Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
7faces • 1
imagem da capa
© Rozenn Len Gall.
Todas as colagens que ilustram esta edição são concebidas por Rozenn Len Gall.
7faces • 2
7faces • 3
Obra do homenageado
Poemas (1930)
História do Brasil (1932)
Tempo e eternidade [com Jorge de Lima] (1935)
O sinal de Deus (1936)
A poesia em pânico (1937)
O visionário (1941)
As metamorfoses (1944)
Mundo enigma (1945)
O discípulo de Emaús (1945)
Poesia liberdade (1947)
Janela do caos (1949)
Contemplação de Ouro Preto (1954)
Poesias [1925-1955] (1959)
Siciliana (1959)
Tempo espanhol (1959)
Alberto Magnelli (1964)
Italianissima. 7 murilogrammi (1965)
Carta geográfica (1967)
A idade do serrote (1968)
Espaço espanhol (1969)
Convergência (1970)
Poliedro (1972)
Retratos-relâmpago (1973)
Ipotesi (1977)
Transístor (1980)
Janelas verdes (1989)
7faces • 4
7faces
Natal – RN
7faces • 5
7faces • 6
Pertenço à categoria não muito numerosa dos que se
interessam igualmente pelo finito e pelo infinito.
Atraem-me a variedade das coisas, a migração das
ideias, o giro das imagens, a pluralidade de sentido de
qualquer fato, a diversidade dos caracteres e
temperamentos, as dissonâncias da história.
7faces • 7
7faces • 8
sumário
13 Apresentação
viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça
transcendente
57 POEMAS (1)
Carlos Cardoso
Rodrigo Garcia Lopes
Cristiana Pereira da Cunha
Diogo Costa Leal
André Ribeiro
Daniel Mendes
Angelita Guesser
Milton Rezende
Huggo Iora
7faces • 9
121 Janelas verdes: Portugal, memória e escrita de si em
Murilo Mendes
por Filipe Amaral Rocha de Menezes
7faces • 10
7faces • 11
7faces • 12
apresentação
7faces • 13
ao longo do tempo como impraticáveis, “supérfluos ou repetidos”
― publica pela Moraes Editora, em Lisboa, Antologia poética.
Parte da impressão do livro foi feita no Brasil sob o selo da Livraria
Agir Editora. Numa espécie de prefácio deste livro de autoexame,
como bem podemos designar toda antologia organizada pelo
próprio autor, o poeta mineiro redige uma nota e, entre outras
coisas, diz que é este “o livro-resumo de alguém que desde
adolescente crê na força da poesia como técnica social e individual
de interpretação da matéria da vida.”
Ora, o pequeno excerto apresentado situa uma variedade de
sugestões. A primeira delas, claro está, é o aspecto periférico.
Trata-se de um registro escrito pelo próprio poeta em modo de
pista para uma leitura da sua obra; a depender de como o leitor
encontre com essa passagem os sentidos em relação ao livro se
transformam. Assim, se deparar com a nota no final da leitura pode
implicar a conclusão ainda não alcançada totalmente ou mesmo
um retorno para o ponto inicial do conjunto de textos a fim de
atravessá-lo outra vez; se, na ordem que está posta, para os
leitores mais metódicos que não mergulham numa leitura sem
antes perscrutar os elementos que antecedem o corpo do objeto
que tem em mãos, um prenúncio sobre o que este percurso lhe
reserva; se ao acaso, pode ser este o ponto desencadeador para
entrar em contato com o livro; se pelo trajeto irregular, um fio
organizador da leitura. As possibilidades, portanto, são bem
diversas. E em todas elas cumprem com um papel organizativo, o
que é, afinal, toda nota introdutória e todo trabalho de antologia.
A errância de sentidos nascida do contato do leitor com esta
nota que não se constitui do simples critério demonstrativo é uma
boa maneira de se compreender a obra de Murilo Mendes. Embora
a crítica já tenha estabelecido quais são suas regularidades,
sintetizado assim suas faces, este é um universo poético bastante
singular, propositalmente afeito ao irregular. E a razão disso se
oferece pela maneira sempre questionadora como o poeta
emprega os usos da linguagem, das formas, das estruturas, dos
temas e dos materiais para a feitura do poema. É dessa maneira
que podemos designar sua poética como resultada de um contínuo
desejo que não se deixa captar pela simples expressão de origem
subversiva. Sim, há poetas assim por uma espécie de impulso de
natureza virulenta; estes podem ser designados como rebeldes. Em
sua maioria são frágeis, não se sustentam fora das redomas que
criaram para si. No entanto, esse não é o caso aqui; a subversão do
7faces • 14
poeta de As metamorfoses não é impulsiva, logo, não se trata de
pura rebeldia. É rebeldia ciente. Isso significa que nada de suas
decisões inovadoras devem ser lidas como casuais ou produzidas
apenas a posteriori dos efeitos de um universo de polivalências.
Parece fazer sentido que tratamos de uma ousadia criativa
desinteressada dela própria como ideologema, isto é, da ousadia
enquanto teorética ou mesmo tema, e preocupada em oferecer
novas condições capazes de ressignificar usos, forças, sentidos,
formas e estruturas de linguagem, o que, no fim de tudo, é o
princípio em-si e básico da poesia, sobretudo, da poesia constituída
nesse período de Murilo Mendes, marcada pela inovação.
O mundo engendrado pelo poeta não é feito apenas de
contínuo questionamento das coisas mas de proposições capazes
de nos colocar, em deslocamento, em contato com outras ordens.
Trata-se de uma poética que prova dos sentidos usuais para fazê-
los por deformação, modificação ― ou seja ampliação ― em
divergências. Assim é o seu catolicismo, suas maneiras de expor os
impasses do mundo corrompido pelas artimanhas do capital, da
tecnologia em ritmo de ascensão vertiginosa e dos poderes
cinzentos, e questionar os próprios limites autoritários das
estruturas e das formas artísticas. Esta é uma poética nascida do
confronto entre o eu e o mundo, uma vez que compreende a
poesia como força propulsora da matéria da vida.
O liminar constitui um início de algo, é o que se coloca no início
de um livro, como um prólogo, um prefácio; o liminar é ainda ponto
de passagem, o limite. No âmbito jurídico, é um pedido específico
nos processos quando não existem requisitos legais; por ela, a
autoridade judicial pode confirmar ou invalidar algo; é sempre
provisória. Todos esses sentidos participam no jogo intelectivo
desse fragmento da profissão de fé do poeta. Assim, se
compreende desde o título da apresentação ao livro de 1964,
“Nota liminar”, como uma consciente provocação: o poeta
subverte o aspecto periférico de um livro, uma nota, ao torná-la
essencial. Oferece uma via de acesso entre o projeto literário
conduzido até então e os possíveis desdobramentos posteriores a
antologia; e estabelece um tratamento instrutivo e judicativo
provisórios ao seu leitor. A provisoriedade não se restringe ao
tempo do livro, isto é, um designativo para a antologia, mas à
própria compreensão da atividade criativa, toda ela feita da
variabilidade de intelecção acerca do fenômeno poético.
7faces • 15
O poeta especifica que desde a juventude a poesia lhe é “técnica
social e individual de interpretação da rude matéria da vida”.
Afasta-se, desse modo, a ideia romântica do acaso ou da
espontaneidade de criar, esta última algo recorrente entre os
poetas modernistas e constitui em Murilo Mendes o seu contrário,
isto é, no que podemos designar como um grau consciente da
feitura do poema; este é um objeto constituído pelo trabalho
intelectual, logo, alimentado por todas as forças que participam no
seu estabelecimento. Assim, não é apenas uma propriedade do
sentir e do pensar; sentimento e pensamento acessam o mundo e
nele buscam os elementos que lhe dão consistência. É aqui que a
poesia, como potência movente e mobilizadora, se avizinha e se
imiscui de outras manifestações e práticas de linguagem. Nesse
caso, os elementos constitutivos do universo do poeta são as suas
reminiscências de memórias, os episódios capturados pelos
sentidos, os fenômenos indecifráveis que participam da realidade
física das coisas, o funcionamento das ideologias e toda
parafernália interposta entre o eu e mundo.
Uma maneira de compreender a obra de Murilo Mendes, de
contorno desmesurado, é deixar-se errar pela variabilidade
proposta por um poeta que rejeita o estático e se integra nunca
comodamente aos múltiplos deslocamentos propiciados pela
contínua movência dos sentidos. É também essa movência que faz
encontrar o díspar e do entrechoque entre elementos de natureza
irregular se forma outra ordem, outra lógica ― e então estamos
integrados a um universo que foge das oposições, dos
estereótipos, das expressões normais do mundo. É nesse sentido
que a obra desse poeta se constitui entre as mais valiosas da nossa
literatura; produto de uma consciência desenvolta, movida pela
dispersividade e ciente de que a partir de então, desta, ninguém
mais escapará, essa obra se tornou ao mesmo tempo expressão de
seu tempo e singularidade universal e perene.
7faces • 16
Murilo Mendes (1901-1975)
7faces • 17
o homenageado
7faces • 18
Sua conversão ao Catolicismo em 1934 marcou profundamente a
vida e a produção criativa, a ponto de reestruturar o enfoque de sua
poesia: da extroversão inicial passa a uma introspecção espiritual,
produzindo uma poesia contemplativa ao lado de uma mística
ecumênica. Apesar da guinada religiosa, não perde a veia crítica em
relação à crescente mercantilização da vida moderna, postura que se
acentua com o passar do tempo.
Em 1947, casa-se com Maria da Saudade Cortesão, filha do
historiador Jaime Cortesão. Nos anos de 1952 a 1956, em viagens pela
Europa, proferiu palestras sobre literatura e cultura brasileira. Tentou
entrar na Espanha, mas o franquismo não permitiu. Logo depois, em
1957, fixou residência em Roma. Isto lhe deu uma “projeção europeia”
que poucos autores brasileiros tiveram, não só por residir fora, mas
também por sua notória cultura clássica e por suas amizades com
artistas de grande envergadura no cenário europeu.
Na Europa, não vai para uma coqueteria internacional, mas como
professor em universidades e como poeta-pesquisador, a convite do
Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty). Escrevia também em
francês e italiano. Sua dicção literária assume outras tonalidades e
produz uma prosa poética, em forma fragmentar, ligada à memória,
criando retratos de grandes autores e artistas. No entanto, sempre
teve algum contato com o Brasil, mas se sentia “despertencido” às
duas realidades, a europeia e a brasileira, conforme Maria Betânia
Amoroso (2001, p. 138 e 139).
Ao longo de sua vida escreveu em jornais, revistas e catálogos
diversos, tanto no Brasil como na Itália. Morre em 1975, em Lisboa,
Portugal.
Valmir de Souza
AMOROSO, Maria Betânia. “Passeio pela biblioteca de Murilo Mendes”. In: Revista
Remate de Males, Departamento de Teoria Literária, Unicamp, 2001, p. 123-147.
PICCHIO, Luciana Stegagno. “Introdução”. In: Poemas e Bumba-meu-poeta. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
7faces • 19
7faces • 20
MURILO MENDES: UMA POÉTICA
DA DISSONÂNCIA
por Valmir de Souza
Cultura dissonante
7faces • 21
Murilo surrealista, dadaísta, expressionista, construtivista,
concretista, inconformista, marginal, forasteiro, transgressor,
diferente, iconoclasta, deslocado, livre pensador, gauche,
antiestablishment, enfim poeta de vertentes e veredas múltiplas.
Sua dissonância se insere no cenário do movimento modernista,
produzindo uma poética fértil e inusitada e uma obra que corria
por fora das doutrinas estéticas que preconizavam uma literatura
voltada para uma certa nacionalidade. Sem rejeitar as criações
literárias locais, reivindicava uma práxis cosmopolita, uma
literatura sem fronteiras. Poesia brasileira, mas universal. Sua
terceira margem do imaginário, muito próxima dos movimentos
surrealistas pela quebra das convenções artísticas, operava a
crítica aos valores conservadores. Mário de Andrade afirma que,
em seus inícios, MM “difama os cânones e conceitos da Arte”
(ANDRADE, 1974, p. 44). Laís Corrêa de Araújo afirma que o poeta
era “permanentemente insatisfeito com toda forma de
acomodação ou institucionalização da poesia” (ARAÚJO, 2000
apud DRUMOND, 2016). A inquietação permanente se reflete em
seu fazer literário, numa intensa reelaboração formal. O giro
poético muriliano é também linguístico, mexendo com as
estruturas aristotélicas da linguagem: um dispositivo audacioso
que perpassa sua obra.
Interessa reler a obra de Murilo Mendes por sua contribuição
para a ampliação do imaginário poético: publicou poemas, crítica
de arte e de música e prosas diversas. Sua dissonância interna ao
movimento modernista e sua audácia cultural são aspectos
relevantes para o cenário literário ainda hoje. Atualizado quanto
ao que se debatia em seu tempo, ele construiu um projeto literário
com dicção própria, inicialmente em tom satírico e surrealista,
depois mais contemplativo. Ao contrário do que pensam alguns,
MM sempre foi atento à forma poética. Afirma ele: “Sou um
‘torturado da forma’. Desde há longos anos trabalho duramente
nos meus papéis.” (MENDES, 1994, p. 50).
Como poeta de cultura, trabalha com as grandes tradições
clássicas da literatura e com as contribuições das vanguardas
artísticas, além de dialogar com as artes de seu tempo. Tece, assim,
uma relação dinâmica com a história ao construir um fecundo
universo literário. Enfim, em sua vasta poética, veste-se da
potência transformadora da rotina maquinal, seguindo a “tradição
de ruptura” e a “estética da surpresa” (PAZ, 1984, p. 17-35). Sua
obra é uma eclosão constante de novidades imagéticas. Em versos
7faces • 22
como “Uma forma elástica sacode as asas no espaço / e me infiltra
a preguiça, o amor ao sonho.” (“Panorama”, de Poemas, In:
MENDES, 1994, p. 98), faz brotar todo um imaginário contrastante
da rotina. Também trabalha com a perenidade de seu tempo: “Em
três épocas me observo sustentado: / Na pré-história, no presente
e no futuro.” (“Indicação”, de Parábola, In: MENDES, 1994, p. 545-
6).
Manuel Bandeira (1957, p. 166-171) registra os traços
marcantes do poeta juiz-forano: “Murilo Mendes é talvez o mais
complexo, o mais estranho e seguramente o mais fecundo poeta
desta geração”, e também um bicho da seda que tira de si mesmo
os elementos de sua poesia dialética: uma verdadeira eclosão do
“infinito íntimo” (título de um livro do poeta). De fato, assim era
visto e assim continuou a ser registrado pelas histórias da literatura
e livros didáticos, o que não deixa de fazer sentido. Lauro Escorel
também afirma as diferenças murilianas, ainda em 1944: “Murilo
Mendes convive com as ficções, com os sonhos, com as imagens,
com as ‘correspondências’, com as alucinações subjetivas, com os
mitos, que povoam o seu espírito e que dão à sua obra uma auréola
de irrealidade, embora sejam na verdade essenciais para que ele
tome plenamente posse do real.” (apud CANDIDO, 2000, p. 93).
A fama de poeta incompreensível, estranho, fantástico,
surrealista, desarticulado, exótico, se liga em parte à vida de
agitador cultural, mas também à sua “máquina poética”, com
“estilo compósito” modernista. Nesse sentido ele se faz
modernista que destoa de certa estética de alguns colegas
modernistas exatamente por seu anarcovanguardismo
individualista (MERQUIOR apud MENDES, 1994, p. 11).
Num arco maior de reflexão, pode-se dizer que as “categorias
negativas”, de Hugo Friedrich (1991), detectadas nos líricos
fundadores da modernidade, podem esclarecer pontos sobre a
poética deslinear de Murilo Mendes. “A lírica européia do século
XX, não é de fácil acesso. Fala de maneira enigmática e obscura.
