em outras obras
como em Idade do serrote (1966) e Poliedro (1972). Assim, também
como outro tipo de memória, a intelectual, aproximada à
voluntária, é uma característica de sua poética. A obra de Mendes
é ornada por sua vasta erudição. A consulta ao índice remissivo
citado por Beckett, neste caso, é como o hiperlink de uma
enciclopédia virtual. Pode-se afirmar que seria uma memória
enciclopédica, não como teorizou Maria Ester Maciel sobre o
enciclopedismo onde existe a tentativa de inventariar o mundo, de
se colocar tudo dentro do texto, mas em outro sentido, de um
passeio pelo seu intelecto onde um conceito puxa outro, ou um
assunto lembra um autor, que lembra um poema, e assim, em
Mendes, tudo estaria entrelaçado por uma corrente sentimental.
Segundo Júlio Castañon Guimarães em Territórios / conjunções,
sobre o trabalho de citação de Mendes, o que o escritor pretendia
fazer era “construir um discurso próprio”, ao utilizar-se de diversos
excertos das mais variadas obras literárias, críticas e até mesmo
pictóricas e musicais, como as comparações com a obra
mozarteana (GUIMARÃES, 1993, p. 204). Dessa forma, o poeta
elabora a sua tessitura costurando os mais variados trechos de
diversas origens, citações e fontes com sua prosa e poética para
criar o seu discurso e seu estilo. Assim como o título de um dos
setores de Poliedro, Mendes perfaz o caminho da “palavra
circular”, no qual, por intermédio do jogo de uma palavra /
conceito puxando outro, ele novamente chega no início, como um
uroboro textual.
Em Leiria, o castelo é um dos seus maiores atrativos turísticos.
Ao visitar a cidade, Mendes inevitavelmente foi vê-lo, o que
desencadeou sua memória intelectual. Assim, ao lembrar de sua
passagem pela cidade, o castelo o liga à poesia simbolista e a um
trecho de um poema de Antero de Quental. Continuando o seu
rememorar, lembra-se de outro castelo, o de Almourol que o
remete a infância e “...para mim, que não tive Idade Média...”
(1994, p. 1376), afirmando que foi uma era praticamente
inexistente no imaginário brasileiro, lembrando a outro soneto,
agora de Verlaine, no trecho “le Moyen âge, énorme et délicat” (p.
1378).
Além de todas essas manifestações da memória, Janelas verdes
deve ser confrontado com as ideias de biografia e autobiografia.
Isso porque parte das memórias registradas nele tem relação com

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dados biográficos do próprio Murilo Mendes. Segundo Lejeune
(2008), autobiografia seria uma “narrativa retrospectiva em prosa
que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza
especialmente sua história individual, em particular a história de
sua personalidade” (p. 49). Tanto o texto de Mendes não é
necessariamente uma prosa, quanto também não faz exatamente
uma retrospectiva de si nem da história de sua personalidade, mas
há traços dessas características e de seus dados biográficos.
Lejeune (2008) propõe um pacto autobiográfico como na
“afirmação, no texto, dessa identidade [nome do autor-narrador-
personagem], remetendo, em última instância, ao nome do autor,
escrito na capa do livro” (p. 49). Em Janelas verdes, essa regra não
se realiza completamente, entretanto, há outras características
que poderiam confirmá-lo. Encontram-se, por exemplo, nas frases:
“...Saudade e eu víamos de repente despontar [...] a pessoa do
castelo de Almoural...”, “Saudade, o poeta Alberto de Lacerda e eu
azulejamos até a fadiga”, e também “minha amiga Luciana
Stegagno Picchio levou-me à casa de Torga em Coimbra.” Nesses
exemplos, o narrador entra no texto pelo pronome da primeira
pessoa eu, e refere-se à Maria da Saudade Cortesão Mendes,
esposa de Murilo Mendes, pela forma que o poeta a chamava na
intimidade por ‘Saudade’. São registros que, mesmo
fragmentários, buscam a imagem do homem Murilo Mendes, sua
biografia, suas relações pessoais e se encaixam no texto,
sutilmente, elaborando-se uma marca autobiopoética, uma
espécie de autoficção, pois mesmo o texto em si não tem
compromisso qualquer com cronologias ou a própria realidade,
tendo por muito espaço a imaginação e a criação literária,
Em “Miguel Torga”, no “Setor II”, há uma outra referência a
autobiografia quando o narrador cita o trecho de sua despedida de
Torga: “Ó Murilo Mendes, toda vez que estiver em Portugal
telefone-me, venha almoçar ou jantar aqui em casa, ó Murilo
Mendes, não façam cerimônia, venham, por favor. Gostarei
imenso” (MENDES, 1994, p. 1437). Em passagens como essa, o
poeta se inscreve ou recria referências sobre sua pessoa, numa
tentativa de uma revelação de si, uma exposição de parte de um
eu fragmentário, de pequenos cacos de sua memória. Nesses cacos
biográficos, o poeta se reinsere no seu texto, e transforma sua
poesia num tipo de autoficção, vertendo esse estilo tipicamente
em prosa numa prosa-poesia repleta de fragmentos da história, da
personalidade, da imaginação do escritor.

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Nesse tipo de escrita biográfica, a revelação de si dá-se de
maneira muito próxima ao que Foucault (1992) explicou como são
os hypomnemata. Em seu texto, a “A escrita de si”, o filósofo divide
a etopoiética ― escrita de exercício do ethos, do eu ― em dois
tipos: hypomnemata e epistolar. A segunda é tal qual se tem ainda
hoje, um texto destinado a outrem. “A escrita que ajuda o
destinatário, arma o escritor ― e, eventualmente, os terceiros que
a leiam.” (FOUCAULT, 1992, p. 148). Por sua vez, os hypomnemata
teriam por destino o próprio autor, “constituem uma memória
material das coisas lidas, ouvidas, ou pensadas: ofereciam-nas
assim, qual tesouro acumulado, à releitura e à meditação ulterior.”
(p. 135). Esses textos têm como objetivo fazer da junção do logos
fragmentário e transmitido pelo ensino, audição e leitura, um meio
para o estabelecimento de uma relação de si consigo tão adequada
e completa quanto possível dos fragmentos de um eu (p. 138).
Uma multiplicidade de temas e de fragmentos ainda maior é
apresentada na segunda parte do livro, no “Setor 2”, das
personalidades. Nessa parte, o poeta enquadra os seus
sentimentos, homenagens e lembranças em textos sobre artistas,
intelectuais ou escritores que, de alguma forma, são seus credores
afetivos ou culturais. Em diversos momentos, Mendes expõe
situações em que se confrontou com tais pessoas, ou mesmo como
se deu o seu contato e sua relação com esses portugueses. Ele
rotula os seus homenageados com adjetivos criados ou
reinventados, estabelecendo uma aura de sua convivência e
intimidade.
No verbete “Nuno Gonçalves”, abre-se uma discussão sobre a
controversa identidade desse artista (MENDES, 1994, p. 1417-
1418). Pouco se sabe sobre esse pintor: nada menos que um
registro num livro de assentamentos da corte de Afonso V, mas
essa falta de informações seria compensada, segundo Mendes,
pela monumentalidade de sua obra máxima, os Painéis de São
Vicente de Fora.1 Essa famosa obra de arte portuguesa, o políptico
é considerado uma das mais importantes pinturas da Europa
quatrocentista. A impressionante pintura poderia ser resumida,
segundo o poeta, por “O cristão, o mouro, o judeu” ou por “O
príncipe, o prelado, o pescador.” O verbete, embora intitulado pelo
nome do artista Nuno Gonçalves é, na verdade, uma análise do seu
estilo e do políptico, com minuciosa descrição de algumas partes e
ricas comparações. O mesmo fenômeno dessa subversão da ordem
de criador e criatura se repete nos verbetes que se seguem,

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encapsulados na subdivisão “A” deste “Setor 2”: nos demais
verbetes, os textos desses intelectuais são a materialização de suas
personalidades. É com este espectro da personalidade por meio de
suas criações que o poeta se relaciona, principalmente as
anedotas, as histórias, reais ou fictícias sobre estas personas.
Mendes retoma, elabora e recria lendas acerca de seus
homenageados, divertindo-se com elas. Segundo ele, Anchieta
teria se “macunaimizado” pela sua longa experiência com os índios,
tornando-se mais brasileiro, mas oposto ao “herói sem nenhum
caráter”, “este homem é desdobrado em mil, este grande abaré
vira constelação.” O poeta afirma que o padre foi um “espantalho
do meu fim-de-infância, espanto de minha idade madura.” (p.
1421) Também Gil Vicente é julgado e classificado, caindo no gosto
do poeta por ser moderno para o seu tempo, uma variedade de
qualidades em apenas um homem: “...ibérico, popularesco,
refinado; individualista e comunitário, palaciano e plebeu,
intérprete do fidalgo e do fideputa; [...] versado nas ciências
diabólicas e divinas.” (p. 1320)
Dessas lendas da cultura portuguesa, entre tantas histórias e
mitos, nenhuma é tão instigante quanto a de “Mariana
Alcoforado”. Aqui, Mendes cede à curiosidade e ao clichê
questionando sua existência ou não, e ressalta a importância das
cartas, que, segundo ele, seriam responsáveis, ao lado d’Os
Lusíadas, dos vinhos do Porto e Madeira, pela descoberta de
Portugal pelos europeus. As cartas seriam a “anatomia do amor
português, levando à saturação”, mas sem o sentimentalismo ou
os diminutivos, que, para ele, são os “excessos de meiguice.”
(MENDES, 1994, p. 1422).
Janelas verdes é uma obra da maturidade intelectual de
Mendes, numa época que o poeta se reinventava biograficamente
em seus textos, buscando em flashes de singelas memórias,
recortes para enquadrar sua lírica. Os textos sobre Bocage e Eça de
Queirós são iniciados por “na minha adolescência” (p. 1423 e p.
1428). Ele atribui a Bocage características de secreto, anarquista,
erótico, satírico, pornográfico, próprias para um ídolo de um
adolescente nada afeito às regras dos vários colégios e internatos
por onde passou: “A Bocage repugna qualquer disciplina: um
modelo”, afirma. A figura de Bocage foi para o autor: “o vivo
monumento andante da minha adolescência juiz-forana.”,
afirmando assim, a sua devoção juvenil ao poeta arcadista lusitano.
(p. 1424-1425).