Mas é de uma produtividade surpreendente.” A obscuridade dos
poetas modernos provoca no leitor a “tensão dissonante” que leva
mais à inquietação na leitura. A “obscuridade intencional”
moderna exprime-se através de “traços de origem arcaica, mística
e oculta”, os quais se opõem a “uma aguda intelectualidade”. A
poesia moderna, com um gesto de transformação do mundo e da
linguagem, faz soar o alarme, usando vocábulos “com significações
insólitas.” Enfim, com as categorias negativas talvez se possa fazer
7faces • 23
uma boa descrição do que seria o “poetar moderno” (FRIEDRICH,
1991, p. 15-23).
Na mesma linha, Roy Mcmullen afirma que a estratégia literária
no mundo moderno se destaca por um tipo específico de
“obscuridade” própria de poetas descontentes com o avanço da
modernização. Buscar-se-ia uma eficácia de comunicação que não
seria prosaica, mas antes pretenderia impactar o leitor com novas
informações que contrarrestassem a nascente indústria cultural.
Uma resistência que se coloca numa posição poética frente ao
desnorteio da vida moderna. Assim, a opacidade da poesia das
vanguardas do século XX propôs uma leitura desperta. “Para dizer
com palavras de Mallarmé, um poema difícil pode proporcionar à
mente de um leitor ativo ‘o delicioso gosto de crer que está
criando’” (MCMULLEN, 1969, p. 133-183).
Como veremos, essas categorias negativas estão presentes em
Murilo Mendes que, a seu modo, tornou opaca a leitura de seu
primeiro livro, Poemas (1930), formulando ideias extravagantes
para deslocar o leitor da “letargia maquinal” cotidiana, revelando
verdades interiores derivadas do choque com o mundo exterior.
Uma obra que “nem é propriamente avessa a referências
miméticas, nem renuncia a uma atitude de intervenção
(interpretativa) sobre essa mesma realidade” (DRUMOND, 2016).
Curto-circuito na realidade, na cultura e no campo literário, eis um
efeito da poesia muriliana.
É possível estudar a literatura de MM através de momentos,
fases ou de núcleos temáticos. Sua obra se caracteriza por
constantes mudanças, experimentações e modificações, e pode se
expandir a partir de núcleos poéticos (SANT’ANA apud
GUIMARÃES, 2014, p. 273-274). A ideia de um mundo em
transformação é um dos núcleos possíveis de indagação da obra
muriliana. As categorias de espaço e tempo são viradas do avesso.
Em As metamorfoses, encontramos todo um universo em mutação,
como em “Memória”: “Virar a vida pelo avesso.” (MENDES, 1994,
p. 365). Esse é um dos sentidos da dissonância que perpassa boa
parte de sua poética. Um lugar fora do lugar.
O tempo é sua matéria, não só o “tempo presente” de um Carlos
Drummond de Andrade, mas todos os tempos ao mesmo tempo.
Diz o poeta: “Passado. Presente. Futuro, / Tiro o alimento de tudo.”
E o ruído temporal-causal presente nos versos: “Em três épocas me
observo sustentado:/ Na pré-história, no presente e no futuro.” [...]
“Assalta-me continuamente o novo enigma / E uma audácia
7faces • 24
imprevista me pressinto. [...] “Ontem sou, hoje serei, amanhã fui.”
(“Indicação”, de Parábola, In: MENDES, p. 545-546). Um tempo
fora do tempo ao mesmo tempo.
Além disso, o que o vate faz com os elementos naturais também
é digno de nota: habitam sua poesia ― vento, nuvens, flores
diversas (magnólias, jasmins, girassóis), luas, sóis, planetas,
constelações. Pode-se dizer dele que “vivia no mundo da lua”.
Poema-ruptura
PASTOR PIANISTA
7faces • 25
pianista ou o pianista que é pastor (?). Antonio Candido, num
estudo sobre esse poema, analisa a poesia fora das convenções
produzida por Murilo. Sem uma “camada aparente”, o texto em
questão é visto, pelo crítico, em sua organização complexa e
subterrânea, e “seria erro supor que um poema desses não tenha
organização.” A complexidade perturba qualquer intérprete
tradicional de poesia. Nessa ruptura com a normalidade, o poema
trabalha também com o elemento “surpresa” que “consiste na
ocorrência de algo inesperado, que o leitor não previa..., mas que
graças a isso o introduz num outro país da sensibilidade e do
conhecimento”. “Ora, [continua o crítico] frequentemente a poesia
se forma melhor, e sobretudo se renova, por meio das estéticas do
exagero, que rompem as associações normais e criam nexos
inesperados”. Isso acarreta “no discurso poético um teor
fantasmagórico”. Para o crítico, há um “sugestivo conflito entre a
tonalidade surreal moderna e os vestígios de um gênero arcaico”
(a poesia pastoral), operando um diálogo com o passado literário,
além de beber nas artes visuais e na música (CANDIDO, 2000, p. 81-
84).
Enfim, nesse texto paradoxal são inseridos elementos culturais
em paisagens naturais, criando uma atmosfera rica em imagens.
Elementos díspares são equiparados, criando dissonância na
expressão linguística. Além disso, a estética do estranhamento
entra em cena provocando choques na recepção.
O título do livro, As metamorfoses, em que o poema está
inserido, remete às mudanças constantes de um universo
dinâmico. E “dinamismo” é o que pode ser vislumbrado no poema
“A inicial”, que veremos mais adiante.
“O mundo às avessas”
7faces • 26
interesse, abrindo-se ao social e aos temas mais pungentes de seu
tempo, vigilante sobre a realidade conflagrada do mundo (a
guerra) e sua crueldade: uma reação poética de alta densidade
humana. Suas práticas poéticas são “uma forma imaginária de
realismo”, o “imaginário enquanto realismo” (MERQUIOR, 1992, p.
68-89).
No ensaio em questão, o crítico opera uma distinção entre a
literatura fantástica e a visionária para demonstrar que a literatura
de Murilo Mendes pende para o visionário. Na literatura fantástica,
“o extraordinário” domina todo um universo, e compõe-se com o
absurdo, no qual o dínamo humano é quase ausente, sem
“nenhuma finalidade” (absurdo). Se o mundo fantástico é fechado,
o mundo visionário se compõe na diversidade, misturando o
extraordinário e a realidade, o diferente e o comum, fazendo a
transição de um plano a outro de forma natural. A obra visionária,
mais dinâmica, seria onde o humano toma o controle de suas ações
dando-lhes uma finalidade dentro de “uma lógica do acontecer, de
uma razão histórica e de uma ordem temporal ― embora não seja
esta simplesmente linear.” (MERQUIOR, 1992, p. 68-89).
A produção simbólica de Murilo se associa ao mundo concreto,
lidando com as particularidades e apresentando uma historicidade
e uma objetividade temporal, numa lógica dinâmica. Em outras
palavras, sua abstração é realizada na poesia. É o que se vê em mais
um poema de As metamorfoses, que assinalamos a seguir.
A INICIAL
As águas me bebem.
As criações orgânicas
Que eu levantei do caos
Sobem comigo
Sem o suporte da máquina,
Deixam este exílio composto
De água, terra, fogo e ar.
7faces • 27
A inicial da minha amada
Surge na blusa do vento.
Refiz pensamentos, galeras...
Enquanto a tarde pousava
O candelabro aos meus pés.
(MENDES, 1994, p. 338)
7faces • 28
A escrita literária num mundo em crise
7faces • 29
O DESOMEM
LA CATASTROFE
7faces • 30
lógica mundial e de suas negociações políticas e econômicas. Nesse
texto alça um voo de observação do caos da realidade durante a
guerra fria.
Poesia-vida
Referências
7faces • 31
CANDIDO, Antonio. “Pastor pianista / pianista pastor”. In: Na sala de
aula. Caderno de análise literária. 8 ed. São Paulo: Ática, 2000.
DRUMOND, Adriano. “Murilo Mendes: um caso de identificação
merquioriana”. In: Quanto mas, Merquior! Disponível em:
<http://joseguilhermemerquior.blogspot.com/2016/06/murilo-mendes-
um-caso-de-identificacao.html>. Último acesso em: 19 de maio de 2020.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. 2 ed. Trad. Marise M.
Curioni. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1991.
GUIMARÃES, Júlio Castañon. “Elementos de um percurso” (Posfácio). In:
MENDES, Murilo. Convergência. São Paulo: Cosac & Naify, 2014.
MCMULLEN, Roy. Art, Prosperidad y Alienación. Caracas: Monte Avila
Editores, 1969.
MENDES, Murilo. Poesia e prosa completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1994.
MENDES, Murilo. “Eu viso a conciliação dos contrários”. Entrevista de
Murilo Mendes a Leo Gilson Ribeiro. In: Veja, 6 set. 1972, n. 209.
MERQUIOR, José Guilherme. “Notas para uma Muriloscopia”. In:
MENDES, Murilo. Poesia e prosa completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1994.
MERQUIOR, José Guilherme. “Murilo Mendes ou a poética do
visionário.” In: Razão do poema. Rio de Janeiro: Top Books, 1992.
PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
PICCHIO, Luciana Stegagno. “Introdução”. In: Poemas e Bumba-meu-
poeta. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
7faces • 32
7faces • 33
A POESIA EM PÂNICO:
DUALISMO, REBELDIA E
RECONSTRUÇÃO
EM MURILO MENDES
por Maria Domingas Ferreira de Sales
e Sílvio Augusto de Oliveira Holanda
Palavras iniciais
7faces • 34
erótico-religioso ― meio desconcertante de abarcar formatos e
temas adversos, conciliando-os pelo traço unilateral da liberdade
expressiva.
Esse aspecto polifônico da poética muriliana encontra, talvez,
sua melhor justificativa no acentuado interesse do poeta mineiro
pelo trânsito livre de ideias e pela diversidade, tal como ele próprio
afirma: Atraem-me a variedade das coisas, a migração das ideias,
o giro das imagens, a pluralidade de sentido de qualquer fato, a
diversidade dos caracteres e temperamentos, as dissonâncias da
história.2 Pode-se afirmar, precipuamente, que tal atração o levou
às águas do movimento surrealista: Reconstituí também épocas
distantes, a década de 20, quando Ismael Nery, Mário Pedrosa,
Aníbal Machado, eu e mais alguns poucos descobríamos no Rio o
Surrealismo. Para mim foi mesmo um coup de foudre.3
A influência do Surrealismo sobre a obra poética de Murilo
Mendes justifica, de certa maneira, as construções ousadas e o
“sentido apocalíptico da sua cosmovisão” (MOISÉS, 2001, p. 16):
uma poética impregnada dos anseios de liberdade, responsáveis
pela ruptura com o melódico e pelo tom exasperado com que o
poeta desafia o “Deus antropófobo” (MERQUIOR, 1978 apud
MENDES, 1994).
É preciso esclarecer, entretanto, que a abordagem sobre o
Surrealismo sugerida nesta leitura não dá conta de todos os temas
e fatos que cercam esse movimento. Antes disso, este ensaio trata
de não mais que propor uma leitura da obra A poesia em pânico,
destacando a temática concernente à aproximação de elementos
díspares ― aspecto pertinente na obra do poeta Murilo Mendes, a
cuja perspectiva se associa o conflito religioso-existencial do poeta,
revelado pela condição humana versus condição divina, através da
qual se evidencia a temática barroca.
Nessa ótica, a união dos contrários e o conflito religioso de teor
barroquizante, imbricados, revelam a pertinência das ideias
surrealistas, marcadas pela transgressão, enfrentamento e
conciliação.
7faces • 35
Comparar dois objetos tão afastados quanto possível
um do outro, ou, por outro processo, pô-los em
presença de uma maneira brusca e surpreendente,
continua a ser a mais alta tarefa à qual a poesia pode
aspirar. Nisso deve tender cada vez mais a exercitar-se
o seu poder inigualável, único, que é fazer aparecer a
unidade concreta dos dois termos postos em relação e
comunicar a cada um deles, qualquer que seja, um
vigor que lhe faltava enquanto considerado
isoladamente (BRETON, 1932 apud DUROZÓI &
LECHERBONNIER, 1972, p. 203).
7faces • 36
natural e concreto) logo se funde o mundo onírico, visto que este
oferece meios para a ampla utilização de elementos sobrenaturais.
Na junção dessas duas realidades opostas, cria-se um mundo
caótico, onde nuvens, estátuas, pianos, rosas, pássaros e estrelas
convivem pacificamente com fantasmas, anjos, arcanjos,
demônios, sereias e cadáveres.
Conforme defende Fábio Lucas, “A poesia de Murilo Mendes foi
sempre muito explosiva, pois retrata um jogo de valores opostos
em busca de uma síntese, que frequentemente se realiza no plano
da expressão” (LUCAS, 2001, p. 28). Clara demonstração disto
podemos observar em A Poesia em Pânico, onde convivem bordéis
e igrejas, maternidades e cemitérios,6 oxímoros que, dispostos no
mesmo verso, incitam o leitor a perturbadoras imagens: Um
manequim assassina um homem por amor. / Sete pianos ululam na
extensão do asfalto. / Um arcanjo sólido descerra o vale de Josafá.7
Eros e Thanatos desafiam as distâncias dos extremos: Amor,
palavra que funda e que consome os seres, fogo, fogo do inferno:
melhor que o céu.8 O poeta reconhece, na aproximação dos
amantes, o violento amor e a ternura: Tua ternura e tua crueldade
são iguais diante de mim / Porque eu amo tudo o que vem de ti. /
Amo-te na tua miséria e na tua glória / E te amaria mais ainda se
sofresses muito mais.
“Não há equilíbrio sem oposição”: diria anos depois o Discípulo
de Emaús.10 Afirmação que resume a tônica de toda a obra de
Murilo Mendes.
7faces • 37
A religiosidade ― pedra de toque na poética de Murilo Mendes
desde sua conversão ao catolicismo14 ― constitui-se como a
grande gerenciadora dos conflitos mais internos do poeta, sobre o
que expõe Murilo Marcondes de Moura:
7faces • 38
relação do Surrealismo com a religião, como afirma José Guilherme
Merquior, em suas Notas para uma Muriloscopia:
7faces • 39
tábua rasa dos antigos processos de pensamento e
instalar também uma espécie de nova ética anarquista
(pois de comunistas só possuíamos a aversão ao
espírito burguês e uma vaga ideia de que uma nova
sociedade, a proletária, estava nascendo). Nessa
indecisão de valores, é claro que saudamos o
Surrealismo como o evangelho da nova era, a ponte da
libertação. (MENDES apud GUIMARÃES, 1993, p. 25).
7faces • 40
bandeira do demônio: Ó Deus / Eu nasci para ser decifrado por ti /
Com um pé no limbo, o coração na estrela Vênus e a cabeça na
Igreja18 Ou ainda: A fulguração que me cerca vem do demônio. /
Maldito das leis inocentes do mundo / Não reconheço a
paternidade divina.19 Trata-se dA presença real do demônio / É meu
pão de vida cotidiano / Minha alma comprime a aleluia gloriosa.20
Diante dessa possibilidade dobrada é que se acentua a
angústia21 do poeta que, em se vendo esmagado pelo monumento
do mundo22, proclama, irmanado aos homens: Meus irmãos, somos
mais unidos pelo pecado do que pela Graça / Pertencemos à
numerosa comunidade do desespero / Que existirá até a
consumação do mundo.23 Ao reconhecer-se humano ― condição
que rejeita ― o poeta confessa: Maldito das leis inocentes do
mundo / Não reconheço a paternidade divina / Eu profanei a hóstia
e manchei o corpo da Igreja: 24 Ou mais dramaticamente: Eu sou
uma moeda que deus deixou rolar no chão.25
A esse sentimento de repulsa ao divino, José Guilherme
Merquior (1976) refere-se como “antiteodicéia”, ou melhor, o
poeta não aceita a religião como forma de submissão ao mal ou
justificação dele (NIETZSCHE, 1991). Então, a religião mostra o seu
reverso: em lugar da paz cantada e apregoada pela igreja nasce o
grito provocador da revolta. O eu-lírico, portanto, impossibilitado
de dizer sim ao mundo pelas suas próprias convicções e desafiando
a Deus, resolve anunciar o embate: O que há entre ti e mim, Filho
do Altíssimo? / O mundo inteiro é tua arena.26
Nessa reflexão, a luta travada entre os opositores é severa: de
um lado, o homem e sua “condição desumana”; de outro, o Cristo
/ Deus / Igreja. O poeta sente-se provocado: Os sentidos em alarme
gritam: / O demônio tem mais poder que Deus.27 E ironiza: Hóstias
puras, / Inutilmente vos ergueis sobre mim.28
Sob outra perspectiva, o poeta vê-se desafiado pela Igreja que
se apresenta como Uma Grande Mulher: A igreja toda em curvas
avança para mim, / Enlaçando-me com ternura ― mas quer me
asfixiar. / Com um braço me indica o seio e o paraíso, / Com outro
braço me convoca para o inferno. / Ela segura o Livro, ordena e fala:
/ Suas palavras são chicotadas para mim, rebelde.29 Entretanto,
resistente, o poeta rebelde prefere a cruel e necessária Berenice,
com a qual comunga no corpo e no sangue. Ele reconhece a força
divina, mas ainda assim, desafia: Até quando deverei opor a minha
nudez / Ao mistério da Tua insaciabilidade? / Nada tenho para Te
oferecer, senão os crimes de outrem.30
7faces • 41
E, diante de novo resgate, o poeta, embora resistindo, confessa
sua humana fragilidade: Apontai-me para meu corpo, altar do
sacrifício, / Para minha cabeça, que guarda todas as imagens / Para
meu coração ansioso de se consumir em outros. / Ó filhos
transviados do mesmo Pai celeste, / Aqui estou eu... perdoo a todos
e não me perdoo. / Queimai-me.31
Então, perguntaria o leitor: quem será o grande derrotado nesse
diálogo entre o Criador e o Destruidor?32 Ao que o poeta, em
pânico, responderia: ― Não há vencedor ou vencido. Há um estado
de embate permanente.33 Há a eterna questão esfíngica do verso
que interroga, paradoxal e permanentemente, aos passantes. Mas
estes, preferindo a inquietação da luta à placidez da vitória ou
derrota, assistem, também em pânico, ao árduo combate nos
arredores do grande círculo.
Palavras finais
Notas
7faces • 42
página referente à edição organizada pela Nova Aguilar (Cf.:
MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Luciana Stegagno
Picchio (Org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994).
2 MENDES, Murilo Mendes por Murilo Mendes, Microdefinição do
Autor, p. 46.
3 MENDES, Retratos-Relâmpago, André Breton, p. 1238.
7faces • 43
múltiplo, contra a sacralidade do Não-divisível, do Sim-bólico, do
que se apresenta, com efeito, como In-dividuus”
14 A morte de Ismael Nery em 6 de abril de 1934 é um dos fatos
7faces • 44
29 MENDES, PP, Igreja Mulher, p. 303.
30 MENDES, PP, A Casa dos Átridas, p. 295.
Referências
7faces • 45
MONTELO, Josué. “Pretexto para louvar Murilo Mendes”. Revista
Brasileira. Academia Brasileira de Letras, Fase 7, out./nov./dez., 2001, v.
8, n.29.
MOURA, Murilo Marcondes de. “Murilo Mendes no início dos nos 30”.
In: Revista do Brasil: A Poesia em 1930. Rio de Janeiro: Prefeitura da
cidade do Rio de Janeiro, v. 5. n. 11, 1990.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Anticristo: ensaio de uma crítica do
cristianismo. In: Obras Incompletas. 5 ed. São Paulo: Nova Cultural,
1991.
NUNES, Benedito. No tempo do Niilismo e outros ensaios. São Paulo:
Ática, 1993.
SALES, Maria Domingas Ferreira de. Murilo Mendes: pânico, amor e
poesia: uma leitura de A poesia em pânico à luz do surrealismo.
Dissertação de Mestrado, UFPA, 2006.
SÜSSEKIND, Flora. Murilo Mendes: Um bom exemplo na história. In:
Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, v.8, n. 7, p. 147-169, jan. 1979.
7faces • 46
AS BERENICES:
RELIGANDO OS FIOS
por Maria Laura Müller da Fonseca e Silva
7faces • 47
muriliano e não esquadrinhar seus caminhos de influências e de
tantos predecessores?
As veredas que seguiremos estão anunciadas no título deste
ensaio. Berenice é a musa que inspira quase todos os poemas de A
poesia em pânico (1936-1937), mas, na prosa inaugural ― O sinal
de Deus (1935-1936) ― ela já irrompia: “Sou uma sentinela
espiritual de Berenice”, diria o poeta. O texto a descreve como
persona melancólica e dada às reminiscências: “Ela pensa em si
mesma, no passado, na sua angústia, no fim das coisas (...)”
(MENDES, 1994, p. 755). Essa primeira Berenice inspira, ao poeta,
proteção. A segunda, por sua vez, será causadora de grandes crises.
Curiosamente, uma tela de Ismael Nery, pintada entre as
décadas de 1920 e 1930, foi nomeada Berenice. Sendo a pintura
antecedente aos citados textos de Murilo, supomos que a tela seja
a principal inspiração para a construção da musa de A poesia em
pânico. Porém, seria a única influência? E, ainda, quais teriam sido
as referências de Ismael, nesse caso? Responder a essas questões
requer um recuo temporal.
Murilo e Ismael são artistas cuja juventude testemunhou as
primeiras décadas do século XX no Brasil, justamente quando o
nascente período republicano desejava imprimir, no espaço
arquitetônico e cultural, um novo tom. Viveram intensamente os
anos de culto às artes em geral, especialmente à europeia ― e,
sobretudo, à parisiense; os anos de cuidados com o vestuário e de
dandies urbanos a povoar ruas e imaginações, com a elegância e o
requinte burgueses. Era a belle époque nos trópicos, percebida
com maior intensidade em algumas cidades brasileiras que, por
particularidades históricas, econômicas ou culturais, favoreceram
o acesso à ambivalência das vitrines europeias em solo tão diverso.
Rio de Janeiro e São Paulo, centros econômicos nacionais,
urbanizavam-se, ganhando ares modernos e cosmopolitas. Belém
e Manaus, na bonança advinda das libras esterlinas ao ritmo da
extração da borracha, também assimilavam novos conceitos e
mobilizavam agitada vida cultural. De modo semelhante, certas
cidades mineiras, como Juiz de Fora, iam na contramão dos sinos
que badalavam nas igrejas barrocas e abriam-se a turnês cariocas
em uma “alegria” que era “revolucionária”, na descrição de Pedro
Nava (1974, p. 21). Ou, na percepção de Murilo Mendes, podia-se
comtemplar uma espécie de vitrine de “caleidoscópio” (PEREIRA,
2004, p. 151).
7faces • 48
Foi justamente a imersão nessa geografia da “era do ouro” que
contribuiu para a formação cultural e intelectual de Murilo Mendes
e Ismael Nery no trânsito pela belle époque brasileira. Os artistas
desejavam se mover através da arte e viviam na mobilidade física
do “bonde, navio, avião, zepelim” ― “Inércia” (MATTAR, 2004, p.
282), como explica Ismael Nery em um de seus poemas.
Aliás, Ismael Nery é um exemplo significativo desse movimento,
pois vive parte da infância em Belém. A capital paraense, desde o
fim do século XIX, convivia com iluminação elétrica nos espaços
urbanos higienizados na euforia do látex e assistia a exibições de
óperas em meio à natureza tropical que cercava o Theatro da Paz.
Porém, a atração pelo conforto oferecido pelo pai da Sra. Marieta
Macieira (mãe de Ismael) é determinante para que, em 1909, a
família se mude para o Rio de Janeiro. Proprietário de muitos
imóveis no bairro Madureira, Capitão Macieira seria, após a morte
do pai de Ismael, um avô facilitador. No Rio, Ismael pode
frequentar a Escola Nacional de Belas Artes e, depois, completar
seus estudos em duas estadas em Paris, sendo a primeira, em 1920,
na Academia Julian. Já casado com Adalgisa Nery, em 1927, realiza
a segunda viagem à capital francesa, onde permanece por meses e
estabelece contato direto com Breton e Chagall.
Sujeito excêntrico e versátil, recebe em casa amigos pintores,
músicos e escritores, entre eles, Murilo Mendes ― presença
assídua desde 1921, quando se conhecem em ofício no Ministério
da Fazenda. Discussões filosóficas marcadas pelo Essencialismo,
revistas de moda, visitas a exposições e frequência aos teatros da
Praça Tiradentes (em audiência à companhia francesa Bataclan)
fazem parte do cardápio flâneur do grupo. A periodicidade desses
encontros no número 170 da rua São Clemente, no bairro
Botafogo, diminui por volta de 1931, devido ao agravamento do
estado de saúde de Ismael e a sua consequente internação no
Sanatório Correia para o tratamento da tísica. Em 1933, Nery
falece, ainda sem reconhecimento de público e de crítica.
Murilo Mendes, por sua vez, nasce e cresce em meio às sirenes
das fábricas e à vida burguesa de Juiz de Fora, localidade a que
Sílvio Romero nomeou “Europa dos pobres” (1910, p. 11). A cidade
seguia à risca o binômio progresso e civilização, com grande
contribuição de Bernardo Mascarenhas, responsável por instalar,
ali, a primeira usina hidrelétrica da América Latina e por fomentar
a indústria têxtil e o mercado financeiro (com a criação do Banco
de Crédito Real de Minas Gerais).
7faces • 49
Não por acaso, quando Francisco Serrador cria a primeira rede
de exibição de filmes estrangeiros no Brasil, instala salas em São
Paulo e no Rio de Janeiro, mas também em Juiz de Fora. Assim, é
diante das telas do incipiente cinema mudo do Circuito Serrador
que Murilo é atraído pelo “fascínio irreversível de Paris”,
personificado na beleza vamp de Gabrielle Robinne (MENDES,
1994, p. 941). Enquanto isso, o ambiente intelectual de tendência
europeia moldava, aos poucos, suas percepções, em meio a
audições de piano e a apresentações de árias de Rossini.
O aprendizado que recebe de Mme. Amélie, francesa emigrada
durante a Primeira Guerra, e as lições do professor Almeida
Queirós permitem-lhe não só privilegiada pronúncia do idioma
francês, mas também contato precoce com mestres do século XVII,
especialmente Racine. Tempos depois, reconhecendo a
contribuição das letras francesas em sua formação, Murilo diria
sobre o professor Queirós: “mas era em Racine que a sua atenção
se detinha mais tempo; seus heróis passaram a fazer parte da
minha vida cotidiana.” (MENDES, 1994, p. 964).
Quando se muda para o Rio de Janeiro, no início da década de
1920, o aporte cultural de Murilo é ampliado na dinâmica daquela
sociedade. Gradualmente, novos vínculos também lhe são
benéficos, em especial a amizade de Ismael Nery (que tem início
em 1921 e se estende até a morte do pintor, em 1933). A Europa
mítica da infância e da juventude passa a ser ressignificada na
retórica de Ismael, que conhece o velho continente no elã das
vanguardas e conduz Murilo ao Surrealismo de peito aberto. E é
sob essa estética, permeada pela pseudofilosofia Essencialista, que
as nuances dos primeiros textos murilianos, antes estimulados pela
Semana da Arte Moderna, vão sendo paulatinamente alteradas.
Ademais, a arte de um reverbera a arte do outro, sendo Murilo
quase um discípulo de Nery nesta época.
Essa breve narração de caráter biográfico conduz o leitor,
naturalmente, à percepção de que a Murilo e Ismael têm formação
europeia de tendência francesa. E é este o ponto a que queríamos
chegar. Retomemos, agora, nossa questão inicial: Berenice.
A tela de Ismael, hoje conhecida como Figura feminina ao piano,
integra a coleção de Hecilda e Sérgio Fadel, mas já pertenceu a três
proprietários. Nesse trâmite, perdeu o nome original e, por isso,
nublaram-se as evidentes relações que provoca. Contudo, para
compreendermos o que consideramos ser o primeiro grande
diálogo da literatura de Murilo Mendes, precisaremos recuperar
7faces • 50
Berenice, o título original da pintura, informado pela primeira
proprietária.
7faces • 51
intermediado pela tradução de Baudelaire, ou seja, trata-se de um
caso em que uma influência literária (Baudelaire) conduz a outra (Poe).
Analogias entre o conto e a tela são facilmente identificáveis: a
Berenice de Poe adoece misteriosamente, sucumbindo em uma
metamorfose destruidora e fatal. Isso inquieta o narrador, mas,
paradoxalmente, o conduz a uma atração mórbida pelos dentes da
prima, única parte daquele corpo esquálido a permanecer
vigorosa. O final aterrador associa necrofilia e fetichismo através
de menções a um túmulo violado e à possibilidade de Berenice
ainda estar viva.
Habitando na abstração, entre o real e o metafísico, a figura
central da pintura de Nery é mesmo esse espectro destituído de
beleza a conjugar vida e morte em perspectiva byroniana. O jogo
de cores que constitui o ambiente, com predomínio do verde,
divide a tela em formas geométricas e em contraste de tons
escuros, na ambígua consonância entre existência e fenecimento.
Sugerido no modo surreal, o piano é tocado por dedos esguios,
semelhantes a garras. Cadavérica, a Berenice de Nery é enlutada,
opaca e inquietante.
Em evidente diálogo com Ismael, anos depois, Murilo nomeia
Berenice sua musa de A poesia em pânico (1936-1937), uma
amante que precisa ser abandonada. A obra volta-se à angústia
gerada por essa figura feminina a ameaçar a fé e a colocar o sujeito
em constante tensão ou pânico. A fim de ilustrar como é construída
a crise poética em torno de Berenice, reproduzimos este poema:
ECCLESIA
Berenice, Berenice
Uma Grande mulher se apresenta a mim
E te faz sombra.
Ela exige de mim
O que tu não podes exigir.
Ela quer minha entrega total
E me oferece viver em corpo e alma
A encarnação, a paixão, o sacrifício, e a vitória.
Desenrola diante de mim a liturgia do mundo.
Querendo que eu tome parte nela contra mim mesmo.
Berenice, Berenice, tua rival me chama,
Ataca-me pelos cinco sentidos,
Desdobrando diante de mim a toalha da comunhão.
7faces • 52
Eu recuo aterrado
Porque não me permites, Berenice,
Comungar no teu corpo e no teu sangue.
(MENDES, 1994, p. 293-294)
7faces • 53
de sangue, mas a simplicidade de poucas intrigas, paixões
inflamadas e “tristeza majestosa”, ingredientes capazes de
emocionar o público, tanto quanto os desfechos funestos.
De fato, o único sacrifício da trama é o do amor, que precisa ser
abandonado em favor da estabilidade de Roma. Quanto a Roma,
não há hesitações; entre Berenice e Roma, não há dúvidas. Assim,
o conflito instaurado é entre o sonho da paixão bucólica e a
realidade política implacável. Ainda que a ame apaixonadamente,
mesmo contra a vontade de ambos, Tito faz sua opção e despede
Berenice logo nos primeiros dias de seu governo (invitus invitam),
pois a amada é estrangeira. Embora tenha sofrido e cogitado a
morte, ela aceita, com esforço, aquela decisão e volta à Palestina.
Condenados à solidão em seus reinos distantes, tendo frustrados
os desejos mais honestos, os personagens são, contudo, fiéis a seus
ideais.
Enquanto, em Racine, Roma é imperial e política e obriga a
expulsão da mulher adventícia, em Murilo, Ecclesia é a
personificação da igreja, ou seja, a Roma católica, exigindo que o
poeta renuncie à amada em entrega absoluta e comunhão. A musa,
entretanto, diferente da personagem de Racine, permanece
insensível ao poeta, sendo ele o único atormentado pela força das
emoções ambíguas e pela instância da iminente separação.
Desse modo, tanto no teatro de Racine quanto no poema de
Murilo, um triângulo amoroso singular é formado, envolvendo o
amante (Tito / o sujeito poético), Berenice e Roma. Porém, ao
recriar esse triângulo em novo fundamento, Murilo ressignifica,
nas convenções de sua poética, o elemento trágico suscitado pelas
paixões inflamadas que comprazem e comovem o público. Esse
recurso, no entanto, de acordo com o próprio dramaturgo francês,
sempre foi elemento poético2. Explorado por Murilo, torna sua
poesia intensamente dramática nas bases racinianas.