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Eça de Queirós teria sido outro ídolo adolescente de Mendes e
que afirma tê-lo conhecido na mesma época em que se iniciou
literariamente: “Eça de Queirós ― com Cesário Verde, descoberto
no mesmo período ― acha-se nas raízes da minha formação
literária” (p. 1428). O estilo inconformista do português diante da
sociedade são os atributos que o atraem e que formaram “o
próximo futuro franco-atirador Murilo Mendes” (p. 1428). Além
disso, Mendes discorre sobre as impressões que as fotografias de
Eça causam, que transmitem um “todo, carregado de eletricidade”.
O autor se refere com muita reverência a seu tributário, mesmo ao
criticá-lo após releituras de sua obra na idade adulta.
Na segunda parte, também há o resgate de lembranças da vida
adulta do poeta. Mendes abre o seu arquivo e expõem suas fichas
com anotações de acontecimentos pontuais. Sua família
portuguesa, muito mais por afinidade e sentimentos do que
apenas pelo casamento, é constantemente citada, como em
“Coimbra” onde fala da avó materna de sua esposa, Madalena (p.
1372). O poeta enaltece suas características, para ele essa
“portuguesa de rija cepa, representava essa antiga cultura da
terra” foi uma das três personalidades mais fortes encontradas na
sua primeira visita a Portugal (p. 1373).
Jaime Cortesão é outro personagem de suas memórias
lusitanas. Em vários trechos do livro, tanto no “Setor 1” quanto no
“Setor 2”, o autor recorre ao saudoso amigo e sogro, como em
“Coimbra” onde se apropria de um recordo não seu, mas uma
espécie de memória familiar: sob os choupos que margeiam o
Mondego, Cortesão noivou-se com dona Carolina: “sem esses
choupos talvez Saudade não existisse.” (MENDES, 1994, p. 1373).
Recordações do sogro são muitas e repletas de detalhes e
momentos especiais, pois em parte das viagens que Mendes fez
por Portugal tinha Cortesão como companheiro e guia, como em
Leiria, cidade natal de Eça de Queirós, na qual sua presença foi tão
marcante que o poeta associa essa cidade a ele (p. 1378).
O texto que homenageia Jaime Cortesão é um dos maiores e dos
mais ricos em detalhes e lembranças (p. 1431-1435). Nele, o poeta
faz uma retrospectiva desde o dia em que conheceu a família
Cortesão, em 1940, no Rio de Janeiro, até o momento da morte do
sogro. Há um deslocamento da autobiografia na qual a obra vem
sendo desenvolvida para o autor ocupar o papel de um biógrafo.
Na introdução, Mendes fala sobre quando o conheceu,
destacando-o em uma posição especial no seu panteão afetivo. Em

7faces • 132
seguida, fala sobre a imagem de homem erudito, historiador, e,
sobretudo, homem simples e sua relação com ele. Então,
inesperadamente, o autor inicia um discurso biográfico sobre o
sogro, falando sobre sua cultura, conhecimentos e história de vida.
Seu exílio é justificado porque “sempre vivera sob o signo da
liberdade” e o tempo que viveu no Brasil foi de seu particular
interesse por ser “o Brasil a maior invenção de Portugal.” (p. 1432).
No exílio, não parou de produzir culturalmente, o que lhe facilitou
a entrada para grupos de artistas e intelectuais, em São Paulo e no
Rio, ao qual o poeta já fazia parte.
O poeta afirma: “Tive o privilégio de realizar em sua companhia
algumas excursões no interior do Brasil, e muitas outras em
Portugal” (p. 1433). Cortesão, além da relação familiar,
compartilhava alguns interesses com o poeta: gostava de viagens e
amava as artes, como afirma: “era entendido em artes plásticas, o
que aumentava o prazer da sua convivência” (p. 1434). Isso fez dele
um excelente e indispensável guia. Era também etnólogo amador,
procurando por onde passava se informar sobre tudo. Mendes se
esmera na descrição da agonia e morte do sogro, quando volta
para o papel autobiográfico, concluindo que sua perda para nação
portuguesa seria como o desabamento do Mosteiro da Batalha (p.
1435).
Após desfilar outros nomes de personalidades, o texto é
concluído pelo verbete sobre Fernando Pessoa. Não por acaso, o
autor termina o “Setor 1” com Lisboa, e o “Setor 2” com Pessoa, o
“guarda-livros lisbonês.” Num dos textos mais poéticos, o processo
de memória é acionado por lugares e paisagens de Lisboa, que
despertam em Mendes lembranças dos textos de Pessoa e o
personagem real que foi esse poeta. O autor explica esse processo
no primeiro trecho:

Distingo Fernando Pessoa nas arcadas do Terreiro do


Paço, aí pelas onze horas da noite. [...] Tendo relido
ontem o poema Opiário, auto-radiografia, posso
reconhecê-lo e interpretá-lo melhor. Mas recordo
também, relampeando, outros textos (MENDES, 1994,
p. 1443).

Esse poema de Pessoa, denominado por Mendes de “auto-


radiografia”, apresenta alguns elementos biográficos do poeta, e
lembra a dicção do texto “Microdefinição do poeta”. Seria uma

7faces • 133
confissão de Álvaro de Campos a Mário de Sá-Carneiro, e
assemelha-se muito com vários trechos da obra, nos quais Mendes
confessa a seus amigos, trechos de uma autobiografia, ora real, ora
ficcional.
Mendes já havia anteriormente “conversado” com Pessoa no
poema “Murilograma a Fernando Pessoa”, de Convergências.
Neste murilograma, o autor analisa o criador português
literariamente e como um personagem, transformando-o num ser
etéreo adjetivando-o de “guarda-livros do Nada”, de “sebastianista
duma outrora gesta” e de “anúmero.” (p. 681-682). O poeta
brasileiro tenta resumir no poema toda a obra do português. Na
última estrofe, Mendes se coloca no poema de forma opositiva às
características de Pessoa: ele não é afeito ao Nada, e se vê às voltas
com o gerúndio, próprio dos brasileiros, considerando-se
contrários, “contrapassantes.”
Aparentemente opostos, eles se atraem. Mendes se vê
apaixonado e emocionado por Portugal, Lisboa e Pessoa. Em O livro
do desassossego, Pessoa (1986) clama por uma vida simples, com
no mínimo o que “dê para comer e beber, e onde habite, e o pouco
espaço livre no tempo para sonhar, escrever ― dormir” (p. 62).
Mendes, também afeito a esse ideal de vida simples, analisa: “Pois
haverá coisa mais bela do que o espaço livre? Só mesmo o homem
livre no espaço livre.” Assim, é o homem livre de Murilo Mendes:
no espaço livre aberto pelas Janelas Verdes, dos campos
portugueses, outro mar de memórias.

Notas

1 Os Painéis de São Vicente de Fora é um políptico, composto por 6


painéis, que se pensa que possa ter sido criado pelo pintor português
Nuno Gonçalves. Foram descobertos em finais do século XIX (1882), no
Paço Patriarcal de São Vicente de Fora em Lisboa. Na altura estimou-se
que a obra teria sido executada entre 1470 e 1480. Trata-se de uma
pintura a óleo e têmpera sobre madeira e encontra-se exposta no Museu
Nacional de Arte Antiga em Lisboa.

Referências

ARAÚJO, Laís Corrêa de. Murilo Mendes: ensaio crítico, antologia,


correspondência. São Paulo: Perspectiva, 2000.
BECKETT, Samuel. Proust. Trad. de Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac
& Naify, 2003.

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FERRAZ, Eucanaã. Em Portugal, com Murilo Mendes. Posfácio a Janelas
Verdes, de Murilo Mendes. Portugal: Quase Edições, 2003.
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. O que é um autor? Trad. Antônio
Fernando Cascais, Eduardo Cordeiro. Lisboa: Vega, 1992.
GUIMARÃES, Júlio César Castañon. Territórios/conjunções: poesia e
prosa críticas de Murilo Mendes. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico – de Rousseau à Internet.
Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha; Maria Inês Coimbra Guedes. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2008.
MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas: ensaios de literatura,
cinema e artes plásticas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Mendes, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1994.

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MARILYN, A GIRAFA E
AS MIL SALAS
por Patrícia Aparecida Antonio

Em setembro de 1972, numa aparição nas páginas amarelas da


revista Veja, Murilo Mendes reafirma aquilo que sua obra, ao longo
de mais de cinco décadas viria comprovar: que a literatura “não
pode ser considerada uma atividade isolada do cinema, das artes
plásticas, da arquitetura, etc.” Logo na sequência, cita Fellini que,
com um carro enorme, fora lhe buscar, bem como a conversa que
tiveram sobre a cultura italiana. A passagem é curiosa pela
capacidade de concretização da literatura como arte que comunga
com as outras todas. E, por menor que seja, nosso objetivo aqui é
reavivar esse legado muriliano que, em toda a sua obra, tem sido
regular no sentido de que sabe que o texto “é não só uma projeção
da nossa personalidade: é também um ponto de ligação com a
comunidade.” Assim é que, brevemente lendo “Marilyn” e “A
girafa”, poemas em prosa incluídos em Poliedro de 1972,
esperamos dialogar com a liberdade necessária das artes,
sobretudo da poesia, sob as bases da qual sempre se assentou o
poeta.
A crítica costuma dividir a obra do mineiro em duas chamadas
fases (ou faces). A primeira é fundamentada por algumas
características bem particulares: o gosto pelo poema-piada, a
presença da doutrina católica, a utilização de técnicas surrealistas,
o essencialismo de Ismael Nery (1900-1934), a capacidade
dialógica com outras artes, a metáfora estranha, insólita, poderosa,
e a vontade de unificação de contrários rumo à totalidade
(MOURA, 1995). A fase final, por seu turno, é mais caracterizada
pela objetividade, por uma tendência prosificante, a passagem do
mundo adjetivo ao substantivo, para falar com o aforismo de O
discípulo de Emaús1 de 1945. Observar as especificidades daquele

7faces • 137
primeiro Murilo é ponto fundamental para uma leitura do Poliedro
em suas relações com o cinema.
Do catolicismo, que é certamente uma das grandes marcas
dessa poética, podemos dizer que se encontra estreitamente
ligado às concepções sociais e políticas do autor. Segundo os
preceitos católicos, vivemos um presente negativo à espera de um
futuro (a eternidade) que nos redimiria frente aos pecados de
então, daí as imagens catastróficas e apocalípticas sempre
presentes. Por isso mesmo, a poesia deve, como centro de
relações, transfigurar esse mundo negativo e a ele rivalizar. A
substância católica passa necessariamente pelo Essencialismo de
Ismael Nery, cuja filosofia, salvo raríssimas exceções, é
sistematizada na poesia e em alguns escritos de Murilo. Segundo
ela, portanto, “a essência do homem e das coisas só poderia ser
alcançada mediante a abstração dos conceitos de tempo e espaço,
pois a fixação de determinado momento, [...] privaria a vida de um
dos seus atributos: o movimento.” (LUCAS, 2001, p. 26-27).

Voltando os olhos à poética de sua segunda fase, observamos o


modo como essas marcas específicas se redimensionaram. Isso,
para uma leitura comparada entre a poesia e o cinema é
fundamental, pois logo de saída, o que se coloca são cortes espaço-
temporais praticamente cinematográficos. Nesse momento, é que
o diálogo com outras artes se intensifica de modo mais concreto
nos anos finais da obra – e a entrevista citada, bem como os
escritos dos anos 60 e 70 o provam: Convergência (1970), Retratos-
relâmpago (1973) e os póstumos Carta geográfica (1965-1967),
Espaço espanhol (1966-1969), Janelas verdes (1970) Transístor (só
publicado em 1970), e a segunda série dos Retratos-relâmpago
(1973-1974). Nessa leva, podemos incluir o Poliedro, de 1972, em
que encontraremos “Marilyn” e “A girafa”, que nos iluminam o
diálogo com o cinema. O livro é estruturado em Setores: “Setor
Microzoo”, “Setor Microlições de Coisas”, “Setor A Palavra
Circular”, “Setor Texto Délfico”, e seus poemas em prosa, embora
não inflexivelmente, mantém uma certa uniformidade. De um
modo geral, está presente ainda a imagem surrealista, o
catolicismo e o Essencialismo, bem como o retorno daquele humor
da década de 1930, que, desta feita, aparenta intensidade diversa
com vocalizes cortantes de ironia, descrédito e desilusão. Humor e

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religiosidade já não são os mesmos: se aquele é quase cínico, a
religião tende ao paganismo.
Nossa leitura comparada entre essa poesia em prosa muriliana
e o cinema se inicia com a leitura de “Marilyn”, incluído no “Setor
A Palavra Circular”:

MARILYN

TEMA: a ideia de tentar fixar qualquer coisa me impele, me fascina,


me espaventa.

Guarda uma tal figura que súbito sumirá, já sumiu, sem


auréola;

frágil-formidável no sexo, paisagem da coxa ao seio, do


ventre ao lábio debruado;

guarda rápido a épica da feminilidade inserida no écran


que é próxima poeira signo de morte preto e branco ou
tecnicolor já consumido antes da morte;

o écran, batistério, magistério e cemitério de Marilyn


desdobrando-se em mil cópias a consolar num
barlume, autodesconsolada.

aquela que estendia o corpo público a tantos olhos


erécteis – a mesmo escondendo-lhes l’immortel pubis;
alas poor Marilyn que foste e já não és,
voluntariamente subtraída à bomba.


Madame se meurt. Madame est morte. Bossuet.
(MENDES, 1994, p. 1024).

À diferença de Jandira (mulher inventada, forjada pela mitologia


pessoal do poeta), temos Marilyn, conhecida por todos, disponível
aos olhares direcionados às telas de projeção. A forma do poema
contribui para um movimento de corte cinematográfico ― é como
se observássemos takes ou movimentos de câmera direcionados à
personagem. Embora de viés diverso daquele dos primeiros anos,
ainda trabalhamos com cortes espaço-temporais. É claro, no

7faces • 139
entanto, que eles passam ao largo da continuidade e investem num
movimento mais marcado que fixa as partes. A atriz “desdobra-se
em mil cópias” à medida que é reproduzida em cada cinema e a
cada olhar. Uma a uma, suas faces vão surgindo separadas pela
própria construção do texto. Fica claro, então, não o
desaparecimento completo da atitude essencialista, mas uma
adaptação de seu uso. É como se tivéssemos Marylin entrevista por
um Buñuel e não por Ismael Nery. É a poesia se embrenhando com
outras tantas formas de arte.
A transitoriedade de Norma Jeanne, a personagem Marilyn, é
reafirmada tanto pelo écran quanto pela morte, e nesse sentido
avulta uma oposição de base que se dá entre a efemeridade da vida
e da projeção e a eternidade da morte e da projeção. Assim
colocado, a atriz incessantemente é e não é, existe e não existe,
para os olhos daqueles que a veem reproduzida aos milhares em
cada sala de cinema. Temos um objeto fixado, mas ao mesmo
tempo fugidio. Ressoa uma leve pontada crítica em relação ao
cinema: aquela que dá conta do sensacionalismo, do mau uso que
se faz da técnica cinematográfica, dos aspecto de reprodutibilidade
e consequente perda da aura, para falar com Benjamim (1994) em
seu “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Esse
pensamento, Murilo Mendes (1994, p. 850) expressa num aforismo
de O discípulo de Emaús:

O cinema é talvez o meio técnico mais poderoso que o


homem encontrou para se representar a si mesmo;
mas esta admirável invenção acha-se completamente
pervertida pelo espírito comercial, industrial e
capitalista ― numa palavra, satânico.

É tal espírito que podemos observar em “Marilyn” pela via elegíaca.


É como se o eu-lírico lamentasse os resultados da comercialização,
da industrialização, de uma beleza que foi gradativamente
pulverizada pelo poder da mídia e do capital.
A relação do poeta mineiro com o cinema resvala naquelas que
estabeleceu com outros artistas numa atmosfera extrema de
trocas culturais. Breton e Ismael Nery são dois grandes exemplos,
pois atualizavam Murilo acerca daquilo que acontecia em termo
artísticos. Do frequentemente mencionado livro sobre cinema que
Murilo teria escrito e que ele próprio destruiu, nada se tem.
Todavia, a marca da contemporaneidade entre o poeta e o cinema

7faces • 140
é bem visível na trajetória de sua obra e pelos momentos decisivos
em que floresceu, um certo espírito de época que direcionará a
obra muriliana. Poemas é lançado no mesmo ano de 1930 que
L’Age d’or de Buñuel e Le rang d’un poète de Cocteau, isso para
que fiquemos com só dois exemplos. E aqui, novamente,
retomamos o Murilo entrevistado: “Por exemplo, traço um gráfico
muito longo, ligando o nosso Modernismo de 1922 com o grande
Modernismo europeu incluindo a literatura ― que não pode ser
considerada uma atividade isolada do cinema, das artes plásticas,
da arquitetura, etc.”
Na primeira edição do Poliedro, publicada pela José Olympio em
1972, consta a bela, ficcional e teatral “Microdefinição do autor”
logo na abertura do volume (e que, veja-se, foi transposta para o
início da Poesia completa e prosa publicada em 1994 pela Nova
Aguilar). “Marilyn” é só um dos exemplos de como a poética final
de Murilo Mendes dialogou, muito modernamente, com os mitos
do contemporâneo e com o cinema da época, o que fica claro pela
menção nessa “Microdefinição” às figuras norteadoras de
“Chaplin, Buster Keaton, Eisenstein”2. Pode-se observar, por esses
nomes, a força que tem para Murilo o cinema mudo. Em outras
palavras: a força que tem a imagem e o modus operandi específico
e inovador do cinema. Nessa senda, podemos pensar no contato
intenso que o autor trava, num primeiro momento, com as técnicas
surrealistas de colagem e montagem. Estas tomam elementos
banais e cotidianos e os transformam em conhecidos e
surpreendentes. Temos em causa, como sempre, as disparidades e
o seu encontro, “meio este, por sua vez, que implica a ‘violência do
corte do poema’ ou, ainda, segundo as palavras de Murilo Mendes,
a supressão das partes intermediárias.” (MOURA, 1995, p. 31).
Quando se trata da prática surrealista da montagem
cinematográfica, pode-se dizer que ela parte de três pontos: (1)
atitude combinatória; (2) aparição do novo; (3) arte criadora. A via
que este tipo de montagem toma é a da descontinuidade e a da
supressão das partes intermediárias. Esta última, especialmente,
permite aproximar, ainda que sensivelmente, montagem
surrealista e continuidade essencialista. Tanto é que os
mecanismos que vemos empreendidos nos poemas do Poliedro
nos permitem recorrer a Eisenstein (1994, p. 158-159), em seu “O
princípio cinematográfico e o ideograma”, quando ele se
questiona: “O que, então, caracteriza a montagem e,
consequentemente, a sua célula ― a tomada (o plano)? A colisão.

7faces • 141
O conflito entre dois pedaços, um em oposição ao outro.” E
continua: “da colisão de dois fatores determinados, surge um
conceito. [...] Portanto, montagem é conflito.” É desse conceito,
verdadeira criação, que se compõem os poemas em prosa do
Poliedro. A atitude muriliana é marcadamente cinematográfica. Em
“A poesia e o nosso tempo”, artigo publicado em 1959, no
Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, Murilo Mendes (1968,
p. 178-179) é claro: “Procedi muitas vezes como um cineasta,
colocando a ‘câmara’ ora em primeiro, ora em segundo ou terceiro
plano: planos estes representados pelo encontro ou pelo
isolamento de palavras, pela sua valorização ou afastamento no
espaço do poema.”

No extenso “A girafa”, assim como naquele dedicado à Marilyn,


vemos como o corte (sinalizado pelas bolinhas pretas) e a
montagem formam um todo múltiplo e concretizante.

A GIRAFA

A Yolanda Jordão

Ninguém ignora que os poetas habitam casas de mil


salas paralelas. Chegam a habitar às vezes, como
Villiers de l’Isle-Adam segundo Mallarmé, une haute
ruine inexistant, o que permite a construção de um
número ilimitado de salas.

Estou na minha casa de mil e uma salas paralelas. No
meio de qualquer destas salas encontrareis uma
mulher com um livro na mão: todas se preparam a
contar-me uma história que se desdobra, se prolonga
sempre: la suite au prochain numéro.
Querendo surpreender algum amigo predileto, abro
uma das salas (com fecho eclair) e mostro-lhe uma
girafa que passeia sozinha no jardim interno. De
repente faz-se escuro, a girafa para e estende o
pescoço: um operador escondido projeta num
pequeno écran filmes de Méliès, Buster Keaton, além
dos primeiros – somente os primeiríssimos – de Walt
Disney.

7faces • 142
Afasto-me discretamente com o hóspede: o
cineminha é privativo da girafa.

A girafa pertence em parte ao reino do camelo e ao
do pardal, já que seu nome científico é giraffa
cameleopardis. Informam-me que este nome vem do
árabe zarafah.
Nos dicionários a girafa é vizinha de palavras
sedutoras; por exemplo girafalte, com seus sinônimos
girafalto e gerifalto. Há mesmo um “gerifalte letrado”.
Eu perdera de vista tal palavra. Descobrira-a em
outros tempos num soneto de Heredia traduzido por
Raimundo Corrêa que adota a grafia gerifalto. Como
todos sabem trata-se duma espécie de falcão.
Mas há outras palavras aliciadoras vizinhas da girafa:
gir, girador, girame, girândola, além do inevitável
girassol. Serão todas belas, atraentes, não o nego.
Prefiro-lhes entretanto a girafa, volto à mesma.

A girafa é douce, macia, delicada, atenciosa. Muito
elegante, veste-se com apuro, tendo atraído uma vez a
inveja de Christian Dior que a desejou para manequim.
Caminha com passos de aranha, congeminando coisas;
responde sempre “sim” às nossas perguntas, mesmo as
absurdas.
A girafa, repito, é douce – não gosto da palavra doce,
por isso apelo para o francês, a inserção da vogal u no
texto da girafa provocando uma sensação de escuro
ligada ao cineminha.
Poderia também apelar ao italiano, definindo a girafa
dolce, vocábulo talvez mais indicado pois evocaria a
dolce vita da girafa, inimiga declarada do trabalho, do
pagamento de impostos, de qualquer forma de guerra
(há tantas!). Com a vantagem de também aludir ao
cineminha e ao cineasta Fellini pertencente ao
reduzido número de homens que viram a girafa.
Porque, como é notório pelo menos em Portugal e no
Brasil, a girafa não existe. Somente os visionários-
realistas (ou os realistas-visionários) conseguem vê-la.
De resto, mesmo estes depois de cumprida a visita

7faces • 143
regularmente regressam à casa convencidos de que a
girafa não existe.

Por minha parte acredito firmemente na existência da
girafa. Mesmo porque, egresso da montanha, costumo
passar longas horas no alto dela. Agarro-me ao seu
pescoço, com medo da Bomba.
Vou-me consolando das asperezas da existência no
quadro da civilização técnico-industrial, que leva o
homem ao cosmo mas não cura um resfriado; o puro
clima de montanha da girafa protege-me os brônquios.
Do alto da girafa convocarei os povos para a realização
do congresso universal da paz, sob a presidência de
honra justamente da girafa, que além de pacífica,
douce e civilizada, não gosta de fazer discursos.
(MENDES, 1994, p. 984-985, grifos do autor).