À guisa de conclusão, lembramos que há, ainda, outra Berenice
a inquietar nossa leitura e a desafiar o leitor. Trata-se da narradora
do romance A imaginária (1959), de Adalgisa Nery. Vinte e seis
anos após a morte de Ismael Nery, a poeta e jornalista Adalgisa
publica sua obra, na qual narra, através da persona Berenice, o
casamento com o pintor, bem como a conturbada relação familiar
dos Nery.
Em contraste às descrições quase messiânicas de Murilo3, o
Ismael desta narrativa é egocêntrico, neurótico, megalomaníaco e
adúltero. Vampirizada pelo relacionamento opressor e pelo
7faces • 54
ambiente familiar desordenado, a narradora descrê de sua própria
sensibilidade artística, sendo limitada à condição de modelo das
pinturas do marido. Anulada, assiste às constantes reuniões em sua
sala e delas pouco participa. Somente após a morte de Ismael esta
Berenice é alçada a primeiro plano, emancipando-se, através da
literatura e da política, em consonância com a biografia de
Adalgisa, que se inseriu em círculos intelectuais e manteve,
inclusive, a amizade com Murilo Mendes.
Quando intencionalmente adota o nome Berenice para sua
protagonista / máscara, Adalgisa reivindica espaço no cruzamento
das obras de Murilo e Ismael, sugerindo um novo triângulo. Nesse
jogo de simulação e veracidade, ela poderia ser tanto a figura
feminina vampirizada no pincel de Nery quanto a musa indiferente
no lápis de Murilo. Habilidosamente instaurada nesta
ambiguidade, Adalgisa reforça nossa hipótese de que Berenice é,
antes de tudo, um código representativo de diálogo intertextual
em Murilo Mendes.
Em busca desse código, percorremos incitantes veredas
artísticas, seguindo fios, refazendo cruzamentos e sendo levados a
vozes de outros tempos. Na compreensão de Berenice, que
julgamos ser o primeiro grande jogo de referências da literatura de
Murilo Mendes, resgatamos a memória de outras épocas,
ressignificada em experiências estéticas múltiplas, disseminadas e
não hierárquicas. Porém, uma nova indagação se apresenta: tal
como Berenice, outras convergências estariam ocultas nesta
poética? Sem dúvida, muitas. Nas teias do texto muriliano, o leitor
é desafiado a mover-se através do jogo intertextual e, quando o
faz, entende o que Murilo afirmou: “O invisível esconde-se no
visível” (MENDES, 1994, p. 1045). Eis o incógnito desta poética.
Notas
7faces • 55
Referências
7faces • 56
POEMAS (1)
7faces • 57
7faces • 58
Carlos Cardoso
Rio de Janeiro – RJ
7faces • 59
7faces • 60
CAVALOS-MARINHOS
entre ondas
que abrigam e afogam
para dentro me jogam
me deixando lá.
7faces • 61
UM SOPRO DE AR
Comemore, Silviano,
o que te pertence,
a razão irrelevante
é pó, nesse instante
só o que em todas
as cores se dissipa ficará.
Esse algo em formato
de arco-íris ou Jabuti é mágico,
pois não é um sopro
a mais ou a menos
que percorre os noticiários,
é você, amigo, que fez
nascer de sua plenitude
com Mil Rosas Roubadas
sobre a folha branca de papel,
Machado, Stella Manhattan
e muitas outras histórias.
falamos do poder
e de poder ser,
7faces • 62
falamos da metafísica
e de imagens plásmicas
e geométricas,
do talvez, do imediato
e do hermetismo
que se esconde no espírito
e faz-se corpo místico
nessa intervenção
que ouço e que digo
nas telas do ontem
e no silêncio do hoje.
Eu — esse poeta
que publica o oximoro
da pureza no sacrilégio,
e que por um
décimo de instante,
encontrei, eu,
esse homem tão só em si,
um semelhante para falar
não usando palavras escritas
ou o som do silêncio imagético,
mas a voz.
Silviano, brindemos,
pois nesse décimo de instante
um sopro de ar
pegará uma nuvem
e pausadamente respirando
percorrerá os oceanos.
7faces • 63
O ROLAR DA PEDRA
bombardeios, sacrifícios,
crianças armadas de neblina,
tiro no escuro, furo,
que do alto do morro
ninguém acerta,
ninguém vê ou alerta.
7faces • 64
pedra no Leblon, Pavãozinho?
Pedra.
Pedra.
7faces • 65
FUI A PORTUGAL
eu a vi ali ali,
e por falar em encantamento,
tão mal chegara e
já se preparava para partir,
7faces • 66
CAMALEÃO
7faces • 67
O BONDE DO SILÊNCIO
7faces • 68
Rodrigo Garcia Lopes
Londrina – PR
Rodrigo Garcia Lopes nasceu em 1965. É poeta, romancista, tradutor, compositor, ensaísta
e jornalista. Publicou os livros de poesia Solarium (1994), Visibilia (1996), Polivox (2002),
Nômada (2004), Estúdio realidade (2013), Experiências extraordinárias (2015) e O Enigma
das ondas (2020). É autor do romance policial O Trovador (finalista do Prêmio São Paulo de
Literatura de 2015).
7faces • 69
7faces • 70
VONTADE DE CRER
7faces • 71
IDÍLIO
7faces • 72
RIMAS POBRES
Dar
o que ninguém quer
Querer
o que não se pode dar
Amar
doa a quem doer
7faces • 73
7faces • 74
Cristiana Pereira da Cunha
Leiria – Portugal
Cristiana Pereira da Cunha nasceu no dia 25 de abril de 1987 na cidade de Leiria. Filha de
Elisa da Conceição Pereira Viola e de Rui Manuel Lopes da Cunha, viveu a sua infância e
adolescência numa aldeia chamada Touria. Formou-se em Biologia Marinha e Biotecnologia,
completando os seus estudos com o mestrado em Ciências do Mar. Desde a adolescência
que a poesia tomou conta da sua vida, escrevendo até agora mais de 300 poemas. Neste
momento encontra-se a terminar a sua primeira obra literária.
7faces • 75
7faces • 76
POR TI, ESPERAREI O ANO INTEIRO…
7faces • 77
HOJE MAIS QUE O NORMAL
7faces • 78
Diogo Costa Leal
Porto – Portugal
Diogo Costa Leal é natural e residente no Porto, Portugal. Publicou os livros de poemas No princípio
era a nudez (2017) e Voz alta (2018). É também dizedor de poesia. Coautor do grupo de performance
e improviso de música e poesia “Poemó’Copo” (desde 2014). Apaixonado pela escrita aliada à
oralidade das palavras e outras artes, parcerias e iniciativas, estando envolvido nas mesmas desde
2010. Tem vários poemas publicados em revistas portuguesas e brasileiras. Em 2017 foi formador de
uma oficina de poesia oral e escrita com jovens num intercâmbio artístico Erasmus+ (Limony, França).
Coautor dos programas de rádio sobre poesia Eclético Azul (RUA FM, Faro, 2011-2012) e Vadiação
Poética (Rádio Manobras, Porto, 2013-2015). Criou também o projeto de entrevistas com poetas
intitulado “Um poeta para con-versar” (2016-2018). Coorganizador (desde Set/2020) das tertúlias
livres de “Poesia à Nora” na Cachaçaria Macaúva no Porto. Gosta também de dizer poesia nas ruas.
É licenciado em jornalismo e formado no curso “Voz: técnica e comunicação". Dentro do jornalismo,
escreveu para o Jornal de Notícias, revista Blitz, JPN e P3 (Público).
7faces • 79
7faces • 80
a medula do momento sem derreter no espasmo
entrincheirar-me no poema contra as ordens
pássaros acontecidos no barulho dos gritos
as mãos escrevendo como ponteiros caídos
contra o meu poder
contra a minha ideia
contra a minha cabeça
a favor do grande ringue
onde o prazer encosta deus às cordas
7faces • 81
A minha memória é uma escada
com o mar ascendente
O meu espanto por um triz
que não era espasmo
Num olho tenho o canto de um funeral
No outro o plasma das flores
7faces • 82
que ontem
só de te olhar
ressuscitei
e um enxame de pássaros
entrou-me pela janela
e levou-me pelos ombros
ao princípio do princípio
onde simplesmente bastava
a expansão
pela expansão
7faces • 83
Decerto haveria muito a dizer
A sensatez das horas que nos mostram os seios
O amor nos olhos das varandas
Um lençol do tamanho brutal do afeto
Ou então uma inspiração fácil
E que tudo o que é belo fosse íntimo
Inocente imortal
absoluto
(E o que não é
Que rompesse das rochas como uma flor)
Sim
O primeiro que aponte o dedo
interrompe
O movimento das setecentas translações do poema
O diálogo que a paisagem nos devolve
quando nos estende uma brisa
Uma mulher a fazer de planta com os pés
num vaso cheio de terra e os dois braços estendidos no ar
só para ilustrar a alquimia das metáforas
7faces • 84
A escala desmesurada dos sonhos despertos
E os sorrisos de portas escancaradas
E as casas as casas inauguradas à mesa de um brinde
E o perdão como fruta a fazer de brincos na festa
E a nudez sofisticada como um anjo de cauda
E o infinito e a demora de uma mão uma só mão
sobre o amparo de um rosto
E procurar nas palavras a consolação das abelhas
E esperar por ti com os olhos de cama feita
E dançarmos até ser âmago
E atravessarmos desertos com vista a encontrar
a água mestra na perfuração do real do oásis
¿Porquê?
¿Porque é que não usamos
o escuro dos outros e o nosso
Também assim, com casca?
a gravidade tranquila
sim
a gravidade tranquila
não é o que cantamos sempre?
7faces • 85
Eu quero duas vezes a morte
para renascer com olhos peixes
Eu quero a vida extrema sim a vida extrema
Para exprimir o que não é de espremer
Dois poemas por cada soco
Um olhar inútil por meia rotina
Três abismos plantados por cada cautela
Eu quero um campo aceso de girassóis corações
em cada rotação das ancas
Um decreto de cegueiras visões para a paixão
a amizade o amor só para que o tacto respire
reinando os sentidos todos
Eu quero nuvens razões para regar de chuvas intenções
os prados descalços
Uma ventania atribulada para que dancem as árvores
Um sangue vibrato para músicas ancestrais
Eu quero Eu sou Eu faço
Centopeias de luz com janelas pernas
Escadas deitadas para jangadas
Lanternas paisagens para a vigília dos quase mortos
Rotundas flores para redirecionar cicatrizes
Um barco de festa para atravessar o deserto
Musgo a sair das olheiras coisas
Orvalho por cima dos lençóis amados
Um teleférico descapotável só para te poder olhar no azul
7faces • 86
Derreter como um rio para chegar a toda a gente
7faces • 87
7faces • 88
André Ribeiro
Brasília – DF
7faces • 89
7faces • 90
« protonauta — decurso »
detidamente incerto
traça o mapa da angústia
Aiá,
Santa Catarina!
Miserere Nobis!
7faces • 91
Salve, Amigos!
7faces • 92
« protonauta — in-curso »
cruzam correntes
aos ventos e lentes
se entremeasse buscas
o navegante circundaria
ou ia circum-enfeixando
os brilhos nas cristas
e as luas
e os seus manuscritos
contudo
perder-se-ia na esperança
da quilha rasgando o mar.
irmãos,
ando por aí auscultando-me
paisagens!
os ruídos que me deixam vagar
esperançando pedaços.
7faces • 93
« transbordo »
e o pátio naval
à espera do homem:
como estrangeiro
que perde o contorno
seu corpo é fendido
em múltipla perscrutação
é um homem no pátio
à espera de
verter-se jorrando
de volta ao tanque.
me cala
a estrada estridentes
estrelas
os ferros trepidando
siderúrgicas
no quase limite
dos verdes
me ouço puídas
auroras das muitas
e sobem-me eixos
entremeadas retóricas
pinos e
navegadas correntes
afora
o teu mundo estou
entre auroras.
7faces • 94
*
ancora a realeza
do outono
quando o mar
se abraça aos rochedos
depondo lágrimas
de verão
em alturas
um tino febril
à luz dos invernos [frios]
7faces • 95
« silêncio »
após Fernão Mendes Pinto
navega-te entremeadas
tuas flutuantes correntes.
de vinte-um-anos clausuras
levanta a bandeira rasgada
impõe o teu
7faces • 96
Daniel Mendes
Elísio Medrado – BA
7faces • 97
7faces • 98
INFINITO
7faces • 99
AMOR ABERTO
7faces • 100
RAÇA DE POETA
Assim eu me reinquieto.
E você rir, desgraçado!
Retorno ao meu canto, quieto.
E você me diz, armado:
Escreve...
7faces • 101
7faces • 102
Angelita Guesser
São José – Santa Catarina
Nasceu no Rio Grande do Sul (Brasil) em 1976. É formada em Psicologia e Direito, tem
formação em Psicanálise, é doutoranda na Universidade de Coimbra em Estudos
Contemporâneos. Adquiriu o hábito da escrita através da transcrição das sessões de
psicoterapia em que trabalhou por 18 anos. Desenvolve seu lado artístico através das
palavras e principalmente através dos desenhos. Lançou Foda- se (Ed. Autora, 2020) seu
primeiro livro de poemas totalmente independente, seu segundo livro Entre um eco e outro
(Ed. Letramento, 2020).
7faces • 103
7faces • 104
CASACO AZUL
7faces • 105
INCENDIÁRIA
Quando tudo me falta aos olhos, quando me falta o juízo e me falta a poesia, percebo que
sempre fui incendiária. Me apego ao destruído, me apego às pessoas comuns que nada têm
de extraordinário, que não querem ser extraordinárias, essas, são as que sentirei falta.
Quando me faltam os sorrisos de domingo e os loucos para me ofertarem suas lágrimas,
lembro que a maioria das pessoas está sempre com os olhos cheios, mas vazias de coração.
Dessas eu não sentirei falta. A felicidade absoluta não é uma dádiva, ela não traz certeza de
nada e me pego pondo fogo no conforto da certeza. Eu rasgo em fogo o absoluto. Quero
enxergar o futuro e ainda ser capaz de sentir saudade de fazer as perguntas erradas nas horas
certas. Quero incendiar mais uma vez, mas não um incêndio controlável, quero aquele que
arrasa com suas labaredas os corações de pedra, na certeza de que me sinta um pouco mais
eu.
7faces • 106
NOSTALGIA
Eu sinto saudade do tempo que ainda não se foi, das palavras que não foram ditas e dos
abraços que ficaram guardados. Eu sinto saudade das pessoas que passaram por mim no
metrô e das longas conversas que não tivemos. Dos banhos de chuva que ainda não caiu e
dos sonhos que a mente não criou. Sinto saudade da moça do quinto andar que nunca me
visitou e da brisa que pela janela jamais entrou. Eu sinto saudade de dizer que te amo, dos
membros trêmulos depois do adeus que nunca falamos e dos rasgos que não fizemos nas
constelações. Eu sinto saudade do tempo em que não tínhamos a certeza de que jamais se
pode ser feliz.
7faces • 107
7faces • 108
Milton Rezende
Campinas – São Paulo
Nasceu em Ervália, Minas Gerais, em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em
Juiz de Fora, onde foi estudante de Letras na Universidade Federal de Juiz de Fora, depois
morou e trabalhou em Varginha. Funcionário público aposentado, atualmente reside em
Campinas, São Paulo. Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de doze livros
publicados. Os três poemas apresentados nesta edição estão em Da essencialidade da água,
os dois primeiros, e Andarilho dentro de casa, o terceiro.
7faces • 109
7faces • 110
ACROBATA
um pessegueiro roxo
braços em formas de garras
dedos intumescidos
pernas retesadas.
7faces • 111
ANÍMICA
7faces • 112
PROVA
a equação da vida
não bate nunca
porque sempre haverá
no mínimo dois
lados para olhar,
dois modos de contemplar
e duas perspectivas
a anularem-se.