Uma gama de referências a escritores, cineastas, atores, filmes,


obras, estilistas. Todos associados à figura estranha e fascinante da
girafa. A estrutura é comum aos poemas do “Setor Microzoo”, e,
logo de saída, o que se tem é um eu-lírico que procura descrever o
longilíneo animal ao mesmo tempo em que aborda o seu ofício de
poeta. Assim, os poetas habitam casas de mil salas paralelas como
se estivessem na vizinhança das outras artes todas; dessa
capacidade, surge um número ilimitado de salas cujo conteúdo
aparentemente é surpreendente àquele que as visita. É, portanto,
na casa de mil salas paralelas deste poeta que nos fala que
encontramos a girafa no jardim interno de uma das salas, qual se
estivesse no próprio éden. Ali, o estranho animal aparece em
franco diálogo com o cinema, primeiramente por sua capacidade e
oportunidade de assistir a diversos filmes projetados, muito
provavelmente pela altura do pescoço. Veja-se, no entanto, o
conteúdo daquilo a que assiste a girafa: Méliès, Buster Keaton,
Walt Disney. Diretores que trabalham com mundos e atitudes
fantásticas que, no limite, transformam a realidade, juntam
disparidades. Desta forma, é explícito o paralelismo, ou melhor, a
vizinhança que se estabelece entre a atitude poética e a
cinematográfica. A atração que causa a girafa é tão grande que o
eu-lírico é como que obrigado a se voltar unicamente a ela. Nesse
sentido, a visada se inicia especificamente pelo aspecto concreto
da palavra “girafa”, partindo do nome científico e chegando a

7faces • 144
outras “palavras aliciadoras vizinhas”. Ora, ainda que todas essas
palavras sejam belas e atraentes, é à beleza concreta da girafa que
ganha a preferência do eu-lírico.
Todavia, o que nos interessa de fato é, além da referência aos
filmes a que a girafa assiste, a maneira como o eu-lírico associa a
doçura do animal à película La dolce vita, de 1960.
Resumidamente, a história que nos conta o diretor italiano
Federico Fellini é a de Marcello Rubini, belamente interpretado por
Marcello Mastroiani. O personagem é um jornalista que, à moda
dantesca, percorre os círculos da corrupção social e da
manipulação da igreja. Não sem razão, essa crítica religiosa serve
muito bem ao catolicismo questionador de Murilo Mendes, porque
vai desvendando uma série de pecados aos quais está sujeito o
fleumático personagem de Mastroianni. Sinal claro dessa crítica é
a cena do milagre de Nossa Senhora, pondo em carne viva a
midiatização, a manipulação e os excessos que cercam a religião. O
diálogo com a obra do italiano não esbarra somente no humor que
pode nos evocar e que, de resto, é muito próximo daquele dos
comediantes que cita. Muito pelo contrário: torna-se amplo num
sentido crítico ao colocar a girafa, “douce, macia, delicada,
atenciosa”, tão elegantemente trajada (de modos e de estilo)
quanto aquela geração de bons-vivants romanos da década de
1950 que o filme retrata. Para além disso, comunga com a
indolência e a doce vida do repórter interpretado por Marcello
Mastroianni e que no poema aparecem sob a fleuma da girafa.
Muitos são os pontos de contato para que a girafa muriliana não
visse Fellini, a começar pelo excesso, pelo caráter barroquizante
das imagens. É o caso, por exemplo, da imagem do Cristo carregada
de helicóptero pelos céus de Roma, cujos cortes cinematográficos
se alternam entre o sagrado da estátua e o profano encabeçado
por belas moças de biquíni que acenam ao personagem principal.
Além disso, os planos explorados por Fellini (em que vemos o
Vaticano, a Praça de São Marcos e o prédio sede da Igreja Católica)
mostram exatamente a Roma dos anos de 1950 que, para Murilo
Mendes, era tão conflituosa em termos de mudanças
arquitetônicas quanto religiosas. Além disso, citem-se as cenas em
que a estrela de cinema fictícia sobe a escadaria de uma famosa
Catedral, enquanto faz referência à Marilyn Monroe,
transformando a religiosidade do prédio em mais um pretexto para
se expor a fotógrafos e repórteres. E, é claro, o próprio Rubini,

7faces • 145
sempre confrontado com o absurdo do real e de suas imagens,
daquilo que existe e não existe.
No entanto, de todas essas afinidades expressas claramente na
poesia do Poliedro, é certamente a imagem da própria girafa unida
à beleza de Sylvia, personagem de Anita Eckberg, que dá a
tonalidade do diálogo de Murilo Mendes com o cinema e com este
filme em particular. Pois que a girafa é o símbolo da beleza, de um
tipo estranho, incomum, só perceptível pelos “visionários-
realistas”. É, enfim, tal beleza que se constrói pelas mãos de
cineastas e poetas que vemos celebrada por Fellini na passagem da
Fontana di Trevi e por Murilo quando coloca sua girafa numa sala
de projeções com filmes de cineastas clássicos, vista também pelos
leitores levados pelas mãos do eu-lírico. Sylvia conduz Marcello
pelas vielas de Roma, na referida passagem, a uma espécie de
revelação e de batismo, sob as vestes de uma sensualidade
extraordinária, bem como os expectadores pelas lentes do cineasta
também são conduzidos. E o questionamento que temos no poema
e no filme parece ser o mesmo, plasmado pela pergunta de
Marcello à Sylvia: “Quem é você?” Para os dois, vale o que disse
Fellini sobre esse filme, numa entrevista a Alberto Moravia em
1965:

Todo artista vive uma realidade que não pode ignorar.


Essa realidade não me agrada nem um pouco, bem
entendido. No entanto, meu filme não é apenas isso.
Em A Doce Vida também observo o homem com uma
atenção diferente e, creio eu, mais nobre do que a de
um sociólogo. Examino a miséria de sua alma, as
doenças de seu espírito; parto com ele em busca de
uma luz indispensável.

Em Murilo, uma girafa (ou Marilyn, ou Armilavda, tantas outras


musas) que é única, só vista por alguns poucos, porque na verdade
existe e não existe; um animal cujo nome guarda em si o próprio
feminino, substantivo epiceno. Em Fellini, por seu turno, é como se
a obra girasse de certo modo ao redor da grande beleza da atriz
que, de início, “parecia uma boneca gigante”. Justamente aí se
cruzam as referências: Sylvia, a atriz, e a girafa do poema. Tal
estranheza bela é redimida, mostrando a potência do feminino,
quando essa mesma personagem se banha nas águas da Fontana,
como se dali emanasse a possibilidade da própria criação. Os

7faces • 146
homens “visionários-realistas” de que nos fala o poema são, nesse
sentido, aqueles que nos dão a ver a beleza, a da girafa (a poesia)
que estica seu já longo pescoço, fazendo com que seja nosso o seu
cineminha; e a da mulher imersa em água, fértil e única, estranha
e sensual. Cineasta e poeta, portanto, estão inclusos entre aqueles
que viram e nos fizeram ver a girafa. Trata-se de uma beleza que se
quer livre, que comunga com o inesperado, que se encontra nos
mitos, nos primórdios da criação, cristã e pagã a um só tempo.
Nesse abandono da existência em que nos encontramos, o clima
que a arte dá é o que nos consola e impele àquela busca que
aparentemente não termina.

Notas

1 O aforismo é o de número 371: “Passaremos do mundo adjetivo


para o mundo substantivo.” (MENDES, 1994, p. 851). Aliás, é sobre
ele e a obra Tempo espanhol (1959) que se assenta o mais que
referenciado ensaio de Haroldo de Campos (1992), “Murilo e o
mundo substantivo”.
2 “Tenho raiva de Aristóteles, ando à roda de Platão. Sou
reconhecido a Jó, aos quatro evangelistas, a São Paulo, a Heráclito
de Éfeso, Lao-Tsé, Dante, Petrarca, Shakespeare, Cervantes,
Montaigne, Camões, Pascal, Quevedo, Lichtenberg, Chamfort,
Voltaire, Novalis, Leopardi, Stendhal, Dostoievski, Baudelaire,
Mallarmé, Rimbaud, Lautréamont, Nietzsche, Ramakrishna,
Proust, Kafka, Klebnicov, André Breton;

a Ismael Nery, Machado de Assis, Mário de Andrade, Raul Bopp,


Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa,
Drummond, João Cabral de Melo Neto;

a Monteverdi, Bach, Mozart, Beethoven, Stravinski, Anton Webern,


aos inventores do jazz;

aos “primitivos” catalães, a Paolo Uccello, Piero della Francesca,


Vittore Carpaccio, Breughel, Van Eyck, El Greco, Rembrandt,
Vermeer de Delft, Goya, Mondrian, Picasso, Paul Klee, Max Ernst,
Arp;
a Chaplin, Buster Keaton, Eisenstein;

7faces • 147
convicto de que acima das igrejas, dos partidos, das fronteiras,
todos os homens conscientes, em particular os escritores, devem
unir-se contra a guerra, a massificação e a bomba atômica. Roma,
14-2-1970.” (MENDES, 1994, p. 47).

Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre


literatura e história da cultura. Trad. de Sergio Paulo Rouanet. São
Paulo: Brasiliense, 1994, p. 165-196.
CAMPOS, Haroldo de. “Murilo e o mundo substantivo”. In:
Metalinguagem & outras metas. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1992, p.
65-75.
EISENSTEIN, Sergei. “O princípio cinematográfico e o ideograma”. In:
CAMPOS, Haroldo de. Lógica, poesia, linguagem. São Paulo: EDUSP,
1994, p. 149-166.
FELLINI, Federico. “Entrevistas: um documentário sobre a vida”. Trad.
de Hildergard Feist. In: CALIL, Carlos Augusto. Fellini Visionário. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 84-92.

LA DOLCE vita. Direção: Federico Fellini. Intérpretes: Marcello


Mastroianni; Anita Ekberg; Anouk Aimée; Yvonne Furneaux. Manaus:
Versátil, 2005. 1 DVD (173 min), son., preto e branco. Produzido no Pólo
Industrial de Manaus.
LUCAS, Fabio. Murilo Mendes: poeta e prosador. São Paulo: EDUC, 2001.
MENDES, Mendes. Poesia completa e prosa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994.
MENDES, Mendes. “Não quero ser popular”. [Entrevista concedida a]
Leo Gilson Ribeiro. Veja, São Paulo, n.209, p. 3-5, 6 jul. 1972.
MENDES, Mendes. A poesia e o nosso tempo. In: CANDIDO, Antonio;
CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira:
Modernismo. São Paulo: Difel, 1968, p.179-184.
MOURA, Murilo Marcondes. Murilo Mendes: a poesia como totalidade.
São Paulo: EdUSP, 1995.