7faces • 113
7faces • 114
Huggo Iora
São José – Santa Catarina
7faces • 115
7faces • 116
ALARMES
7faces • 117
RISO
7faces • 118
PARTIDA
Quando eu morrer
fará um dia ameno, talvez de outono, quem sabe
primavera. A natureza seguirá seu curso imperturbável
e os moradores de meu bairro, em cujos rostos demorei-me
mais que uma sequela,
não mencionarão sequer o luto em suas redes sociais, ocupados demais
de planilhas e happy hours.
Apenas minha mulher debulhar-se-á em lágrimas viúvas, atrasada para
suspirar “te amo” ao pé d’ouvido.
Cadáver não escuta, nem percebe, nem cheira. Só fede!
Quando eu morrer,
meus filhos — estáveis em suas áreas de atuação profissional
mas atemorizados com as mesmas dúvidas
que me assaltavam em vida — viajarão latitudes, nas quais meu corpo horizontal não se
[atravessa,
para presenciarem a partida.
E serei cremado!
Assim é definitivo...
Pois vai que a alma, já no meio do caminho, dê a doida de querer
voltar atrás.
7faces • 119
7faces • 120
JANELAS VERDES: PORTUGAL,
MEMÓRIA E ESCRITA DE SI EM
MURILO MENDES
7faces • 121
originais. Posteriormente, em abril 2003, saiu pela Quasi Edições,
o texto integral, apenas em Portugal. Esta edição perfaz o projeto
inicial do autor, no qual continha diversos elementos textuais
diferentes e partes que já haviam sido integradas a outros textos
como a nota autobiográfica “Microdefinição do autor” e cinco
poemas, chamados de ‘murilogramas’: estes foram publicados
anteriormente em Poliedro (1972) e em Convergência (1994),
respectivamente. Sua única publicação brasileira se deu como
parte integrante de Poesia completa e obra, pela editora Nova
Aguilar e com organização da professora italiana Luciana Stegagno
Picchio.
O estilo adotado por Mendes em Janelas verdes corresponde ao
de outras obras do mesmo período como Carta geográfica (1965-
1967) e Espaço espanhol (1966-1969), em que desenvolveu a
chamada prosa-poesia, em descrições e comentários sobre lugares
que marcaram sua memória; e em Retratos-relâmpago (1ª série de
1965-1966, 2ª série 1973-1974) e A invenção do infinito (1960-
1970), em que se utiliza da mesma prosa-poesia para falar de
pessoas ― personagens literários, amigos e personalidades
intelectuais, artísticas ou acadêmicas. Mendes sempre escreveu
em prosa, iniciando-se como escritor de crônicas na adolescência,
permanecendo este estilo literário em toda sua trajetória,
entrecortado pela forte presença da poesia stricto sensu. Em sua
prosa poética de textos curtos, porém entrecortados de alusões,
imagens e referências, desenvolveu uma grande produção literária,
como seu ponto alto nos últimos anos de vida.
Segundo o próprio Murilo Mendes, em uma das últimas cartas
escritas à Laís Corrêa Araújo, em 1974, Janelas verdes seria uma de
suas obras mais originais, pois teria conseguido completar uma
tarefa muito difícil de escrever textos sobre temas exploradíssimos
fugindo de clichês (ARAÚJO, 2000, p. 234). Tal apelo de
originalidade é retomado na nota final do texto, em que o poeta
descreve não só sobre o seu exercício de escrita, mas expõem o
desejo de que seu afeto tenha sido bem expresso:
7faces • 122
tenha deixado aqui a marca do meu afeto (MENDES,
1994, p. 1444)
7faces • 123
7faces • 124
Murilo Mendes e Alberto de Lacerda, Quinta da Bacalhoa, Azeitão, 1962.
Arquivo: Alberto de Lacerda
As homenagens às cidades e às pessoas soam como
agradecimentos. Uma retribuição ao acolhimento que o poeta
recebeu da esposa e sua família, e dos demais portugueses com os
quais se relacionou e pelos lugares que transitou maravilhado. Suas
descrições das obras de arte, das comidas, das festas, dos locais,
das pessoas que transitavam por elas no momento que Mendes as
enquadrou, são cheias de adjetivos carinhosos e enaltecimentos
que demonstram seu encanto. Seu olhar se atém ao comum, ao
cotidiano. Como o próprio Mendes afirma, não que não goste dos
monumentos, museus ou catedrais, mas: “entendo que se vem à
Europa também para conhecer vinhos, comidas, doces: quando de
alto estilo, integram o contexto cultural de cada país, entrando não
só na boca, mas na literatura e na sociologia. Lévi-Strauss dixit”
(MENDES, 1994, p. 1370).
Os sabores portugueses, fundamental pilar da cultura lusitana,
não ficaram fora do livro. Pode-se elaborar uma culinária
sentimental apenas dos doces citados pelo autor: pasteis de feijão,
rabanadas, queijadinhas de Sintra.
Mendes transita no “Setor 1” como um etnógrafo, registrando
a alma portuguesa. Quando observa, detalha, analisa desde estilos
arquitetônicos a vestimentas tradicionais, ele descreve a cultura
portuguesa, presente como uma das grandes influências sobre a
brasileira, embora lhe seja exótica em determinados pontos.
Dentre as anotações sobre arquitetura, podem-se destacar as
dedicadas às janelas manuelinas do convento de Cristo, segundo
ele, “o vértice da invenção de arte em terra portuguesa” (MENDES,
1994, p. 1375), ou sobre Évora: “ninguém ignora que Évora reflete
de modo exemplar a cultura portuguesa, suas origens romanas e
influências árabes” (p. 1381), e também sobre Lisboa,
“consideremos a Lisboa de planos contrastantes, descidas, subidas,
largos (estreitos), pequenas praças, ‘altas ruazinhas’, vielas, becos,
jardins escondidos onde algumas vezes surpreendi ‘as dálias a
chorar nos braços dos jasmins’; a Lisboa mãe da Bahia” (p. 1409)
Os ricos detalhes completam a descrição das roupas típicas das
mulheres na festa de Senhora d’Agonia, que “vêm luzir trajes, ricos
em combinações de cores, desafiando o tempo; arrecadas. Argolas,
colares de ouro, corações em filigrana” (p. 1380). Da mesma forma,
atentamente, ele observa as mulheres em Nazaré, que esperam os
maridos na praia, por horas ou semanas, e Mendes descreve:
“Enroladas em severos xailes pretos, moças e velhas trajam ainda
sete saias: cada uma concentrará por acaso em si o fôlego de sete
7faces • 125
mulheres” (p. 1387). Parecem tristes viúvas, que por baixo do xale
preto, vestem o deslumbrante traje das sete saias coloridas.
No texto de “Setor 1”, Mendes elabora uma noção do Brasil
como a maior invenção de Portugal. O primeiro momento em que
expressa essa ideia é quando fala sobre o Pinhal de Leiria, que teria
sido plantado por Dom Dinis, e segundo Mendes, lá é a “origem das
futuras naves portuguesas; portanto nós brasileiros descendemos
deste pinhal” (p. 1377). Em outro momento, ele relaciona que as
casas caiadas de fresco de Viana do Castelo teriam gerado outras
em Mariana, São João del-Rei e Ouro Preto, e de lá “haviam
partido, manejando o caos, inaugurando-se, muitos homens ávidos
de conhecer a nova terra de braços alegorizáveis” (p. 1381). Assim
como as ladeiras de Lisboa são, para o poeta, a principal motivação
dos portugueses terem se lançado ao mar: “Contestando Camões,
Jaime Cortesão e Vitorino Magalhães Godinho sobre os
descobrimentos, penso que os antigos portugueses fizeram-se ao
mar [...] não para dilatar a fé e o império, antes para fugir as
terríveis ladeiras lisboetas; a elas devemos, em última análise, a
invenção do Brasil” (p. 1409). Mendes vê Portugal e a Europa com
respeito, devotando-se em homenagens pela ‘criação’ do Brasil,
todo seu legado cultural.
Uma constante percorre o texto repleto de memórias do poeta,
de suas lembranças, estimuladas ao passear por Portugal, sentir os
cheiros e sabores lusitanos, ver as pessoas, os monumentos. Os
flashs autobiográficos são desencadeados pelas paisagens,
sabores, odores. Um doce, as janelas, os monumentos e as
construções históricas produzem em Mendes o mesmo efeito que
a madeleine embebida no chá produziu em Proust: o rememorar e
a ativação de uma memória involuntária. Num arremedo ao
mecanismo involuntário, neste fazer poético, o poeta se desdobra
em criar as pontes entre suas lembranças e os diversos
mecanismos que a desencadeariam, como sobre a palavra
“castelo”, quando o poeta inspira-se no momento nacional do
Castelo de Leiria:
7faces • 126
castelo quase um personagem, atraindo-me mais que
uma outra, paralela, palácio; embora num soneto
famoso se erga, não etereamente, mas
anterianamente o “palácio encantado da Ventura”,
verso aliás dos maiores. Muitas vezes, viajando num
trem espandongado, aos solavancos, entre Madri e
Lisboa, Saudade e eu víamos de repente despontar dos
restos da noite meio espanhola meio portuguesa a
pessoa do castelo de Almourol: concretizando-se uma
miragem de infância, à qual eu de certa maneira
regressava. O castelo era também para mim, que não
tive Idade Média, uma figuração dessa época
fascinante pela sua cultura, seus mitos e sua
cenografia, resumida que foi numa fórmula sintética: le
Moyen âge, énorme et délicat. (MENDES, 1994, p.
1376).
7faces • 127
O texto muriliano coloca o leitor a par de que as memórias
voluntárias e involuntárias repercutem nesta e em outras obras
como em Idade do serrote (1966) e Poliedro (1972). Assim, também
como outro tipo de memória, a intelectual, aproximada à
voluntária, é uma característica de sua poética. A obra de Mendes
é ornada por sua vasta erudição. A consulta ao índice remissivo
citado por Beckett, neste caso, é como o hiperlink de uma
enciclopédia virtual. Pode-se afirmar que seria uma memória
enciclopédica, não como teorizou Maria Ester Maciel sobre o
enciclopedismo onde existe a tentativa de inventariar o mundo, de
se colocar tudo dentro do texto, mas em outro sentido, de um
passeio pelo seu intelecto onde um conceito puxa outro, ou um
assunto lembra um autor, que lembra um poema, e assim, em
Mendes, tudo estaria entrelaçado por uma corrente sentimental.
Segundo Júlio Castañon Guimarães em Territórios / conjunções,
sobre o trabalho de citação de Mendes, o que o escritor pretendia
fazer era “construir um discurso próprio”, ao utilizar-se de diversos
excertos das mais variadas obras literárias, críticas e até mesmo
pictóricas e musicais, como as comparações com a obra
mozarteana (GUIMARÃES, 1993, p. 204). Dessa forma, o poeta
elabora a sua tessitura costurando os mais variados trechos de
diversas origens, citações e fontes com sua prosa e poética para
criar o seu discurso e seu estilo. Assim como o título de um dos
setores de Poliedro, Mendes perfaz o caminho da “palavra
circular”, no qual, por intermédio do jogo de uma palavra /
conceito puxando outro, ele novamente chega no início, como um
uroboro textual.
Em Leiria, o castelo é um dos seus maiores atrativos turísticos.
Ao visitar a cidade, Mendes inevitavelmente foi vê-lo, o que
desencadeou sua memória intelectual. Assim, ao lembrar de sua
passagem pela cidade, o castelo o liga à poesia simbolista e a um
trecho de um poema de Antero de Quental. Continuando o seu
rememorar, lembra-se de outro castelo, o de Almourol que o
remete a infância e “...para mim, que não tive Idade Média...”
(1994, p. 1376), afirmando que foi uma era praticamente
inexistente no imaginário brasileiro, lembrando a outro soneto,
agora de Verlaine, no trecho “le Moyen âge, énorme et délicat” (p.
1378).
Além de todas essas manifestações da memória, Janelas verdes
deve ser confrontado com as ideias de biografia e autobiografia.
Isso porque parte das memórias registradas nele tem relação com
7faces • 128
dados biográficos do próprio Murilo Mendes. Segundo Lejeune
(2008), autobiografia seria uma “narrativa retrospectiva em prosa
que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza
especialmente sua história individual, em particular a história de
sua personalidade” (p. 49). Tanto o texto de Mendes não é
necessariamente uma prosa, quanto também não faz exatamente
uma retrospectiva de si nem da história de sua personalidade, mas
há traços dessas características e de seus dados biográficos.
Lejeune (2008) propõe um pacto autobiográfico como na
“afirmação, no texto, dessa identidade [nome do autor-narrador-
personagem], remetendo, em última instância, ao nome do autor,
escrito na capa do livro” (p. 49). Em Janelas verdes, essa regra não
se realiza completamente, entretanto, há outras características
que poderiam confirmá-lo. Encontram-se, por exemplo, nas frases:
“...Saudade e eu víamos de repente despontar [...] a pessoa do
castelo de Almoural...”, “Saudade, o poeta Alberto de Lacerda e eu
azulejamos até a fadiga”, e também “minha amiga Luciana
Stegagno Picchio levou-me à casa de Torga em Coimbra.” Nesses
exemplos, o narrador entra no texto pelo pronome da primeira
pessoa eu, e refere-se à Maria da Saudade Cortesão Mendes,
esposa de Murilo Mendes, pela forma que o poeta a chamava na
intimidade por ‘Saudade’. São registros que, mesmo
fragmentários, buscam a imagem do homem Murilo Mendes, sua
biografia, suas relações pessoais e se encaixam no texto,
sutilmente, elaborando-se uma marca autobiopoética, uma
espécie de autoficção, pois mesmo o texto em si não tem
compromisso qualquer com cronologias ou a própria realidade,
tendo por muito espaço a imaginação e a criação literária,
Em “Miguel Torga”, no “Setor II”, há uma outra referência a
autobiografia quando o narrador cita o trecho de sua despedida de
Torga: “Ó Murilo Mendes, toda vez que estiver em Portugal
telefone-me, venha almoçar ou jantar aqui em casa, ó Murilo
Mendes, não façam cerimônia, venham, por favor. Gostarei
imenso” (MENDES, 1994, p. 1437). Em passagens como essa, o
poeta se inscreve ou recria referências sobre sua pessoa, numa
tentativa de uma revelação de si, uma exposição de parte de um
eu fragmentário, de pequenos cacos de sua memória. Nesses cacos
biográficos, o poeta se reinsere no seu texto, e transforma sua
poesia num tipo de autoficção, vertendo esse estilo tipicamente
em prosa numa prosa-poesia repleta de fragmentos da história, da
personalidade, da imaginação do escritor.
7faces • 129
Nesse tipo de escrita biográfica, a revelação de si dá-se de
maneira muito próxima ao que Foucault (1992) explicou como são
os hypomnemata. Em seu texto, a “A escrita de si”, o filósofo divide
a etopoiética ― escrita de exercício do ethos, do eu ― em dois
tipos: hypomnemata e epistolar. A segunda é tal qual se tem ainda
hoje, um texto destinado a outrem. “A escrita que ajuda o
destinatário, arma o escritor ― e, eventualmente, os terceiros que
a leiam.” (FOUCAULT, 1992, p. 148). Por sua vez, os hypomnemata
teriam por destino o próprio autor, “constituem uma memória
material das coisas lidas, ouvidas, ou pensadas: ofereciam-nas
assim, qual tesouro acumulado, à releitura e à meditação ulterior.”
(p. 135). Esses textos têm como objetivo fazer da junção do logos
fragmentário e transmitido pelo ensino, audição e leitura, um meio
para o estabelecimento de uma relação de si consigo tão adequada
e completa quanto possível dos fragmentos de um eu (p. 138).
Uma multiplicidade de temas e de fragmentos ainda maior é
apresentada na segunda parte do livro, no “Setor 2”, das
personalidades. Nessa parte, o poeta enquadra os seus
sentimentos, homenagens e lembranças em textos sobre artistas,
intelectuais ou escritores que, de alguma forma, são seus credores
afetivos ou culturais. Em diversos momentos, Mendes expõe
situações em que se confrontou com tais pessoas, ou mesmo como
se deu o seu contato e sua relação com esses portugueses. Ele
rotula os seus homenageados com adjetivos criados ou
reinventados, estabelecendo uma aura de sua convivência e
intimidade.
No verbete “Nuno Gonçalves”, abre-se uma discussão sobre a
controversa identidade desse artista (MENDES, 1994, p. 1417-
1418). Pouco se sabe sobre esse pintor: nada menos que um
registro num livro de assentamentos da corte de Afonso V, mas
essa falta de informações seria compensada, segundo Mendes,
pela monumentalidade de sua obra máxima, os Painéis de São
Vicente de Fora.1 Essa famosa obra de arte portuguesa, o políptico
é considerado uma das mais importantes pinturas da Europa
quatrocentista. A impressionante pintura poderia ser resumida,
segundo o poeta, por “O cristão, o mouro, o judeu” ou por “O
príncipe, o prelado, o pescador.” O verbete, embora intitulado pelo
nome do artista Nuno Gonçalves é, na verdade, uma análise do seu
estilo e do políptico, com minuciosa descrição de algumas partes e
ricas comparações. O mesmo fenômeno dessa subversão da ordem
de criador e criatura se repete nos verbetes que se seguem,
7faces • 130
encapsulados na subdivisão “A” deste “Setor 2”: nos demais
verbetes, os textos desses intelectuais são a materialização de suas
personalidades. É com este espectro da personalidade por meio de
suas criações que o poeta se relaciona, principalmente as
anedotas, as histórias, reais ou fictícias sobre estas personas.
Mendes retoma, elabora e recria lendas acerca de seus
homenageados, divertindo-se com elas. Segundo ele, Anchieta
teria se “macunaimizado” pela sua longa experiência com os índios,
tornando-se mais brasileiro, mas oposto ao “herói sem nenhum
caráter”, “este homem é desdobrado em mil, este grande abaré
vira constelação.” O poeta afirma que o padre foi um “espantalho
do meu fim-de-infância, espanto de minha idade madura.” (p.
1421) Também Gil Vicente é julgado e classificado, caindo no gosto
do poeta por ser moderno para o seu tempo, uma variedade de
qualidades em apenas um homem: “...ibérico, popularesco,
refinado; individualista e comunitário, palaciano e plebeu,
intérprete do fidalgo e do fideputa; [...] versado nas ciências
diabólicas e divinas.” (p. 1320)
Dessas lendas da cultura portuguesa, entre tantas histórias e
mitos, nenhuma é tão instigante quanto a de “Mariana
Alcoforado”. Aqui, Mendes cede à curiosidade e ao clichê
questionando sua existência ou não, e ressalta a importância das
cartas, que, segundo ele, seriam responsáveis, ao lado d’Os
Lusíadas, dos vinhos do Porto e Madeira, pela descoberta de
Portugal pelos europeus. As cartas seriam a “anatomia do amor
português, levando à saturação”, mas sem o sentimentalismo ou
os diminutivos, que, para ele, são os “excessos de meiguice.”
(MENDES, 1994, p. 1422).
Janelas verdes é uma obra da maturidade intelectual de
Mendes, numa época que o poeta se reinventava biograficamente
em seus textos, buscando em flashes de singelas memórias,
recortes para enquadrar sua lírica. Os textos sobre Bocage e Eça de
Queirós são iniciados por “na minha adolescência” (p. 1423 e p.
1428). Ele atribui a Bocage características de secreto, anarquista,
erótico, satírico, pornográfico, próprias para um ídolo de um
adolescente nada afeito às regras dos vários colégios e internatos
por onde passou: “A Bocage repugna qualquer disciplina: um
modelo”, afirma. A figura de Bocage foi para o autor: “o vivo
monumento andante da minha adolescência juiz-forana.”,
afirmando assim, a sua devoção juvenil ao poeta arcadista lusitano.
(p. 1424-1425).
7faces • 131
Eça de Queirós teria sido outro ídolo adolescente de Mendes e
que afirma tê-lo conhecido na mesma época em que se iniciou
literariamente: “Eça de Queirós ― com Cesário Verde, descoberto
no mesmo período ― acha-se nas raízes da minha formação
literária” (p. 1428). O estilo inconformista do português diante da
sociedade são os atributos que o atraem e que formaram “o
próximo futuro franco-atirador Murilo Mendes” (p. 1428). Além
disso, Mendes discorre sobre as impressões que as fotografias de
Eça causam, que transmitem um “todo, carregado de eletricidade”.
O autor se refere com muita reverência a seu tributário, mesmo ao
criticá-lo após releituras de sua obra na idade adulta.
Na segunda parte, também há o resgate de lembranças da vida
adulta do poeta. Mendes abre o seu arquivo e expõem suas fichas
com anotações de acontecimentos pontuais. Sua família
portuguesa, muito mais por afinidade e sentimentos do que
apenas pelo casamento, é constantemente citada, como em
“Coimbra” onde fala da avó materna de sua esposa, Madalena (p.
1372). O poeta enaltece suas características, para ele essa
“portuguesa de rija cepa, representava essa antiga cultura da
terra” foi uma das três personalidades mais fortes encontradas na
sua primeira visita a Portugal (p. 1373).
Jaime Cortesão é outro personagem de suas memórias
lusitanas. Em vários trechos do livro, tanto no “Setor 1” quanto no
“Setor 2”, o autor recorre ao saudoso amigo e sogro, como em
“Coimbra” onde se apropria de um recordo não seu, mas uma
espécie de memória familiar: sob os choupos que margeiam o
Mondego, Cortesão noivou-se com dona Carolina: “sem esses
choupos talvez Saudade não existisse.” (MENDES, 1994, p. 1373).
Recordações do sogro são muitas e repletas de detalhes e
momentos especiais, pois em parte das viagens que Mendes fez
por Portugal tinha Cortesão como companheiro e guia, como em
Leiria, cidade natal de Eça de Queirós, na qual sua presença foi tão
marcante que o poeta associa essa cidade a ele (p. 1378).
O texto que homenageia Jaime Cortesão é um dos maiores e dos
mais ricos em detalhes e lembranças (p. 1431-1435). Nele, o poeta
faz uma retrospectiva desde o dia em que conheceu a família
Cortesão, em 1940, no Rio de Janeiro, até o momento da morte do
sogro. Há um deslocamento da autobiografia na qual a obra vem
sendo desenvolvida para o autor ocupar o papel de um biógrafo.
Na introdução, Mendes fala sobre quando o conheceu,
destacando-o em uma posição especial no seu panteão afetivo. Em
7faces • 132
seguida, fala sobre a imagem de homem erudito, historiador, e,
sobretudo, homem simples e sua relação com ele. Então,
inesperadamente, o autor inicia um discurso biográfico sobre o
sogro, falando sobre sua cultura, conhecimentos e história de vida.
Seu exílio é justificado porque “sempre vivera sob o signo da
liberdade” e o tempo que viveu no Brasil foi de seu particular
interesse por ser “o Brasil a maior invenção de Portugal.” (p. 1432).
No exílio, não parou de produzir culturalmente, o que lhe facilitou
a entrada para grupos de artistas e intelectuais, em São Paulo e no
Rio, ao qual o poeta já fazia parte.
O poeta afirma: “Tive o privilégio de realizar em sua companhia
algumas excursões no interior do Brasil, e muitas outras em
Portugal” (p. 1433). Cortesão, além da relação familiar,
compartilhava alguns interesses com o poeta: gostava de viagens e
amava as artes, como afirma: “era entendido em artes plásticas, o
que aumentava o prazer da sua convivência” (p. 1434). Isso fez dele
um excelente e indispensável guia. Era também etnólogo amador,
procurando por onde passava se informar sobre tudo. Mendes se
esmera na descrição da agonia e morte do sogro, quando volta
para o papel autobiográfico, concluindo que sua perda para nação
portuguesa seria como o desabamento do Mosteiro da Batalha (p.
1435).
Após desfilar outros nomes de personalidades, o texto é
concluído pelo verbete sobre Fernando Pessoa. Não por acaso, o
autor termina o “Setor 1” com Lisboa, e o “Setor 2” com Pessoa, o
“guarda-livros lisbonês.” Num dos textos mais poéticos, o processo
de memória é acionado por lugares e paisagens de Lisboa, que
despertam em Mendes lembranças dos textos de Pessoa e o
personagem real que foi esse poeta. O autor explica esse processo
no primeiro trecho:
7faces • 133
confissão de Álvaro de Campos a Mário de Sá-Carneiro, e
assemelha-se muito com vários trechos da obra, nos quais Mendes
confessa a seus amigos, trechos de uma autobiografia, ora real, ora
ficcional.
Mendes já havia anteriormente “conversado” com Pessoa no
poema “Murilograma a Fernando Pessoa”, de Convergências.
Neste murilograma, o autor analisa o criador português
literariamente e como um personagem, transformando-o num ser
etéreo adjetivando-o de “guarda-livros do Nada”, de “sebastianista
duma outrora gesta” e de “anúmero.” (p. 681-682). O poeta
brasileiro tenta resumir no poema toda a obra do português. Na
última estrofe, Mendes se coloca no poema de forma opositiva às
características de Pessoa: ele não é afeito ao Nada, e se vê às voltas
com o gerúndio, próprio dos brasileiros, considerando-se
contrários, “contrapassantes.”
Aparentemente opostos, eles se atraem. Mendes se vê
apaixonado e emocionado por Portugal, Lisboa e Pessoa. Em O livro
do desassossego, Pessoa (1986) clama por uma vida simples, com
no mínimo o que “dê para comer e beber, e onde habite, e o pouco
espaço livre no tempo para sonhar, escrever ― dormir” (p. 62).
Mendes, também afeito a esse ideal de vida simples, analisa: “Pois
haverá coisa mais bela do que o espaço livre? Só mesmo o homem
livre no espaço livre.” Assim, é o homem livre de Murilo Mendes:
no espaço livre aberto pelas Janelas Verdes, dos campos
portugueses, outro mar de memórias.
Notas
Referências
7faces • 134
FERRAZ, Eucanaã. Em Portugal, com Murilo Mendes. Posfácio a Janelas
Verdes, de Murilo Mendes. Portugal: Quase Edições, 2003.
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. O que é um autor? Trad. Antônio
Fernando Cascais, Eduardo Cordeiro. Lisboa: Vega, 1992.
GUIMARÃES, Júlio César Castañon. Territórios/conjunções: poesia e
prosa críticas de Murilo Mendes. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico – de Rousseau à Internet.
Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha; Maria Inês Coimbra Guedes. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2008.
MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas: ensaios de literatura,
cinema e artes plásticas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Mendes, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1994.
7faces • 135
7faces • 136
MARILYN, A GIRAFA E
AS MIL SALAS
por Patrícia Aparecida Antonio
7faces • 137
primeiro Murilo é ponto fundamental para uma leitura do Poliedro
em suas relações com o cinema.
Do catolicismo, que é certamente uma das grandes marcas
dessa poética, podemos dizer que se encontra estreitamente
ligado às concepções sociais e políticas do autor. Segundo os
preceitos católicos, vivemos um presente negativo à espera de um
futuro (a eternidade) que nos redimiria frente aos pecados de
então, daí as imagens catastróficas e apocalípticas sempre
presentes. Por isso mesmo, a poesia deve, como centro de
relações, transfigurar esse mundo negativo e a ele rivalizar. A
substância católica passa necessariamente pelo Essencialismo de
Ismael Nery, cuja filosofia, salvo raríssimas exceções, é
sistematizada na poesia e em alguns escritos de Murilo. Segundo
ela, portanto, “a essência do homem e das coisas só poderia ser
alcançada mediante a abstração dos conceitos de tempo e espaço,
pois a fixação de determinado momento, [...] privaria a vida de um
dos seus atributos: o movimento.” (LUCAS, 2001, p. 26-27).
7faces • 138
religiosidade já não são os mesmos: se aquele é quase cínico, a
religião tende ao paganismo.
Nossa leitura comparada entre essa poesia em prosa muriliana
e o cinema se inicia com a leitura de “Marilyn”, incluído no “Setor
A Palavra Circular”:
MARILYN
•
Madame se meurt. Madame est morte. Bossuet.
(MENDES, 1994, p. 1024).
7faces • 139
entanto, que eles passam ao largo da continuidade e investem num
movimento mais marcado que fixa as partes. A atriz “desdobra-se
em mil cópias” à medida que é reproduzida em cada cinema e a
cada olhar. Uma a uma, suas faces vão surgindo separadas pela
própria construção do texto. Fica claro, então, não o
desaparecimento completo da atitude essencialista, mas uma
adaptação de seu uso. É como se tivéssemos Marylin entrevista por
um Buñuel e não por Ismael Nery. É a poesia se embrenhando com
outras tantas formas de arte.
A transitoriedade de Norma Jeanne, a personagem Marilyn, é
reafirmada tanto pelo écran quanto pela morte, e nesse sentido
avulta uma oposição de base que se dá entre a efemeridade da vida
e da projeção e a eternidade da morte e da projeção. Assim
colocado, a atriz incessantemente é e não é, existe e não existe,
para os olhos daqueles que a veem reproduzida aos milhares em
cada sala de cinema. Temos um objeto fixado, mas ao mesmo
tempo fugidio. Ressoa uma leve pontada crítica em relação ao
cinema: aquela que dá conta do sensacionalismo, do mau uso que
se faz da técnica cinematográfica, dos aspecto de reprodutibilidade
e consequente perda da aura, para falar com Benjamim (1994) em
seu “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Esse
pensamento, Murilo Mendes (1994, p. 850) expressa num aforismo
de O discípulo de Emaús:
7faces • 140
é bem visível na trajetória de sua obra e pelos momentos decisivos
em que floresceu, um certo espírito de época que direcionará a
obra muriliana. Poemas é lançado no mesmo ano de 1930 que
L’Age d’or de Buñuel e Le rang d’un poète de Cocteau, isso para
que fiquemos com só dois exemplos. E aqui, novamente,
retomamos o Murilo entrevistado: “Por exemplo, traço um gráfico
muito longo, ligando o nosso Modernismo de 1922 com o grande
Modernismo europeu incluindo a literatura ― que não pode ser
considerada uma atividade isolada do cinema, das artes plásticas,
da arquitetura, etc.”
Na primeira edição do Poliedro, publicada pela José Olympio em
1972, consta a bela, ficcional e teatral “Microdefinição do autor”
logo na abertura do volume (e que, veja-se, foi transposta para o
início da Poesia completa e prosa publicada em 1994 pela Nova
Aguilar). “Marilyn” é só um dos exemplos de como a poética final
de Murilo Mendes dialogou, muito modernamente, com os mitos
do contemporâneo e com o cinema da época, o que fica claro pela
menção nessa “Microdefinição” às figuras norteadoras de
“Chaplin, Buster Keaton, Eisenstein”2. Pode-se observar, por esses
nomes, a força que tem para Murilo o cinema mudo. Em outras
palavras: a força que tem a imagem e o modus operandi específico
e inovador do cinema. Nessa senda, podemos pensar no contato
intenso que o autor trava, num primeiro momento, com as técnicas
surrealistas de colagem e montagem. Estas tomam elementos
banais e cotidianos e os transformam em conhecidos e
surpreendentes. Temos em causa, como sempre, as disparidades e
o seu encontro, “meio este, por sua vez, que implica a ‘violência do
corte do poema’ ou, ainda, segundo as palavras de Murilo Mendes,
a supressão das partes intermediárias.” (MOURA, 1995, p. 31).
Quando se trata da prática surrealista da montagem
cinematográfica, pode-se dizer que ela parte de três pontos: (1)
atitude combinatória; (2) aparição do novo; (3) arte criadora. A via
que este tipo de montagem toma é a da descontinuidade e a da
supressão das partes intermediárias. Esta última, especialmente,
permite aproximar, ainda que sensivelmente, montagem
surrealista e continuidade essencialista. Tanto é que os
mecanismos que vemos empreendidos nos poemas do Poliedro
nos permitem recorrer a Eisenstein (1994, p. 158-159), em seu “O
princípio cinematográfico e o ideograma”, quando ele se
questiona: “O que, então, caracteriza a montagem e,
consequentemente, a sua célula ― a tomada (o plano)? A colisão.