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HARPA DE OBUSES: O
FASCISMO NA MIRA DA POESIA
MURILIANA
por Gustavo Henrique de Souza Leão

E um pensamento de guerra
Anula o que poderia vir
Da água, da rosa, da borboleta.
Murilo Mendes

A poesia de Murilo Mendes é dotada de uma postura


antiautoritária, seja se a tomarmos em seu plano temático, seja se
a considerarmos pelo viés formal. Tal característica se configura
como uma constante nessa obra mesmo levando em conta suas
distintas fases. Essa postura, inclusive, é o que motiva a poesia
muriliana a se confrontar até mesmo com pressupostos do
catolicismo, ao qual o poeta se converteu em 1934, quando da
morte de seu amigo Ismael Nery, filósofo, pintor e também católico
e poeta. No poema “A tentação”, do livro Poesia liberdade, o eu-
lírico, e não o diabo, é que cumpre a função de tentar o próprio
Cristo, ainda que com temor e movido por um sentimento
humanitário:

Diante do crucifixo
Eu paro pálido tremendo:
“Já que és o verdadeiro filho de Deus
Desprega a humanidade desta cruz”.
(MENDES, 1994, p. 424)

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Sendo um autor contemporâneo ao século XX como foi, Murilo
Mendes, que nasce em 1901 e morre em 1975, deixou-se embalar
pelo ritmo de seu tempo histórico, mesmo compondo melodias
poéticas dissonantes, sempre em busca de uma dicção própria e
sem perder de vista o seu chão histórico-social.
Desse modo, o presente trabalho, para além de buscar discutir
os impulsos antiautoritários e os aspectos históricos em termos
temáticos e formais na obra poética de Murilo Mendes, pretende
também entender essas características à luz da ascensão, no século
XXI, de uma nova extrema direita, que ganha roupagens diferentes
daquelas adotadas pelos nazistas e fascistas tradicionais mas que,
sobretudo, conserva semelhanças ideológicas (e de ação) com eles.
A pergunta a ser feita então é: o que tem a dizer, e de que maneira
diz, a poesia de Murilo Mendes frente à nova escalada autoritária
no mundo, tão condenada pelo poeta no século anterior?
Para tentar responder a esse questionamento, vamos recorrer,
sobretudo, a Leandro Konder (2009) e Umberto Eco (2002), cujas
observações sobre o fascismo serão utilizadas aqui somente
enquanto elementos que estabelecem relações de interlocução
com a poesia muriliana. No entanto, por motivos de síntese,
daremos prioridade aos apontamentos de Konder, que são mais
condensados, fazendo uso do texto de Umberto Eco conforme os
diálogos que este estabelece com o do filósofo brasileiro. Não se
trata, portanto, de uma tentativa vã de esmiuçar todos os aspectos
do lamentável fenômeno do fascismo, nem tampouco de abarcar
toda a referência, direta ou indireta, ao fascismo ou algo que o
valha na poesia de Murilo Mendes, mas somente de verificar, nos
versos do autor, representações de uma visão crítica de um
fenômeno social que, assumindo configurações destrutivas em seu
surgimento em meados do século XX, ainda estende seus
tentáculos sobre o século XXI.
Para que possamos desenvolver uma linha argumentativa mais
sólida e centrada, optamos por enfocar uma só obra de Murilo
Mendes, que é Poesia liberdade, por conta de sua proposta e do
contexto em que foi escrita. Este livro publicado em 1947 e escrito
entre os anos de 1943 e 1945, é dedicado “aos poetas moços do
mundo” e integra o conjunto de obras que deixam mais evidente o
peso que a guerra e a ascensão do fascismo e do nazismo tiveram
na produção poética de Murilo Mendes. A necessidade de
renovação presente na dedicatória está atrelada ao impulso

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estético que move a lírica do livro, que se caracteriza pela busca de
uma linguagem que dê conta dos horrores históricos que
permeiam o século XX: duas grandes guerras mundiais e os
movimentos de extrema direita.
Dotando sua poesia de uma religiosidade idiossincrática aliada
a um surrealismo à brasileira, Murilo Mendes encontra um meio de
representar em seus versos a negação da razão belicista e
autocrática ao mesmo tempo em que apresenta o texto poético
como um espaço em que se opera uma espécie de estetização da
existência, procedimento que Evandro Nascimento identifica com
as vanguardas europeias do século XX. “Sabemos hoje o quanto as
vanguardas tiveram de espírito redencionista, pois tratava-se de
salvar a Humanidade. Desta vez, não por meio da razão
materialista de Marx, nem pela intuição religiosa [...] mas por uma
estetização da existência (NASCIMENTO, 2004, p. 68, o grifo é
nosso).
Nosso estudo, porém, alcança um caminho diferente, apesar de
similar: Murilo Mendes se utiliza dessa estetização da existência
sim, mas sem renunciar a determinada intuição religiosa e de certo
materialismo que aparecem numa relação de intersecção para dar
origem a uma nova maneira de perceber a realidade. Vejamos
“Poema antecipado”:

Harpa de obuses,
Sempre um espírito guardião sobra
Para desenvolver o germe augusto
Que foi criado no princípio
Para não explodir de febre
E dançar no fogo azul.

Terra e céu, jardins suspensos,


Em dia remoto serão refeitos.
O homem respira a Criação,
O corpo todo verá,
(Antes de nascer eu já via).
(MENDES, 1994, p. 402)

A “harpa de obuses”, evocada no início do poema, instaura,


através de uma imagem digna de uma pintura surrealista, o clima
difuso de uma realidade poética que assegura, pela estética, a
possibilidade de renovação de um mundo convulso. Os obuses,

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armamento bélico pesado, são agrupados para dar corpo a uma
harpa, que, pode-se dizer, representa aqui a poesia ou, até mesmo,
a própria arte. Assim, a guerra ― que integra a base histórico-social
sobre a qual se constrói o poema ― não é desertada pelo eu-lírico,
que intervêm no caos de modo a salvaguardar o surgimento do
novo em meio aos escombros, para que o “que foi criado no
princípio” não exploda “de febre”.
Na segunda estrofe, a superação da noção comum de tempo e
de espaço, com terra e céu como “jardins suspensos” e o eu-lírico
tendo visto tudo antes mesmo de nascer, anuncia o advento de
uma nova lógica que não obedece às mesmas regras que levaram
nações a guerrearem entre si. A harpa de obuses, então, não é
somente uma arma de destruição, mas sobretudo de criação. O
poeta brande sua harpa para dar corpo a esse mundo destroçado,
dando uma nova feição a uma realidade desfigurada, e a
religiosidade se faz presente enquanto um recurso poético que
compõe um cenário apocalíptico, que é também criador, e que
atribui uma função messiânica à própria poesia.
Umberto Eco, ao descrever o fascismo, que ainda estava em
voga na Itália e na Alemanha à época da escrita de Poesia liberdade,
atribui uma feição universal com o objetivo de facilitar sua
identificação fora do contexto da Segunda Guerra: “por trás de um
regime e de sua ideologia há sempre um modo de pensar e de
sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos
obscuros e de pulsões insondáveis” (ECO, 2002, p. 34). Eco então
aponta para algo de universal, atemporal, no movimento fascista.
Murilo Mendes parece fazer o mesmo em relação à poesia,
contrapondo, a nosso ver, o fascismo em suas bases, em suas
características fundamentais. É contra os canhões de Mussolini e
tudo que o Duce representa que o poeta aponta a sua harpa de
obuses.
Uma das características do fascismo ressaltadas por Leandro
Konder (2009) e Umberto Eco (2002) é o pragmatismo radical
decorrente da miséria teórica. Devido à sua própria natureza
contraditória, ou seja, o fato de ser um movimento que se coloca
como contrário às instituições e à política tradicional mas que visa
conservar as bases de uma sociedade de classes submetida a
grandes grupos econômicos, o fascismo precisa fazer uso de
conjuntos de ideias que se colocam como universais mas que são
extremamente particularistas e excludentes. Devido ao seu
objetivo de impedir uma verdadeira revolução social, isto é, de

7faces • 153
barrar qualquer possibilidade de mudança da classe social no
poder, o fascismo se coloca como defensor dos interesses da classe
dominante do capitalismo ao mesmo tempo em que precisa contar
com o apoio de uma parcela significativa das massas. Assim se faz
necessária a utilização de ideais rasos que passem uma ideia de
universalidade, como a defesa de uma raça ou de uma nação
superior ou o combate supostamente intransigente à corrupção na
política.
A esse pragmatismo irrefletido e superficial a poesia muriliana
responde com a abstração do tempo e do espaço, como vimos no
“Poema antecipado”, que eleva as perspectivas para além das
noções mais chãs. A fusão entre terra e céu e o deslocamento
temporal do eu-lírico do poema dão a este um alcance
transcendental que foge à ordem de qualquer pragmatismo
imanente. Não é incomum encontrar na poesia muriliana versos
como os seguintes, de um trecho de “A jaula verde”:

Esta jaula de janelas verdes


Dá para a segunda frente,
Para Londres, Florença, Stalingrado,
Dá para as montanhas de Correias,
Para a rua Ibituruna
Onde mora a minha amada.
(MENDES, 1994, p. 413)

Em “Overmundo”, vemos o seguinte:

“Overmundo expirou ao descobrir quem era”,


Anunciam de dentro do castelo na Espanha.
“O tempo é o mesmo desde o princípio da criação”
Respondem os homens futuros pela minha voz.
(MENDES, 1994, p. 413)

Esse dado da obra muriliana não é exclusivo do livro Poesia


liberdade. É nela recorrente o recurso à abstração do tempo e do
espaço mesmo quando lida diretamente com elementos da
realidade sócio-histórica. A guerra e o fascismo aparecem
compondo um todo complexo e repleto de nuances que fazem com
que acontecimentos de ordem telúrica adquiram ares
transcendentais, o que não é raro manifestar-se através da fusão
entre imagens de guerra e do Apocalipse, por exemplo, que, por

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sua vez, passam a agregar a noção de potência de destruição
criadora, como a própria ideia de renovação em “Poema
antecipado” sugere.
A redução simplista dos fenômenos políticos e sociais que
fundamenta o pragmatismo fascista típico está atrelada a outra
característica importante do fascismo, segundo Konder (2009), que
é o mito da nação homogênea. Umberto Eco (2002) identifica essa
espécie de ficcionalização nacionalista tanto com a necessidade de
disfarçar as contradições de classe sob a falsa sensação de unidade
nacional quanto com a construção fictícia de inimigos dessa nação,
que funcionam como elementos agregadores das massas
despolitizadas em torno de um projeto conservador. Isso facilita a
escolha de quaisquer pessoas que se oponham ao status quo como
sendo inimigas da nação “verdadeira”, sejam essas pessoas
estrangeiras ou um “inimigo interno”, como judeus ou comunistas.
Se tomássemos como referência toda a obra de Murilo Mendes,
em oposição à ideia de nação ficcionalizada, poderíamos
obviamente começar por História do Brasil, de 1932, livro no qual
o poeta recria diversos momentos da historiografia oficial do país
de maneira satírica, desconstruindo o mito de um passado grave e
edificante no qual deveríamos nos espelhar. No entanto, estamos
tentando levar em consideração sobretudo características mais
intrínsecas à poesia muriliana, que sejam de ordem estrutural
antes de conteudística.
Em seu livro de aforismos O discípulo de Emaús, publicado em
1945, Murilo Mendes exige: “estamos cansados de relação;
restituam-nos a unidade” (1994, p. 880). No entanto, a noção de
unidade para o poeta está longe de incluir a de homogeneidade.
Parte da estética de sua obra diz respeito ao estranhamento
provocado pela aproximação entre elementos díspares. No poema
“Elegia nova”, o eu-lírico anuncia:

O horizonte volta a galope


Curvado sob o martelo.
(MENDES, 1994, p. 419)

Em “Aproximação do terror”, temos:

Dos telhados abstratos


Vejo os limites da pele,
Assisto crescerem os cabelos dos minutos

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No instante da eternidade. (MENDES, 1994, p. 432)

Mesmo quando a busca pela unidade não está evidenciada no


plano temático, ela ocorre com frequência através da mistura,
numa mesma estrutura frasal, entre campos semânticos díspares,
gerando o que Haroldo de Campos (1970) chama de “dissonância
imagética”, a qual o crítico considera o “dado mais significativo” da
poesia muriliana (p. 55). É o que ocorre com o horizonte se
movimentando “a galope” ou com os “cabelos dos minutos”. A
discrepância semântica ― e visual ― entre as palavras é tamanha
e a naturalidade de sua interação é tal que a única reação possível
é o choque devido ao contato com essa lógica completamente
nova. É esse efeito que também está presente no já citado
anteriormente “Poema antecipado” como resultado da construção
verbal dessa nova lógica suprarrealista.
A busca pela unidade, na poesia muriliana, então, não
pressupõe de forma alguma a eliminação arbitrária da diversidade,
mas a restituição harmônica das tensões inerentes à
heterogeneidade de que é composta a realidade. Em “Ofício
humano”, o eu-lírico descreve um curioso procedimento de
composição:

O poeta abre seu arquivo ― o mundo ―


E vai retirando dele alegria e sofrimento
Para que todas as coisas passando pelo seu coração
Sejam reajustadas na unidade.
(MENDES, 1994, p. 408)

Um dos trechos de “Poema dialético” vai além e associa mais


diretamente essa unidade, da qual se pode pensar ser ainda muito
autocentrada, à coletividade:

A terra terá que ser retalhada entre todos


E restituída em tempo à sua antiga harmonia.
Tudo marcha para a arquitetura perfeita:
A aurora é coletiva.
(MENDES, 1994, p. 411)

Ou seja, é no espaço do discurso poético e artístico, onde erige a


sua suprarrealidade, que Murilo Mendes encontra o equilíbrio
dissonante, única maneira de levar à unidade uma realidade

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complexa ― maneira que não encontra no chão histórico-social
que vivencia. Certamente foi essa tendência do poeta que levou
Arrigucci Jr. a comentar que “a ideia de uma harmonia feita de
tensões é cara à sensibilidade moderna, e Murilo explorou-a ao
máximo” (2000, p. 98).
Entretanto, é essa modernidade que é entendida pelo fascismo
como mero sinônimo de avanço tecnológico e de novidade,
perspectiva que elimina as complexidades do fenômeno moderno
(cf. KONDER, 2009) e o encaixa dentro dos moldes do
desenvolvimento armamentista e da tecnologia de guerra,
incluindo a da propaganda. O olhar que a poesia de Murilo Mendes,
por outro lado, lança sobre essa concepção de modernidade
restrita ao progresso material é de desilusão.

E estas luzes que não iluminam


De lado algum!
(MENDES, 1994, p. 417),

diz o poema “Maran Atha!”. Em “Choques”, o eu-lírico denuncia:

O choque dos cerimoniais antigos


Com a velocidade dos aviões de bombardeio
(p. 425).

No poema “Abstração”, lamenta:

O gramofone não diz em que mundo me acho


(p. 434).

Na segunda parte de “Janela do caos”, o eu-lírico lastima:

Telefonam embrulhos,
Telefonam lamentos,
Inúteis encontros,
Bocejos e remorsos.

Ah! Quem telefonaria o consolo,


O puro orvalho
E a carruagem de cristal. (p. 436)

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A associação entre as transformações tecnológicas e a violência
bélica diante das quais o poeta expressa o seu incômodo é ainda
mais compreensível quando consideramos o papel que o capital
industrial teve no desenvolvimento e no fortalecimento dos
movimentos nazista e fascista;

no momento em que Mussolini estava bastante


deprimido com a derrota eleitoral que os fascistas
italianos sofreram em 1919, ele recebeu substancial
apoio financeiro de alguns grandes industriais, entre os
quais Max Bondi, do grupo Ilva, que era o principal
grupo siderúrgico da Itália (KONDER, 2009, p. 49).

Tendo sido contemporâneo a esses fenômenos históricos


autoritários que ainda persistem no século XXI, não é de se
estranhar, portanto, que o poeta, sensível a essas questões, não
nutra muita simpatia por esse mesmo impulso que alavancou a
propaganda nazifascista e deu origem à bomba atômica. No
documentário intitulado Murilo Mendes: a poesia em pânico
(1977), dirigido por Alexandre Eulálio, o poeta chega a lamentar,
em raro depoimento em vídeo, sobre sua estadia em Roma:
“Tenho uma certa tristeza de voltar ao Rio completamente
diferente do que eu vi. Estragado pela tecnologia”.
É importante ainda ressaltar que o desencanto do autor com
esse aspecto específico da modernidade não implica
necessariamente desconfiança ou até mesmo rejeição desses
elementos no plano estético de sua obra. O diálogo constante com
as novas tendências artísticas de seu tempo, como as vanguardas
europeias, sendo a principal delas o surrealismo, e a presença do
gramofone, do telefone, do avião e da luz elétrica como
componentes fundamentais de sua própria dicção poética atestam
essa abertura. Isso enquanto o fascismo eterno descrito por
Umberto Eco faz o caminho inverso, abraçando sem ressalvas a
noção de modernidade apenas como progresso material e
repudiando a estética e os valores modernos.

Tanto os fascistas como os nazistas adoravam a


tecnologia [...] A recusa do mundo moderno era
camuflada como condenação do modo de vida
capitalista, mas referia-se principalmente à rejeição do
espírito de 1789 (ou 1776, obviamente). O iluminismo,

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a idade da Razão eram vistos (sic) como o início da
depravação moderna. (ECO, 2002, p. 43)

Tomando como exemplo o levante da extrema direita no Brasil,


é possível perceber sem muito esforço como essas características
do fascismo apontadas por Konder, presentes também em Eco, e
esteticamente contrapostas na e pela poesia muriliana,
predominam na política institucional brasileira em fins dos anos
2010 e no início dos anos 2020. Vejamos:

• o pragmatismo vazio aliado à completa miséria teórica que


infantiliza a percepção da realidade, como se vê na redução do
debate político à construção de caricaturas grotescas da
alteridade, como “comunistas”, “corruptos”, “petistas” etc.
(“Vamos acabar com o cocô” que são corruptos e comunistas,
diz Bolsonaro, Revista Exame, 14 de agosto de 2019);

• a defesa de uma nação homogênea e ficcionalizada que


exclui as parcelas da população que não tenham a “cara” da
classe dominante, como povos indígenas, quilombolas, negros
e negras e demais minorias sociais (Weintraub: Odeio o termo
“povos indígenas”; Quer, quer. Não quer, sai de ré, Uol
Notícias, 25 de maio de 2020);

• o nacionalismo que abomina a diversidade e fundamenta o


fanatismo, única forma, ao que parece, de provocar a
impressão de que os interesses das classes dominantes são os
mesmos que os da maioria da população (Bolsonaro recorre a
nacionalismo para rebatizar programas e “apagar era PT”, Uol
Economia, 6 de julho de 2020);

• o repúdio às novidades nos âmbitos cultural e social – aos


valores modernos – e o foco em uma formação humana
calcada exclusivamente no tecnicismo e no progresso material
(Bolsonaro defende cortes em cursos de Humanas e diz que
dinheiro do contribuinte deve ir para “leitura, escrita e fazer
conta”, O Globo, 26 de abril de 2019);

• e a completa submissão aos grandes grupos econômicos que


financiam e tornam possível toda essa lógica (Guedes: Vamos

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usar recurso público com grandes empresas e ganhar dinheiro,
Uol Política, 22 de maio de 2020).

Fica evidente, assim, o quanto a obra poética de Murilo Mendes,


ao se contrapor aos horrores do nazifascismo em seu próprio
tempo histórico, o faz confrontando, em forma e conteúdo, as
características fundamentais do fascismo de todas as épocas, de
acordo com Leandro Konder, incluindo o do século XXI. A esse
fascismo eterno também descrito por Umberto Eco, isto é, aos
pressupostos do fenômeno fascista que insistem em continuar
ressurgindo e em buscar respaldo em parcelas despolitizadas das
massas de todo o mundo, Murilo Mendes opõe sua lírica, sua harpa
de obuses que, estetizando a existência, resiste.

Referências

ECO, Umberto. “O fascismo eterno”. In: Cinco escritos morais. Trad. de


Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002.
ARAÚJO, Carla. “Bolsonaro recorre a nacionalismo para rebatizar
programas e “apagar era PT”. In: Uol Economia, 6 de julho de 2020.
Disponível em <https://economia.uol.com.br/colunas/carla-
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busca-apagar-era-petista.htm> Último acesso em 17 de jul. de 2020.
ARRIGUCCI JR, Davi. O cacto e as ruínas: a poesia entre outras artes. São
Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2000.
BORGES, Helena. “Bolsonaro defende cortes em cursos de Humanas e
diz que dinheiro do contribuinte deve ir para ‘leitura, escrita e fazer
conta’”. In: O Globo, 26 de abril de 2019. Disponível em
<https://oglobo.globo.com/sociedade/bolsonaro-defende-cortes-em-
cursos-de-humanas-diz-que-dinheiro-do-contribuinte-deve-ir-para-
leitura-escrita-fazer-conta-23623980> Último acesso em 17 de jul. de
2020.
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Metalinguagem: ensaios de teoria e crítica literária. Rio de Janeiro:
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Popular, 2009.
MAZIEIRO, Guilherme. “Guedes: vamos usar recurso público com
grandes empresas e ganhar dinheiro”. Uol Política, 22 de maio 2020.
Disponível em <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-
noticias/2020/05/22/guedes-vamos-usar-recurso-publico-com-grandes-
empresas-e-ganhar-dinheiro.htm> Último acesso em 17 de jul. de 2020.
MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1994.
MURILO Mendes: a poesia em pânico. Direção de Alexandre Eulálio. São
Paulo: Fitas brasileiras, 1977.

7faces • 160
NASCIMENTO, Evandro. “Murilo Mendes e Ismael Nery: poesia, amizade
e experiência”. In: YUNES, Eliana; BINGEMER, Maria Clara (Orgs.)
Murilo, Cecília e Drummond: 100 anos com Deus na poesia brasileira.
São Paulo: Edições Loyola, 2004.
SIMON, Allan. “Weintraub: Odeio o termo ‘povos indígenas’; Quer,
quer. Não quer sai de ré”. Uol Notícias, 2020. Disponível em
<https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-
noticias/2020/05/22/weintraub-odeio-o-termo-povos-indigenas-quer-
quer-nao-quer-sai-de-re.htm>. Último acesso em 17 de jul. de 2020.
REUTERS. “‘Vamos acabar com o cocô’, que são corruptos e comunistas,
diz Bolsonaro”. In: Exame, 14 de ago. de 2019. Disponível em
<https://exame.com/brasil/vamos-acabar-com-o-coco-que-sao-
corruptos-e-comunistas-diz-bolsonaro/>. Último acesso em 17 de jul. de
2020.

7faces • 161
7faces • 162
POEMAS (2)

7faces • 163
7faces • 164
Francisca Maria Fernandes
Oeiras – Portugal

Ph.D. em Biologia; Pós-Doutorada em História e Filosofia da Ciência; Investigadora Integrada


do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa. Autora de vários livros e artigos. Venceu Prêmio de Poesia
Seomara (2019); Venceu Menção Honrosa no Concurso Professor Mário Clímaco (Ponte
Nova, Brasil, 2019).