7faces • 141
O conflito entre dois pedaços, um em oposição ao outro.” E
continua: “da colisão de dois fatores determinados, surge um
conceito. [...] Portanto, montagem é conflito.” É desse conceito,
verdadeira criação, que se compõem os poemas em prosa do
Poliedro. A atitude muriliana é marcadamente cinematográfica. Em
“A poesia e o nosso tempo”, artigo publicado em 1959, no
Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, Murilo Mendes (1968,
p. 178-179) é claro: “Procedi muitas vezes como um cineasta,
colocando a ‘câmara’ ora em primeiro, ora em segundo ou terceiro
plano: planos estes representados pelo encontro ou pelo
isolamento de palavras, pela sua valorização ou afastamento no
espaço do poema.”
A GIRAFA
A Yolanda Jordão
7faces • 142
Afasto-me discretamente com o hóspede: o
cineminha é privativo da girafa.
•
A girafa pertence em parte ao reino do camelo e ao
do pardal, já que seu nome científico é giraffa
cameleopardis. Informam-me que este nome vem do
árabe zarafah.
Nos dicionários a girafa é vizinha de palavras
sedutoras; por exemplo girafalte, com seus sinônimos
girafalto e gerifalto. Há mesmo um “gerifalte letrado”.
Eu perdera de vista tal palavra. Descobrira-a em
outros tempos num soneto de Heredia traduzido por
Raimundo Corrêa que adota a grafia gerifalto. Como
todos sabem trata-se duma espécie de falcão.
Mas há outras palavras aliciadoras vizinhas da girafa:
gir, girador, girame, girândola, além do inevitável
girassol. Serão todas belas, atraentes, não o nego.
Prefiro-lhes entretanto a girafa, volto à mesma.
•
A girafa é douce, macia, delicada, atenciosa. Muito
elegante, veste-se com apuro, tendo atraído uma vez a
inveja de Christian Dior que a desejou para manequim.
Caminha com passos de aranha, congeminando coisas;
responde sempre “sim” às nossas perguntas, mesmo as
absurdas.
A girafa, repito, é douce – não gosto da palavra doce,
por isso apelo para o francês, a inserção da vogal u no
texto da girafa provocando uma sensação de escuro
ligada ao cineminha.
Poderia também apelar ao italiano, definindo a girafa
dolce, vocábulo talvez mais indicado pois evocaria a
dolce vita da girafa, inimiga declarada do trabalho, do
pagamento de impostos, de qualquer forma de guerra
(há tantas!). Com a vantagem de também aludir ao
cineminha e ao cineasta Fellini pertencente ao
reduzido número de homens que viram a girafa.
Porque, como é notório pelo menos em Portugal e no
Brasil, a girafa não existe. Somente os visionários-
realistas (ou os realistas-visionários) conseguem vê-la.
De resto, mesmo estes depois de cumprida a visita
7faces • 143
regularmente regressam à casa convencidos de que a
girafa não existe.
•
Por minha parte acredito firmemente na existência da
girafa. Mesmo porque, egresso da montanha, costumo
passar longas horas no alto dela. Agarro-me ao seu
pescoço, com medo da Bomba.
Vou-me consolando das asperezas da existência no
quadro da civilização técnico-industrial, que leva o
homem ao cosmo mas não cura um resfriado; o puro
clima de montanha da girafa protege-me os brônquios.
Do alto da girafa convocarei os povos para a realização
do congresso universal da paz, sob a presidência de
honra justamente da girafa, que além de pacífica,
douce e civilizada, não gosta de fazer discursos.
(MENDES, 1994, p. 984-985, grifos do autor).
7faces • 144
outras “palavras aliciadoras vizinhas”. Ora, ainda que todas essas
palavras sejam belas e atraentes, é à beleza concreta da girafa que
ganha a preferência do eu-lírico.
Todavia, o que nos interessa de fato é, além da referência aos
filmes a que a girafa assiste, a maneira como o eu-lírico associa a
doçura do animal à película La dolce vita, de 1960.
Resumidamente, a história que nos conta o diretor italiano
Federico Fellini é a de Marcello Rubini, belamente interpretado por
Marcello Mastroiani. O personagem é um jornalista que, à moda
dantesca, percorre os círculos da corrupção social e da
manipulação da igreja. Não sem razão, essa crítica religiosa serve
muito bem ao catolicismo questionador de Murilo Mendes, porque
vai desvendando uma série de pecados aos quais está sujeito o
fleumático personagem de Mastroianni. Sinal claro dessa crítica é
a cena do milagre de Nossa Senhora, pondo em carne viva a
midiatização, a manipulação e os excessos que cercam a religião. O
diálogo com a obra do italiano não esbarra somente no humor que
pode nos evocar e que, de resto, é muito próximo daquele dos
comediantes que cita. Muito pelo contrário: torna-se amplo num
sentido crítico ao colocar a girafa, “douce, macia, delicada,
atenciosa”, tão elegantemente trajada (de modos e de estilo)
quanto aquela geração de bons-vivants romanos da década de
1950 que o filme retrata. Para além disso, comunga com a
indolência e a doce vida do repórter interpretado por Marcello
Mastroianni e que no poema aparecem sob a fleuma da girafa.
Muitos são os pontos de contato para que a girafa muriliana não
visse Fellini, a começar pelo excesso, pelo caráter barroquizante
das imagens. É o caso, por exemplo, da imagem do Cristo carregada
de helicóptero pelos céus de Roma, cujos cortes cinematográficos
se alternam entre o sagrado da estátua e o profano encabeçado
por belas moças de biquíni que acenam ao personagem principal.
Além disso, os planos explorados por Fellini (em que vemos o
Vaticano, a Praça de São Marcos e o prédio sede da Igreja Católica)
mostram exatamente a Roma dos anos de 1950 que, para Murilo
Mendes, era tão conflituosa em termos de mudanças
arquitetônicas quanto religiosas. Além disso, citem-se as cenas em
que a estrela de cinema fictícia sobe a escadaria de uma famosa
Catedral, enquanto faz referência à Marilyn Monroe,
transformando a religiosidade do prédio em mais um pretexto para
se expor a fotógrafos e repórteres. E, é claro, o próprio Rubini,
7faces • 145
sempre confrontado com o absurdo do real e de suas imagens,
daquilo que existe e não existe.
No entanto, de todas essas afinidades expressas claramente na
poesia do Poliedro, é certamente a imagem da própria girafa unida
à beleza de Sylvia, personagem de Anita Eckberg, que dá a
tonalidade do diálogo de Murilo Mendes com o cinema e com este
filme em particular. Pois que a girafa é o símbolo da beleza, de um
tipo estranho, incomum, só perceptível pelos “visionários-
realistas”. É, enfim, tal beleza que se constrói pelas mãos de
cineastas e poetas que vemos celebrada por Fellini na passagem da
Fontana di Trevi e por Murilo quando coloca sua girafa numa sala
de projeções com filmes de cineastas clássicos, vista também pelos
leitores levados pelas mãos do eu-lírico. Sylvia conduz Marcello
pelas vielas de Roma, na referida passagem, a uma espécie de
revelação e de batismo, sob as vestes de uma sensualidade
extraordinária, bem como os expectadores pelas lentes do cineasta
também são conduzidos. E o questionamento que temos no poema
e no filme parece ser o mesmo, plasmado pela pergunta de
Marcello à Sylvia: “Quem é você?” Para os dois, vale o que disse
Fellini sobre esse filme, numa entrevista a Alberto Moravia em
1965:
7faces • 146
homens “visionários-realistas” de que nos fala o poema são, nesse
sentido, aqueles que nos dão a ver a beleza, a da girafa (a poesia)
que estica seu já longo pescoço, fazendo com que seja nosso o seu
cineminha; e a da mulher imersa em água, fértil e única, estranha
e sensual. Cineasta e poeta, portanto, estão inclusos entre aqueles
que viram e nos fizeram ver a girafa. Trata-se de uma beleza que se
quer livre, que comunga com o inesperado, que se encontra nos
mitos, nos primórdios da criação, cristã e pagã a um só tempo.
Nesse abandono da existência em que nos encontramos, o clima
que a arte dá é o que nos consola e impele àquela busca que
aparentemente não termina.
Notas
7faces • 147
convicto de que acima das igrejas, dos partidos, das fronteiras,
todos os homens conscientes, em particular os escritores, devem
unir-se contra a guerra, a massificação e a bomba atômica. Roma,
14-2-1970.” (MENDES, 1994, p. 47).
Referências
7faces • 148
7faces • 149
HARPA DE OBUSES: O
FASCISMO NA MIRA DA POESIA
MURILIANA
por Gustavo Henrique de Souza Leão
E um pensamento de guerra
Anula o que poderia vir
Da água, da rosa, da borboleta.
Murilo Mendes
Diante do crucifixo
Eu paro pálido tremendo:
“Já que és o verdadeiro filho de Deus
Desprega a humanidade desta cruz”.
(MENDES, 1994, p. 424)
7faces • 150
Sendo um autor contemporâneo ao século XX como foi, Murilo
Mendes, que nasce em 1901 e morre em 1975, deixou-se embalar
pelo ritmo de seu tempo histórico, mesmo compondo melodias
poéticas dissonantes, sempre em busca de uma dicção própria e
sem perder de vista o seu chão histórico-social.
Desse modo, o presente trabalho, para além de buscar discutir
os impulsos antiautoritários e os aspectos históricos em termos
temáticos e formais na obra poética de Murilo Mendes, pretende
também entender essas características à luz da ascensão, no século
XXI, de uma nova extrema direita, que ganha roupagens diferentes
daquelas adotadas pelos nazistas e fascistas tradicionais mas que,
sobretudo, conserva semelhanças ideológicas (e de ação) com eles.
A pergunta a ser feita então é: o que tem a dizer, e de que maneira
diz, a poesia de Murilo Mendes frente à nova escalada autoritária
no mundo, tão condenada pelo poeta no século anterior?
Para tentar responder a esse questionamento, vamos recorrer,
sobretudo, a Leandro Konder (2009) e Umberto Eco (2002), cujas
observações sobre o fascismo serão utilizadas aqui somente
enquanto elementos que estabelecem relações de interlocução
com a poesia muriliana. No entanto, por motivos de síntese,
daremos prioridade aos apontamentos de Konder, que são mais
condensados, fazendo uso do texto de Umberto Eco conforme os
diálogos que este estabelece com o do filósofo brasileiro. Não se
trata, portanto, de uma tentativa vã de esmiuçar todos os aspectos
do lamentável fenômeno do fascismo, nem tampouco de abarcar
toda a referência, direta ou indireta, ao fascismo ou algo que o
valha na poesia de Murilo Mendes, mas somente de verificar, nos
versos do autor, representações de uma visão crítica de um
fenômeno social que, assumindo configurações destrutivas em seu
surgimento em meados do século XX, ainda estende seus
tentáculos sobre o século XXI.
Para que possamos desenvolver uma linha argumentativa mais
sólida e centrada, optamos por enfocar uma só obra de Murilo
Mendes, que é Poesia liberdade, por conta de sua proposta e do
contexto em que foi escrita. Este livro publicado em 1947 e escrito
entre os anos de 1943 e 1945, é dedicado “aos poetas moços do
mundo” e integra o conjunto de obras que deixam mais evidente o
peso que a guerra e a ascensão do fascismo e do nazismo tiveram
na produção poética de Murilo Mendes. A necessidade de
renovação presente na dedicatória está atrelada ao impulso
7faces • 151
estético que move a lírica do livro, que se caracteriza pela busca de
uma linguagem que dê conta dos horrores históricos que
permeiam o século XX: duas grandes guerras mundiais e os
movimentos de extrema direita.
Dotando sua poesia de uma religiosidade idiossincrática aliada
a um surrealismo à brasileira, Murilo Mendes encontra um meio de
representar em seus versos a negação da razão belicista e
autocrática ao mesmo tempo em que apresenta o texto poético
como um espaço em que se opera uma espécie de estetização da
existência, procedimento que Evandro Nascimento identifica com
as vanguardas europeias do século XX. “Sabemos hoje o quanto as
vanguardas tiveram de espírito redencionista, pois tratava-se de
salvar a Humanidade. Desta vez, não por meio da razão
materialista de Marx, nem pela intuição religiosa [...] mas por uma
estetização da existência (NASCIMENTO, 2004, p. 68, o grifo é
nosso).
Nosso estudo, porém, alcança um caminho diferente, apesar de
similar: Murilo Mendes se utiliza dessa estetização da existência
sim, mas sem renunciar a determinada intuição religiosa e de certo
materialismo que aparecem numa relação de intersecção para dar
origem a uma nova maneira de perceber a realidade. Vejamos
“Poema antecipado”:
Harpa de obuses,
Sempre um espírito guardião sobra
Para desenvolver o germe augusto
Que foi criado no princípio
Para não explodir de febre
E dançar no fogo azul.
7faces • 152
armamento bélico pesado, são agrupados para dar corpo a uma
harpa, que, pode-se dizer, representa aqui a poesia ou, até mesmo,
a própria arte. Assim, a guerra ― que integra a base histórico-social
sobre a qual se constrói o poema ― não é desertada pelo eu-lírico,
que intervêm no caos de modo a salvaguardar o surgimento do
novo em meio aos escombros, para que o “que foi criado no
princípio” não exploda “de febre”.
Na segunda estrofe, a superação da noção comum de tempo e
de espaço, com terra e céu como “jardins suspensos” e o eu-lírico
tendo visto tudo antes mesmo de nascer, anuncia o advento de
uma nova lógica que não obedece às mesmas regras que levaram
nações a guerrearem entre si. A harpa de obuses, então, não é
somente uma arma de destruição, mas sobretudo de criação. O
poeta brande sua harpa para dar corpo a esse mundo destroçado,
dando uma nova feição a uma realidade desfigurada, e a
religiosidade se faz presente enquanto um recurso poético que
compõe um cenário apocalíptico, que é também criador, e que
atribui uma função messiânica à própria poesia.
Umberto Eco, ao descrever o fascismo, que ainda estava em
voga na Itália e na Alemanha à época da escrita de Poesia liberdade,
atribui uma feição universal com o objetivo de facilitar sua
identificação fora do contexto da Segunda Guerra: “por trás de um
regime e de sua ideologia há sempre um modo de pensar e de
sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos
obscuros e de pulsões insondáveis” (ECO, 2002, p. 34). Eco então
aponta para algo de universal, atemporal, no movimento fascista.
Murilo Mendes parece fazer o mesmo em relação à poesia,
contrapondo, a nosso ver, o fascismo em suas bases, em suas
características fundamentais. É contra os canhões de Mussolini e
tudo que o Duce representa que o poeta aponta a sua harpa de
obuses.
Uma das características do fascismo ressaltadas por Leandro
Konder (2009) e Umberto Eco (2002) é o pragmatismo radical
decorrente da miséria teórica. Devido à sua própria natureza
contraditória, ou seja, o fato de ser um movimento que se coloca
como contrário às instituições e à política tradicional mas que visa
conservar as bases de uma sociedade de classes submetida a
grandes grupos econômicos, o fascismo precisa fazer uso de
conjuntos de ideias que se colocam como universais mas que são
extremamente particularistas e excludentes. Devido ao seu
objetivo de impedir uma verdadeira revolução social, isto é, de
7faces • 153
barrar qualquer possibilidade de mudança da classe social no
poder, o fascismo se coloca como defensor dos interesses da classe
dominante do capitalismo ao mesmo tempo em que precisa contar
com o apoio de uma parcela significativa das massas. Assim se faz
necessária a utilização de ideais rasos que passem uma ideia de
universalidade, como a defesa de uma raça ou de uma nação
superior ou o combate supostamente intransigente à corrupção na
política.
A esse pragmatismo irrefletido e superficial a poesia muriliana
responde com a abstração do tempo e do espaço, como vimos no
“Poema antecipado”, que eleva as perspectivas para além das
noções mais chãs. A fusão entre terra e céu e o deslocamento
temporal do eu-lírico do poema dão a este um alcance
transcendental que foge à ordem de qualquer pragmatismo
imanente. Não é incomum encontrar na poesia muriliana versos
como os seguintes, de um trecho de “A jaula verde”:
7faces • 154
sua vez, passam a agregar a noção de potência de destruição
criadora, como a própria ideia de renovação em “Poema
antecipado” sugere.