7faces • 165
7faces • 166
ESTRANHO ROSTO

Desejo, longe de qualquer luz e som


Quietinha quedar-me a namorar
O luar que sai de mim como um dom
Autopsiá-lo e reorganizar,

Segundo as intuições e deduções,


Os geiseres que gera e lança ao ar
Os sonhos, fantasias e ilusões
Que convidam a dançar sobre o mar

É luar nascido do desamparo


Que regista no terreno o rasto
Dos afetos que se tornaram aves

É luar que me faz ver no sorriso


De um estranho a marcha de um rio
Luzidio que promete milagres

7faces • 167
TELEMÓVEIS

A escola com fitas e laços


Vê chegar alunos aos abraços
Que chilreiam pelos espaços
Tal como, nos ramos, os pássaros

Nas aulas mostram-se as estrelas


Delicadamente entre as mãos
Por dezenas de olhos amadas
Pelos muitos dedos beijadas são

O professor destronado surge


Destituído da sua nobre missão
Anseia por alunos atentos

Elevar mentes a alto monte


Com brilhantismo e dedicação
Mas, só corpos é que ali estão

7faces • 168
HAICAI
FLOR DE CEREJEIRA

É branca a flor
É sakura, é asa
Que leva a dor

7faces • 169
7faces • 170
Wemerson Felipe Gomes
Belo Horizonte – Minas Gerais

É mineiro de Belo Horizonte. É historiador, estudante de letras no Centro Federal de


Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), leitor e pesquisador apaixonado de
literatura e escrevinhador no resto do tempo.

7faces • 171
7faces • 172
AUSCULTAR ESTRELAS

Há um poema inteiro
na palavra auscultar:

como um sonho
narrado em
sintaxe estranha

(como se não
bastasse o som;
como se não
bastassem ouvidos)

como se fosse preciso


um verbo
(transitivo)
que indicasse o ato
(silencioso)
de sondar o desconhecido

Ora (direis)
auscultar estrelas!

E as estrelas se perdem;
o silêncio pulsa

E no ritmo vital
de um suspiro

a fragilidade
de ser se
revela

7faces • 173
DEVANEIO

E eu, que inventei


ventanias
nas noites insossas
de solidão

E entre delírios e devires


descobri no lapso do mundo
o real oculto na escuridão

(sublimada toda pulsão;


perdida toda vergonha)

E o devaneio não me
atinge mais:
eu, o devaneio

7faces • 174
SORTE

Sem sorte
o poeta marcha
(incomunicável)

Trançando nos nós das estradas


a sombra da finitude

E o ar já não é o mesmo;
já não é o mesmo o amor

E mesmo que voltasse, é vão:

encontraria ainda
a casa vazia;
e a mancha cinza na parede
estragaria seu último sorriso

Sem sorte

o poeta se perde em si mesmo;


se perde ao se perder nos outros;
e nos outros, encontra a si mesmo

perdido

7faces • 175
MEDO

O amor perdeu-se algures


nos menores lugares
desencontrados

E a tribo urrara de medo


E o vento silvara de medo
E o céu, sombrio, escondera-se
de medo

E o medo assombrou cada porta,


cada quebrada de esquina,
cada osso trêmulo de medo

Sepultadas em solo de medo,


as flores, amarelas e medrosas,
coloriram de medo o horizonte
ausente

E o medo perdeu-se em dor


nas lembranças incertas
dos dias bons

(foi-se o tempo dos


sorrisos juntos
e amenos)

Traga-me apenas o chão,


que manterá, talvez,
estes pés presos à vida

7faces • 176
Jeferson Barbosa
Goiânia – Goiás

É engenheiro civil por formação e poeta por querer. Autor do livro A Fútil Arte de Travestir-
me do que me Falta publicado pela editora Mondru. Participou do volume Além da Terra,
Além do Céu. Antologia de Poesia Brasileira contemporânea (2017) da Editora Chiado, e
publicou poemas na Revista Philos.

7faces • 177
7faces • 178
PEQUENO GAROTO DEVOTO AO TRONCO

caminho por esses becos


e nas pedras lavadas pelo tempo
vejo teus passos fracos de suor
vermelho, do sangue de suas mãos
calejadas a colocar pedra por pedra,
a fazer o caminho do que
lhe apedreja, para chegar a
missa do deus que lhe condena
a escravizar-se enquanto o senhor
da mina, garimpa o ouro para a sacristia

tocos nas paredes levantadas


sem prumo, mas alinhadas ao ideal
que não foi teu, pequeno garoto
devoto ao tronco, obrigado
a levantar as paredes da própria prisão,
enquanto o mestre lê os salmos
e reflete sobre a colheita que não colheu

por onde andei, não encontro vosso nome


pintura ou descrição, nem ressalvas sobre ti,
mas percebo tua presença, por entre as pedras,
sobre as vigas desse lugar, daquela igreja.
não há terreiro, livro ou história do seu viver,
mas sinto seu sacrificio em frio e gelido arrepio,
só não pude encontrar a sua cruz.

7faces • 179
OS MÓVEIS CONTINUAM PRISIONEIROS

Lembrei-me de guardar as lembranças


Escondi as cartas que pedia por teu retorno
Escrevi um diário repleto da tua ausência
Raspei da madeira as nossas juras de criança.

Guardei o que sobrou de ti naquela caixa.


Selei as memórias com tuas roupas velhas,
Repousei-te no fundo do guarda-roupa
Na esperança da velhice te esquecer.

Mas os móveis continuam prisioneiros,


O armário que guardava tuas moedas,
O espelho que refletia tua tristeza,
A cabeceira que descansava teus planos de fuga.

Não pude te guardar em casa, naquela caixa,


A tua sombra enegrecia aquele quarto,
A sala estava sempre apinhada de tua voz,
E a rede, na varanda, balançava com teus cabelos.

Coloquei tuas memórias a venda,


E de brinde o cliente levaria a casa e a mobília,
Não posso mais te separar daqueles velhos objetos,
Não posso mais te separar deste velho que te ama.

7faces • 180
A CASA ESTÁ VAZIA, E CHEIA DE RABISCOS

encontrei rabiscos na sala


as marcas da borracha escreviam teu nome
tua culpa estampada nas gravuras do corredor
conduziam a porta que encerrava nossas memórias

limpei a casa depois de ti


aspirei as fronhas e a solidão
limpei as pegadas que deixou no piso
e pus a venda tudo que já foi teu

só guardei aquela lembrança


os sussurros de segredos bem guardados
os rastros das rotas não desvendadas
o som do sorriso da sua voz dizendo adeus

a casa está vazia


lavada, isolada e apagada de ti,
mas todos os dias encontro mais rabiscos
é justo na ausência que te encontro.

7faces • 181
7faces • 182
Sebastião Ribeiro
Passo do Lumiar – Maranhão

Nasceu em São Luís, Maranhão em 1988. É poeta e professor, graduado em Letras pela
Universidade Estadual do Maranhão. Publicado na antologia do Concorso Internazionale di
Poesia ‘Castello di Duino’ nos anos de 2010 e 2017. Componente da obra Acorde (Scortecci,
2011), com Igor Pablo Dutra e Wesley Costa; pode ser lido em Macondo n. 6 (2012); Samizdat
n. 39, e Substânsia n. 3 (2014), 7faces n. 11 (2015), Philos n. 2 (2016) e Mallamargens
(março/ 2020). Autor de & (Scortecci, 2015), Glitch (Scortecci, 2017) e Memento (no prelo,
2020).

7faces • 183
7faces • 184
R. ARAÇAGY, V. NAZARÉ

Encurralado por
perguntas nunca feitas

os pés no espaço
a sobra aqui

o jogo na memória sequer pareia


a lenta comoção que me enferruja
com o custoso devir em sustos

Toda entrega possível


diariamente adiada

talvez que guiada pelo desvio


senhor e projeção da gravidade
que me parafusa

Cato
num longo desconhecer
a sobrevida
encostada num canteiro
de coroas-de-cristo

O passeio
é no espírito trancado
onde o punhal sorri
na mão do niilista

que me espera à beira da


cama ou de um prédio no
clímax de um sonho
que nunca vi na tv

7faces • 185
PERDIÇÃO

Apesar da cintura que


pondera seus grávitons
percebo

no sono
o furor é remido
houve água por labirintos

ainda que inerte


que alento
descendo escadas
em Escher

mesmo dúvido
prossigo estático

escorre do tártaro
um desgosto fácil
qual passo em falso

o vigia insano nos


caibros nos rodapés

em certos dias
vozes noutros
manchas no espelho
deduzo do próprio peso

meu soldado
2 semanas trincheira
3 kamikaze

7faces • 186
DAYDREAM

Tua face esfolada


teu corpo triste no
rio viscoso que

singra aramado
em meu ver
– nosso outro

A verdade
será belisco nos lábios
embarque numa futurice
parece um destino barato

Pesa o medo na jangada


o rio é um lago morrente
que gargarejo

me desligo
buscando o círio de
um olho estrelado

7faces • 187
7faces • 188
Lourenço de Almeida Duarte
Lisboa – Portugal

Estuda na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e é criador de conteúdo literário


por encomenda.

7faces • 189
7faces • 190
Quando eu morrer, deitem o meu corpo ao lago.
Alterem o Facebook para “é complicado”.
Ao padre, na igreja, que vá bugiar!
Se minha religião sempre foi sonhar

De tudo, em frente, não pensem em mim,


Se fosse ao contrário eu faria assim.
Mas amem, com força, o que também amei
Os rios, as ameixas, o beijo da mãe

Quando me deitava. A noite, lá fora,


Rugia no vento de qualquer aurora.
Um grilo, talvez, cantando então

Riria do tempo que passou em vão.


Memórias. Difusas. Maré no além.
No dia da morte, abracem a mãe

7faces • 191
7faces • 192
Mariana Godoy
Santo André – São Paulo

É atriz e pesquisadora da educação, nasceu em 1996 no interior de São Paulo. Publicou em


setembro de 2019 o livro O afogamento de Virginia Woolf pela Editora Patuá. Possui
publicações em mídias digitais e impressas, tais como Escamandro, jornal Relevo,
Mallarmargens, entre outras.

7faces • 193
7faces • 194
quando o apresentador no programa pergunta
se queremos mandar beijo para alguém,
sempre respondemos que sim.
é da nossa natureza
a prontidão para beijos.
o engraçado é que nesses casos,
o nome do beijado vem sempre seguido do município:
eduardo de nova friburgo,
camila de piracicaba.
quando não, vem nome com filiação:
karolina, filha da kátia,
rafael, filho do augusto.
é preciso ter certeza que o beijo
está indo para a pessoa certa.
não queremos,
de jeito nenhum deus me livre,
que o beijo se perca.

7faces • 195
ainda que milhões de pessoas me julguem idiota
pode ser que eu tenha sorte
ao encontrar um repórter na rua
e acenar atrás dele mostrando a cara
em horário nobre

quem sabe meu pai ausente


assista ao jornal
e muito arrependido decida voltar
pedir desculpas
ou até mesmo
pagar a faculdade.

7faces • 196
dona valéria diz que não anda dormindo bem
por causa do cachorro da vizinha.

sem paciência grita da janela


e acorda o quarteirão inteiro.

não percebe que falta ao bicho


o que ela já tem:

cama quente e serviços de streaming


para lidar com essa vida de cão.

7faces • 197
7faces • 198
Fábio Pessanha
São Gonçalo – Rio de Janeiro

Fábio Pessanha é doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tem publicações a respeito do sentido poético das palavras,
partindo principalmente das obras de Manoel de Barros e Paulo Leminski. Autor de A
hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro,
2013) e coorganizador de Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro,
2011). Assina a coluna “palavra : alucinógeno”, na Revista Vício Velho.

7faces • 199
7faces • 200
dizer um poema
invoca o silente
sentido do que
não existe ainda.
dizer um poema,
da mesma maneira
como se trava a
luta contra a linha
quebrada da frase.
dizer um poema
como conceber
um ato incendiário.