A redução simplista dos fenômenos políticos e sociais que
fundamenta o pragmatismo fascista típico está atrelada a outra
característica importante do fascismo, segundo Konder (2009), que
é o mito da nação homogênea. Umberto Eco (2002) identifica essa
espécie de ficcionalização nacionalista tanto com a necessidade de
disfarçar as contradições de classe sob a falsa sensação de unidade
nacional quanto com a construção fictícia de inimigos dessa nação,
que funcionam como elementos agregadores das massas
despolitizadas em torno de um projeto conservador. Isso facilita a
escolha de quaisquer pessoas que se oponham ao status quo como
sendo inimigas da nação “verdadeira”, sejam essas pessoas
estrangeiras ou um “inimigo interno”, como judeus ou comunistas.
Se tomássemos como referência toda a obra de Murilo Mendes,
em oposição à ideia de nação ficcionalizada, poderíamos
obviamente começar por História do Brasil, de 1932, livro no qual
o poeta recria diversos momentos da historiografia oficial do país
de maneira satírica, desconstruindo o mito de um passado grave e
edificante no qual deveríamos nos espelhar. No entanto, estamos
tentando levar em consideração sobretudo características mais
intrínsecas à poesia muriliana, que sejam de ordem estrutural
antes de conteudística.
Em seu livro de aforismos O discípulo de Emaús, publicado em
1945, Murilo Mendes exige: “estamos cansados de relação;
restituam-nos a unidade” (1994, p. 880). No entanto, a noção de
unidade para o poeta está longe de incluir a de homogeneidade.
Parte da estética de sua obra diz respeito ao estranhamento
provocado pela aproximação entre elementos díspares. No poema
“Elegia nova”, o eu-lírico anuncia:
7faces • 155
No instante da eternidade. (MENDES, 1994, p. 432)
7faces • 156
complexa ― maneira que não encontra no chão histórico-social
que vivencia. Certamente foi essa tendência do poeta que levou
Arrigucci Jr. a comentar que “a ideia de uma harmonia feita de
tensões é cara à sensibilidade moderna, e Murilo explorou-a ao
máximo” (2000, p. 98).
Entretanto, é essa modernidade que é entendida pelo fascismo
como mero sinônimo de avanço tecnológico e de novidade,
perspectiva que elimina as complexidades do fenômeno moderno
(cf. KONDER, 2009) e o encaixa dentro dos moldes do
desenvolvimento armamentista e da tecnologia de guerra,
incluindo a da propaganda. O olhar que a poesia de Murilo Mendes,
por outro lado, lança sobre essa concepção de modernidade
restrita ao progresso material é de desilusão.
Telefonam embrulhos,
Telefonam lamentos,
Inúteis encontros,
Bocejos e remorsos.
7faces • 157
A associação entre as transformações tecnológicas e a violência
bélica diante das quais o poeta expressa o seu incômodo é ainda
mais compreensível quando consideramos o papel que o capital
industrial teve no desenvolvimento e no fortalecimento dos
movimentos nazista e fascista;
7faces • 158
a idade da Razão eram vistos (sic) como o início da
depravação moderna. (ECO, 2002, p. 43)
7faces • 159
usar recurso público com grandes empresas e ganhar dinheiro,
Uol Política, 22 de maio de 2020).
Referências
7faces • 160
NASCIMENTO, Evandro. “Murilo Mendes e Ismael Nery: poesia, amizade
e experiência”. In: YUNES, Eliana; BINGEMER, Maria Clara (Orgs.)
Murilo, Cecília e Drummond: 100 anos com Deus na poesia brasileira.
São Paulo: Edições Loyola, 2004.
SIMON, Allan. “Weintraub: Odeio o termo ‘povos indígenas’; Quer,
quer. Não quer sai de ré”. Uol Notícias, 2020. Disponível em
<https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-
noticias/2020/05/22/weintraub-odeio-o-termo-povos-indigenas-quer-
quer-nao-quer-sai-de-re.htm>. Último acesso em 17 de jul. de 2020.
REUTERS. “‘Vamos acabar com o cocô’, que são corruptos e comunistas,
diz Bolsonaro”. In: Exame, 14 de ago. de 2019. Disponível em
<https://exame.com/brasil/vamos-acabar-com-o-coco-que-sao-
corruptos-e-comunistas-diz-bolsonaro/>. Último acesso em 17 de jul. de
2020.
7faces • 161
7faces • 162
POEMAS (2)
7faces • 163
7faces • 164
Francisca Maria Fernandes
Oeiras – Portugal
7faces • 165
7faces • 166
ESTRANHO ROSTO
7faces • 167
TELEMÓVEIS
7faces • 168
HAICAI
FLOR DE CEREJEIRA
É branca a flor
É sakura, é asa
Que leva a dor
7faces • 169
7faces • 170
Wemerson Felipe Gomes
Belo Horizonte – Minas Gerais
7faces • 171
7faces • 172
AUSCULTAR ESTRELAS
Há um poema inteiro
na palavra auscultar:
como um sonho
narrado em
sintaxe estranha
(como se não
bastasse o som;
como se não
bastassem ouvidos)
Ora (direis)
auscultar estrelas!
E as estrelas se perdem;
o silêncio pulsa
E no ritmo vital
de um suspiro
a fragilidade
de ser se
revela
7faces • 173
DEVANEIO
E o devaneio não me
atinge mais:
eu, o devaneio
7faces • 174
SORTE
Sem sorte
o poeta marcha
(incomunicável)
E o ar já não é o mesmo;
já não é o mesmo o amor
encontraria ainda
a casa vazia;
e a mancha cinza na parede
estragaria seu último sorriso
Sem sorte
perdido
7faces • 175
MEDO
7faces • 176
Jeferson Barbosa
Goiânia – Goiás
É engenheiro civil por formação e poeta por querer. Autor do livro A Fútil Arte de Travestir-
me do que me Falta publicado pela editora Mondru. Participou do volume Além da Terra,
Além do Céu. Antologia de Poesia Brasileira contemporânea (2017) da Editora Chiado, e
publicou poemas na Revista Philos.
7faces • 177
7faces • 178
PEQUENO GAROTO DEVOTO AO TRONCO
7faces • 179
OS MÓVEIS CONTINUAM PRISIONEIROS
7faces • 180
A CASA ESTÁ VAZIA, E CHEIA DE RABISCOS
7faces • 181
7faces • 182
Sebastião Ribeiro
Passo do Lumiar – Maranhão
Nasceu em São Luís, Maranhão em 1988. É poeta e professor, graduado em Letras pela
Universidade Estadual do Maranhão. Publicado na antologia do Concorso Internazionale di
Poesia ‘Castello di Duino’ nos anos de 2010 e 2017. Componente da obra Acorde (Scortecci,
2011), com Igor Pablo Dutra e Wesley Costa; pode ser lido em Macondo n. 6 (2012); Samizdat
n. 39, e Substânsia n. 3 (2014), 7faces n. 11 (2015), Philos n. 2 (2016) e Mallamargens
(março/ 2020). Autor de & (Scortecci, 2015), Glitch (Scortecci, 2017) e Memento (no prelo,
2020).
7faces • 183
7faces • 184
R. ARAÇAGY, V. NAZARÉ
Encurralado por
perguntas nunca feitas
os pés no espaço
a sobra aqui
Cato
num longo desconhecer
a sobrevida
encostada num canteiro
de coroas-de-cristo
O passeio
é no espírito trancado
onde o punhal sorri
na mão do niilista
7faces • 185
PERDIÇÃO
no sono
o furor é remido
houve água por labirintos
mesmo dúvido
prossigo estático
escorre do tártaro
um desgosto fácil
qual passo em falso
em certos dias
vozes noutros
manchas no espelho
deduzo do próprio peso
meu soldado
2 semanas trincheira
3 kamikaze
7faces • 186
DAYDREAM
singra aramado
em meu ver
– nosso outro
A verdade
será belisco nos lábios
embarque numa futurice
parece um destino barato
me desligo
buscando o círio de
um olho estrelado
7faces • 187
7faces • 188
Lourenço de Almeida Duarte
Lisboa – Portugal
7faces • 189
7faces • 190
Quando eu morrer, deitem o meu corpo ao lago.
Alterem o Facebook para “é complicado”.
Ao padre, na igreja, que vá bugiar!
Se minha religião sempre foi sonhar
7faces • 191
7faces • 192
Mariana Godoy
Santo André – São Paulo
7faces • 193
7faces • 194
quando o apresentador no programa pergunta
se queremos mandar beijo para alguém,
sempre respondemos que sim.
é da nossa natureza
a prontidão para beijos.
o engraçado é que nesses casos,
o nome do beijado vem sempre seguido do município:
eduardo de nova friburgo,
camila de piracicaba.
quando não, vem nome com filiação:
karolina, filha da kátia,
rafael, filho do augusto.
é preciso ter certeza que o beijo
está indo para a pessoa certa.
não queremos,
de jeito nenhum deus me livre,
que o beijo se perca.
7faces • 195
ainda que milhões de pessoas me julguem idiota
pode ser que eu tenha sorte
ao encontrar um repórter na rua
e acenar atrás dele mostrando a cara
em horário nobre
7faces • 196
dona valéria diz que não anda dormindo bem
por causa do cachorro da vizinha.
7faces • 197
7faces • 198
Fábio Pessanha
São Gonçalo – Rio de Janeiro
Fábio Pessanha é doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tem publicações a respeito do sentido poético das palavras,
partindo principalmente das obras de Manoel de Barros e Paulo Leminski. Autor de A
hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro,
2013) e coorganizador de Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro,
2011). Assina a coluna “palavra : alucinógeno”, na Revista Vício Velho.
7faces • 199
7faces • 200
dizer um poema
invoca o silente
sentido do que
não existe ainda.
dizer um poema,
da mesma maneira
como se trava a
luta contra a linha
quebrada da frase.
dizer um poema
como conceber
um ato incendiário.
7faces • 201
sem laços que me segurem
nessa vontade tão sem
limites. tão sem amarras
que me fizessem caber
num instante apenas, então
eu diria mais do que
minha boca aguenta. ainda
faria um céu onde meus
pés pudessem sentir o
rosto obscuro da lua
e até choveria para
o lado de dentro do
medo. fertilizaria
meus horrores, inclusive
os mais diários, sem ter
que recusar os contornos
brutos do meu corpo, quando
largado num jeito estranho
de ocupar fronteiras entre
figuras imaginárias
e esse naco de pescoço
que não para de suar.
eu saltaria sobre o
seu desejo de inventar
desejos e largaria
todas as lâmpadas mágicas
com gênios engarrafados.
7faces • 202
nada que se diga
pra que serve a forma
das coisas se adéqua
bem em minhas mãos
prefiro ruir
a maneira dita
correta de se
inventar o dia
tudo conceber
como um ato ingênuo
ter como improvável
o andamento lúcido
de uma carta entregue
em branco eu faria
7faces • 203
o corpo existe para fora dele.
um corpo que mora no peso de
suas passadas. que cai. que vai ao céu
num assalto celeste. que chega ao
topo do chão. desce ao limite das
memórias engastadas de não mais
parir demora. o olho olha o que
do corpo é fora e se esquece da pele
que se esfola. o corpo é mais corpo no
sangue que nele nasce. existe. e sangra.
e jorra. e chora. e esvai-se em porra e lama.
7faces • 204
invento a pergunta mais impossível
a fim de fazer nascer um poema.
apoderar-se dos verões nos corpos
suados. como um leão que se apega
às presas e as ama com sangue nos
dentes, percebo a violência no escuro
das ruas. entre as calçadas exerço
7faces • 205
desconfio,
assim afeito a toda certeza
de que era
uma delinquência elaborada.
quase até
bem vista. não reclamava havia
muito tempo,
talvez por isso, com a inanição
da voz forte,
a violência prosseguia tal
como o gesto
anônimo que nascia ante
a imprudência
dos fatos. estava escuro o quarto,
só enxergava
a bofetada que me tirava
sangue dos
pensamentos. que me atirava ao
primitivo
ritmo da dor, que encurralava
mais a ira
em inflamados olhos. assim
o notava:
furioso em existência rara.
assim o
enxergava e então me dava por
derrotado
na vitória do que sempre esteve
ao meu lado,
mas não fui capaz de perceber.
7faces • 206
Delalves Costa
Osório – Rio Grande do Sul
Nasceu a 13 de dezembro, 1981, Osório, RS), escritor e poeta com vários livros editados, e
publicações em coletâneas e em plataformas literárias impressas e digitais, no Brasil e em
Portugal. Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS).
Graduado em Letras Português e Literatura Portuguesa pelo Centro Universitário Cenecista
de Osório (UNICNEC). Professor nas áreas de linguagem e pesquisa na rede público de
ensino. Pesquisador e palestrante. Publicações recentes: extemporâneo (Coralina, 2019) e
Óculos de princesa (Papo Abissal, 2020, infantil).
7faces • 207
7faces • 208
MADE IN BRAZIL
7faces • 209
A CASA NA ÁRVORE
7faces • 210
[()]
7faces • 211
LIQUIDEZ
7faces • 212
7faces • 213
Os autores
VALMIR DE SOUZA
É professor, pesquisador e ensaísta. Possui licenciatura em Letras pela Faculdade de Filosofia
Nossa Senhora Medianeira; Mestrado e Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada
pela Universidade de São Paulo (USP). Atuou como Pesquisador no Programa de Pós-Doutorado
de Gestão Pública da EACH/USP. Professor adjunto da Universidade de Guarulhos. Defendeu a
Tese Murilo Mendes: da história satírica à memória contemplativa. É autor do livro Cultura e
literatura: diálogos (Ed. do Autor).
7faces • 214
PATRÍCIA APARECIDA ANTONIO
Possui graduação e licenciatura em Letras (com dupla habilitação Português / Francês) pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, na Faculdade de Ciências e Letras /
Campus de Araraquara-SP (2009), Mestrado (2012) e Doutorado (2016) em Estudos Literários
pela mesma instituição, com projeto de pesquisa centrado na poesia-crítica de Murilo Mendes
e Francis Ponge. Atualmente, é professora de Língua Portuguesa do Serviço Social da Indústria.
7faces • 215
7faces • 216
7faces • 217
7faces
www.revistasetefaces.com
A Revista 7faces é uma produção semestral independente com interesse na publicação de poesia.
Editores
Pedro Fernandes de Oliveira Neto
Cesar Kiraly
Conselho editorial
Eduardo Viveiros de Castro
Ésio Macedo Ribeiro
Maria Filomena Molder
Nuno Júdice
Agradecimentos
Aos pesquisadores pelo aceite ao convite para compor esta edição e a todos que enviaram / cederam material para
a ideia. À Rozenn Le Gall pela cessão das imagens que ilustram esta edição.
Contato
Pelo correio eletrônico dos editores, pedro.letras@yahoo.com.br, ckiraly@id.uff.br ou através do
correio eletrônico da redação revistasetefaces@ymail.com
Revista 7faces.
Natal – RN. Ano 11. Edição n. 22. Ago-Dez. 2020.
ISSN 2177-0794
Distribuição eletrônica e gratuita. Os textos aqui publicados podem ser reproduzidos em quaisquer mídias, desde
que seja preservada a face de seus respectivos autores e não seja para utilização com fins lucrativos.
Os textos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores e fica disponível para
download em www.revistasetefaces.com
PubliLetras
7faces • 218
7faces • 219
Algumas das imagens desta edição foram coletadas na web e nos casos
identificáveis cita a fonte de todas as obras aqui disponibilizadas. Em caso
de violação de direitos, mau uso, uso inadequado ou erro, entrar em
contato através do correio eletrônico revistasetefaces@ymail.com; nos
comprometemos a atender as exigências no prazo legal de 72 horas
contadas do momento em que tomarmos conhecimento da notificação.
7faces • 220
7faces • 221
7faces • 222
7faces • 223
7faces • 224