7faces • 201
sem laços que me segurem
nessa vontade tão sem
limites. tão sem amarras
que me fizessem caber
num instante apenas, então
eu diria mais do que
minha boca aguenta. ainda
faria um céu onde meus
pés pudessem sentir o
rosto obscuro da lua
e até choveria para
o lado de dentro do
medo. fertilizaria
meus horrores, inclusive
os mais diários, sem ter
que recusar os contornos
brutos do meu corpo, quando
largado num jeito estranho
de ocupar fronteiras entre
figuras imaginárias
e esse naco de pescoço
que não para de suar.
eu saltaria sobre o
seu desejo de inventar
desejos e largaria
todas as lâmpadas mágicas
com gênios engarrafados.

7faces • 202
nada que se diga
pra que serve a forma
das coisas se adéqua
bem em minhas mãos
prefiro ruir
a maneira dita
correta de se

inventar o dia
tudo conceber
como um ato ingênuo
ter como improvável
o andamento lúcido
de uma carta entregue
em branco eu faria

o sol queimar por


dentro das suas dúvidas
e devoraria
a ferocidade
da fome durante
os mais impossíveis
modos de nascer

7faces • 203
o corpo existe para fora dele.
um corpo que mora no peso de
suas passadas. que cai. que vai ao céu
num assalto celeste. que chega ao
topo do chão. desce ao limite das
memórias engastadas de não mais
parir demora. o olho olha o que
do corpo é fora e se esquece da pele
que se esfola. o corpo é mais corpo no
sangue que nele nasce. existe. e sangra.
e jorra. e chora. e esvai-se em porra e lama.

7faces • 204
invento a pergunta mais impossível
a fim de fazer nascer um poema.
apoderar-se dos verões nos corpos
suados. como um leão que se apega
às presas e as ama com sangue nos
dentes, percebo a violência no escuro
das ruas. entre as calçadas exerço

o poema, um verso que seja, a fim


de corromper a ilusão de querer
de volta os restos de pele dispersos
nas camas onde deitei. ergue-se um
muro feito desde os nossos passados.
membros, cabeça, o dorso imerso no
cultivo de mãos que seguram em vão

o percurso de um salto dado às cegas.


os pés desenham o descompasso do
poema. cria-se a pergunta mais
fundamental, inscrita no desfecho
da voz que esquece seu itinerário.
os muitos caminhos do poema cruzam
aquele que se permite chegar

ao próprio silêncio e nele ficar.


invento uma pergunta que me faça
querer todo o poema com a querência
de sua imagem. a plena incoerência
entre bocas e narizes (num corpo
empossado de muitos outros corpos)
ante o longo sabor de tantos lábios.

7faces • 205
desconfio,
assim afeito a toda certeza
de que era
uma delinquência elaborada.
quase até
bem vista. não reclamava havia
muito tempo,
talvez por isso, com a inanição
da voz forte,
a violência prosseguia tal
como o gesto
anônimo que nascia ante
a imprudência
dos fatos. estava escuro o quarto,
só enxergava
a bofetada que me tirava
sangue dos
pensamentos. que me atirava ao
primitivo
ritmo da dor, que encurralava
mais a ira
em inflamados olhos. assim
o notava:
furioso em existência rara.
assim o
enxergava e então me dava por
derrotado
na vitória do que sempre esteve
ao meu lado,
mas não fui capaz de perceber.

7faces • 206
Delalves Costa
Osório – Rio Grande do Sul

Nasceu a 13 de dezembro, 1981, Osório, RS), escritor e poeta com vários livros editados, e
publicações em coletâneas e em plataformas literárias impressas e digitais, no Brasil e em
Portugal. Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS).
Graduado em Letras Português e Literatura Portuguesa pelo Centro Universitário Cenecista
de Osório (UNICNEC). Professor nas áreas de linguagem e pesquisa na rede público de
ensino. Pesquisador e palestrante. Publicações recentes: extemporâneo (Coralina, 2019) e
Óculos de princesa (Papo Abissal, 2020, infantil).

7faces • 207
7faces • 208
MADE IN BRAZIL

O catador pão-dormido então acordou


envolto ao frio e vento
sob notícias do jornal.
O café matinal é farto:
folhados, quinhentos-queijos café
expresso londrino pães
leite suíço (vacas azuis)
e sucos do laranjal tipo export.
Made in Brazil, a fome à farta
mesa tupiniquim: suor
de sol a sol bordado com petróleo
e estampa canavieira.
Enquanto isso, brasil
(de ruas viadutos calçadas)
vaga à revelia empurrando
recicru i fasso linpesa,
a língua-urgência de quem quer comer.

7faces • 209
A CASA NA ÁRVORE

Depois de a gente crescer, a casa da árvore


não tem mais lugar. De poema
já não adormece, ficou lá atrás
aquela criança que de galho em galho
(ao saltar do corpo) o mundo inventa
a fim de trapacear o tempo
― esta tal roda ininterrupta
que morde a carne e amarela o papel.
Depois que a gente cresce, vão-se
as estações com o assopro do vento.
Embora a árvore ostente novas folhas
e envergue mais frondosa
(de sementes, rodeada),
intacto permanece o lugar. No pulso
é igual o relógio, no peito o mesmo gesto.
Vazia de poesia, agora pequena casa
a salvaguardar o invento.

7faces • 210
[()]

No caminho [os mortos] morriam.


Como se andassem de costas
sofriam por não ter passado.
Retrocediam no tempo como
se a [vil] miséria de outrora
matasse a fome que os consumia.
Morriam (nos olhos) a caminho da casa
onde gozassem a indigência
sem temer o [fel] abandono,
onde suprissem a impotência
sem perder o sono. Morriam
na esperança de outros dias
sem chorar prazer nem sorrir desgraça.
E no caminho os mortos [morriam].
Contudo, não se pode parar
Pois (na vida) sem rumo não se vive.

7faces • 211
LIQUIDEZ

Dos poucos segundos do hoje


(à espera) um amanhã sem agora
no tênue arame farpado do tempo
os fartos anseios regressivos
estática fuga de algum lugar-onde
para onde ainda não se sabe
mas que – sim – pode existir
três suspiros: um para mais
e um para menos, esta linha
sob/sobre noss(os relógios)
que adiantados ou atrasados
em nada afetam qual íntimo
calendário dos bem vividos.
Mas é estranha este tal ritual:
morre-se no segundo exato
pra posteriormente logo negar-se
ao chamar de seu este novo
todo de branco todo branco
todo agora inacabado de amanhãs.

7faces • 212
7faces • 213
Os autores

VALMIR DE SOUZA
É professor, pesquisador e ensaísta. Possui licenciatura em Letras pela Faculdade de Filosofia
Nossa Senhora Medianeira; Mestrado e Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada
pela Universidade de São Paulo (USP). Atuou como Pesquisador no Programa de Pós-Doutorado
de Gestão Pública da EACH/USP. Professor adjunto da Universidade de Guarulhos. Defendeu a
Tese Murilo Mendes: da história satírica à memória contemplativa. É autor do livro Cultura e
literatura: diálogos (Ed. do Autor).

MARIA DOMINGAS FERREIRA DE SALES


Graduada em Letras e Artes pela Universidade Federal do Pará (UFPA / 1992), Especialista em
Língua Portuguesa: Uma Abordagem Textual (2002), Mestra em Letras, na área de Estudos
Literários pela UFPA (2007) e atualmente cursa Doutorado em Estudos Literários pelo Programa
de Pós-Graduação em Letras nesta mesma instituição.

SÍLVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA HOLANDA


Graduado em Letras (Português / Francês) pela Universidade Federal do Pará (UFPA / 1990),
Mestre em Letras / Teoria Literária pela UFPA (1994). Doutor em Letras (Teoria Literária e
Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (USP/2000) e fez estágio de pós-
doutoramento em Estudos Românicos pela Universidade de Lisboa (2007).

MARIA LAURA MÜLLER DA FONSECA E SILVA


Doutora em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF / 2017), possui Mestrado em
Teoria da Literatura (2004), Pós-graduação em Letras (2001) e Graduação em Letras (2000) na
mesma instituição. Tem experiência no Ensino Superior, lecionando Língua Portuguesa nos
cursos de Letras e Arte, Administração, Arquitetura e Engenharia Civil. No Ensino Médio, atua
nas disciplinas Língua Portuguesa, Literatura e Redação. Atualmente desenvolve pesquisas sobre
estudo de gêneros textuais no ensino superior e intertextualidade, arte e sagrado, com ênfase
na literatura de Murilo Mendes.

FILIPE AMARAL ROCHA DE MENEZES


Cursa Doutorado em Letras: Estudos Literários no Programa de Pós-Graduação em Letras:
Estudos Literários na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG / 2018). Graduado em
Administração pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF / 2005), Mestre em
Administração Pública pela Fundação João Pinheiro (2015) e Mestre em Letras: Estudos
Literários (Teoria da Literatura) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG / 2010).
Pesquisador do Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG. Pesquisador Convidado do Grupo de
Trabalho em Literaturas Estrangeiras da ANPOLL.

7faces • 214
PATRÍCIA APARECIDA ANTONIO
Possui graduação e licenciatura em Letras (com dupla habilitação Português / Francês) pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, na Faculdade de Ciências e Letras /
Campus de Araraquara-SP (2009), Mestrado (2012) e Doutorado (2016) em Estudos Literários
pela mesma instituição, com projeto de pesquisa centrado na poesia-crítica de Murilo Mendes
e Francis Ponge. Atualmente, é professora de Língua Portuguesa do Serviço Social da Indústria.

GUSTAVO HENRIQUE DE SOUZA LEÃO


Na Graduação em Letras / Licenciatura pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) foi bolsista
do PIBIC com a pesquisa “Poesia e História em Murilo Mendes” em 2008- 2009 e pela qual
recebeu o prêmio de Excelência Acadêmica. Atuou como professor da disciplina de Produção
Textual da Educação Básica no ano de 2009, nos níveis Fundamental e Médio, no Colégio Batista
Alagoano, como professor substituto do curso de Letras / Licenciatura da UFAL, campus
Arapiraca, de 2016 a 2018, e como professor formador do Programa Escola da Terra da mesma
universidade, de 2018 a 2019. É Mestre e Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Letras e
Linguística da UFAL, na área de concentração em Estudos literários.

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A Revista 7faces é uma produção semestral independente com interesse na publicação de poesia.

Editores
Pedro Fernandes de Oliveira Neto
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Organização desta edição


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Conselho editorial
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Maria Filomena Molder
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Colaboradores (por ordem de apresentação)


Carlos Cardoso Francisca Maria Fernandes
Rodrigo Garcia Lopes Wemerson Felipe Gomes
Cristiana Pereira da Cunha Jeferson Barbosa
Diogo Costa Leal Sebastião Ribeiro
André Ribeiro Lourenço de Almeida Duarte
Daniel Mendes Mariana Godoy
Angelita Guesser Fábio Pessanha
Milton Rezende Delalves Costa
Huggo Iora

Agradecimentos
Aos pesquisadores pelo aceite ao convite para compor esta edição e a todos que enviaram / cederam material para
a ideia. À Rozenn Le Gall pela cessão das imagens que ilustram esta edição.

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Pelo correio eletrônico dos editores, pedro.letras@yahoo.com.br, ckiraly@id.uff.br ou através do
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Natal – RN. Ano 11. Edição n. 22. Ago-Dez. 2020.
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